Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8/21.2F1PDL.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CORREIO DE DROGA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
No que tange à dosimetria concreta da pena, impõe-se repetir que, como se assinalou no recente ac. do STJ de 13/09/2023, proc. nº 176/22.6JELSB.L1.S1, Conselheiro Pedro Branquinho Dias, “Os chamados correios de droga (The mules) são uma peça fundamental no tráfico de estupefacientes, contribuindo, de modo direto e com grande relevo, para a disseminação deste flagelo, à escala global, pelo que não merecem um tratamento penal de favor. As necessidades de prevenção, sobretudo da prevenção geral, são muito prementes, incompatíveis, pois, com penas muito leves ou simbólicas.” E “Está, aliás, na bitola habitual da jurisprudência deste Supremo Tribunal, para casos semelhantes, que tem vindo a estabilizar-se desde já há algum tempo, com a aplicação de medidas concretas de penas que vão variando entre os 5 e os 7 anos de prisão.”
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na 3ª secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

I.1. Por acórdão de 10/05/2023 do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Central Cível e Criminal de ... - Juiz 2, foi condenado o arguido AA, além do mais, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. no artº.21º, nº.1, do DL 15/93, de 22 de janeiro, com referência às tabelas I-B e I-C anexas ao mesmo diploma legal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

I.2. Inconformado vem o arguido interpor recurso, em remate conclusivo assim:

“O presente recurso vem interposto do acórdão proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, por via do qual se decidiu pela condenação do ora recorrente, como autor material, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º n.º1 do Decreto-Lei n.º15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-B e I-C anexas ao mesmo diploma, na pena de 6 (seis) anos e seis meses de prisão. Na verdade, e salvaguardado o devido respeito, o ora recorrente com tão severa condenação não se pode de maneira alguma conformar. E dizemo-lo porquanto, salvo melhor opinião, a medida concreta da pena aplicada ao ora recorrente, é desproporcional e excessiva, atentas as circunstâncias concretas do caso.

Dito isto, e salientando que o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas será encontrado de um modo mais justo e equitativo de molde a saciar por um lado, o absolutamente imprescindível para realizar a necessidade de prevenção geral sob a forma de defesa da ordem jurídica, e por outro de modo a satisfazer as necessidades de prevenção especial. Pelo que á luz destes critérios, a pena de 6 anos e 6 meses afigura-se-nos bastante excessiva.

Sem prejuízo de se reconhecer que no caso concreto, as exigências de prevenção geral são muito elevadas, com especial relevo nesta região tão fustigada pelas consequências associadas ao vício que a droga desencadeia, cumpre salientar que, na perspetiva da prevenção especial, designadamente a positiva ou de socialização...a existência de vínculos estruturantes com a ordem social, nomeadamente, o facto do arguido, ainda (...) manter a esta data o vínculo laboral com a equipa técnica do ..., que continua a contar com a sua força de trabalho e com o contributo que também confere para a estabilidade dessa mesma equipa... e que irá irremediavelmente perder-se com uma pena tão duradoura. Bem como o efeito desagregador de tal pena na personalidade do arguido, posto que a sua inserção no quadro da reclusão, vai contrariar e reverter todo o processo evolutivo nesta caminhada que o arguido tem feito e com bravura assumido, como um bom cidadão aos olhos da comunidade. A que não é alheio a sua confissão praticamente integral, quanto à assunção dos factos, o seu manifesto e credível arrependimento, assim como, a sua reduzida participação na execução dos mesmos, a que não é estranho a ausência de conhecimento, da qualidade e quantidades de produto que consentiu transportar, assim o papel do arguido neste quadro de traficância como correio de droga, foi por assim dizer atípica, o que por essa via acaba por mitigar as mencionadas “razões de prevenção especial negativas, em razão do perigo de continuação” invocadas na decisão recorrida.

Assim não o tendo entendido o acordão recorrido violou, entre outros, o disposto nos artigos. 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal, razão pela qual discordamos da dosimetria da pena aplicada e pugnamos no essencial, por outra mais adequada aos critérios de justiça que o caso em concreto reclama.”

