Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20066/22.1T8LSB-E.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
INSOLVÊNCIA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
RELAÇÃO PROCESSUAL
FUNDAMENTOS
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO.
Sumário :

Sendo objecto da revista permitida pelo art. 14º, 1, do CIRE uma decisão interlocutória com incidência sobre a relação processual tramitada em processo de insolvência, resultante da conversão de um PEAP – versando sobre a tempestividade da apresentação de “plano de pagamentos” (arts. 249º e 251º do CIRE) –, a admissibilidade do recurso, em sindicação prévia correspondente aos requisitos gerais e próprios da revista (por força do art. 17º, 1, do CIRE), limita-se à al. b) do art. 671º, 2, do CPC (por restrição teleológica), permitindo-se apenas essa impugnação «quando estejam em contradição com outro [acórdão], já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme»; daqui resulta o condicionamento que tal implica para a aplicação do conflito jurisprudencial exigido pelo art. 14º, 1, do CIRE como fundamento recursivo exclusivo das decisões interlocutórias impugnáveis.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 20066/22.1T8LSB-E.L1.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, 1.ª Secção


Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. AA e BB, casados, vieram a juízo manifestar a sua vontade para se desencadear processo especial para acordo de pagamento (PEAP), nos termos do arts. 222º-A e ss do CIRE.


Foi nomeado administrador judicial provisório, o qual juntou lista provisória de créditos que, não tendo sido impugnada, se converteu em definitiva.


Concluídas as negociações, foi concedido prazo para a votação do plano apresentado pelos devedores, tendo votado credores com representação de 97,60% dos créditos constantes da lista definitiva de credores. Votaram a favor do plano de recuperação 20,66% dos votos regularmente expressos e 79,34% votaram contra tal plano.


Foi proferida sentença de não homologação do acordo de pagamento dos devedores nos termos do art. 222º-F, 5, do CIRE (5/8/2022).


2. Foi requerida a declaração de insolvência pelos Requerentes (19/8/2022) e, na sequência, proferido despacho (25/8/2022) em que foi ordenada a autuação daquele requerimento como processo de insolvência singular (apresentação), apensando-se ao mesmo o PEAP, assim como a notificação dos devedores, nos termos do art. 222º-G, 5, do CIRE, “para, em cinco dias, apresentarem o plano de pagamentos previsto nos artigos 249º e seguintes do CIRE que ali se propuseram apresentar”.

Notificados deste despacho, vieram os devedores, por requerimento de 26/08/2022, solicitar que, uma vez plasmada a vontade de requerer plano de insolvência, fosse dado “sem efeito a parte que respeita à apresentação pelos Insolventes de plano de pagamentos previsto no artigo 249º do CIRE, no despacho que antecede”.

Em resposta, por despacho de 26/08/2022, o tribunal considerou “não escrita a parte final do despacho que antecede, não sendo de efetuar a notificação ordenada”.

3. Foi proferida sentença pelo Juiz 4 do Juízo de Comércio de Lisboa (26/8/2022), que julgou procedente o reconhecimento da situação de insolvência dos Requerentes e o prosseguimento da acção.


Foi ainda decidido:

“Não se designa data para a realização de assembleia de apreciação de relatório, considerando a reduzida dimensão da massa insolvente, simplicidade da liquidação e ao facto de o devedor não ser titular de empresa, sendo que não está em causa nenhuma das situações previstas no n.º 2 do artigo 36.ºcfr. artigo 36º, n.º 1, alínea n), do aludido diploma legal.”

4. Notificados desta sentença, vieram os devedores e Requerentes (30/8/2022) reiterar o pedido de apresentação de um plano de insolvência, nos termos e para os efeitos dos arts. 192º e ss do CIRE, solicitando, por isso, a determinação de data para a realização de assembleia de credores (ref.ª CITIUS 33444616)


Em resposta, foram proferidos os seguintes despachos (24/11/2022):


“Os insolventes AA e BB requereram a convocação de Assembleia de Credores, porquanto pretendem apresentar um Plano de Insolvência.


Aquando da prolação da sentença que declarou a insolvência foi dispensada a convocação de Assembleia, ao abrigo do disposto no artigo 36.º, n.º 1, alínea n), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.


