Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
32/22.8PSPRT.P1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
PENA DE PRISÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O tipo legal do crime previsto no artº 25º, al. a) do DL 15/93, de 22/1, não constitui o tipo base, nem o tipo legal do crime previsto no artº 21º do mesmo diploma constitui uma forma agravada daquele. Distintamente, é o artº 21º do DL 15/93, de 22/1 que define o tipo base do crime de tráfico de estupefacientes e é em função dele que se há-de verificar se, em cada caso concreto, a imagem global da conduta do agente permite concluir pela acentuada diminuição da ilicitude do facto, caso em que a conduta será punida nos termos previstos no artº 25º, al. a) do diploma legal referido.

II. O factor decisivo ao privilegiamento do crime de tráfico de estupefacientes é a considerável diminuição da ilicitude do facto, olhada de forma global, sendo os elementos indicados no artº 25º do DL 15/93, de 22/1 meramente exemplificativos.

Decisão Texto Integral:

Acordam, neste Supremo Tribunal de Justiça:


I. 1. No Proc. Comum Colectivo nº 32/22.8PSPRT, que corre termos no Juízo Central Criminal do ..., J., o arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi – com outra – submetido a julgamento tendo, a final, sido decidido:

a) absolver o arguido da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº1 do DL nº15/93, de 22/01, com referência às Tabelas I- A, I-B e I-C anexas ao referido diploma legal;

b) [por convolação de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº1 do DL nº15/93, de 22/01] condenar, como reincidente, o arguido AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a), do DL nº 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma legal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão (efetiva);

c) declarar perdido a favor do Estado, para além do mais, o veículo automóvel de matrícula ..-DB-...

2. Inconformados, recorreram o Ministério Público e o arguido AA, pugnando o primeiro pela condenação deste como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1, do DL 15/93, de 22/1, e o segundo pela revogação do acórdão, na parte relativa à declaração de perdimento do veículo automóvel.

Em 24/5/2023 foi proferido acórdão no Tribunal da Relação do Porto, concedendo provimento a ambos os recursos, revogando a declaração de perdimento a favor do Estado do mencionado veículo e condenando o arguido, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1 do Cod. Penal, na pena de 6 anos de prisão.

3. Inconformado, recorreu o arguido AA para este Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela sua condenação como autor de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artº 25º, al. a) do DL 15/93, de 22/1 e pela consequente redução da pena em que foi condenado, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):

«1 – O Meritíssimo Tribunal da Relação a quo considerou, ao contrário do Tribunal de 1.ª Instância, que a conduta do ora Recorrente dada como provada no Acórdão proferido por aquela e que não foi impugnada, conduziria ao preenchimento do crime previsto no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei nº 15/93 e não ao privilegiado previsto no art. 25.º do referido diploma legal.

2 – O aqui Recorrente não concorda, de todo, com tal qualificação jurídica, por entender que bem andou o Tribunal de 1.ª Instância ao aplicar ao presente caso o artigo 25.º do mesmo diploma.

3 – A Doutrina e a Jurisprudência deste Colendo Tribunal desenvolveram diversos critérios cujo preenchimento tendencialmente cumulativo deve conduzir à aplicação do artigo 25.º do Decreto-Lei nº 15/93.

4 – Resultou provado que, nas transacções que o Recorrente efectuara, fê-lo directamente com os consumidores, o que ocorreu durante um período que não alcançou um ano, sem se consubstanciar numa forma de agir altamente organizada.

5 – As substâncias que o mesmo vendia eram destinadas exclusivamente ao consumo dos adquirentes, não se tendo demonstrado qual o valor efectivamente pago pelas quantidades cedidas – sendo que o volume das quantidades com que foi apreendido não permite concluir estarem em causa grandes quantidades de estupefaciente e, ainda, resultou provado que o aqui Recorrente é consumidor habitual de heroína e cocaína há vários anos e, à data dos factos, era consumidor e que uma parte da droga adquirida se destinava ao seu próprio consumo.

6 – Conforme resulta dos autos, apenas se demonstrou que o aqui Recorrente Arguido se dedicou a tal actividade durante um curto período – entre meados de Abril de 2021 a Janeiro de 2022 – pelo que não se provou que essa actuação se prolongasse há mais de um ano.

7 – Do elenco da matéria de facto provada consta a identificação de somente três compradores, observando-se grande indefinição relativamente ao valor de venda do produto estupefaciente cedido.

8 – Não se provou que o ora Recorrente efectuasse quaisquer operações de cultivo ou corte do produto estupefaciente, do mesmo modo que não se demonstrou que para a sua actividade, o ora Recorrente utilizasse meios diversos daqueles que utilizava para o desenrolar do seu dia-a-dia.

9 – Não se demonstrou que o Recorrente auferisse, por força da actividade de tráfico, quantias que lhe permitissem usufruir de uma vida quotidiana acima da média.

10 – Resulta, ainda, da matéria de facto provada que o ora Recorrente desenvolvia a actividade numa área geográfica delimitada (a cidade de ...), não procurando “expandir” o negócio para fora daquela área.

11 – O aqui Recorrente não preenche qualquer das previsões constantes do artigo 24.º do Decreto-Lei nº 15/93.

12 – Encontram-se assim plenamente preenchidos todos os critérios tendencialmente cumulativos desenvolvidos pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, por forma a aferir acerca da ilicitude diminuída referida no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93.

13 – A posição assumida pelo ora Recorrente no que concerne à errada qualificação jurídica dos factos efectuada pelo Tribunal da Relação é sustentada pela Jurisprudência deste Colendo Tribunal, incidente sobre casos semelhantes (veja-se o Acórdão de 07/12/2011, Processo n.º 111/10.4PESTB.E1.S1, Relator Rodrigues da Costa, o Acórdão de 18/02/2016, Processo n.º 26/14.7PEBRG.S1, Relator Souto de Moura e Acórdão de 02/10/2019, Processo n.º 2/18.0GABJA.S1, Relator Maia Costa, todos eles disponíveis em www.dgsi.pt).

