Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1691/21.4T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
FIANÇA
AVAL
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
BENEFÍCIO DA DIVISÃO
BENEFÍCIO DA EXCUSSÃO PRÉVIA
DIREITO DE REGRESSO
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A impugnação pauliana (art. 610º do Código Civil) pode ter lugar não apenas quando o património do devedor não constitua acervo com capacidade ou valor de mercado suficiente para pagar uma determinada dívida, mas também quando, apesar de esse acervo ter essa suficiência, não tem o mesmo valor capaz de garantir o pagamento de todas as dívidas conhecidas por cujo pagamento o devedor é responsável.

II. A verificação desta insuficiência, aferida à data do momento da prática do acto impugnado (por ser nesse momento que pode suceder a violação da garantia patrimonial do credor), significa que a garantia patrimonial de qualquer crédito comum se revela corrompida, tendo os respectivos credores deixado de ter a segurança da satisfação integral dos seus direitos, ou sofrendo o agravamento dessa impossibilidade (art. 610º al. b) do Código Civil).

III. O requisito da al. b) do art. 610º do CC, de que resulte do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade, abrange “não apenas os casos em que o acto implique uma situação de insolvência, mas também aqueles em que o acto produza ou agrave a impossibilidade prática do credor obter a satisfação do seu crédito.

IV. Incumbindo ao devedor, nos termos do art. 611º do CC, interessado na manutenção do acto impugnado, a prova de que o seu património possuía, na data da celebração do acto impugnado, outros bens penhoráveis de igual ou maior valor que o montante da sua dívida para com o impugnante, daquele normativo resultando um desvio aos princípios gerais do ónus da prova ínsitos nos arts. 342.º e ss. do CC, bastando ao credor provar o montante, a existência e a anterioridade do seu próprio crédito, para que se possa presumir a impossibilidade da respectiva satisfação ou o seu agravamento.

V. De onde resulta que a titularidade pelo devedor de bens penhoráveis de igual ou maior valor constitui facto impeditivo ao direito de credor impugnar o acto, cabendo por isso ao devedor ou ao terceiro interessado a respectiva prova.

VI. Ou seja, provando o credor a existência das dívidas conhecidas, procedendo a impugnação se o devedor ou o terceiro interessado não demonstrar que o seu património reúne bens cujo valor seja igual ou superior ao montante daquelas dívidas, constituindo esta impugnação uma defesa por excepção, por serem tais factos, alusivos àquela sufiência patrimonial, impeditivos do direito invocado (art. 487° n° 2 do C.P.C.).

VII. No cálculo do valor dos bens do devedor para tal efeito, apenas importam e rellevam aqueles que integram o património de quem garante a satisfação do crédito do credor impugnante.

VIII. Sendo a obrigação garantida por fiança ou aval, apenas releva a situação patrimonial em cujo âmbito se integrava o bem sobre o qual recaiu o acto impugnado, “podendo o credor exigir que quer o património do devedor, quer o património do fiador ou do avalista, mantenham individualmente a sua capacidade de satisfazerem o respectivo crédito, mesmo que o fiador goze do benefício da excussão.

IX. Assim, a solvabilidade do património do fiador ou do avalista não impedirá a impugnação de acto do devedor que impeça a satisfação integral do crédito pelo seu património, tal como a solvabilidade do devedor também não impede a impugnação de acto do fiador ou do avalista que coloque o seu património em situação de não garantir a satisfação do crédito.

X. Para efeitos de determinação da insuficiência patrimonial, no caso de devedores solidários, não releva que o património de um deles ou dos demais tenha um valor superior ao crédito do autor, interessando apenas determinar a suficiência do património de onde saiu o bem doado, cujo acto se impugna.

XI. Assim, a solidariedade passiva não permite ao devedor opor ao credor o benefício da divisão ou escusar-se a cumprir por inteiro (arts. 512.º e 518.º do CC), ainda que chame outros co-devedores à lide em que tal lhe é exigido, o que apenas lhe assegurará o reconhecimento judicial do direito de regresso sobre aqueles (art. 317.º do NCPC).

Decisão Texto Integral:

Banco BIC Português, S. A.” (anteriormente denominado “BPN – BANCO

PORTUGUÊS DE NEGÓCIOS, S. A.”), instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, contra AA e mulher BB (1º e 2º RR.), e CC (3º R), menor, representado pelos seus pais, DD e EE,

Formulando o seguinte pedido:

«a) Serem declarados nulos, por absolutamente simulados, todos os negócios efetuados em 28-10-2019, por escritura pública outorgada a fls. 39 e 39 Vs. do livro 244 D do Cartório Notarial de ... (doação pelo 1.º e 2.º Réu ao 3.º Réu da nua propriedade sobre a fração autónoma, designada pela letra B, do imóvel organizado em propriedade horizontal, inscrito na matriz da UF de ... sob o artigo 2346, descrito junto da CRP de ... sob o nº 220, e ainda o respetivo recheio; reserva do direito de uso e habitação sobre o referido imóvel para os 1º e 2º Réus);

b) Caso assim se não entenda, e subsidiariamente, ser declarado o direito do A. à restituição ao património de primeiro e segundo Réus dos bens doados por escritura pública de 28-10-2019, por escritura pública outorgada a fls. 39 e 39 Vs. do livro 244 D do Cartório Notarial de ... (fração autónoma, designada pela letra B, do imóvel organizado em propriedade horizontal, inscrito na matriz da UF de ... sob o artigo 2346, descrito junto da CRP de ... sob o nº 220, e ainda o respetivo recheio) sendo reconhecido o direito do Autor a executar tais bens no património do terceiro Réu».

