Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JÚLIO GOMES | ||
Descritores: | JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO | ||
Data do Acordão: | 07/07/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Sumário : |
I- Na acção de apreciação judicial do despedimento, os factos e sua imputação a considerar pelo tribunal são os descritos na nota de culpa e na decisão de despedimento comunicadas ao trabalhador e não os invocados no articulado motivador do despedimento. II- A falta de prova desses factos implica a declaração da ilicitude da sanção aplicada. | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3611/21.7T8FNC.L1.S1 Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça, AA intentou ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, prevista nos artigos 98.º-B e ss. do Código de Processo de Trabalho contra Clube Desportivo ... Não tendo sido possível a conciliação, o empregador apresentou articulado a fundamentar o despedimento. A trabalhadora contestou e deduziu reconvenção, formulando os seguintes pedidos: “Nestes termos, deve a presente ação ser julgada procedente, reconhecendo- se a ilicitude do despedimento da A., anulando-se o mesmo, tendo a A. direito à reintegração e aos salários vencidos e vincendos até decisão final, reservando-se o direito de opção pela indemnização prevista no art.º 391.º do CT. Mais deve o R. ser condenado a pagar à A. a quantia de € 6.121,32, respeitantes às diferenças salariais atrás discriminadas”. O empregador respondeu ao articulado da trabalhadora, propugnando pela sua absolvição do pedido reconvencional. Foi proferido despacho saneador e realizada a audiência de julgamento. Foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julgo a presente ação totalmente procedente e, em consequência: a) Declaro a ilicitude do despedimento da autora AA levado a cabo pela ré Clube Desportivo ... a 30 de julho de 2021; b) Condeno a ré Clube Desportivo ...no pagamento à autora AA, a título de compensação, das retribuições que a autora deixou de auferir, no valor mensal de € 3.731,93 (três mil setecentos e trinta e um euros e noventa e três cêntimos), desde 30 de julho de 2021 até ao trânsito em julgado da presente sentença, com as deduções previstas no art. 390.º, n.º 2, do Código do Trabalho, a liquidar em incidente de liquidação; c) Condeno a ré Clube Desportivo …, SAD no pagamento à autora AA de uma indemnização correspondente a 20 dias de retribuição base mensal, considerando a retribuição base no valor mensal de € 3.731,93 (três mil setecentos e trinta e um euros e noventa e três cêntimos), por cada ano completo ou fração de antiguidade, a contar desde 21 de Maio de 2002 até à data do trânsito em julgado da presente sentença, a liquidar em incidente de liquidação de sentença; d) Condeno a ré Clube Desportivo ... no pagamento à autora AA da quantia de € 6.121,32 (seis mil cento e vinte e um euros e trinta e dois cêntimos).”. Inconformado o empregador interpôs recurso de apelação. Em 1.03.2023. o Tribunal da Relação proferiu Acórdão, com o seguinte dispositivo: “Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença nos segmentos decisórios a) a c), declarando-se a regularidade e licitude do despedimento.” A trabalhadora veio interpor recurso de revista. Nesse recurso a trabalhadora sublinhou que foi despedida por uma alegada violação do dever de lealdade porquanto teria levantado abusivamente cheques, falsificando o conteúdo dos mesmos e teria desviado em proveito próprio quotas pertencentes ao Réu (Conclusão 2). Ora, nada se tendo provado destas acusações, o Acórdão recorrido considerou, antes, que haveria justa causa por violação do dever de zelo, muito embora a trabalhadora não tenha sido acusada de tal violação e não se tenha podido defender da mesma (Conclusões 6 e 7). Em todo o caso, sublinhou não se ter provado tão-pouco qualquer violação do dever de zelo, tanto mais que não se provaram quaisquer regras a que a trabalhadora estivesse adstrita e que tivesse violado, mormente quanto à periodicidade das declarações a que estaria sujeita. Concluiu pedindo que fosse revogado o Acórdão recorrido e mantida a decisão da sentença de 1.ª instância. O empregador apresentou contra-alegações. Em conformidade com o disposto no artigo 87.º, n.º 3 do CPT o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso com a revogação do Acórdão recorrido. A trabalhadora respondeu ao Parecer. Fundamentação De Facto Foram os seguintes os factos dados como provados nas instâncias: 1 - Pela Ap. 2/20110907 foi registada a designação da autora como vogal do conselho de administração da ré para o triénio 2013/2015. 2 - Pela Ap. 3/20140609 foi registada a designação da autora como presidente do conselho de administração da ré até ao fim do mandato 2013/2015. 3 - Pela Ap. 9/20150722 foi registada a destituição da autora como presidente do conselho de administração da ré. 4 - Pela Ap. 10/20150722 foi registada a designação da autora como vogal do conselho de administração da ré para o mandato em curso 2013/2015. 