Entendem os insolventes que por serem titulares dos bens indicados no PEAP, de uma sociedade comercial e por estar em causa uma das situações do n.º 2, do artigo 36.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas deve ser convocada Assembleia de Credores.

Vejamos.

1 Na sentença que declarar a insolvência, o juiz:

(…)

n) Designa dia e hora, entre os 45 e os 60 dias subsequentes, para a realização da reunião da assembleia de credores aludida no artigo 156.º, designada por assembleia de apreciação do relatório, ou declara, fundamentadamente, prescindir da realização da mencionada assembleia.


2 O disposto na parte final da alínea n) do número anterior não se aplica nos casos em que for previsível a apresentação de um plano de insolvência ou em que se determine que a administração da insolvência seja efetuada pelo devedor.

A apresentação de um Plano de Insolvência e a administração pelo devedor corresponde a matéria regulada nos títulos IX e X, nos artigos 192.º a 222.º e 223.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Segundo o artigo 223.º o disposto no Título X «é aplicável apenas aos casos em que na massa insolvente esteja compreendida uma empresa».

O artigo 249.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Capítulo II Insolvência de não empresários e titulares de pequenas empresas, regula o Âmbito de aplicação[:]

1 O disposto neste capítulo é aplicável se o devedor for uma pessoa singular, e, em alternativa:

a) Não tiver sido titular da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;

b) À data do início do processo:

i) Não tiver dívidas laborais;

ii) O número dos seus credores não for superior a 20;

iii) O seu passivo global não exceder (euro) 300000.

2 – Apresentando-se ambos os cônjuges à insolvência, ou sendo o processo instaurado contra ambos, nos termos do artigo 264.º, os requisitos previstos no número anterior devem verificar-se relativamente a cada um dos cônjuges.

Regulando o artigo 250.º a inadmissibilidade de plano de insolvência e da administração pelo devedor, que aos processos de insolvência abrangidos pelo presente capítulo não são aplicáveis as disposições dos títulos IX e X, ou seja, o plano de insolvência e a administração pelo devedor.

Aqueles que podem apresentar um plano de pagamentos, nos termos do artigo 251.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não podem apresentar um plano de insolvência.

*

Analisada a massa insolvente auto de apreensão junto ao Apenso C, verificamos que os bens apreendidos correspondem:

a dois imóveis para habitação;

um prédio rústico;

duas quotas que correspondem à totalidade do capital social da sociedade C..., Lda., NIPC ... ... .64;

Direito à posição detida pelos insolventes no contrato de locação financeira imobiliária .....71;

4.000 obrigações BST Exposição Ásia registadas na conta depósito ..............16 junto do Banco Santander Totta.

Na petição inicial do processo especial de para acordo de pagamento os requerentes alegam serem gerentes da sociedade comercial C..., Lda., NIPC ... ... .64, que explora estabelecimentos de comércio de produtos alimentares.


A atividade comercial é desenvolvida pela sociedade comercial de que os requerentes são gerentes e não pelos próprios.


Assim e sem maiores fundamentações é de afastar a aplicação nestes autos do regime dos títulos IX e X, nos artigos 192.º a 222.º e 223.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Termos em que indefere a requerida convocação de Assembleia de Credores.

Notifique.

*

Os aqui devedores apresentaram-se em juízo com um plano de pagamentos no âmbito de um processo especial para acordo de pagamento, ao abrigo do disposto no artigo 222.º-A e segs., do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Processo a que recorreram considerando que não eram uma empresa, pois tal processo não se aplica a empresas 1, do artigo 222.º-A, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Nesse pressuposto apresentaram um plano que não mereceu aprovação.

Em caso de não aprovação do acordo e concluindo o Administrador pela insolvência do devedor pode este, notificado nos termos do artigo 222.º-G, n.º 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, deduzir oposição, apresentar plano de pagamentos nos termos do artigo 249.º e seguintes ou requerer a exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos artigos 253.º e segs.

O plano de pagamentos, caso o devedor não deduza oposição, deve ser apresentado no prazo de 5 dias da notificação cfr. artigo 222.º G, n.º 5, 6 e 7, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Termos em que se indefere a apresentação de um plano de pagamentos, ao abrigo do disposto no artigo 249.º e segs, por extemporâneo.

Notifique aos devedores para se pronunciarem.

Prazo: 5 dias.”

(Sublinhado nosso.)