Para tanto, alegou, em síntese:

- em 2011, o A. celebrou com DD e EE contrato de mútuo com hipoteca, destinado à aquisição de fração autónoma, por via do qual aqueles receberam a quantia de € 207.500,00, e da qual se confessaram devedores, bem como dos juros, cláusula penal e despesas, com o montante máximo garantido de € 302.950,00;

- ficando o bom pagamento do empréstimo e encargos associados garantido por hipoteca (sobre a mesma fração autónoma), assumiram, por outro lado, a qualidade de fiadores os RR. AA e BB;

- desde 29/02/2016 que os mutuários não mais procederam ao pagamento das prestações em dívida, tendo o contrato sido resolvido por cartas registadas, com interpelação para pagamento dos montantes em dívida até 10/07/2017, no valor de € 206 747,54, o que não ocorreu;

- os RR. AA e BB foram notificados da resolução do contrato em julho de 2017 e da necessidade de pagarem aquela quantia, pagamento a que não procederam;

- foi, por isso, proposta contra os 1.º e 2.ª RR. ação executiva, tendo o 1.º R. sido citado para a execução em 05/01/2018 e a 2.ª R. em 04/01/2018;

- todavia, em 28/10/2019, por escritura pública, aqueles RR. declararam doar ao neto, e filho do mutuário DD, a nua propriedade sobre a fração autónoma aludida no petitório (art.º matricial 2346.º, com descrição predial sob o nº 220), bem como o respetivo recheio, reservando para si próprios o direito de uso e habitação, o que, atento o aludido incumprimento no âmbito do contrato de mútuo, fizeram em conluio com os mutuários, de modo a desviarem o seu património para um terceiro, tentando assim pô-lo a salvo dos credores;

- as doações declaradas, com reserva de direito de uso e habitação, por via da escritura sobredita, não têm qualquer aderência à realidade, sendo atos simulados e, por isso, inválidos;

- caso assim não se entenda, encontram-se verificados todos os pressupostos de procedência da ação de impugnação pauliana, tratando-se, ademais, de ato translativo gratuito, devendo proceder, por isso, o pedido subsidiário deduzido.

Os três RR. contestaram conjuntamente, impugnado diversa factualidade alegada na petição e pugnando pela improcedência, por não provada, da ação.

Para tanto, alegaram:

- que a doação pelos 1.º e 2.ª RR. ao seu único neto (3.º R.) não foi simulada, antes resultando de uma situação de problemas de saúde dos doadores, que pretendiam que o donatário passasse a ser o proprietário do imóvel, para salvaguarda do futuro deste, subsistindo o direito de uso e habitação por se tratar da única casa de habitação dos doadores;

- foi o A. que não aceitou negociar a dívida, nem pagamentos parciais pretendidos pela parte devedora, sendo a ação absolutamente infundada.

Proferido despacho saneador, com enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova, foi depois realizada a audiência final, seguida de prolação de sentença, que julgou a ação improcedente, por não provada.

Inconformado, o Autor apelou para o Tribunal da Relação do Porto, pugnndo pela revogação da sentença e procedência da acção.

Os RR. contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.

Foi proferido Acórdão que teve o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na procedência em parte da apelação, em revogar a sentença impugnada, julgando procedente, em substituição ao Tribunal a quo, o pedido, subsidiariamente deduzido, de declaração do direito do A./Apelante à restituição ao património dos primeiro e segunda Réus – por ineficácia em relação a tal demandante – dos bens doados através da escritura pública de 28/10/2019, outorgada no Cartório Notarial de ... [aludida, supra, em III, D), 1.16], sendo reconhecido o direito daquele A. a executar os respetivos bens no património do terceiro Réu.

…”

Inconformados, vieram os Réus interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, oferecendo as suas alegações, que culminam com as seguintes conclusões:

I. O douto Tribunal da Relação , com base na matéria de facto constante dos pontos 1 a 1.51 , nomeadamente fundamentando com os pontos 1.11, 1.12 , 1.19 e 1.50 , decidiu alterar parcialmente a decisão proferida pela primeira instância e considerar verificados os pressupostos da impugnação pauliana e, consequentemente,” julgar procedente o pedido, subsidiariamente deduzido, de declaração do direito do A./Apelante à restituição ao património dos primeiro e segunda Réus – por ineficácia em relação a tal demandante – dos bens doados através da escritura pública de 28/10/2019, outorgada no Cartório Notarial de ... , tendo sido reconhecido o direito daquele Autor a executar os respetivos bens no património do terceiro Réu”.

II. Ora, os Réus/ Recorrentes não se conformando com esse Acordão proferido, nessa parte que altera a decisão da primeira instância, por entenderem que o mesmo viola a lei substantiva, nomeadamente, porque enferma de erro na interpretação e, consequente, aplicação, das normas prescritas no artigo 610º, alínea b), do Código Civil e artigo 611º do mesmo diploma, não tiveram outra alternativa senão dele recorrer para que este Supremo Tribunal de Justiça se possa pronunciar.

III. De acordo com o disposto no artigo 610º do Código Civil são dois os requisitos gerais para a procedência da Impugnação Pauliana: a existência de um crédito e anterioridade desse crédito em relação à celebração do ato, ou, sendo posterior, que o ato tenha sido realizado dolosamente com vista a impedir a satisfação do crédito e resultar do ato a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito.

IV. O artigo 611º do mesmo diploma acrescenta que incumbe ao credor a prova do montante das dívidas e da anterioridade do crédito, e ao devedor ou terceiro interessado a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.

V. Ora, no caso em concreto, se é verdade que o crédito do banco Recorrido é anterior ao ato de alienação patrimonial ou doação que os primeiro e segundo Réus fizeram ao terceiro Réu do imóvel que constitui a sua habitação, já o mesmo não acontece em relação ao segundo requisito, ou seja, da doação não resultou a impossibilidade do pagamento integral à entidade financeira recorrida.

VI. Isso porque a impossibilidade de satisfação integral do crédito tem que ser aferida à data da escritura de doação, ou seja, à data de 28.10.2019 e, nessa data, o crédito do Autor estava garantido, no processo executivo, com o imóvel hipotecado/penhorado e descrito no ponto 1.1 da matéria de facto provada e, por isso, o Recorrido, aquando da instauração da execução, não indicou à penhora o bem doado em 28.10. 2019.

VII. Só em 12.11.2019, quando o Autor adquiriu o imóvel garante do contrato de mútuo, em que os primeiro e segundo Recorrentes foram fiadores, por um preço inferior ao crédito é que se verificou que a dívida do banco não foi paga integralmente, sendo que esta remanescência não poderia ter sido prevista na data da doação, como já atrás se demonstrou.