5 - Pela Ap. 11/20161103 foi registada a designação da autora como vogal do conselho de administração da ré para o mandato 2016/2018. 6 - Pela Ap. 6/20190416 foi registada a designação da autora como vogal do conselho de administração da ré para o mandato 2019/2021. 7 - Pela Ap. 15/20200521 foi registada a renúncia da autora ao cargo de vogal do conselho de administração da ré. 8 - A autora foi admitida para trabalhar sob a autoridade e direção da ré a 21 de maio de 2002. 9 - A autora exercia as funções de diretora geral. 10 - A autora auferia a retribuição mensal ilíquida de € 3.731,93 (três mil setecentos e trinta e um euros e noventa e três cêntimos). 11 - No mês de agosto de 2020, começou a ser utilizado pela ré o cartão de débito com o n.º ..., relativo à conta à ordem de que esta é titular junto do Crédito Agrícola. 12 - Tal cartão foi criado, essencialmente, para proceder aos pagamentos que só por esta via poderiam ser realizados, para pagar um valor à segurança social, e utilização nas deslocações da equipa para fora da Região, para pagamento de alguns serviços que surgissem. 13 - Por uma questão de organização e pelas funções atribuídas à autora, o cartão foi deixado na sua posse. 14 - No seu uso, a autora estava obrigada a justificar, mediante a entrega de documentos comprovativos no departamento de contabilidade da ré, todos os levantamentos bancários efetuados com o respetivo cartão. 15 - Os documentos comprovativos tinham de ser entregues a BB, contabilista auxiliar, responsável pela elaboração da respetiva folha de caixa da conta. 16 - Os primeiros levantamentos foram feitos no dia 27 de agosto de 2020. 17 - BB constatou que a soma dos documentos relativos às despesas não era suficiente para justificar os levantamentos bancários efetuados com o cartão de débito. 18 - Como previamente definido pela administração que a autora era a responsável pela utilização do cartão e que tudo o que lhe dissesse respeito deveria ser-lhe diretamente reportado, BB, nos dias 23 de outubro de 2020, 24 de novembro de 2020, 22 de janeiro de 2021, 12 de fevereiro de 2021 e 9 de março de 2021, enviou e-mails à autora, com a indicação dos valores levantados e as quantias que faltavam justificar. 19 - Uma vez que a autora continuava sem justificar toda a despesa, além de não estar a entregar mensalmente as respetivas justificações para controlo no departamento contabilístico, foi dado conhecimento desta situação ao administrador, CC, por e-mail de 19 de abril de 2021. 20 - Dado que a autora continuava sem justificar valores, foi realizada em 23 de abril de 2021 uma reunião para analisar esta situação, onde estiveram presentes o presidente da SAD, DD, o administrador CC, do departamento contabilístico, EE, BB, a contabilista certificada, FF, e autora. 21 - Nesta reunião a autora afirmou que teria mais comprovativos. 22 - No dia 30 de julho de 2021, o Réu comunicou à Autora o seu despedimento imediato, com justa causa, pelas razões constantes do relatório final do processo disciplinar. De Direito Como se pode ler na sentença, o empregador fundamentou “o despedimento da autora no facto de esta, no exercício das suas funções, no âmbito das quais tinha acesso a um cartão de débito, não ter justificado o levantamento da quantia de € 23.344,94 (vinte e três mil trezentos e quarenta e quatro euros e noventa e quatro cêntimos), ter feito seu o valor de cinco cheques, assim como o numerário relativo a pagamento de quotas”, sendo que nenhum destes factos foi provado no processo. O Tribunal da Relação afirmou no seu Acórdão o seguinte: “A sentença parte do pressuposto que a Empregadora imputou à Trabalhadora a lesão de interesses patrimoniais sérios (Artº 351º/2-e) do CT), nela assentando a causa para despedir. E é a essa luz que faz o enquadramento jurídico dos factos. Compulsado o articulado motivador constatamos que aí se conclui que o comportamento infracional da Autora consubstancia uma violação dolosa e grave dos deveres laborais, tal como previsto nas alíneas a), c), f), g), e h) do n.º 1 do artigo 128.º do CT, afirmando-se que o Réu despediu a Autora com justa causa, tal como é definida nos termos do n.º 1 do artigo 351.º do CT. Isto segundo as alíneas a), d) e e) do n.º 2 do artigo 351.º do CT (Artº 9º a 11º). E embora os factos invocados não divirjam daqueles que deram lugar à decisão de despedir, certo é que ali se fizera constar, o mesmo ocorrendo na nota de culpa, como fundamento jurídico, o disposto no Art.