Acaba a pedir a diminuição da medida concreta da pena aplicada, “diminuindo-se a mesma, em ordem a que seja mais adequada aos critérios de justiça que o caso em concreto reclama.”

I.3. O MºPº não respondeu.

I.4. O SR PGA junto do STJ apresentou parecer onde concluiu “a decisão recorrida mostra-se bem fundamentada, de forma lógica e conforme às regras da escolha e medida da pena, sendo fruto de uma adequada e criteriosa apreciação de todos os factores reputados relevantes à luz do disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal, e, em função disso, aplicada uma pena de prisão justa e adequada.”

I.5. Foi cumprido o contraditório. Veio resposta mantendo o Recorrente o dito nas alegações de recurso.

I.6. Foi aos vistos e decidiu-se em conferência.

I.7. Admissibilidade e objeto do recurso

I.7.1.O recurso, per saltum, tem por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou ao recorrente uma pena de prisão superior a 5 anos. Visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, da competência deste tribunal, nos termos do artigo 434 do CPP.

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

Não vêm invocados vícios ou nulidades que podem constituir fundamento do recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. c), na redação da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro].

Tendo sido interposto, em tempo, com legitimidade e interesse em agir, é de admitir, 432, nº 1, al. c), e 434 do CPP.

I.7.2. Questão a decidir: é desproporcional e excessiva a pena de prisão aplicada, devendo ser reduzida?

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. Factos provados

“O arguido, no início de setembro de 2021, durante cerca de três semanas, travou conhecimento, em ..., perto da Marina, com um tal BB ou CC, que não foi possível identificar, nem o arguido conhecia ao certo, ao qual confidenciou dificuldades financeiras, que o dito BB se prontificou a resolver;

Isto desde que o arguido aceitasse tratar do transporte marítimo de um veículo, carregado com quilos de produtos estupefacientes, designadamente canábis-resina, vulgo haxixe, de Portugal continental para o porto comercial de ...; o que o arguido aceitou;

O arguido, para o efeito, indicou a sua morada, na Rua..., em ..., e também ficou acordado com o estranho BB que o arguido ficaria dono do veículo, depois de recebido em ..., e outros indivíduos retirarem o haxixe que trazia escondido;

Mais ficou acordado que iria ser colocado um telemóvel novo na caixa do correio do arguido para controlar o pagamento do transporte, a chegada do carro a S. Miguel e o posterior levantamento da droga que o carro trazia, o que o arguido aceitou;

No fim de setembro/início de outubro de 2021 aquele telemóvel, marca “Alcatel”, modelo 2003G, foi colocado na caixa de correio do arguido por um desconhecido, com o código do telemóvel, aparelho que o arguido carregou;

Tendo a partir daí o arguido recebido chamadas e mensagens de um homem desconhecido, que gravou no telemóvel como “M”, nº........54, tendo ainda gravado o número do próprio telemóvel, .......47, com as letras Nn., o desconhecido remeteu ao arguido quatro mensagens com os dados do veículo, para fazer a marcação do transporte na empresa “A..., Lda.”;

O homem totalmente desconhecido informou assim o arguido da marca, modelo e matrícula do veículo - um veículo ligeiro de passageiros de marca “Volkswagen”, modelo “Caddy”, do ano de 2015, que “estava espetacular” e tinha a matrícula ..-QQ-.., veículo que tinha sido comprado em Portugal continental em nome do arguido a 12 de outubro de 2021, por €10.750,00 em dinheiro, na empresa “V..., Lda”, sem qualquer contacto por banda do arguido;

O mesmo homem desconhecido mandou o arguido ir à “A..., Lda.” para controlar as datas de envio e de chegada do veículo, tendo o arguido de tratar tudo sozinho para apenas ele se identificado - o que o arguido aceitou, sabendo que o veículo ia trazer, escondidos, quilos de haxixe;

O arguido assim fez, e ainda combinaram que o arguido, recebido o veículo, o ia estacionar à frente da sua casa, na Rua ..., ..., pondo as chaves em cima de um dos pneus, para o veículo ser deslocado, retirado o haxixe que ali estava escondido, e depois voltava a ser estacionado no mesmo local; podendo depois o arguido dispor do veículo como bem entendesse;