VIII. Pelo que, o Tribunal da Relação violou a alínea b) do artigo 610º do Código Civil e artigo 611º do mesmo diploma por erro na interpretação e aplicação dos mesmos, não tendo em atenção o espírito da lei, pois não considerou que a ocorrência da impossibilidade de satisfação integral do crédito do banco Recorrido tem que ser vista/aferida à data da escritura da doação, ao momento do ato impugnando.

Nestes termos e nos mais de direito aplicável deve o Acordão proferido pelo Tribunal da Relação na parte em que julgou “procedente o pedido, subsidiariamente deduzido, de declaração do direito do A./Apelante à restituição ao património dos primeiro e segunda Réus – por ineficácia em relação a tal demandante – dos bens doados através da escritura pública de 28/10/2019, outorgada no Cartório Notarial de ... , tendo sido reconhecido o direito daquele Autor a executar os respetivos bens no património do terceiro Réu”, ser alterado e substituído por outro que julgue não procedente a impugnação pauliana por falta de verificação dos seus pressupostos e por violação da lei substantiva , nomeadamente , por erro na interpretação e aplicação das normas dos artigos 610º, alínea b) e 611º do Código Civil.

Não prescindindo, na parte final do Acordão da Relação consta o seguinte: ”Custas da ação e da apelação pelos RR./Recorridos, atento o seu decaimento em ambas as instâncias (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

Ora, quer parecer que houve um lapso de escrita evidente pois os Recorridos não decaíram na 1ª instância mas sim o Autor, sendo que na segunda instância os Recorridos apenas decaíram parcialmente, pelo que, devia ter sido ser fixada, para efeitos de custas, a proporção do seu decaimento.

Por se ter tratado de lapso de escrita, requerem que seja ordenada retificação do Acordão, na sua parte final, no que dispõe à responsabilidade em sede de custas, no sentido de nele constar que que as custas da primeira instância são da responsabilidade do Autor e as custas da segunda instância são da responsabilidade dos Recorridos, na proporção do seu decaimento, devendo essa proporção do decaimento ser fixada para efeitos de eventual elaboração da conta de custas final.

O Banco BIC recorrido veio contra-alegar, concluindo nos termos seguintes:

I - DA INEXISTENCIA DE FUNDAMENTO DE RECURO DE REVISTA NOS TERMOS DO ARTIGO 671 º E 674º 1 ALÍNEA A) DO C.P.C

I . Os aqui designados como Recorrentes, AA E MULHER BB E CC, vem apresentar RECURSO DE REVISTA quanto ao douto Acórdão proferido pela Relação de Coimbra, que procedeu à “ na procedência em parte da apelação, em revogar a sentença impugnada, julgando procedente, em substituição ao Tribunal a quo, o pedido, subsidiariamente deduzido, de declaração do direito do A./Apelante à restituição ao património dos primeiro e segunda Réus – por ineficácia em relação a tal demandante – dos bens doados através da escritura pública de 28/10/2019, outorgada no Cartório Notarial de ... [aludida, supra, em III, D), 1.16], sendo reconhecido o direito daquele A. a executar os respetivos bens no património do terceiro Réu”.

2- Os Recorrentes fundamentam o Recurso de Revista, nos termos do artigos 671º

e 674º nº 1 alínea a) do C.P.C, ou seja, a violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável, sendo que no caso em concreto consideram os Recorrentes estar aqui em causa, a violação da lei substantiva, nomeadamente por erro na interpretação e aplicação das normas dos artigos 610 alínea b ) e 611º do Código Civil.

3- Pelo que, terão os Recorrentes de demonstrar que o Acórdão que pretendem impugnar efetou uma errada interpretação acerca dos pressupostos atinentes à verificação dos pressupostos de impugnação pauliana, e mais concretamente ao que o segundo requisito da impugnação pauliana diz respeito;

ASSIM,

4º- Entendemos que cabia aos Réus / Recorrentes o ónus de alegar e provar que no

património do devedor (no caso, o 1.º s Réu) ainda existiam bens penhoráveis de igual ou maior valor que o montante das dívidas (no caso, o valor do crédito do Autor);

5- Reportando-nos ao caso em concreto não se poderá conceber que, tendo sido efetuada a escritura de doação, a favor do aqui 2º Réu, e estando o imóvel do qual foi realizada a doação hipotecado / penhorado, a verdade é que o aqui Recorrido / Exequente viu-se coartado da satisfação integral do seu crédito, visto que do único bem que dispunha foi efetuada escritura de doação!

6- Assim, tendo sido provado o valor das dívidas (no caso, o crédito do Autor) e não

tendo sido feita a prova de que os 1.º s Réus possuem bens penhoráveis de valor igual ou superior, impõe-se concluir, por efeito de aplicação das regras inerentes ao ónus de prova pela verificação do requisito enunciado na alínea b) do citado art. 610;

7- Face ao exposto, e na nossa perspetiva não existe qualquer violação da lei

substantiva, nomeadamente por erro na interpretação e aplicação das normas dos artigos 610 º alínea b) e 611 º do C.C, razão pela qual deverá ser julgado findo o recurso pelo não conhecimento do respetivo objeto nos termos do artigo 652 n.º 1 alínea h) do C.P. Civil.

CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, O QUE NÃO SE CONCEBE,

II- DOS FACTOS:

8- Em 28-08-2017, foi proposta contra - inter alia – os 1º e 2º RR., tendo o 1º Réu sido citado para a a execução em 05-01-2018, e a 2ª Ré em 04-01-2018 (cfr. doc. 4 e 5), sendo que em 15-11-2017, já tinham estado presentes no juízo de Comércio de ..., para prestarem depoimento em processo de insolvência do filho e mutuante, pelo que não podiam ignorar a existência da dívida (doc. 6), tendo prestado depoimento em 31-01- 2018 (doc. 7);

9- Sucede que, em 28- 10-2019, por escritura pública outorgada a fls_ 39 e 39 Vs do livro 244 D do Cartório Notarial de ..., (doc. 8), 1º e 2º Réu doaram ao neto (e filho do mutuário DD) a nua propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra B, do imóvel organizado em propriedade horizontal, inscrito na matriz da UF de ... sob o artigo 2346, descrito junto da CRP de ... sob o nº 220, e ainda o respectivo recheio, reservando para si próprios o direito de uso e habitação (doc. 8), sendo tal direito ( de uso e habitação ) é, consabidamente, impenhorável (cfr. o art 1488º do CC).