5. Os Requerentes interpuseram recurso de apelação (6/12/2022) destes despachos para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, após delimitar as seguintes questões decidendas –


se nos presentes autos de insolvência de pessoas singulares (casal), que, previamente se apresentaram a processo especial para acordo de pagamento (PEAP), se justifica a convocação da assembleia de credores em resultado de os devedores terem manifestado a intenção de apresentarem plano de insolvência, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 192º e seguintes do CIRE”,


“se os devedores estão em tempo de apresentar plano de pagamentos” –,


proferiu acórdão (2/5/2023) que julgou improcedente o recurso e confirmou as decisões recorridas.


6. Inconformados, os Requerentes e depois declarados Insolventes vieram interpor recurso de revista excepcional para o STJ com fundamento nos arts. 14º, 1, do CIRE, e 629º, 2, d), e 672º, 1, c), do CPC, alegando “oposição jurisprudencial” com o Ac. proferido pelo TRGuimarães de 24/10/2013 (juntando cópia do publicado na base de dados www.dgsi.pt) sobre a questão – vistas as Conclusões VII. a XXIX. – do indeferimento da apresentação de plano de pagamentos ao abrigo do disposto nos artigos 249.º e 251º do CIRE, por extemporaneidade, após a declaração de insolvência por conversão de PEAP, visando a revogação do acórdão recorrido no segmento correspondente do segundo despacho de 1.ª instância proferido em 24/11/2022;


assim finalizaram os Recorrentes:


“deverá ser revogado o Acórdão recorrido, por se considerar não verificada qualquer circunstância que determine a extemporaneidade de apresentação de plano de pagamentos pelos aqui Recorrentes nos presentes autos, devendo determinar-se a oportunidade dos Recorrentes pela apresentação do Plano de pagamentos a que alude o artigo 249º e seguintes do CIRE.”


7. Recebidos e compulsados os autos, foi proferido despacho no âmbito e para os efeitos de aplicação do art. 655º do CPC, considerando o indicado e explanado regime obstativo de apreciação e conhecimento da revista, no qual foi, ainda e preliminarmente, convolada oficiosamente a revista em sede e no âmbito do regime previsto no art. 14º, 1, do CIRE, decisão esta transitada em julgado.


Pronunciaram-se os Recorrentes, sustentando a admissibilidade da revista e discordando do entendimento propugnado no despacho quanto à aplicação ao caso (com restrição teleológica e somente) da al. b) do art. 671º, 2, do CPC, batendo-se pela oposição jurisprudencial invocada com acórdão da Relação.


8. O valor da causa foi fixado em € 640.130,47 por despacho proferido na 1.ª instância em 9/11/2023, notificado às partes no processo em 17/11/2023 e ao Ministério Público em 14/12/2023, transitado em julgado.





Colhidos os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir em conferência, desde logo incidindo sobre a questão prévia da admissibilidade do recurso.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS


Questão prévia da admissibilidade do recurso


1. As decisões proferidas em 1.ª instância e reapreciadas pela Relação, sendo tramitadas endogenamente nos próprios autos do processo de insolvência, após conversão de PEAP, rege-se pelo especial regime de recursos previsto no artigo 14º, 1, do CIRE, que configura uma revista atípica e restrita e, por isso, delimitador da susceptibilidade da revista para o STJ do acórdão recorrido. Logo, o recurso para o STJ segue o regime do art. 14º, 1, do CIRE, afastando:


(i) o regime da revista excepcional em casos de “dupla conformidade decisória”; e


(ii) as impugnações gerais extraordinárias previstas pelo art. 629º, 2, do CPC;


tal como convolado nos autos.


2. O artigo 14º, 1, do CIRE determina:


«No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme».


Daqui resulta uma regra de não admissibilidade de recurso para o STJ, em terceiro grau de jurisdição, em litígios respeitantes a decisões, finais ou interlocutórias, relativas ao processo de insolvência, desde que tramitadas endogenamente ou por incidente, com excepção do apenso legalmente contemplado na parte final do art. 14º, 1, a não ser que – condição específica de recorribilidade – o recorrente cumpra o ónus específico de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários, promovendo assim a impugnação recursiva para o STJ.