14 – Não se encontram assim reunidos os pressupostos de facto necessários para a aplicação do artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei nº 15/93 ao caso do ora Recorrente, termos em que o Tribunal da Relação procedeu a uma errada qualificação jurídica dos factos cuja prática foi imputada ao aqui Recorrente, violando, por conseguinte, o âmbito de aplicação de tal norma legal.

15 – Outrossim, concorda-se inteiramente com a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, mantendo-se a condenação do aqui Recorrente pelo crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25.º do Decreto-Lei nº 15/93.

16 – Por fim e, em consequência, deverá também ser alterada a dosimetria da pena aplicada ao aqui Recorrente.

17 – Não se discute a existência de elementos que apontam no sentido da aplicação de uma pena de prisão ao ora Recorrente em virtude da sua condenação.

18 – Todavia, por força da aplicação do tipo previsto no art. 25.º sempre conduzirão a que a pena resultante da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de que ora se recorre, seja, igualmente, de alterar, atendendo a que os limites mínimo e máximo são distintos naquela previsão legal.

19 – Pelo que, também aqui entende o aqui Recorrente que o Tribunal da 1.ª instância andou bem na dosimetria da pena aplicada, respeitando o disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal».

4. Respondeu o Exmº Magistrado do MºPº junto do Tribunal da Relação do Porto, pugnando pelo não provimento do recurso:

«(…)

3. O recorrente, embora numa aparente diferente perspetiva, acaba por incorrer no vício de raciocínio que o MP imputou ao acórdão da 1ª instância, é dizer, analisa o tipo privilegiado do artigo 25º do Decreto – Lei n.º 15/93, de 22.1, como se ele fosse o ponto de partida da integração jurídico-penal de qualquer das modalidades de ação previstas no seu artigo 21º, sendo a previsão deste já uma forma agravada dessas diferentes modalidades de ação típica, ao invés de o ter como matriz e, perante ela, verificar e afirmar pela positiva, se a imagem global da sua conduta permite incluí-la no tipo privilegiado do artigo 25º ou no tipo agravado do artigo 24º, em função de uma acentuada diminuição ou aumento da ilicitude por ela transmitida, porque, com efeito, a opção de política criminal nesta sede foi a de instituir um tipo base ou comum de ilícito, onde à partida cabem todas aquelas modalidades de ação e só excecionalmente, em homenagem ao princípio da proporcionalidade e no limite da tolerância que o Estado de Direito a si mesmo se impõe, diferenciar as concretas condutas, agravando-as, nos termos do artigo 24º, ou degradando-as, nos termos dos artigos 25º e 26º.

Nesse confronto, precisamente aquele que justificou o recurso do MP do acórdão da 1ª instância, no qual se propugnou a não verificação daquela necessária degradação do tipo base ou comum no tipo privilegiado, decidiu o acórdão agora escrutinado no sentido pretendido pelo MP, com o inevitável aumento da pena de prisão aplicada, que fixou em 6 (seis) anos, numa moldura abstrata de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses a 12 (doze) anos, por força da reincidência, que o recorrente não questiona, ou seja, apenas 8 meses acima do correspondente limite mínimo.

O recorrente não respondeu ao recurso interposto pelo MP do acórdão da 1ª instância e no presente recurso faz uma interpretação da matéria de facto provada conveniente à sua pretensão de integração da sua conduta no referido tipo privilegiado, cujo sucesso terá, naturalmente, reflexos na pena a aplicar, mas só nessa hipótese, como ele próprio concede.

Todavia, tal como se afirmou no acórdão recorrido, não logra demonstrar esse intento, na medida em que, ao contrário do que afirma, a imagem global da sua conduta não evidencia a necessária acentuada diminuição da respetiva ilicitude, a qual, como se afirma naquele «(…) as circunstâncias atrás referidas – quantidades e qualidades envolvidas - levam a concluir que o arguido tinha um negócio por conta própria, fornecendo diretamente consumidores e, por isso, a modalidade e circunstâncias da ação, qualidade, diversidade e quantidade das substâncias não dão uma imagem global de menor gravidade, antes pelo contrário.

Daí que se conclua que o arguido se constituiu autor de um crime de tráfico de estupefacientes comum, p. e p. no art.º 21.º n.º 1 do Dec-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, tal como corretamente sustenta o recorrente».

Efetivamente, ao contrário do que diz o recorrente, embora se tenha dado como provado, no que à sua condição social concerne e por reporte ao respetivo relatório social, ele não dispunha nem vivia de rendimentos próprios, nomeadamente do quinhão recebido da herança dos seus pais, qualquer que tenha sido o valor recebido da venda do imóvel que a integrava, pois o que aí se afirma é que, em reclusão, viveu desse rendimento, muito embora ele se mostrasse insuficiente, sendo necessário que uma tia, por vezes, provesse a sua conta de recluso, a mesma familiar que, aliás, providenciou pelo pagamento da renda da habitação em que precisou de viver durante o cumprimento da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, por se ter incompatibilizado com a filha em casa de quem a cumpriu inicialmente. Dessas condições pessoais se infere igualmente que, após o recebimento daquele valor, abandonou ... e passou a dormir em motéis e no próprio automóvel, sendo certo que, só dos factos provados se vê que utilizou 3 automóveis diferentes nas deslocações ao ... para se abastecer de produto estupefaciente, veículos que, a serem seus, mesmo desconhecendo também o respetivo custo, conjugados com aquela saída de ... e o afirmado sobre a data do recebimento e utilização em reclusão, indiciam que o dinheiro da herança terá sido dissipado num ápice e era insuficiente para assegurar as suas necessidades básicas.

Acresce que dos factos provados 19 e 20 resulta inequívoco que o recorrente não adquiriu, nem tem hábitos de trabalho e que a última atividade profissional registada data de 2011, o que igualmente permite concluir que os proventos necessários para satisfação das suas normais necessidades de alojamento, alimentação e vestuário e do consumo de estupefacientes, que diz ter retomado, sem reconhecer qualquer dependência, provinham, com exceção do tempo de reclusão entre 2018 e 2021, de outras fontes de financiamento, como a ajuda dos familiares e, pelo menos no período que justificou aquela sua primeira condenação e naquele em apreço neste processo, da venda de estupefacientes.