10 - O referido processo executivo correu termos pelo juízo de execução de ..., sob o nº 3960/17.9..., recebeu o Autor 984,96 €, 8.523,68 € (doc.9 e 10), sendo que no âmbito da mesma, em conjunção com os autos de insolvência com o nº , recebeu o Autor, em adjudicação e contra o valor de 184 100,00 €, o imóvel referido em 2 (doc 11), conforme conta junta, ainda está em dívida, na referida execução, o montante de 234 847.55 €(doc. 12);

11- Assim, e retirando o imóvel que foi alienado, apenas estava penhorado o salário da 2ª Ré e do mutuante DD (C fr doc 13 e 14), que se revelam francamente insatisfatórios para pagamento de dívida daquela magnitude;

12- Assim, Os 1º e 2º RR., sabedores do que deviam, ainda tentaram umas “manobras

de diversão” junto do Autor, suscitando o estudo de múltiplos planos de pagamento, que nunca constituíram qualquer intenção séria, sendo que a concertada e reiterada actuação de 1º e 2º RR – que culminou com a dita escritura pública - teve o claro intuito de inviabilizar ao ora Autor o pagamento forçado dos seus créditos.

13º Encontrando-se, na prática, o ora Autor impossibilitado de recuperar o seu crédito – o que não aconteceria se os ditos bens doados (nua propriedade sobre o imóvel e recheio) não tivessem saído da esfera patrimonial dos primeiros e segundo RR, sendo que ao referido ato não está subjacente qualquer intenção negocial ou real projecto de vontade, demonstra-o à saciedade o facto de reservarem para si o direito de uso e habitação do imóvel – mas doarem o recheio, inviabilizando o respectivo exercício (pelo menos, de uma forma normal e satisfatória)!

14 - Temos que, não assiste qualquer tipo de razão ao Recorrente, nas conclusões que

formulam no presente recurso!

15 - Cumpre dizer que, daquilo que se extrai das conclusões formuladas pelos aqui

Recorrentes e elencadas, a discordância diz respeito à suficiência patrimonial que os Recorrentes consideram verificar-se, e por esse mesmo motivo discordam que o referido pressuposto se encontre devidamente preenchido!

16- Tendo por base, o supramencionado, pelos Recorrentes não lhes assiste qualquer

tipo de razão, naquilo que formulam nas conclusões.

III- REQUISITO DA ANTERIORIDADE DO CRÉDITO

17- Tendo por base, o supramencionado, tornar-se-á perfeitamente legítimo que o aqui Recorrido, para fazer face a esta dissipação do único património considerado como apto para fazer face à dívida, teria necessariamente de lançar mão da ação de impugnação pauliana tal como preceituada no artigo 610º do C.C;

18- Para que o credor possa recorrer à ação de impugnação pauliana é impreterível que estejam preenchidos os requisitos consignados nos artigos 610º; 611º e 612º do C.C;

19- Como primeiro requisito temos a anterioridade do crédito, exigindo o artigo 610º do C.C que o impugnante seja titular de um direito de crédito, que em princípio tenha sido constituído em data anterior à realização do ato impugnado.

20- Pelo que, e para aferir da anterioridade do crédito temos de ser essencial reportar-nos ao momento de constituição do direito de crédito do credor, isto é, se este se dá com a subscrição da livrança, na data do seu vencimento ou antes do seu pagamento;

21- Ora, temos que é irrelevante a data do vencimento do crédito, relevando-se apenas que a constituição do mesmo seja anterior ao ato impugnado;

22- Inerente à constituição do crédito é pacifico para os Recorrentes que, o mesmo foi constituído anteriormente ao ato de alienação patrimonial ou doação que os primeiros e segundo Réus fizeram ao terceiro Réu do imóvel que constitui a sua habitação.

23- No entanto, a grande questão que aqui se coloca prende-se essencialmente com a

existência da insuficiência do património que se coaduna com o segundo requisito inerente à ação de impugnação pauliana.

III- DA INSUFICIÊNCIA DO PATRIMÓNIO

DESTE MODO,

24- Outro dos pressupostos para que a ação de impugnação pauliana tenha procedência, e tal como preceituado no artigo 610 º do C.C, traduz-se no fato “de ser necessário que os atos em causa, possam envolver uma diminuição da garantia patrimonial “, isto é, podendo-se esta consubstanciar “numa redução do ativo do devedor, ou pelo aumento do seu passivo”;

25- É relevante atentarmos na possibilidade do agravamento da satisfação do crédito por

parte do credor poderá consistir na substituição dos bens do devedor por outros que sejam facilmente deterioráveis ou possivelmente consumíveis, como será o caso do dinheiro.

26- Reportando-nos ao caso em concreto não se poderá conceber que, tendo sido efetuada a escritura de doação, a favor do aqui 2º Réu, e estando o imóvel do qual foi realizada a doação hipotecado / penhorado, a verdade é que o aqui Recorrido / Exequente viu-se coartado da satisfação integral do seu crédito, visto que do único bem que dispunha foi efetuada escritura de doação!

27 - Pelo que, tendo sido provado o valor das dívidas (no caso, o crédito do Autor) e

não tendo sido feita a prova de que o 1.º s Réus possuem bens penhoráveis de valor igual ou superior, impõe-se concluir, por efeito de aplicação das regras inerentes ao ónus de prova pela verificação do requisito enunciado na alínea b) do citado art. 610.

28 - Assim, é evidente que não encontrar-se-á provada a suficiência patrimonial dos

aqui Recorrentes, de forma que o Recorrido pudesse ver satisfeito o seu crédito.