3. A admissibilidade restrita e atípica do recurso de revista previsto no art. 14º, 1, do CIRE não dispensa, porém, a verificação das condições gerais de admissibilidade de recurso e dos requisitos próprios do recurso de revista (artigo 671º, 1 e 2, CPC), por força do art. 17º, 1, do CIRE.


4. No caso, após diligência do aqui Relator, verifica-se, quanto ao valor da causa, o preenchimento do art. 629º, 1, do CPC, relativo a condição geral de recorribilidade.


Sem prejuízo.


5. Sendo objecto da revista permitida pelo art. 14º, 1, do CIRE decisão interlocutória com incidência sobre a relação processual tramitada em processo de insolvência – como veremos ser o caso –, a admissibilidade recursiva depende da análise da previsão do art. 671º, 2, do CPC, regime da revista “continuada” das decisões interlocutórias “velhas” (proferidas originariamente em 1.ª instância)1, que determina que tais acórdãos «só podem ser objecto de revista»:


«a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;


b) Quanto esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.»


6. Em função dessa análise para efeitos de admissibilidade recursiva de decisão interlocutória em revista, e em coerência com o âmbito de aplicação restrito e condicionado do art. 14º, 1, do CIRE, não se deve aplicar a al. a) do art. 671º, 2, do CPC, uma vez que tal permitiria a impugnação recursiva «nos casos em que o recurso é sempre admissível», isto é, nos casos contemplados pelo art. 629º, 2, do CPC, nomeadamente na al. d) (oposição entre acórdãos da Relação «por motivo estranho à alçada»).


Ou seja.


7. No que toca à admissibilidade relativa às «decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual», apenas se aplica nas decisões interlocutórias insolvenciais, recorríveis nos termos do art. 14º, 1, do CIRE, o disposto no art. 671º, 2, b), do CPC, permitindo-se somente (por restrição teleológica do art. 671º, 2, do CPC, demandado previamente pelo art. 14º, 1, do CIRE) essa impugnação «quando estejam em contradição com outro [acórdão], já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme»; daqui resulta o condicionamento que tal implica para a alegação do conflito jurisprudencial exigido pelo art. 14º, 1, do CIRE como fundamento recursivo exclusivo das decisões interlocutórias impugnáveis, isto é, conflito jurisprudencial com acórdão do STJ2.


Esta interpretação e aplicação estão de acordo com a jurisprudência desta 6.ª Secção (com competência específica nas matérias de insolvência), ainda que nem sempre coincidente no percurso argumentativo, mas consensual no resultado interpretativo e sua aplicação aos casos concretos no âmbito circunscrito do art. 671º, 2, b), do CPC: Acs. de 11/12/20183, 10/12/20194, 10/5/20215, 26/5/20216, 7/7/20217, 15/3/20228 e 30/3/20239.


8. O recurso de revista interposto nos autos funda-se em oposição do acórdão recorrido com acórdão proferido por Relação em 2.ª instância, na exacta medida e objecto em que o acórdão recorrido (cfr. ponto 4.2, págs. 16-18) reapreciou uma “decisão interlocutória” (apresentação de plano de pagamentos após declaração de insolvência sequencial a PEAP no âmbito da insusceptibilidade de apresentação de plano de insolvência e realização de assembleia de credores) com incidência na relação processual pertinente à insolvência decretada, proferida em 1ª instância e regulando a tramitação do processo de acordo com o exercício do poder de direcção do juiz sobre a marcha processual – a saber: a tempestividade da apresentação do “plano de pagamentos” (julgada no segundo despacho proferido em 24/11/2022).


Transcreva-se, por isso, a argumentação e decisão da 2.ª instância, confirmativa do despacho de 1.ª instância, que foi colocada em crise nesta revista pelos Recorrentes (o aludido ponto 4.2.):


“Mas, o facto de aquela apresentação [de plano de insolvência] não ser admissível não impede que o devedor possa apresentar, conjuntamente com a petição inicial do processo de insolvência, um plano de pagamentos aos credores (artigo 251º do CIRE), ao qual pode aceder desde que cumpra uma das alternativas previstas no artigo 249º, nº 1: a) não tiver sido titular da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; ou, b) à data do início do processo, cumulativamente, não tiver dívidas laborais, o número dos seus credores não for superior a vinte e o seu passivo global não exceder € 300.00. E, como já vimos, os Recorrentes cumpriam a primeira das alternativas. Apenas ficariam excluídos dessa possibilidade se não cumprissem nenhuma delas. Por isso, contrariamente ao que alegam, não lhes estava vedada a possibilidade de recorrerem ao plano de pagamentos.