Por outro lado, o período durante o qual se dedicou à atividade de tráfico em apreço neste processo iniciou-se imediatamente após a sua libertação condicional da anterior pena de prisão sofrida pelo mesmo tipo de crime, em 3 de fevereiro de 2021, e se manteve e prolongou até janeiro de 2022, mesmo durante o período de execução da medida de coação de obrigação de permanência na habitação e apesar das três ocasiões em que foi interpelado e detido em flagrante pelas autoridades policiais, duas vezes sozinho e uma outra acompanhado e em três veículos automóveis diferentes, cuja cessação voluntária, de resto, não está esclarecida, pese embora a factualidade objeto deste processo se cingir ao período de 3 de fevereiro de 2021 a 14 de janeiro de 2022.

Reiteração que, relevando essencialmente ao nível da culpa, não deixa de se repercutir igualmente no grau de ilicitude, pela persistência e indiferença à normatividade vigente e pese embora a assumida consciência do desvalor da sua conduta e dos seus reais e potenciais malefícios para a saúde dos consumidores em particular e da saúde pública em geral.

O mesmo se diga da frequência dessa atividade, que, também ao contrário do que alega, não se limitou a três situações isoladas e a três consumidores, pois o que se deu como provado é que se deslocou várias vezes à cidade do ..., dentre as quais, em três ocasiões foi intercetado e detido em flagrante pela polícia e que vendeu a consumidores na área da cidade de ..., entre os quais e nas ocasiões especificadas na matéria de facto, os três que foram ouvidos em julgamento.

A tudo acrescendo a curva ascendente na quantidade do produto estupefaciente adquirido e transacionado, essencialmente heroína e cocaína, o que, efetivamente, pressupõe proventos capazes de suportar a respetiva aquisição, o que, como dito, só pode ter resultado da venda a terceiros, com o inerente aumento do lucro obtido, na medida em que, atuando só e diretamente, não tinha que os repartir com outrem e não dispunha de ouras fontes de rendimento.

Do quadro factual provado, devidamente contextualizado e interpretado, como se concluiu no acórdão recorrido, suportado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que cita e naquela profusamente referenciada na motivação do recurso do MP interposto do acórdão da 1ª instância, não se vê como possa dele extrair-se a indispensável acentuada diminuição da ilicitude da conduta do condenado e recorrente, capaz de permitir integrá-la na previsão do artigo 25º, al. a), do Decreto – Lei n.º 15/93, a qual, por conseguinte, só pode, como foi, ser integrada no ripo base ou comum de tráfico previsto no artigo 21º do mesmo diploma legal.

E, assim sendo, mantendo-se, como se afigura dever ser, esse enquadramento jurídico-criminal dos factos provados, e como o próprio recorrente reconhece, nenhuma censura é possível fazer à pena de prisão fixada em 6 (seis) anos, cuja medida resulta da escrupuloso respeito e aplicação das finalidades e critérios estabelecidos nos artigos 40º, 70º, 71º e 75º do CP».

II. Neste Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, sustentando o não provimento do recurso.

Cumprido o disposto no nº 2 do artº 417º do CPP, não se registou qualquer resposta.

III. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

São as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação que delimitam o âmbito do recurso - artº 412º, nº 1 do CPP.

E as questões a decidir são, por isso, as seguintes:

A) A factualidade apurada integra a prática, pelo arguido recorrente, não de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1, mas sim a prática, pelo mesmo, de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artº 25º, al. a), ambos do DL 15/93, de 22/1?

B) A proceder a primeira pretensão do arguido, é excessiva e deve ser reduzida a medida concreta da pena aplicada ao arguido?

IV. Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

Apenso A (NUIPC 401/21.0...)

1 – O arguido é referenciado pelas autoridades policiais como indivíduo que, desde pelo menos meados de Abril de 2021, se dedicava à venda de cocaína, heroína e canabis, exercendo tal atividade na área da cidade ..., onde reside.

2 – Para o desenvolvimento de tal atividade, o arguido munia-se de cocaína, heroína e canabis, que adquiria na cidade do ....

3 - No dia 28.04.2021, ao volante da viatura automóvel de matrícula ..-DB-.., o arguido dirigiu-se a local não concretamente apurado na cidade do ..., onde adquiriu produto estupefaciente.

4 - Após a aquisição, o arguido dirigiu-se para a cidade de ..., onde pretendia vender parte do produto estupefaciente adquirido a terceiros.

5 - Nesse dia 28.04.2021, pelas 01h48, já em ..., o arguido circulava pela Praça ..., ao volante da referida viatura automóvel e transportava junto ao travão de mão, numa pequena bolsa da marca “Case Logic”, vários pedaços de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 2,624 gramas, cocaína (éster metílico) com o peso líquido de 2,662 gramas e heroína com o peso líquido de 6,940 gramas, destinando uma parte à venda a terceiros, quando foi interceptado pelas autoridades policiais.

6 - Na sequência desta detenção, nesse mesmo dia o arguido AA foi sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, que, a partir de meados de Maio de 2021, cumpriu na morada sita na Rua...,..., ... e que posteriormente veio a ser substituída por apresentações periódicas por despacho de 30.09.2021.

7 – Desde, pelo menos, o dia 03.02.2021, data em que o arguido iniciou o gozo da liberdade condicional no âmbito do processo 472/18.7... e até ao referido dia 28.04.2021, o arguido entregou diariamente a BB três a quatro pedras de cocaína, pelo preço de € 20 (vinte euros) cada, e três pacotes de heroína, pelo preço de € 10 (dez euros) cada pacote.

8 - No mesmo hiato temporal o arguido entregou a CC, pelo menos, um pacote de heroína, tendo recebido em contrapartida a quantia de €15 (quinze euros), nas imediações do Café ..., em ....

9 - No dia 9 de Junho de 2021, quando o arguido se encontrava em cumprimento da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, em ..., ..., a troco da quantia de € 20,00 (vinte euros), o arguido entregou a DD quantidade não concretamente apurada de cocaína e, a troco da quantia de €5 (cinco euros), quantidade não apurada de canabis.