29 - Não assiste qualquer tipo de razão aos Recorrentes quando alegam que

efetivamente depois do ato impugnado, o património dos recorrentes, continuou a ser composto por um vasto património, quando o sabem que efetivamente não existiriam valores capazes de assegurar o montante em dívida, pelo que este bem o Tribunal a quo a dar este fato como não provado!

30- Face ao exposto, carecem por clara falta de razão, todas as conclusões formuladas pelos recorrentes no presente recurso de Revista!

Nestes termos e nos melhores de direito, deverão, V. Exs., julgar findo o Recurso pelo não conhecimento do respetivo objeto, por não se verificar a violação da lei substantiva, nomeadamente por erro na interpretação e aplicação das normas dos artigos 610 º alínea b) e 611º do C.C.

E caso assim não se entenda, o que não se concebe ainda assim, improceder o Recurso de Revista apresentado pelos Recorrentes.”

Apreciando liminarmente a admissibilidade do recurso:

Movendo-se a presente acção no âmbito da impugnação pauliana (art. 610º do Código Civil), tendo sido proferida sentença absolutória dos réus na 1ª instância, a Relação revogou aquela sentença, julgando integralmente procedente o pedido subsidiário formulado pelo autor, “de declaração do direito do A./Apelante à restituição ao património dos primeiro e segunda Réus – por ineficácia em relação a tal demandante – dos bens doados através da escritura pública de 28/10/2019, outorgada no Cartório Notarial de ... [aludida, supra, em III, D), 1.16], sendo reconhecido o direito daquele A. a executar os respetivos bens no património do terceiro Réu.

…”

Na sua resposta ao recurso de revista, o recorrido pugna pelo não conhecimento do respetivo objeto, por não se verificar a violação da lei substantiva, nomeadamente por erro na interpretação e aplicação das normas dos arts. 610.º, al. b), e 611.º do CC. Porém, tal situação, a verificar-se, tem que ver com a apreciação do mérito do recurso e não com a sua admissibilidade. Ou seja, só conhecendo do objecto do recurso é possível saber se houve ou não violação da lei substantiva nos termos alegados pelos recorrentes.

Não vislumbramos, assim, qualquer obstáculo à apreciação do recurso de revista.

Corridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

Vejamos:

O objecto do recurso assenta, assim, na apreciação dos requisitos de procedência da impugnação pauliana, em especial o ónus da prova do requisito previsto na al. b) do art. 610.º do CC - que resulte do acto impugnado a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade - atendendo ao ónus da prova previsto no art. 611.º do mesmo Código (adiante transcrito).

Entendeu-se no acórdão recorrido que ficou demonstrada a existência e o montante do crédito do autor, não tendo os réus alegado existirem bens dos devedores obrigados, penhoráveis, de igual ou maior valor, encontrando-se penhorados apenas os respectivos salários.

Não se aplicando ao caso dos autos o requisito da má-fé, uma vez que o acto a impugnar tem natureza gratuita, concluiu a Relação que estão verificados todos os requisitos de procedência da acção pauliana.

Alegam os recorrentes que os requisitos da impugnação pauliana previstos no art. 610.º do CC não se encontram integralmente preenchidos pois “se é verdade que o crédito do banco Recorrido é anterior ao ato de alienação patrimonial ou doação que os primeiro e segundo Réus fizeram ao terceiro Réu do imóvel que constitui a sua habitação, já o mesmo não acontece em relação ao segundo requisito ou seja da doação não resultou a impossibilidade do pagamento integral à entidade financeira recorrida. Isso porque a impossibilidade de satisfação integral do crédito tem que ser aferida à data da escritura de doação, ou seja, à data de 28.10.2019 e, nessa data, o crédito do Autor estava garantido, no processo executivo, com o imóvel hipotecado/penhorado e descrito no ponto 1.1 da matéria de facto provada e, por isso, o Recorrido, aquando da instauração da execução, não indicou à penhora o bem doado em 28.10. 2019.”

Argumentam ainda os recorrentes que “só em 12.11.2019, quando o Autor adquiriu o imóvel garante do contrato de mútuo, em que os primeiro e segundo Recorrentes foram fiadores por um preço inferior ao crédito é que se verificou que a dívida do banco não foi paga integralmente, sendo que esta remanescência não poderia ter sido prevista na data da doação, como já atrás se demonstrou.”

Concluem que “o Tribunal da Relação violou a alínea b) do artigo 610º do Código Civil e artigo 611º do mesmo diploma por erro na interpretação e aplicação dos mesmos, não tendo em atenção o espírito da lei, pois não considerou que a ocorrência da impossibilidade de satisfação integral do crédito do banco Recorrido tem que ser vista/aferida à data da escritura da doação, ao momento do ato impugnando”.

De acordo com o disposto no art. 610.º do CC: “os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:

a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.”

De acordo com o art. 611.º do mesmo Código “incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.”

Dispõe ainda o art. 612.º n.º 1, do mesmo diploma que “o acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé.” O n.º 2 define a má-fé como “a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.”

Com base nas referidas normas, a generalidade da jurisprudência do STJ sintetiza os requisitos cumulativos de procedência da impugnação pauliana da seguinte forma:

i) - A existência de um crédito e anterioridade do mesmo em relação à celebração do ato impugnado, ou, sendo posterior, que o ato tenha sido realizado dolosamente com vista a impedir a satisfação do crédito;

ii) - Resultar do ato a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa (im)possibilidade;

iii) - Sendo o ato oneroso, acresce a exigência da má fé, tanto por parte do devedor como do terceiro” (cfr. acórdão do STJ de 14-07-2022, Revista n.º 10105/17.3T8PRT.P2.S1). Também os acórdãos de 29-10-2019 (Revista n.º 18897/11.7T2SNT.L1.S1), de 25-10-2018 (Revista n.º 5914/09.0TBCSC.L1.S2), de 26-01-2016 (Revista n.º 2511/13.9TBMAI.P1.S1), de 23-01-2014 (Revista n.º 4489/1999.L1.S1), de 15-01-2013 (Revista n.º 5044/07.9TBLRA.C1.S1).