Continuando o arguido a saber que o carro transportava produtos estupefacientes -mas tendo a perspetive de ficar com a propriedade do veículo por um valor reduzido ou até simbólico - quando soube que o carro ia chegar dia 19 de outubro de 2021 ao porto de ..., foi, instruído pelo desconhecido “M”, pagar à empresa transitária “A..., Lda..”, em dinheiro, o custo do transporte, no valor de €596,54, antes de levantar o veículo;

O veículo foi entregue no porto comercial de ... pelo transitário, no dia 19 de outubro de 2021, em nome do arguido, sendo então fiscalizado pela Guarda Nacional Republicana (GNR), na presença do seu dono, o aqui arguido;

Como o veículo foi sinalizado pelo binómio da Guarda Nacional Republicana com treino para detetar produtos estupefacientes, o veículo foi deslocado para o parque da Polícia Judiciária de ..., pelas 11h45 do dia 19 de outubro de 2021;

Efetuada busca ao veículo ali foi encontrado e apreendido, escondido dentro do veículo, na caixa de carga, entre o contraplacado e a chapa lateral interior de ambos os lados, bem como nas portas, envoltos em fita adesiva ou em plástico:

a) 191 placas de cannabis-resina, com o peso bruto de 18059.773 gramas, com a inscrição “Nicole Kush”, com grau de pureza de 20.7, bastante para 74767 doses;

b) 89 placas de cannabis-resina, com o peso bruto de 8382.398 gramas, com a inscrição “Dior”, com grau de pureza de 20.0, bastante para 33529 doses;

c) 1 embalagem oval, com cocaína, com o peso de 248.500 gramas, grau de pureza de 53,5, bastante para 664 doses;

d) e o veículo que transportava os produtos estupefacientes;

No interior do veículo foi ainda encontrado e apreendido:

a) Uma guia de saída do Porto ..., com as referências do veículo e o registo GDS.......60;

b) Uma folha A4 com o logotipo do Terminal de Santa Apolónia, com a inscrição “44 Laura S PDEL ..-QQ-.. VW CADDY”;

c) Um cartão com o autocolante “44 CARG Laura S 140/2021 ..-QQ-.. VW CADDY PDEL”;

d) Uma declaração de venda do veículo, datada de 11 de outubro de 2021, figurando com vendedora a empresa “V..., Lda”, com sede na Rua ..., lote 27, ..., e o arguido como comprador;

e) A ficha de inspeção periódica do veículo;

Efetuada revista ao arguido, foi encontrado e apreendido:

a) Na sua carteira, €575,00;

b) Uma fatura-recibo da empresa “A..., Lda.”, com o nº........88, datada de 19 de outubro de 2021, com o NIF do arguido, .......28;

c) No bolso das calças do arguido foram encontrados e apreendidos dois telemóveis, um que tinha sido dado pelos desconhecidos, da marca “Alcatel”, modelo “2003G”, com o IMEI .............87, com o cartão SIM .......47, e outro telemóvel de marca “Samsung”, modelo “Galaxy S20 FE 5G”, com os IMEIs .............55/24 e .............56/24, com o cartão SIM .......53; no telemóvel Alcatel tinha dois contactos, “M .......54” e “Nn. .......47, bem como quatro SMS do contacto “M”, com os dados do veículo VW, e histórico de chamadas apenas para o nº........51;

O arguido atuou voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal, e conhecia as características estupefacientes das substâncias que fez transitar e facultou transportar no seu veículo, entre Portugal continental e ... ....

Resulta do relatório social e do CRC do arguido:

a). AA, à data da alegada prática dos factos (19.10.2021), residia sozinho, com o seu animal de estimação (cão), situação que se mantém, num apartamento (onde reside desde abril de 2015) cedido pela progenitora, o qual dispõe de boas condições de habitabilidade. A satisfação das necessidades básicas encontra-se assegurada, através dos rendimentos provenientes da sua atividade profissional como Técnico de Logística (iluminação, som, assistência ao palco, entre outras) no ... em ..., no valor de cerca de €818,00 (oitocentos e dezoito euros), acrescido de horas extraordinárias, quando as realiza. Como principais encargos o arguido tem as despesas fixas mensais de consumo doméstico no valor de cerca de €165,00 (cento e sessenta e cinco euros).