Apenso C (NUIPC 34/22.4...)

10 - No dia 08.01.2022, durante a madrugada, o arguido, fazendo uso da viatura automóvel de matrícula ..-XS-.., deslocou-se à cidade do ..., mais concretamente ao Bairro ..., onde, a troco de quantia não concretamente apurada, adquiriu quantidade não concretamente apurada de heroína e cocaína, parte da qual destinava à venda a terceiros em ....

11 - Pelas 17h50 do dia 08.01.2022, já em ..., o arguido AA conduzia a viatura automóvel de matrícula ..-XS-.. pela Rua ... quando foi interceptado por elementos da PSP.

12 - Naquelas circunstâncias, o arguido trazia no bolso das calças cocaína (éster metílico), com o peso líquido de 3,251 gramas, e heroína dividida em dezassete doses individuais, com o peso líquido de 1,681 gramas, destinando o arguido, uma parte, à venda a terceiros, e a quantia monetária de €110 (cento e dez euros).

13 - No dia 24.01.2022 o arguido AA juntamente com a arguida EE deslocaram-se desde ... até esta cidade do ... com o propósito de se abastecerem de produtos estupefacientes.

14 - Os arguidos dirigiram-se ao interior do Bairro ..., no ..., onde adquiriram produtos estupefacientes.

15 - Transportando tais produtos, os arguidos dirigiram-se para a viatura automóvel da matrícula AH-..-ML, que tinham deixado estacionada nas imediações do Bairro, e iniciaram a marcha de regresso a ....

16 - Quando se encontravam no Largo ..., no ..., foram abordados por elementos da PSP, sendo que, naquelas circunstâncias, os arguidos transportavam na consola central da viatura um frasco que continha heroína, com o peso líquido de 9,504 gramas, e um guardanapo que continha vários pedaços de cocaína (éster metílico), com o peso líquido 40,18 gramas, e a arguida EE trazia ainda na mão esquerda heroína, com o peso líquido de 1,923 gramas, e ao pescoço, pendurado num fio, um pequeno frasco que continha vários pedaços de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 2,382 gramas.

17 - Na sequência de revista foram ainda encontrados na posse da EE pedaços de canabis (resina), com o peso líquido de 6,025 gramas, e canabis (resina) com o peso líquido de 2,673 gramas.

18 - Ao arguido não é conhecida atividade profissional fixa remunerada, sendo a última remuneração constante da base de dados da Segurança Social datada de Fevereiro de 2011, no montante de € 473,11 (quatrocentos e setenta e três euros e onze cêntimos).

19 - À arguida não é conhecia atividade profissional remunerada, sendo a última remuneração conhecida constante da base de dados da Segurança Social datada de Março de 2021, no montante de €665 (seiscentos e sessenta e cinco euros).

20 - O arguido AA destinava parte dos estupefacientes apreendidos à venda a terceiros na sua área de residência.

21 - O arguido AA, ao agir pela forma descrita, durante todo o indicado período de tempo, conhecia perfeitamente as características e natureza dos produtos que vendeu e, bem assim, dos que lhe foram apreendidos nas descritas circunstâncias, parte dos quais destinava à venda.

22 - O arguido AA sabia que não podia adquirir, deter, ceder, transportar, proporcionar a outrem ou vender as referidas substâncias – heroína, cocaína e canabis – e, não obstante, agiu da forma descrita.

23 - O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.

24 e 25 – (factos relativos à co-arguida)

26 - No processo 472/18.7..., o arguido foi condenado por decisão proferida em 28.10.2019 e por acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 15.04.2020, transitado em julgado em 20.05.2020, na pena única de quatro anos e oito meses de prisão, pela prática, entre os dias 08.08.2018 até 03.10.2018, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do D. L. n.º 15/93 de 22.01 por referência às Tabelas I-A e I-B.

27 - O arguido iniciou o cumprimento da pena de prisão, que deverá findar em 03.06.2023, no dia em 03.10.2018, tendo-lhe sido concedida a liberdade condicional desde 03.02.2021 até à data do termo da pena.

28 - Em liberdade condicional o arguido foi sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica no âmbito do Apenso A (NUIPC 401/21.0...), desde 28.04.2021 e até 30.09.2021, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do D. L. n.º 15/93 de 22.01.

29 - Apesar de o arguido ter sofrido a condenação no processo 472/18.7..., esta não constituiu suficiente reprovação e advertência para evitar novas práticas delituosas, antes tendo o arguido optado por continuar a praticar atos ilícitos em tudo idênticos àqueles porque anteriormente havia sido condenado, em plena liberdade condicional.

30 - O comportamento do arguido demonstra que as condenações que anteriormente lhe foram aplicadas, assim como a pena de prisão que cumpriu e a circunstância de se encontrar em liberdade condicional, não constituíram dissuasão suficiente para o afastar da prática de novos ilícitos criminais.

31 - Seja pelo facto de, em liberdade condicional ou sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação, o arguido de forma reiterada persistir na prática do crime de tráfico de estupefacientes, seja pelo seu percurso de vida, que revela desinserção social e profissional, seja ainda pela tendência para praticar ilícitos de que o presente processo é exemplo, o arguido revela que não adquiriu hábitos de trabalho e de vida que o afastem de uma tal atividade delitiva.

32 - A reiterada persistência pelo arguido na prática de ilícitos criminais, nomeadamente, por tráfico de estupefacientes, demonstra indiferença ao aviso de que lhe deveria ter servido a anterior condenação.

DAS CONDIÇÕES PESSOAIS DO AA E CASTRO (Relatório Social):

33 – O processo de socialização do arguido AA decorreu junto do agregado de origem, composto pelos progenitores e dois descendentes, sendo o arguido o mais velho da prole. A dinâmica era estruturada, com registo de padrões de funcionalidade, que parece ter-lhe assegurado ao longo de todo o processo de desenvolvimento as adequadas condições, tanto materiais como afetivas e educativas.