No caso em apreço, os recorrentes não colocam em causa a existência do crédito do autor, nem a anterioridade do mesmo face ao acto impugnado. Por outro lado, o objecto da impugnação é um acto gratuito (doação), pelo que não é necessário o preenchimento do requisito da má-fé.

Está, assim, unicamente em causa o preenchimento do requisito previsto na alínea b) do art. 610.º do CC – “resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.”

A propósito deste requisito, a jurisprudência do STJ tem afirmado de forma unânime que a lei abrange “não apenas os casos em que o acto implique uma situação de insolvência, mas também aqueles em que o acto produza ou agrave a impossibilidade prática do credor obter a satisfação do seu crédito” – cfr. acórdãos do STJ de 08-10-2009 (Revista n.º 1360/07.8TVLSB), de 09-02-2011 (Revista n.º 3573/06.0TBOAZ.P1.S1), de 01-10-2015 (Revista n.º 903/11.7TBFND.C1.S1 - 7.ª Secção, Relatora Maria dos Prazeres Beleza), e de 26-01-2016 (Revista n.º 2511/13.9TBMAI.P1.S1 - 1.ª Secção, Relatora Maria Clara Sottomayor).

Por outro lado, como referem os recorrentes na sua revista, o momento a que deve atender-se, para averiguar se se verifica o requisito da insuficiência económica do património do devedor é o da prática do acto que é objecto de impugnação – cfr. acórdãos do STJ de 23-06-2016 (Revista n.º 168/13.6TBPTL.G1.S1 - 7.ª Secção), de 08-06-2010 (Revista n.º 128/04.8TBFVN.C1.S1), e de 23-01-2014 (Revista n.º 4489/1999.L1.S1).

A este propósito, defende JOÃO CURA MARIANO (Impugnação Pauliana, Coimbra, Almedina, 2008, págs. 185 e 186) que: “A situação de impossibilidade de satisfação integral do crédito deve ser verificada na data da prática do acto impugnado, ponderando-se já os efeitos deste. É relativamente a este momento que deve ser efectuada a demonstração que o acto impugnado causou prejuízo ao credor impugnante, uma vez que é nesse instante que pode ocorrer a violação da garantia patrimonial do credor.”

Sobre o ónus da prova da verificação desse requisito, como acima se referiu, nos termos do disposto no art. 611.º do CC “incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.”

No caso dos autos, incumbe assim aos réus, interessados na manutenção do contrato de doação que é objecto de impugnação, a prova de que o 1.º réu e a 2.ª ré possuíam na data da celebração daquela doação, de outros bens penhoráveis de igual ou maior valor que o montante da dívida do aqui autor.

Conforme tem sido o entendimento da jurisprudência do STJ quanto a este art. 611.º do CC, do mesmo resulta um desvio aos princípios gerais acolhidos nos arts. 342.º e ss. do mesmo código, bastando ao credor, aqui autor, provar o montante do seu próprio crédito, “o que equivale a dizer que, provada pelo impugnante a existência e a quantidade do seu crédito e a sua anterioridade em relação ao acto impugnado, se presume a impossibilidade da respectiva satisfação ou o seu agravamento” – cfr. acórdão do STJ de 15-01-2013 (Revista n.º 5044/07.9TBLRA.C1.S1). No mesmo sentido vejam-se os acórdãos do STJ de 11-09-2018 (Revista n.º 10729/15.2T8SNT.L1.S1) e de 25-03-2021 (Revista n.º 12916/15.5T8LSB.L1.S1).

Ou seja, a titularidade pelo devedor de bens penhoráveis de igual ou maior valor constitui facto impeditivo ao direito do credor, cabendo por isso ao devedor ou ao terceiro interessado a respectiva prova – acórdão do STJ de 14-07-2022 (Revista n.º 10105/17.3T8PRT.P2.S1).

A este propósito, afirma JOÃO CURA MARIANO (ibid., pág. 189) que “ao credor bastará apenas provar a existência das dívidas conhecidas, procedendo a impugnação se o devedor ou o terceiro interessado não ripostar com a prova da existência no seu património de bens cujo valor seja igual ou superior ao montante dessas dívidas. Esta resposta à impugnação pauliana constitui uma defesa por excepção, uma vez que se verifica a alegação de factos impeditivos do nascimento do direito invocado (art. 487°, n.° 2, do C.P.C.).”

No caso dos autos, o autor provou a existência e a quantidade do seu crédito, bem como a sua anterioridade em relação ao acto impugnado, cabendo aos réus, aqui recorrentes, a alegação e prova que o acto impugnado não impossibilitou a satisfação desse crédito nem agravou essa impossibilidade.

(Neste sentido Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito Das Obrigações, vol. II, 13.ª edição, Coimbra, Almedina, 2021, págs. 310)

Sendo que essa impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade é aferida através “da avaliação da situação patrimonial do devedor após a prática do acto a impugnar. Sendo o peso comparativo do montante das dívidas e do valor dos bens conhecidos do devedor, susceptíveis de penhora, que indicará se desse acto resultou a mencionada impossibilidade” (cfr. acórdão do STJ de 08-10-2009, Revista n.º 1360/07.8TVLSB).

A este respeito, como sustenta CURA MARIANO (ibid., pág. 175): “é o peso comparativo do montante das dívidas e do valor dos bens conhecidos do devedor que indicará se desse acto resultou a mencionada impossibilidade. Se aquele montante for superior ao valor dos bens do devedor, verifica-se uma lesão da garantia patrimonial do credor que permite a utilização da impugnação pauliana; mas se for inferior ou igual, deve considerar-se que aquela garantia não foi afectada pelo acto praticado, não se verificando um prejuízo que justifique qualquer reacção. Daqui resulta que a impugnação pauliana não só pode ter lugar quando o património do devedor não está apetrechado de bens para solver uma determinada dívida, mas também quando, apesar dos bens existentes serem suficientes para pagar essa dívida, não têm um valor que garanta a satisfação de todas as dívidas conhecidas por cujo pagamento o devedor é responsável. Existindo esta insuficiência, a garantia patrimonial de qualquer crédito comum mostra-se danificada, deixando os respectivos credores de terem assegurada a satisfação integral dos seus direitos.”