Foi nesse pressuposto que, no despacho datado de 25/08/2022 (que ordenou a autuação do requerimento de 19/08/2022 como processo de Insolvência Singular (Apresentação) e a respectiva apensação aos presentes autos de processo especial para acordo de pagamento) se determinou a notificação dos devedores, nos termos do artigo 222º-G, nº 5 do CIRE, “para, em cinco dias, apresentarem o plano de pagamentos previsto nos artigos 249º e seguintes do CIRE que ali se propuseram apresentar”.


Com efeito, decorre do artigo 222º-G, nº 5 do CIRE (na redacção dada pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro) que caso o administrador judicial provisório emita parecer concluindo pela insolvência do devedor, a secretaria do tribunal notifica o devedor para: a) deduzir oposição, que deve ser apresentada no prazo de cinco dias, por meio de requerimento; ou, b) querendo, e caso estejam preenchidos os respectivos pressupostos, apresentar plano de pagamentos de acordo com o disposto nos artigos 249º e ss.; ou, c) querendo, e caso estejam preenchidos os respectivos pressupostos, requerer a exoneração do passivo restante de acordo com o disposto nos artigos 235º e ss..


Ora, pese embora os Recorrentes tenham sido notificados do despacho de 25/08/2022 e, concretamente, para, em cinco dias, apresentarem plano de pagamentos, o certo é que por requerimento de 26/08/2022, vieram pedir que fosse dado “sem efeito a parte que respeita à apresentação pelos Insolventes de plano de pagamentos previsto no artigo 249º do CIRE, no despacho que antecede”, o que levou o tribunal considerar “não escrita a parte final do despacho que antecede, não sendo de efetuar a notificação ordenada”.


Por palavras simples, os Recorrentes nem sequer estavam interessados em requerer um plano de pagamentos [No entendimento dos insolventes que se deduz do requerimento de 26/08/2022 em que pedem que se “digne considerar sem efeito a parte que respeita à apresentação pelos insolventes do plano de pagamentos previsto no artigo 249º e seguintes, no despacho que antecede”, no seu caso não se mostravam preenchidos os pressupostos legalmente estabelecidos no artigo 249º do CIRE.]; pretendiam antes apresentar o (inadmissível) plano de insolvência. Cremos, pois, que, apesar de notificados para o efeito, não vieram atempadamente (porque nem o pretendiam), apresentar plano de pagamentos. Aliás, após ter sido proferida a sentença a declarar a insolvência (cujo prazo de prolação de 3 dias úteis se deve continuar a contar a partir do terminus do prazo de cinco dias de que o devedor dispõe para apresentar um plano de pagamentos), não pode o devedor vir agora apresentar plano de pagamentos, por ser claramente extemporâneo.”


Ficou assim sumariado quanto a esta decisão (ponto VI):

“É extemporânea a apresentação de um plano de pagamentos após a prolação da sentença que declara a insolvência, quando, apesar de notificados nos termos do disposto no art. 222º-G, nº 5 do CIRE, os devedores vieram pedir que se desse sem efeito essa notificação, por não estarem verificados os pressupostos previstos no artigo 249º do CIRE.”

Vemos, assim, que a decisão reapreciada pela Relação enquadra-se, manifestamente, nas decisões que, ao longo da instância, resolvem questões processuais de regulação da tramitação suscitadas até à decisão final, sem incidência sobre a relação material controvertida (decisão final sobre o mérito) ou sem determinar o termo do processo (decisão processual final)10, cujo recurso de apelação é admitido no quadro da matéria adjectiva contemplada no art. 644º, 211, em conjugação com o art. 620º, 1 (caso julgado formal), do CPC.


Ora.


Perante despacho(s) de natureza “intercorrencial” em processo de insolvência, impugnados e decididos em sede de apelação, o art. 671º, 2, b), do CPC exigia aos Recorrentes, para que se pudesse admitir o recurso de revista dessa(s) decisão(ões) interlocutória(s) no âmbito do art. 14º, 1 do CIRE, a invocação de oposição com um Acórdão do STJ: situação que não é a que consta dos autos – oposição de julgados entre decisões de Relações, tal como alegado pelos Recorrentes (mesmo que ainda carecida da apresentação de cópia certificada com nota de trânsito em julgado e independentemente de haver ou não efectiva divergência na interpretação e aplicação de um mesmo regime legal, no contexto de identidade ou equiparação da situação de facto subjacente, para o efeito de oposição relevante de julgados).