Sendo a habitação cedida pela progenitora, o arguido não tem como encargo o pagamento da renda da habitação. AA é o mais velho de uma fratria de três elementos, nascido no seio de um agregado familiar de condição socioeconómica média alta e caraterizado, aparentemente, por uma dinâmica familiar estruturada e funcional e na qual beneficiou de adequado suporte afetivo por parte dos progenitores, figuras que transmitiram regras e valores claramente definidos à fratria. O pai (falecido em 2010) era empresário na área da ... (era proprietário de uma fábrica de bolachas, biscoitos, bolos de arroz, entre outros) e a mãe (octogenária, em condição de reformada) era ... nos CTT Correios de Portugal. O arguido, mesmo em criança era medrosa, hiperativa, algo rebelde e muito permeável à influência de terceiros, contudo, de fácil trato, cumpridora das regras e que transmitiram regras e valores claramente definidos à fratria. O pai (falecido em 2010) era empresário na área da panificação (era proprietário de uma fábrica de bolachas, biscoitos, bolos de arroz, entre outros) e a mãe (octogenária, em condição de reformada) era ... nos CTT Correios de Portugal. O arguido, mesmo em criança era medrosa, hiperativa, algo rebelde e muito permeável à influência de terceiros, contudo, de fácil trato, cumpridora das regras e disciplina familiares, realizando uma integração social positiva até ao início do consumo de produtos estupefacientes, contexto que veio abalar de forma profunda o relacionamento com o agregado familiar e algum afastamento/mágoa por parte deste. Relativamente ao percurso escolar, integrou o sistema de ensino em idade própria até concluir o 8º ano de escolaridade. No decurso do 9º ano, desistiu dos estudos por falta de motivação, altura em que começou a apresentar problemas de comportamento e rebeldia em contexto familiar, quando tinha cerca de 18 anos de idade, não cumprindo com as regras impostas pelos progenitores, nomeadamente, os horários de regresso a casa ao fim do dia. Mais tarde, em ..., e aquando de cumprimento de pena de prisão, AA concluiu o 12º ano de escolaridade -área de Técnico de Informática e de Análise de Sistema (nível 4). No que concerne à problemática aditiva, AA, iniciou o consumo de canabinoides com cerca de 13 anos de idade e 3 anos mais tarde tornou-se dependente de Heroína e de Cocaína (esta última já se encontrava no ...), sem que os pais se tivessem apercebido. Entre 2007 e 2009 e aquando do agravamento da problemática aditiva, AA vivenciou situação de sem abrigo e beneficiou do apoio do CATE (Centro de Acolhimento Temporário e de Emergência) -valência ... - Associação para a Inclusão Social, ao nível da habitação, tendo residido no Centro de Acolhimento Temporário em .... Posteriormente passou por uma fase na qual conseguiu autonomizar-se a nível habitacional, num primeiro momento com o apoio económico da Rede de Suporte Sócio Cultural à Mobilidade Humana e, posteriormente, assegurado pelo próprio. Contudo, poucos meses após ter conseguido autonomizar-se, e na sequência de uma fase de desemprego, deixou de pagar a renda do quarto, o que o levou novamente a necessitar de apoio do CATE. Deu entrada pela primeira vez na A...... em 1.10.2015, tendo ficado integrado no Programa de Monitorização da Abstinência com recurso a testes de despiste toxicológicos. Em 31.5.2016 foi transferido para o Programa com Agonista de Opiáceos com Cloridrato de Metadona onde se mantém até à presente data, sendo assíduo às tomas diárias de Cloridrato de Metadona (a última consulta médica ocorreu em 24.9.2021). Tem sido sujeito a testes de despiste toxicológicos cujos resultados, à exceção de