Por outro lado, segundo o mesmo autor, “o cálculo do valor dos bens do património do devedor deve ser feito pelo seu valor de mercado (ibid., pág. 181).

Voltando ao concreto dos autos, resultaram provados os seguintes factos:

“1.1. Por ato de 29.04.2011, o autor celebrou com DD e com EE contrato de mútuo com hipoteca, destinado à aquisição da fração autónoma, designada por letra “A”, correspondente a habitação no rés-do-chão esquerdo, com uma cave, 1.º andar e sótão, sendo o sótão constituído por um compartimento destinado a arrumos e tendo a cave quatro compartimentos amplos, destinados a garagem e arrumos, e logradouro , por via do qual aqueles receberam a quantia de € 207.500,00 (duzentos e sete mil e quinhentos euros) e da qual se confessaram devedores, bem como dos juros, fixados à taxa anual de dez por cento, acrescida, em caso de mora, de uma sobretaxa de quatro por cento ao ano, a título de cláusula penal e das despesas, no valor de €8.300 (oito mil e trezentos euros), sendo o montante máximo garantido de €302.950 (trezentos e dois mil novecentos e cinquenta euros).

(…)

1.3. O montante mutuado foi de € 207.500 (duzentos e sete mil e quinhentos euros), o prazo de pagamento era de quinhentos e quarenta meses, a taxa de juro anual nominal a de 4.176% (quatro virgula cento e setenta e seis por cento) e taxa anual efetiva (TAE), calculada na data da celebração deste contrato a de 4.944% (quatro virgula novecentos e quarenta e quatro por cento).

(…)

1.9. Nos termos do referido mútuo, assumiram ainda a qualidade de fiadores os ora Réus AA e BB.

1.10. Nos termos da referida fiança, os RR AA e BB assumiram, a título principal, a responsabilidade pelo pagamento de todas as obrigações pecuniárias emergentes do mútuo, com renúncia ao benefício da excussão prévia e benefício do prazo, mais aceitando todas a modificações contratuais a pactuar (eventualmente) entre mutuante e mutuários.

1.11. Desde 29.02.2016 que os mutuários não mais procederam ao pagamento de qualquer das prestações a que se haviam obrigado e que se foram vencendo, tendo o contrato sido resolvido por via de cartas registadas bem como os mutuários notificados da necessidade de procederem ao pagamento dos montantes em dívida até 10 de julho de 2017, no valor de € 206 747,54 (duzentos e seis mil, setecentos e quarenta euros e cinquenta quatro cêntimos) o que não aconteceu.

1.12. Os RR AA e BB, foram notificados da resolução do contrato em julho de 2017 ficando cientes da necessidade de pagarem a quantia de € 206 747,54 (duzentos e seis mil, setecentos e quarenta euros e cinquenta quatro cêntimos) até 10 de julho de 2017, não tendo procedido ao pagamento de qualquer quantia.

1.13. Em 28.08.2017, foi proposta contra os 1º e 2º RR., ação executiva.

1.14. O 1º Réu foi citado para a execução em 05-01-2018, e a 2ª Ré em 04-01-2018.

(…)

1.16. Em 28.10.2019, por escritura pública outorgada a fls. 39 e 39 Vs do livro 244 D do Cartório Notarial de ..., 1º e 2º Réu doaram ao neto (3º réu e filho do mutuário DD) a nua propriedade sobre a fração autónoma, designada pela letra B, do imóvel organizado em propriedade horizontal, inscrito na matriz da UF de ... sob o artigo 2346, descrito junto da CRP de ... sob o nº 220 e ainda o respetivo recheio, reservando para si próprios o direito de uso e habitação.

1.17. A referida execução corre os seus termos pelo juízo de execução de ..., sob o nº3960/17.9..., tendo o autor sido pago na quantia de € 984,96 (novecentos e oitenta e quatro euros e noventa e seis cêntimos) e € 8.523,68 (oito mil, quinhentos e vinte e três euros e sessenta e oito cêntimos).».

1.18. No âmbito do processo de insolvência de EE e da execução movida pelo banco A. contra DD, nos quais se procedeu à adjudicação ao banco A. do imóvel hipotecado, tal A., em adjudicação e contra o valor de € 184.100,00 (cento e oitenta e quatro mil e cem euros), recebeu o imóvel.

1.19. Encontra-se penhorado o salário da 2ª Ré e do mutuante DD.

(…)

1.47. O valor da dívida em 23.10.2019 era de € 244.510.69 (duzentos e quarenta e quatro mil, quinhentos e dez euros e sessenta e nove cêntimos).

1.48. A autora recebeu pagamentos até março de 2022, no valor total de € 200.738,99 (duzentos mil, setecentos e trinta e oito euros e noventa e nove cêntimos).

1.49. O valor em dívida à data de 14.04.2022 era de € 43.771,01 (quarenta e três mil, setecentos e setenta e um euros e um cêntimo).

1.50. Com a dita escritura pública de doação, os RR. sabiam que o ora A. não poderia obter o pagamento, no âmbito executivo, através do património assim declarado doar.”

Com base nestes factos provados, os recorrentes alegam que na data em que foi celebrado o contrato de doação que é objecto de impugnação (28.10.2019), “o crédito do Autor estava garantido, no processo executivo, com o imóvel hipotecado/penhorado e descrito no ponto 1.1 da matéria de facto provada e, por isso, o Recorrido, aquando da instauração da execução, não indicou à penhora o bem doado em 28.10. 2019.”

Mais alegam que “só em 12.11.2019, quando o Autor adquiriu o imóvel garante do contrato de mútuo, em que os primeiro e segundo Recorrentes foram fiadores, por um preço inferior ao crédito é que se verificou que a dívida do banco não foi paga integralmente, sendo que esta remanescência não poderia ter sido prevista na data da doação, como já atrás se demonstrou.”

Em primeiro lugar, como sustenta CURA MARIANO (ibid., pág. 177): “O cálculo do valor dos bens do devedor, para este efeito, deve ter em consideração que apenas relevam aqueles que integram o património que garante a satisfação do crédito do credor impugnante.”