º 351º/1 e 2-e) do CT sem qualquer enquadramento ao nível dos deveres laborais eventualmente violados. Nesta apelação a Apelante invoca que a conduta da Recorrida, tendo em conta os factos descritos, alegados e considerados provados, conforme acima se explanou, configura prática de várias infrações disciplinares traduzidas na violação de vários deveres legais e contratuais assumidos por si aquando da sua contratação, desde logo, a violação do dever da Recorrida de realizar o trabalho com zelo e diligência, a violação do dever de guardar lealdade à Recorrente, dever que violou ao subtrair, de forma ilegítima o dinheiro. Não obstante a dessintonia entre as peças processuais em matéria de fundamentação jurídica, não está o Tribunal impedido de enquadrar juridicamente os factos à luz do conceito de justa causa que pressupõe, como sobredito, uma infração disciplinar, conceito que, por sua vez não prescinde do enquadramento ao nível dos mencionados deveres. Em abono desta tese o Acórdão recorrido cita o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 23-01-2019, proferido no processo n.º 11/17.7T8CVL (Relator Conselheiro GG), em cujo sumário se pode ler efetivamente que “o diferente enquadramento dos factos imputados ao trabalhador na nota de culpa, permanecendo estes inalterados, não consubstancia a invocação de factos novos proibida pelo artigo 357.º, n.º 4, do Código do Trabalho. Todavia, o referido Acórdão respeitou a uma situação em que um trabalhador, bombeiro, tendo recebido uma ordem não a cumpriu e foi objeto de uma sanção disciplinar – uma repreensão escrita registada – sendo que na nota de culpa era acusado, por força desse facto, da violação do dever de zelo ao passo que na decisão final a sanção foi aplicada invocando-se a violação do dever de obediência. Ora, e mesmo sem ter em conta que não estava em jogo um despedimento, a situação é diversa da presente: o trabalhador foi acusado da prática de um único facto e tendo-se provado a sua ocorrência o Tribunal entendeu que um erro na sua qualificação jurídica como violação deste ou daquele dever do trabalhador não acarretava a nulidade da sanção, até porque não prejudicara a defesa do trabalhador. Aqui, ao invés, a nota de culpa formulava uma acusação de violação do dever de honestidade, imputando à trabalhadora factos de extrema gravidade e que, caso tivessem sido provados, seriam inequivocamente justa causa de despedimento, como a falsificação de cheques e a apropriação de quantias que teria recebido para entregar ao empregador e o uso indevido e em proveito próprio de um cartão de crédito. Pela sua gravidade esta era a acusação principal na qual se concentrou naturalmente a defesa da trabalhadora. E nenhum destes factos foi dado como provado. No contexto desta acusação, a não prestação regular de contas era marginal. Aliás, e como bem destaca o douto Parecer do Ministério Público, “importa sublinhar que a recorrida justificou o despedimento da recorrente apenas com base no disposto no artigo 351.º, n.º 1, e 2, al. e), do CT, ou seja, por lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa, conforme se verifica da nota de culpa e do relatório final do procedimento disciplinar” e “o que a recorrida referiu no articulado motivador em extrapolação à decisão do procedimento não pode ser atendido pelo Tribunal na apreciação da justa causa, por força do art. 387.º, n.º 3, do CT”. Assim, em uma situação como a presente em que o empregador optou por acusar o trabalhador de violar o dever de honestidade ou probidade não cabe ao Tribunal refazer ou recompor a acusação feita pelo empregador, e concluir que a justa causa consiste, no fim de contas, não na lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa, mas no desinteresse pelo cumprimento com a diligência devida de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho. Sufragamos, assim, inteiramente o que a este propósito afirma o bem fundamentado Parecer do Ministério Público junto aos autos neste Tribunal: “afigura-se que o Tribunal não pode declarar a licitude do despedimento justificado por razão diversa daquela que foi invocada pela recorrida, pelo que deveria ter considerado o despedimento ilícito”. Como expressamente se afirma no relatório final no procedimento disciplinar “conclui-se pela procedência da sanção considerando-se provados todos os factos descritos na nota de culpa e consubstanciados na prova documental junta” (sublinhado nosso). Foi com base na alegada prova de todos estes factos – entre os quais, repete-se o alegado levantamento indevido de cheques e o desvio de valores de quotas de associados – que, afinal, ficaram por provar em tribunal, que o empregador decidiu despedir. Esse foi o fundamento da decisão, pelo que não há sequer que discutir se a violação das obrigações de entrega dos comprovativos poderia ser, em si mesma, justa causa de despedimento, ou se não seria uma sanção excessiva face, designadamente, à antiguidade da trabalhadora e à ausência de sanções disciplinares no passado, porquanto não foi esse, em rigor, o fundamento invocado. Posto isto, há que repor em vigor a decisão da 1.ª instância, como, aliás, é pedido pela Recorrente. Decisão: Concedida a revista, repondo-se em vigor a decisão da sentença de 1.ª instância Custas pelo Recorrido Lisboa, 7 de julho de 2023 Júlio Manuel Vieira Gomes (Relator) Ramalho Pinto Domingos José de Morais |