Se assim é de considerar, independentemente da bondade do decidido pelas instâncias em sede intercorrencial, falece por si só a admissibilidade do presente recurso por não gozar de apoio na alínea b) do n.º 2 do art. 671º do CPC, como base normativa de conhecimento do recurso no STJ à luz do art. 14º, 1, do CIRE.


9. O regime restritivo do art. 671º, 2, do CPC, assim como as implicações resultantes da sua conjugação com o art. 14º, 1, do CIRE, não ofendem princípios constitucionais relativos à igualdade material e à tutela jurisdicional efectiva (nomeadamente contemplados pelos arts. 13º, 18º, 2, 20º, 1 e 4, da CRP), como inúmeras vezes e em oportunidades diversas de discussão processual tem sido reiterado por este STJ.


É entendimento aceite na doutrina e na jurisprudência constitucional que o legislador tem um amplo poder de conformação na concreta modelação processual, neste caso aplicado aos regimes de impugnação recursiva, desde que não se estabeleçam mecanismos arbitrários ou desproporcionados de compressão ou negação do direito à prática desses actos (incidente aqui na impugnação recursiva).


Não é aqui o caso.


Não se configura uma situação de negação de acesso à justiça que afronte os princípios basilares de um Estado de Direito (particularmente o de «respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais», tal como prescrito no art. 2º da CRP).


A Constituição faculta ao legislador um grande espaço de definição e é desejável que assim o faça nesta matéria da impugnação recursiva (em geral e em especial) e das condições básicas que os interessados têm que conhecer e cumprir para a ela ter acesso, sob pena de frustração dos interessados visados – como se surpreende sem equívocos nos arts. 671º, 2, do CPC e 14º, 1, do CIRE.


III) DECISÃO


Pelo exposto, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso tendo por fundamento a sua inadmissibilidade.


Custas da revista a cargo dos Recorrentes.


STJ/Lisboa, 16 de Janeiro de 2024


Ricardo Costa (Relator)


Maria Olinda Garcia


Ana Resende


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)


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1. RUI PINTO, “Artigo 671º”, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, pág. 175↩︎

2. Enfatize-se que, para a revista “continuada” de “decisões interlocutórias” contempladas pelo art. 671º, o legislador, em regra, considera bastante o duplo grau de jurisdição (arts. 644º, 2, e 671º, 2, CPC), tal como já ocorria no âmbito do sistema dualista relativo ao recurso de agravo. A limitação recursória junto do STJ é adequadamente justificada pela necessidade de clarificação em tempo das questões de índole intrinsecamente processual. Por outro lado, saliente-se ainda a forte limitação de impugnação (com ressalvas) de decisões interlocutórias que o art. 630º, 2, do CPC protagoniza. V., doutrinalmente, ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 644º, págs. 200-201, sub art. 630º, 81 e ss, sub art. 671º, pág. 358. Na jurisprudência, v. os Acs. do STJ de 10/11/2016, processo n.º 3035/03.8TBTVD-D.L1.S1, Rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA, in Sumários de Acórdãos do STJ – Secções Cíveis, Boletim Anual, 2016, págs. 616-617, https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/Civel2016.pdf, e de 20/1/2022, processo n.º 667/07.9TBPTL.G3.S1, Rel. OLIVEIRA ABREU, in www.dgsi.pt.↩︎

3. Processo n.º 7067/17.0T8VNF-A.G1.S1, Rel. ANA PAULA BOULAROT, no qual, ainda que por via do regime geral recursivo, também se reserva para as decisões interlocutórias (no caso, proferida em processo especial de revitalização), depois de subtraídas ao regime do art. 14º, 1, do CIRE, em exclusivo, a disciplina preceituada no art. 671º, 2, b), CPC e, “assim sendo, a oposição exigida para a possibilidade de impugnação é com um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça” (a propósito, cfr. ponto II. do Sumário, in Sumários de Acórdãos do STJ – Secções Cíveis, Boletim Anual, 2018, pág. 737, https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/06/civel2018-1.pdf).↩︎