Metadona, Benzodiazepinas e Tricíclicos, têm sido, no geral, negativos a substâncias psicoativas, embora com registo de 4 testes positivos a canabinoides e 1 positivo a K2 Spice, em 11.1.2023. Desde 5.11.2015 que se encontra com acompanhamento psicológico, em regime follow-up, pelo que tem comparecido às convocatórias e apresentado uma postura adequada (a última consulta de follow-up registou-se a 4.11.2022). Em termos profissionais, o percurso laboral foi irregular até 2015, sendo descrito, no entanto, pelas entidades patronais como bom trabalhador, contudo, manteve-se pouco tempo em cada entidade patronal, embora nem sempre fosse claro o porquê do abandono dos empregos. Após ter abandonado o sistema de ensino, começou por apoiar o progenitor na empresa deste e, posteriormente, nos CTT Correios de Portugal (durante cerca de 2 anos), como auxiliar/contínuo, vindo a celebrar um contrato de trabalho como ... (com a duração de 6 meses), mas que não chegou ao termo por suspeita de desvio de correspondência. Trabalhou, igualmente, na área da construção civil em abril de 2009, na ilha ..., contudo, 3 meses mais tarde abandonou o trabalho, regressando à Ilha de ..., tendo permanecido durante alguns dias num anexo à habitação dos progenitores. No entanto, na sequência de alguns conflitos entre este e os pais, pelos comportamentos que assumia, teve de sair da casa dos progenitores e voltou a pedir apoio institucional à Associação .... AA contraiu matrimónio com cerca de 21 anos de idade com DD, tendo emigrado 4 anos mais tarde para o ..., onde residiam os sogros. Da relação nasceu um filho, EE, atualmente com 33 anos de idade, a residir em .... O relacionamento conjugal foi sendo deteriorado por incompatibilidade de feitios, bem como, pela problemática aditiva do arguido, ocorrendo a separação do casal cerca de 5 anos depois, com a saída de casa de AA. No país de acolhimento trabalhou como ... de cofragem e, em regime noturno, concluiu um curso de informática. Contudo, cerca de 8 anos depois, na sequência do seu envolvimento em vários conflitos em bares e discotecas, acabou por ser detido e condenado no cumprimento de 8 meses de prisão, tendo sido libertado 6 meses depois e repatriado para os Açores em 1999. Em ... foi acolhido pelos pais com quem residiu uns meses, tendo conseguido posteriormente colocação laboral na ..., onde permaneceu cerca de um ano e posteriormente em ..., por conta de uma firma de construção civil. Regressou a ... em 2002, por não receber regularmente o seu salário, reintegrando a família de origem. Em 2004 encetou novo relacionamento afetivo, com FF, com quem tem uma filha, GG, atualmente com 18 anos de idade, estudante, que se encontra a residir com a avó paterna. Contudo, 7 meses mais tarde, ocorreu a separação, por desentendimentos entre o casal. Os progenitores, então, saturados, já não estavam dispostos a acolher o filho na sua casa e, durante uns meses, custearam o pagamento das rendas dos quartos onde AA ia residindo, sem conseguir manter um percurso profissional regular, devido ao agravamento da sua toxicodependência. Relativamente à ocupação dos tempos livres, tem por hábito ir passear o cão e estar em casa, onde se dedica à programação informática. O arguido demonstra imaturidade, tendendo a alguma ingenuidade. Demonstra, igualmente, ser um indivíduo com reduzida tolerância à frustração, muito permeável à influência de terceiros e uma vivência orientada para a satisfação imediata das suas necessidades, embora reconheça o desvalor da sua conduta e tenha lamentado a deterioração do relacionamento com a progenitora e irmãos. A primeira ligação do arguido ao Sistema