Frequentou a escola com regularidade até que, durante o 2º ciclo, começou a revelar pouca motivação e desinteresse, culminando com o abandono escolar durante a frequência do 3º ciclo, aos 17 anos de idade.

Teve várias experiências de trabalho ao longo da sua vida, relevando as viagens para o norte da Europa quando foi motorista de longo curso.

Contraiu matrimónio em 1993, altura em viveu em ..., tendo desta união dois descendentes já adultos. Em 2005 o casal optou pelo divórcio, referindo o arguido que a relação se desgastou. Os menores ficaram entregues um a cada progenitor, ficando a menina entregue ao pai e à família deste enquanto o rapaz, por ser mais novo, foi entregue à progenitora e família desta. AA optou por regressar a ... de onde é natural e onde tinha família.

Regista consumo de estupefacientes desde os 25 anos de idade, afirmando que durante um período considerável de tempo estes consumos não condicionaram a sua vida, negando ser dependente.

Desde o regresso ao agregado de origem que o arguido apresenta dificuldades em estruturar o seu quotidiano. Regista vários confrontos com o sistema de justiça, sentindo-se perseguido pelos órgãos de policia criminal, situação que motivou a sua mudança para ... em 2015, tendo em 2018 regressado a ... devido a um problema de saúde do progenitor.

A 04.10.2018 dá entrada no estabelecimento prisional da ... na situação de preso preventivo, tendo, por decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.04.2020 sido condenado na pena de 4 anos e 8 meses de prisão. A 03.02.2021 foi colocado em liberdade condicional, atingido o meio de pena. O acompanhamento da medida de flexibilização da pena foi condicionado pelo surto epidemiológico da Covid 19; no entanto, AA registou notórias dificuldades em cumprir com as orientações (desde logo pela recidiva no consumo de estupefacientes), resistência em aderir a acompanhamento clínico e pela sua constituição de arguido no presente processo. À ordem do processo nº 401/21.0... do Juízo de Instrução Criminal de ... – J., cumpriu a medida de coação de OPHVE com normalidade desde maio de 2021 até setembro do mesmo ano, data em que a medida de coação foi substituída por apresentações bissemanais.

AA encontrava-se em liberdade condicional, tendo, à data da sua libertação, integrado o agregado constituído pela filha FF. O arguido não se adaptou àquela dinâmica familiar, motivo pelo qual alterou a sua residência para uma habitação da herança indivisa do seu progenitor, que se encontrava para venda. No entanto, devido ao surgimento do processo em que lhe foi aplicada OPHVE, teve de reintegrar novamente o agregado da filha e novamente surgiram conflitos que obrigaram a várias alterações de residência, sendo a última um apartamento de tipologia 1 arrendado pela tia do arguido, em virtude de, em agosto, a habitação de que era coproprietário ter sido vendida.

Desde que colocado em liberdade condicional, o arguido não obteve enquadramento laboral, sobrevivendo dos valores da herança do progenitor. Por aproximação ao seu círculo de amigos, voltou a consumir estupefacientes. Por este motivo, realizava várias viagens à cidade do ... para proceder à aquisição de produtos para a satisfação das suas necessidades. Afirma que desde Outubro de 2021 (data em que recebeu a sua parte da venda do imóvel) deixou de viver em ..., onde se sentia vítima de perseguição das autoridades, pernoitando no carro ou em Motéis na cidade do ....

AA beneficia de visitas mensais da tia e ocasionais da filha. Embora a tia efetue alguns carregamentos na sua conta de recluso, a sua subsistência é garantida pelo valor que restou da venda do imóvel de que era co-proprietário.

AA deu entrada no EPP a 25.01.2022 à ordem do presente processo. Tem pendente o processo pelo qual já cumpriu OPHVE, onde está indiciado pela prática de crime análogo. Inconformado com a reclusão, por a considerar excessiva, o arguido solicitou o ingresso na formação profissional, estando a dar inicio à frequência do curso de mecatrónica.

Atento o seu comportamento aditivo, foi encaminhado para consulta de psicologia, a que não deu continuidade por considerar que o abandono do consumo de estupefacientes teria de ser uma decisão autónoma.

No cumprimento da pena anterior, apresentou uma atitude global de respeito pelo normativo institucional e adaptada no relacionamento com os funcionários e com os pares. No global, o arguido tende a justificar o seu estilo de vida socialmente desadaptado e criminal com a condicionante aditiva.

Questionado sobre a natureza de comportamentos análogos aos da presente acusação, AA reconhece-lhes dignidade penal, identificando danos e vítimas.

A família encontra-se desgastada com os seus comportamentos e teme que, regressado a meio livre, os mantenha. Referem que talvez fosse positiva uma obrigação judicial para tratamento pois o arguido já não tem dinheiro para prover às suas necessidades básicas e a família condiciona o apoio ao abandono do consumo de estupefacientes.

AA beneficia de um suporte familiar consistente, onde se realça o apoio e interajuda entre todos. No entanto, este não foi capaz de adotar comportamento normativo, não tendo as anteriores condenações alcançado, aparentemente, efeito ressocializador.

Intramuros, o arguido tem ampliando competências pessoais e sociais, procurando rentabilizar os recursos existentes para se valorizar, adquirir hábitos e rotinas normativos e aceder à condição de abstinente, ainda que sem apoio clínico.

AA continua a carecer de intervenção diferenciada e continuada dirigida à problemática da toxicodependência e de aprofundamento da interiorização do desvalor das condutas criminais por si protagonizadas para elaboração de um processo alternativo de reinserção social normativo.

34 – (Relativo às condições pessoais da co-arguida)

DOS ANTECEDENTES CRIMINAIS DO AA:

35 – Para além da condenação supra referida em 26. dos factos provados, o arguido AA conta com outra condenação pela prática de um crime de detenção de arma proibida.

36- (Relativo aos antecedentes criminais da co-arguida).

37 - O arguido é consumidor habitual de heroína e cocaína há vários anos e, à data dos factos, era consumidor.

38 - Uma parte da droga adquirida pelo arguido destinava-se ao seu consumo.