Assim, segundo o mesmo autor (ibid., págs. 178 a 180), nos casos das obrigações garantidas por fiança ou aval, somente importa a situação do património no qual se integrava o bem sobre o qual recaiu o acto impugnado, “podendo o credor exigir que quer o património do devedor, quer o património do fiador ou do avalista, mantenham individualmente a sua capacidade de satisfazerem o respectivo crédito, mesmo que o fiador goze do benefício da excussão. Assim, a solvabilidade do património do fiador ou do avalista não impedirá a impugnação de acto do devedor que impeça a satisfação integral do crédito pelo seu património, tal como a solvabilidade do devedor também não impede a impugnação de acto do fiador ou do avalista que coloque o seu património em situação de não garantir a satisfação do crédito.”

Em igual sentido, sobre este requisito de procedência da impugnação pauliana e a propósito de devedores solidários, veja-se o acórdão do STJ de 01-10-2015 (Revista n.º 903/11.7TBFND.C1.S1 - 7.ª Secção, Relatora Maria dos Prazeres Beleza), em cujo sumário se pode ler que “para determinar a insuficiência patrimonial dos devedores é irrelevante que o património dos demais obrigados solidários tenha um valor superior ao crédito da autora (apenas interessa, na verdade, determinar a suficiência do património de onde saiu o bem doado [sublinhado nosso] , pois a solidariedade passiva não permite ao devedor opor ao credor o benefício da divisão ou escudar-se a cumprir por inteiro (arts. 512.º e 518.º do CC), ainda que chame outros co-devedores à lide em que tal lhe é exigido, o que apenas lhe assegurará o reconhecimento judicial do direito de regresso sobre aqueles (art. 317.º do NCPC).”

No caso dos autos, o imóvel hipotecado e identificado no ponto 1.1. dos factos provados não pertencia aos fiadores, aqui 1.º réu e 2.ª ré, mas sim aos devedores DD e EE que celebraram o contrato de mútuo com o autor.

Também resultou provado que o 1.º réu e a 2.ª ré prestaram fiança no âmbito do contrato de mútuo referido no ponto 1.1. dos factos provados, através da qual assumiram, a título principal, a responsabilidade pelo pagamento de todas as obrigações pecuniárias emergentes do mútuo, não podendo por isso escudar-se a cumprir por inteiro a obrigação principal (art. 627.º, n.º 1, e 634.º do CC), a que acresce o facto de no caso dos autos, os referidos réus fiadores terem expressamente declarado renunciar ao benefício da excussão prévia (art. 640.º, n.º 1, al. a), do CC).

Assim, ainda que o valor do prédio hipotecado, pertencente aos devedores mutuários, permitisse a satisfação integral do crédito do aqui autor, o que, como adiante veremos, não ficou demonstrado, tal não impediria a impugnação do acto dos aqui réus fiadores que, com a celebração do acto de doação, colocaram claramente o seu património em situação de não garantir a satisfação do crédito do autor.

Pelo que a alegação da existência do prédio hipotecado, só por si, nos termos acima expostos, não impede a procedência da impugnação pauliana, improcedendo dessa forma, a argumentação dos recorrentes.

Mas, em segundo lugar, se é verdade que na data em que foi celebrado o acto impugnado (28-10-2019), o crédito do aqui autor estava garantido pelo imóvel hipotecado descrito no ponto 1.1. dos factos provados, que veio a ser adjudicado ao autor, nos termos constantes do ponto 1.18 dos factos provados, tendo os réus logrado provar esse facto, cabia-lhes também alegar e provar, nos termos do referido art. 611.º do CC que naquela data (28-10-2019), o valor de tal imóvel era igual ou superior ao valor em dívida.

O que resulta da matéria de facto provada é que o imóvel foi adjudicado ao autor pelo valor de €184.100,00 (ponto 1.18 dos factos provados), enquanto o valor da dívida em 23.10.2019, escassos dias antes da celebração do contrato de doação, era de € 244.510.69 (duzentos e quarenta e quatro mil, quinhentos e dez euros e sessenta e nove cêntimos).

Alegam os réus que “só em 12.11.2019, quando o Autor adquiriu o imóvel garante do contrato de mútuo, em que os primeiro e segundo Recorrentes foram fiadores, por um preço inferior ao crédito é que se verificou que a dívida do banco não foi paga integralmente, sendo que esta remanescência não poderia ter sido prevista na data da doação, como já atrás se demonstrou.” Porém, de acordo com o regime legal acima exposto, cabia aos réus demonstrar que na data da doação o valor do imóvel hipotecado que garantiu o contrato de mútuo que originou a dívida do aqui 1.º e 2.º réus, era superior ao valor em dívida.

Ou seja, se é verdade que o imóvel hipotecado pode ter sido adjudicado ao autor por um valor inferior ao real, cabia aos aqui réus a prova que o real valor de mercado de tal imóvel em 28-10-2019 era igual ou superior a € 244.510.69. Compulsado o teor dos articulados dos réus, nada foi alegado a esse respeito, sendo que, nos termos acima referidos, cabia-lhes o ónus de alegação e prova dessa factualidade.

Na verdade, provou-se apenas que se encontra penhorado o salário da 2.ª ré e do mutante DD, permanecendo em dívida à data de 14.04.2022, o montante € 43.771,01 (quarenta e três mil, setecentos e setenta e um euros e um cêntimo). O argumento de que o valor em dívida é baixo em comparação com o montante da dívida inicial não merece procedência porque não é um valor irrisório, pois, se o fosse já seguramente se encontraria liquidado, o que não sucede.

Em conclusão, não tendo os réus recorrentes demonstrado a titularidade de bens penhoráveis de igual ou maior valor ao montante da dívida na data da prática do acto impugnado, e estando preenchidos os restantes requisitos da impugnação pauliana, não merece censura o decidido no acórdão recorrido.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que integram a 7ª Secção Cível deste Supremo Tribunal de justiça em julgar improcedente a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Relator: Nuno Ataíde das Neves

1º Juiz Adjunto: Senhor Conselheiro Nuno Pinto de Oliveira

2º Juiz Adjunto: Senhor Conselheiro Sousa Lameira