de Justiça ocorreu em 2006 e, deste então, que lhe vêm sendo aplicadas várias e sucessivas sanções penais, em crescendo de gravidade pela prática dos crimes de furto qualificado, furto qualificado na forma tentada, de furto simples, furto de uso de veículo, de dano qualificado, de condução sem habitação legal e de recetação, pelo que veio a cumprir penas sucessivas de prisão, algumas das quais prisão subsidiária (período entre 2009 a 2014 - beneficiou de liberdade condicional de 28.10.2014 até 21.8.2018 no âmbito dos processos 1551/09.7..., 232/08.3..., 1740/06.6... e 1135/09.0...). Já foi, igualmente, sujeito a medida de coação de prisão preventiva no âmbito do presente processo, tendo esta em 29.10.2021 sido alterada para a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica até 20.4.2022, por ter sido atingido o prazo máximo legal da referida medida de coação. Face ao presente processo, AA revê-se parcialmente no mesmo, tendo verbalizado preocupação pelas consequências que poderão advir, estando consciente de uma eventual condenação em pena de prisão. Apresentou preocupação face ao animal de estimação e ao facto da filha, com a sua eventual reclusão, não poder frequentar o Programa Erasmus. É em termos pessoais que o arguido centra o impacto decorrente do facto de ter sido constituído arguido, denotando dificuldade ao nível da autocrítica, que foi muito autocentrada e decorrente das consequências para si próprio, para a eventual perda do atual trabalho e família, não incluindo o potencial impacto da sua conduta em terceiros. AA, com 55 anos de idade, nascido no seio de um agregado familiar de condição socioeconómica média alta, é um indivíduo cujo processo de crescimento e desenvolvimento parece ter decorrido num contexto familiar estruturado e funcional, no qual beneficiou de adequado suporte afetivo, bem como de uma socialização adequada ao longo da sua infância e adolescência. Contudo, este percurso de vida normativo viria a ficar comprometido aos 18 anos de idade, quando começou a manifestar alguma instabilidade comportamental, aquando do início do consumo de substâncias psicoativas, sem o conhecimento dos pais, ainda no início da adolescência. Embora, após ter contraído matrimónio, tenha emigrado para o ... com o objetivo de melhorar as condições de vida, tal não veio a concretizar-se, ocorrendo o divórcio e a manutenção da situação da toxicodependência, pelo que após 8 anos de permanência ilegal naquele país, o cumprimento de uma pena de prisão terminou com o seu repatriamento para os Açores. Uma segunda relação afetiva malsucedida contribuiu para o agravamento do seu percurso de vida e, embora tenha sido sujeito a tratamento à problemática aditiva, os consumos viriam a intensificarem-se, tendo originado uma crescente degradação quer do próprio, quer ao nível familiar e profissional, culminando em situação de várias reclusões em estabelecimentos prisionais e de condição de sem abrigo. Não obstante tenha registado alguns consumos de canabinoides e de uma recaída nas Novas Substâncias Psicoativas (NSP), desde 2015 que tem revelado alguma estabilidade face ao consumo de substânciaspsicoativas. Contudo, e embora critico em relação ao seu percurso e comportamento social, e tendo vivenciado um período de cerca de 8 anos de estabilidade ao nível profissional, voltou a revelar-se incapaz de implementar ações sistemáticas promotoras do seu ajuste social. O pensamento psicológico imaturo, a elevada permeabilidade à influência de terceiros e a ausência de uma figura de referência capaz de conter o comportamento criminógeno que tem vindo a apresentar, são encarados como fatores de risco;