39 - Ao arguido não foram apreendidos objetos normalmente relacionados com o tráfico, nomeadamente, balanças, moinhos, plásticos.

40 - O arguido recebeu uma herança por morte do seu pai.

41 – (relativo à co-arguida)

V. Decidindo:

A) A factualidade apurada integra a prática, pelo arguido recorrente, não de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1, mas sim a prática, pelo mesmo, de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artº 25º, al. a), ambos do DL 15/93, de 22/1?

Com base na matéria de facto acima descrita, o tribunal a quo considerou ter o arguido ora recorrente praticado um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1 do DL 15/93 de 22/1.

Entende o recorrente, contudo, que tal factualidade integra a prática, por ele, de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artº 25º, al. a) do mesmo diploma legal.

Assim se dispõe no primeiro dos dispositivos legais citados:

“Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.

A heroína, a cocaína e a canabis integram respectivamente as tabelas I-A, I-B e I-C, anexas ao DL 15/93, de 22/1.

Por seu turno, estatui-se no artº 25º do DL 15/93, de 22/1:

“Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV”.

Posto isto:

Como se refere no Ac. STJ de 20/1/2021, Proc. 3/18.9PCELV.S1, com o mesmo relator deste acórdão 1, a pedra de toque, o factor decisivo ao privilegiamento do crime de tráfico de estupefacientes é, claramente, a considerável diminuição da ilicitude do facto, olhada de forma global, sendo os elementos indicados no artº 25º meramente exemplificativos 2.

No acórdão deste Supremo Tribunal, de 2/10/2019, Proc. 2/18.0GABJA.S1, 3ª sec., sintetizando um entendimento generalizado deste Tribunal, considerou-se que «assumem particular relevo na identificação de uma situação de menor gravidade: - o tipo dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração a sua danosidade para a saúde, habitualmente expressa na distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”; - a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim, avaliada não só pelo peso, mas também pelo grau de pureza; - a dimensão dos lucros obtidos; - o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida; - a afetação ou não de parte das receitas conseguidas ao financiamento do consumo pessoal de drogas; - a duração temporal da atividade desenvolvida; - a frequência (ocasionalidade ou regularidade), e a persistência no prosseguimento da mesma; - a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes, tendo em conta nomeadamente a distância ou proximidade com os consumidores; - o número de consumidores contactados; - a extensão geográfica da atividade do agente; - a existência de contactos internacionais; - o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização e meios sofisticados, por exemplo, recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente, ou a automóveis. Estas circunstâncias devem ser avaliadas globalmente. Dificilmente uma delas, com peso negativo, poderá obstar, por si só, à subsunção dos factos a esta incriminação, ou, inversamente, uma só circunstância favorável imporá essa subsunção. Exige-se sempre uma ponderação que avalie o valor, positivo ou negativo, e respetivo grau, de todas as circunstâncias apuradas e é desse cômputo total que resultará o juízo adequado à caracterização da situação como integrante, ou não, de tráfico de menor gravidade» – neste sentido, cfr., também, o Ac. STJ de 23/11/2011, Proc. 127/09.3PEFUN.S1, 5ª sec., www.dgsi.pt 3.

A este propósito, assim se decidiu no acórdão recorrido:

Da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, de acordo com a matéria de facto provada:

Antes de mais, importa realçar que, não tendo o Mº Público impugnado a decisão da matéria de facto, tem esta de considerar-se definitivamente assente. Serve isto para dizer que se impõe que este tribunal proceda à apreciação do enquadramento jurídico efetuado pelo tribunal coletivo apenas com base na factualidade que aquele tribunal considerou provada.

Sustenta o recorrente que a qualificação do tráfico como de menor gravidade depende da prova positiva de circunstâncias de onde resulte a considerável diminuição da ilicitude, o que não acontece no caso sujeito e que da qualidade (heroína e cocaína) e quantidade das substâncias em causa não se pode concluir pela considerável diminuição da ilicitude do facto, nem das circunstâncias da atividade dos arguidos, descritas nos pontos 5, 10 a 12, 13 a 17 acórdão recorrido, impondo-se a condenação dos arguidos pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no artº 21º do Dec-Lei nº 15/93 de 22.1.

Vejamos:

(…)

Aqui chegados é altura de perguntar afinal se os factos provados devem ser enquadrados no artº 21º do Dec-Lei nº 15/93 de 22.1, ou se, pelo contrário, estamos perante um caso de tráfico de menor gravidade abarcado pelo artº 25º do mesmo diploma legal, como fez o acórdão recorrido 4.

Antes de mais, convém realçar que o legislador português abandonou o rigorismo da quantidade diminuta oriundo do Dec-lei nº 430/83, entendida aquela como dose individual necessária ao consumo de um dia, alargando esse parâmetro para alguns dias.

Por outro lado, se é certo que o aspeto quantitativo não deixa de ser de grande importância para a qualificação, a contemplação de uma hipótese atenuada de tráfico implica uma valorização global do facto, devendo o juiz valorar complexivamente todas as concretas circunstâncias do caso – a enumeração do artº 25º não é taxativa – com vista à obtenção de um resultado final, qual seja o de saber se, objetivamente, a ilicitude da ação é de relevo menor que a tipificada para os artigos anteriores.

No caso em apreço, resultou provado que o arguido se deslocou, pelo menos por três vezes, de ... ao ... para adquirir heroína e cocaína, que destinava parcialmente à venda a terceiros, fazendo-se transportar num veículo automóvel (com as inerentes despesas que tais deslocações comportam). No período de cerca de um ano – de 03.02.2021 a 24.01.2022, o arguido foi interceptado por três vezes pelas autoridades policiais, tendo em seu poder: no dia 28.04.2021, vários pedaços de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 2,624 gramas, cocaína (éster metílico) com o peso líquido de 2,662 gramas e heroína com o peso líquido de 6,940 gramas; no dia 08.01.2022 trazia consigo cocaína (éster metílico), com o peso líquido de 3,251 gramas, e heroína dividida em dezassete doses individuais, com o peso líquido de 1,681 gramas, destinando o arguido, uma parte, à venda a terceiros; no dia 24.02.2022, o arguido transportava um frasco que continha heroína, com o peso líquido de 9,504 gramas, e um guardanapo que continha vários pedaços de cocaína (éster metílico), com o peso líquido 40,18 gramas.