4. Processo n.º 2386/17.9T8VFX-A.L1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt:

“(…) a possibilidade aberta pela al. a) do art. 671º, 2, CPC para as decisões interlocutórias não é coerente com a impugnação restritiva do art. 14º, 1, do CIRE, uma vez que permitiria aceder ao STJ as impugnações gerais excepcionais que o art. 14º, 1, CIRE visa impedir. Se a sindicação do art. 671º, 1, não permite aceder tais impugnações excepcionais para as decisões “finais”, como filtro prodrómico à especialidade do art. 14º, 1, CIRE – quanto mais não fosse porque as als. c) e d) do art. 629º, 2, as permitem no cosmos processual dos conflitos jurisprudenciais, justamente onde se situa o regime especialíssimo do art. 14º, 1, do CIRE –, por maioria de razão as decisões interlocutórias não podem beneficiar dessa remissão do art. 671º, 2, a), para o art. 629º, 2, para as fazer aceder ao STJ em sede de recurso de revista. O que impõe, nesse cruzamento (demandado pela circunscrição objectiva do art. 14º, 1, do CIRE) das decisões interlocutórias ou intercalares insolvenciais recorríveis para o STJ e dos requisitos próprios do recurso de revista, a adequada restrição teleológica e o subsequente resultado interpretativo: no que respeita ao controlo desses requisitos gerais em referência às decisões interlocutórias, só pode contar o pressuposto referido e imposto pelo art. 671º, 2, b) – o conflito jurisprudencial com acórdão do STJ.

Tal solução restritiva – fundamentemos ainda mais – apresenta uma racionalidade que se compreende: submeter em grau limitado ao poder de cognição do STJ, em decisão processual interlocutória, questão fundamental de direito tendo por base justamente confrontar com o acórdão recorrido o exercício próprio (e anterior) de julgamento desse mesmo STJ, uma vez surpreendido o tema acerca do qual se verifica o conflito que tem origem na mais alta instância. E não suscita particular contrariedade: nesta rede jusnormativa, não é de todo implausível que a interpretação feita do art. 14º, 1, do CIRE, sendo este um regime que visa restringir o recurso de revista (através de um regime que estabelece uma excepção à regra da inadmissibilidade da revista na insolvência) se repercuta na interpretação e aplicação restritivas de uma norma – o art. 671º, 2, CPC – que sistematicamente precede adjectivamente esse regime excepcionalíssimo na sua interpretação e aplicação. Tanto mais que esse (único) pressuposto geral para a viabilidade recursória das decisões interlocutórias – a al. b) do art. 671º, 2, do CPC –, uma vez preenchido e numa lógica de consunção ou absorção, assegura igualmente o fundamento para o interessado recorrente se socorrer em ultima ratio do art. 14º, 1, do CIRE.” ↩︎

5. Processo n.º 1641/19.8T8BRR.L1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt (v. o ponto IV. do Sumário).↩︎

6. Processo n.º 5283/12.3TBFUN-I.L1.S1, Rel. PINTO DE ALMEIDA, in www.dgsi.pt (v. o ponto II. do Sumário).↩︎

7. Processo n.º 3384/19.3T8STS-A.P1.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA (sendo Adjunto no Colectivo o aqui Relator), in www.dgsi.pt:

“(…) não se poderá admitir que o recurso de revista respeitante a uma decisão interlocutória em matéria de insolvência pudesse ter um âmbito de admissibilidade mais amplo do que teria caso fosse disciplinada pelas normas gerais dos recursos, previstas no art. 671º do CPC. Consequentemente, o recurso de revista, respeitante a decisões interlocutórias, em matéria de insolvência, apenas seria admissível na hipótese prevista no art. 671º, n.º 2, alínea b) do CPC [ex vi do art. 17º do CIRE], ou seja, quando se invoque oposição do acórdão recorrido com um acórdão fundamento proferido pelo STJ.”↩︎

8. Processo n.º 823/21.7T8STS-A.P1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎

9. Processo n.º 206/14.5T8OLH-AI.E1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt: v. o ponto II. do Sumário.↩︎

10. V. RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 671º, págs. 175-176.↩︎

11. V. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 671º, pág. 358.↩︎