b).

Este arguido já foi condenado:

 Por sentença de 5.6.2007, relativamente a factos consubstanciadores do crime de furto, praticados em 14.1.2006, na pena de multa;

 Por sentença de 16.11.2007, relativamente a factos consubstanciadores dos crimes de furto qualificado e simples, praticados em 5.12.2006, na pena de prisão suspensa na sua execução;

 Por sentença de 4.5.2010, relativamente a factos consubstanciadores dos crimes de furto uso, qualificado e condução sem habilitação legal, praticados em 2.9.2009, na pena de prisão;

 Por sentença de 6.7.2010, relativamente a factos consubstanciadores do crime de recetação, praticados em 11.9.2008, na pena de multa; e

 Por sentença de 3.10.2011, relativamente a factos consubstanciadores do crime de furto qualificado, praticados em 7.7.2009, na pena de multa;”

II.2. O tribunal recorrido fundamentou a medida da pena nos termos seguintes:

“O crime cometido pelo arguido é punível com pena de prisão de 4 a 12 anos.

Conforme dispõe o artº.40º do CP, a finalidade primeira das penas reside na tutela dos bens jurídicos, devendo traduzir, a sua aplicação, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma violada, sem perder de vista, na medida do que for possível, a reinserção social do arguido, ou seja, as exigências de prevenção e de repressão geral da criminalidade, por um lado, e, por outro, as exigências específicas de socialização e de prevenção da prática de novos crimes.

Encontrada a moldura da pena, fixada em função das exigências de prevenção geral positiva, devem então funcionar as exigências de prevenção especial, em particular as exigências de prevenção especial positiva ou de socialização, para a determinação concreta da pena, tendo sempre presente que a culpa representa o limite inultrapassável da mesma.

Nos termos do disposto no artº.71º, nº.1, do Código Penal, “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

Face ao quadro legal traçado no nº.2 do mesmo preceito, julgam-se relevantes para a determinação concreta da pena as circunstâncias que seguidamente se enumeram:

- a cannabis ser uma substância estupefaciente das menos nocivas;

- a cocaína, pelo contrário, ser das mais nocivas;

- a quantidade de produto transportado;

- a contrapartida que o arguido auferiria com o transporte e detenção, que era significativa atendendo ao preço de aquisição da viatura onde foi transportada e que para ele reverteria, coisa que, ainda assim, não ombrearia com os lucros que poderiam vir a ser obtidos com a venda do produto transportado;

- o precedente facto bem como o tipo de intervenção do arguido demonstram que ele não desempenhava papel de grande relevo na estrutura que no caso foi montada com vista ao tráfico daquela droga, pois não lhe cabia dar as ordem ou dispor do produto…contudo, o seu lugar na cadeia, é fundamental. Efetivamente, e mau grado o que acabou de se afirmar, a verdade é que os correios de droga, coisa que encaixa na função do arguido, nomeadamente este em concreto, que não estava motivado pelo consumo, visando exclusivamente a remuneração que com isso receberia, e porque nos encontramos numa ilha são o veículo privilegiado para trazer mais uma desgraça à população que tão fustigada é com este flagelo. É rara a semana em que neste tribunal não se julgue um caso semelhante…e cada vez se nota mais, pela insularidade, o recurso dos donos da droga a correios para a fazerem chegar aqui. É, assim, de grande relevo a intervenção dos correios par a fluidez da droga que é sagazmente despejada neste território;

- confessou os factos e mostrou-se arrependido;

- a participação dele na descoberta da verdade material…parca face à evidência documental que as autoridades tinham;

- é tido como bom cidadão na comunidade onde vice;

- a sua estória no que toca a este mundo dos estupefacientes;

- já conta várias condenações.

No caso vertente as exigências de prevenção geral são bastante elevadas. Com efeito, estamos perante delito que é alvo de grande censura comunitária e com o qual somos frequentemente confrontados na comarca. Ademais, o forte sentimento de insegurança gerado por situações desta natureza denota a necessidade de transmitir um sinal claro à comunidade no sentido da afirmação da validade da norma violada, restabelecendo o sentimento de segurança abalado pelo crime.

O grau de ilicitude deve ser considerado, dentro do tipo base, mediana e pouco abaixo do limiar médio da moldura que fica nos oito anos e isto atendendo à natureza dos produtos transportados e à sua quantidade já muito significativa face às dimensões desta ilha que era o seu destino final.

É verdade, como já se referiu, que a tarefa do arguido consistiu no transporte de droga sem que lhe tenha sido revelada a qualidade dela e respetiva quantidade…coisa que, na nossa opinião, não pode relevar para o ter como engrenagem irrelevante na viagem da droga até ao seu destino final. Efetivamente o arguido, tal como referiu, sabia que transportaria droga…estando nas suas mãos, antes de aceitar a proposta que lhe foi feita, inteirar-se da qualidade do produto e da quantidade…coisa que, podendo ter feito não fez de forma ciente, desconsiderando, em prol de réditos prometidos, algo de uma relevância atroz…a nocividade de uma parte do produto que introduziu no mercado e do espetro que, tendo em conta a quantidade que carregou, cobriria ao nível dos consumidores com os efeitos nocivos daí advenientes.