Os consumidores de estupefacientes inquiridos em audiência (GG, CC, DD e HH) declararam ter adquirido por diversas vezes ao arguido AA heroína, cocaína e haxixe e que no “mundo da droga” as pessoas comentavam que o AA vendia produtos estupefacientes.

Note-se que as sucessivas intercepções policiais ou as medidas de coação que lhe foram aplicadas na sequência da sua detenção em Fevereiro de 2021, não foram suficientemente desmotivadoras para que o arguido se abstivesse de se deslocar ao ... para adquirir cocaína e heroína, sendo certo que na última deslocação adquiriu heroína com o peso líquido de 9,504 gramas e cocaína com o peso líquido de 40,18 gramas, o que é revelador da efetiva compensação económica de tal atividade. Aliás, desde que lhe foi concedida liberdade condicional em 03.02.2021, o arguido não exerceu qualquer atividade laboral, pelo que é de admitir que o arguido suportasse todas as suas despesas diárias com o produto da venda do estupefaciente que previamente adquiria no ..., com exceção da parte que destinava ao seu próprio consumo.

Como se refere no Ac. do STJ de 12.10.00 5 para a integração de determinada conduta no artº 21º ou no artº 25º do Dec-Lei nº 15/93 de 22.1 “o que importa, é apurar se de todo o conjunto da atividade do arguido emergem itens inculcadores de reiteração, habitualidade, intensidade, disseminação, alargada ou sintomaticamente expressiva, ligações mais ou menos marcadas ao mundo dos estupefacientes ou ao seu mercado, carácter dos atos praticados e sua dimensão”.

A conclusão da diminuição considerável da ilicitude (elemento do tipo do artº 25º) há-de resultar da apreciação complexiva, em que assumem relevo os "meios utilizados" - ou seja, a organização e logística demonstradas -, a "modalidade ou circunstâncias da ação" - isto é, o grau de perigosidade para a difusão da droga - a "qualidade" das substâncias ou preparações - aferida em termos de danosidade tal como é indiciada pela sua concreta colocação em cada uma das tabelas anexas ao DL 15/93 - e a "quantidade", não apenas da droga detida no momento da intervenção policial, mas que o agente tenha "manipulado" em alguma das operações enunciadas no art.º 21.º.».

Ora, fazendo uma avaliação crítica dos factos provados, podemos constatar que o arguido não era o que se costuma chamar de “dealer” de rua, na acepção de indivíduo que vende “a retalho” aos “consumidores” por conta de outrem, oferecendo à venda o produto a quem passa no local e recebendo em troca, do dono do negócio, compensações monetárias ou pequenas quantidades de droga para consumo próprio.

Com efeito, as circunstâncias atrás referidas – quantidades e qualidades envolvidas - levam a concluir que o arguido tinha um negócio por conta própria, fornecendo diretamente consumidores e, por isso, a modalidade e circunstâncias da ação, qualidade, diversidade e quantidade das substâncias não dão uma imagem global de menor gravidade, antes pelo contrário.

Daí que se conclua que o arguido se constituiu autor de um crime de tráfico de estupefacientes comum, p. e p. no art.º 21.º n.º 1 do Dec-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, tal como corretamente sustenta o recorrente».

Posto isto:

Entende o recorrente que os factos apurados integram a prática, por ele, de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artº 25º, al. a) do DL 15/93, de 22/1, afirmando – conclusão 14ª da sua motivação de recurso – que “não se encontram assim reunidos os pressupostos de facto necessários para a aplicação do artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei nº 15/93 ao caso do ora Recorrente”.

Porém, contrariamente àquilo que parece pensar o recorrente, o tipo legal do crime previsto no artº 25º, al. a) do DL 15/93, de 22/1, não constitui o tipo base, nem o tipo legal do crime previsto no artº 21º do mesmo diploma constitui uma forma agravada daquele. Distintamente, é o artº 21º do DL 15/93, de 22/1 que define o tipo base do crime de tráfico de estupefacientes e é em função dele que se há-de verificar se, em cada caso concreto, a imagem global da conduta do agente permite concluir pela acentuada diminuição da ilicitude do facto, caso em que a conduta será punida nos termos previstos no artº 25º, al. a) do diploma legal referido.

Que a conduta do recorrente preenche, em abstracto, a previsão legal do artº 21º do DL 15/93, de 22/1, é algo de inquestionável (e, em concreto, inquestionado): o recorrente comprou, transportou, vendeu e ilicitamente deteve, substâncias (heroína, cocaína e canábis) compreendidas nas tabelas I-A, I-B e I-C anexas ao referido diploma, não destinadas (ao menos totalmente) a consumo próprio.

A questão é, pois, outra e consiste em saber se, no caso concreto e face ao factualismo apurado, a imagem global da conduta do arguido permite concluir pela acentuada diminuição da ilicitude do facto.

Ora, encontra-se provado que o arguido e ora recorrente durante cerca de um ano dedicou-se à compra, para posterior venda a terceiros, de cocaína, heroína e canabis.

A heroína e a cocaína são consideradas “drogas duras”, em função do nível de dependência que provocam e dos efeitos nefastos na saúde de quem as consome.

O arguido deslocava-se ao ..., onde ia adquirir os produtos estupefacientes e transportava-os para ..., onde procedia à sua venda a terceiros.

Não lhe é conhecido qualquer tipo de actividade profissional remunerada desde Fevereiro de 2011, 10 anos antes do início dos factos em análise nestes autos.

Apesar de, segundo consta do relatório social oportunamente elaborado, o arguido ter recebido um quinhão na herança aberta por óbito dos seus pais, o certo é que, segundo o próprio afirma, recebeu o montante correspondente em Outubro de 2021, escassos 3 meses antes da prática do último acto de tráfico em apreciação nestes autos. E, ainda assim, certo é que, novamente recluso desde 25/1/2022 (à ordem destes autos), aquela herança não obsta a que uma sua familiar efectue alguns carregamentos na sua conta de recluso.

E, portanto, é de concluir que o recorrente utilizava os lucros resultantes da referida actividade de compra para revenda de produtos estupefacientes para assegurar as suas necessidades básicas.

O arguido iniciou a apurada actividade de tráfico de estupefacientes logo após a sua saída do estabelecimento prisional, em 3/2/2021, e em pleno período de liberdade condicional, concedida no Proc. 472/18.7...

Desde essa data e até 28/4/2021, o recorrente vendeu diariamente a BB 3 a 4 pedras de cocaína e 3 pacotes de heroína.

Bem assim, em 9/6/2021 – numa altura em que se encontrava a cumprir a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (no Proc. 401/21.0...) – o arguido vendeu heroína a CC e cocaína e canábis a DD.

Em 28/4/2021 efectuou uma deslocação ao ..., onde adquiriu, para posterior revenda a terceiros (ao menos, em parte), 5,3 gramas de cocaína e 7 gramas de heroína; em 8/1/2022 efectuou mais uma deslocação ao ..., com o mesmo propósito, onde adquiriu cerca de 1,7 gramas de heroína e 3,250 gramas de cocaína; e, no dia 24/1/2022, efectuou nova deslocação ao ..., onde adquiriu, para revenda, 9,5 gramas de heroína e mais de 40 gramas de cocaína, nestas duas aquisições no espaço de duas semanas se evidenciando a tal “curva ascendente na quantidade do produto estupefaciente adquirido e transacionado, essencialmente heroína e cocaína”, a que alude o Exmº Magistrado do MºPº junto do tribunal a quo.

Por fim, resta dizer que, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, não é verdade que o mesmo restringisse a actividade de tráfico à cidade de .... A aquisição, detenção e transporte de droga são, também, actividades de tráfico. E estas ocorreram, também, na cidade do ..., situada a mais de 120 km de distância de ....

Em suma: nem da qualidade das drogas detidas e transaccionadas, nem do lapso de tempo em que decorreu a actividade do arguido (que, note-se, se iniciou com a sua liberdade condicional e apenas terminou com a - e por causa da - sua detenção à ordem destes autos), nem do modo como tal actividade era exercida (como bem se refere no acórdão recorrido, o arguido exercia uma actividade “por conta própria”, não sendo um vendedor de rua, um “comissionista” por conta de outrem) é possível concluir por uma imagem global do facto que nos conduza a uma diminuição, ainda para mais considerável, da ilicitude do facto.

Por outras palavras:

Nenhuma censura merece o acórdão recorrido, na parte em que qualificou os factos apurados como integrando a prática, pelo recorrente, de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/1.

B) A proceder a primeira pretensão do arguido, é excessiva e deve ser reduzida a medida concreta da pena aplicada ao arguido?

A redução da medida concreta da pena aplicada foi peticionada pelo recorrente apenas como decorrência da procedência da primeira questão por si suscitada, isto é, na eventualidade de se proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos, condenado o recorrente pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artº 25º, al. a) do DL 15/93, de 22/1.

E compreende-se que assim o tenha feito:

Sendo o arguido condenado como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º do mesmo diploma, como reincidente (e a condenação do recorrente como reincidente não se mostra, in casu, questionada), a pena a aplicar é fixada entre os 5 anos e 4 meses e os 12 anos de prisão.

A pena concretamente aplicada – 6 anos de prisão – situada escassos 8 meses acima do limite mínimo, dificilmente poderia ser questionada, por excessiva.

E daí que o recorrente tenha limitado a sua pretensão de ver reduzida a pena aplicada, para a hipótese de procedência da sua primeira pretensão de ver alterada a qualificação jurídica dos factos apurados 6.

Improcedente a primeira pretensão, prejudicado fica o conhecimento da segunda, formulada para a hipótese de procedência da primeira.

VI. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando inteiramente o douto acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC´s – artº 513º, nº 1 do CPP e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 11 de Outubro de 2023 (processado e revisto pelo relator)

Sénio Alves (relator)

Pedro Branquinho Dias (1º adjunto)

Lopes da Mota (2º relator)

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1. Acessível, como todos os demais, relativamente aos quais não for indicada fonte diversa, em www.dgsi.pt.

2. “É a imagem global do facto, ponderadas conjuntamente todas as circunstâncias relevantes que nele concorrem, que permitirá a identificação de uma situação de ilicitude consideravelmente diminuída, ou seja, uma situação em que o desvalor da ação é claramente inferior ao padrão ínsito no tipo fundamental de crime – o tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21º. Em síntese: o artigo 25.º encerra um específico tipo legal de crime, o que pressupõe a sua caracterização como uma variante dependente privilegiada do tipo de crime do artigo 21.º. A sua aplicação tem como pressuposto específico a existência de uma considerável diminuição do ilícito; pressupõe um juízo positivo sobre a ilicitude do facto, que constate uma substancial diminuição desta, um menor desvalor da acção, uma atenuação do conteúdo de injusto, uma menor dimensão e expressão do ilícito” – Ac. STJ de 22/10/2020, Proc. 476/17.7PALGS.S1, 5ª sec.

3. No mesmo sentido, cfr. Acs. STJ de 23/2/2022, Proc. 4/17.4SFPRT.P1.S1 e de 24/9/2020, Proc. 109/17.1GCMBR.S1.

4. Uma vez que não se trata do artº 26º, desde logo por não ter resultado provada a finalidade exclusiva de obtenção das substâncias para uso pessoal.

5. Proc. nº 170/00-5ª secção

6. Conclusão 16ª: “Por fim e, em consequência, deverá também ser alterada a dosimetria da pena aplicada ao aqui Recorrente”; conclusão 18ª: “Todavia, por força da aplicação do tipo previsto no art. 25.º sempre conduzirão a que a pena resultante da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de que ora se recorre, seja, igualmente, de alterar, atendendo a que os limites mínimo e máximo são distintos naquela previsão legal”.