Ao contrário do que por vezes se pretende fazer crer…os correios de droga, como é o caso do arguido, sendo descartáveis, não deixam de ser indispensáveis ao fluxo da droga que, pela sua mão, flui do intermediário ao retalhista final com toda a nocividade daí decorrente, entendendo, por isso, este tribunal a sua atividade como relevante e determinante no aprovisionamento do mercado de consumo…que, como é notório, se localiza numa ilha.

A intensidade do dolo do arguido corresponde ao dolo direto.

Os antecedentes do arguido pesam a seu desfavor.

A favor do arguido milita a sua integração a todos os níveis…contudo, como então, hoje mantém uma situação financeira que, em termos quantitativos, em nada se alterou, circunstância que põe a nu o perigo de reiteração do ilícito.

Assim…as razões de prevenção especial são elevadas, nomeadamente as negativas em razão do perigo de continuação.

Tudo visto e ponderado, entende-se adequada em função da culpa do agente a pena de 6 anos e 6 meses de prisão.”

Vejamos:

A moldura penal abstrata situa-se entre um mínimo de quatro anos e um máximo de doze anos de prisão.

Concorda-se com a fundamentação de direito que o tribunal a quo deixou expressa. Por isso despiciendo se torna repetir a teleologia de aplicação da pena, as necessidades de prevenção geral e especial, o limite da culpa e as circunstâncias que depuseram a favor e contra o agente e que em tal fundamentação constam.

Repetiremos tão só, no que tange à dosimetria concreta da pena, que, como se assinalou no recente ac. do STJ de 13/09/2023, proc. nº 176/22.6JELSB.L1.S1, Pedro Branquinho Dias, “Os chamados correios de droga (The mules) são uma peça fundamental no tráfico de estupefacientes, contribuindo, de modo direto e com grande relevo, para a disseminação deste flagelo, à escala global, pelo que não merecem um tratamento penal de favor. As necessidades de prevenção, sobretudo da prevenção geral, são muito prementes, incompatíveis, pois, com penas muito leves ou simbólicas.” E “Está, aliás, na bitola habitual da jurisprudência deste Supremo Tribunal, para casos semelhantes, que tem vindo a estabilizar-se desde já há algum tempo, com a aplicação de medidas concretas de penas que vão variando entre os 5 e os 7 anos de prisão.”

E efetivamente de flagelo se trata, como se regista no acórdão recorrido,: “É rara a semana em que neste tribunal não se julgue um caso semelhante…e cada vez se nota mais, pela insularidade, o recurso dos donos da droga a correios para a fazerem chegar aqui. É, assim, de grande relevo a intervenção dos correios para a fluidez da droga que é sagazmente despejada neste território;”

Aqui o arguido tem já contra si os seus antecedentes criminais.

Por outro lado, se é verdade que está integrado familiar, profissional e socialmente tal integração pouca relevância tem já que foi dessa boa integração a todos os níveis que ele se prevaleceu para assim agir. E mais, tal boa integração não teve sequer a virtualidade de o desincentivar á prática do acto. Assim como, nem a circunstância de já ter estado preso antes nem as sucessivas admonições penais daquelas condenações anteriores o afastaram da via da criminalidade.

Sem olvidar que se tratou-se de acção previamente pensada e organizada, e, não obstante o cerca de mês e meio decorrido sobre a data em que foi “contratado” e a data da prática da acção, não recuou no seu propósito de a executar. O que é bem revelador da intensidade do dolo direto.

Operação que se traduziu no tráfico daquela quantidade de cannabis-resina com expansibilidade para mais de 100 000 doses. e daquela quantidade de cocaína com expansibilidade para 664 doses.

Donde tudo sopesado, a pena aplicada, respondendo às finalidades da pena, satisfazendo as necessidades de prevenção geral e especial e não ultrapassando a medida da culpa, mostra-se proporcional, sendo necessária, adequada e na justa medida.

Não se mostrando violados os artigos 40º, 70º e 71º do CP, não se justifica, pois, intervenção corretiva do STJ.

III - DECISÃO

Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso do arguido AA e, em consequência, manter-se integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Lisboa, 08 de novembro de 2023

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)

José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Adjunto)

Sénio Reis Alves (Juiz Conselheiro Adjunto)