Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3204/22.1T8FNC-A.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: REINTEGRAÇÃO
OPOSIÇÃO
Data do Acordão: 11/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :

Opondo-se o empregador à reintegração cabe-lhe alegar e provar os factos e circunstâncias que tornem o regresso do trabalhador gravemente prejudicial e perturbador do funcionamento da empresa.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 3204/22.1T8FNC-A.L1.S1


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,


1. Relatório


AA intentou, por apenso a procedimento cautelar de suspensão do despedimento, ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra A.. ...... ....., Unipessoal, Lda.


Não tendo sido possível a conciliação, a Entidade Empregadora apresentou articulado a fundamentar o despedimento, tendo a Trabalhadora contestado.


Realizado o julgamento foi proferida sentença com o seguinte teor:


“Nestes termos, tudo visto e ponderado, julgo a ação parcialmente procedente por provada e, consequentemente, declaro:


a) a ilicitude do despedimento da Autora trabalhadora AA pela empregadora;


b) excluída a reintegração da Autora trabalhadora;


e em consequência, condeno a Ré empregadora A.. ...... ....., Unipessoal, Lda.:


c) a pagar à Autora trabalhadora as retribuições vencidas desde 01.06.2022 até ao trânsito em julgado da presente decisão;


d) a pagar à Autora trabalhadora a indemnização no valor de 34.484,11€ (trinta e quatro mil e quatrocentos e oitenta e quatro euros e onze cêntimos);


e) absolvo a Ré do pedido reconvencional deduzido pela Autora trabalhadora e do demais peticionado por esta”.


A Trabalhadora, inconformada, interpôs recurso de apelação.


Em 17.05.2023. o Tribunal da Relação proferiu acórdão, com o seguinte dispositivo:


“Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença nos segmentos b) e d), condenando a Empregadora na reintegração da Trabalhadora sem prejuízo da sua categoria e antiguidade e, bem assim, no pagamento, por cada dia de atraso em cumprir esta decisão, de uma sanção pecuniária compulsória no montante de 150,00 € (cento e cinquenta euros) diários.”


A Entidade Empregadora interpôs recurso de revista. Neste apenas é impugnada a decisão do Acórdão recorrido de determinar a reintegração da Trabalhadora, sendo que quanto a este segmento decisório não existe “dupla conformidade”. Invoca, nas Conclusões:


- Que o empregador é “uma microempresa, sendo um estabelecimento de farmácia, localizado num meio rural, e com dois funcionários para alem da própria gerente” (Conclusão j);


- Que a trabalhadora “demonstrouemváriosprocessosjudiciaisuma grande conflitualidade com a sua entidade empregadora” (Conclusão k);


- Que a trabalhadora “por circunstâncias diretas e indiretas do seu comportamento, provocou graves problemas com os colegas e até com a clientela da farmácia” (Conclusão l); Na Conclusão q) reitera-se existir “um real e efetivo contexto laboral conflituoso de toda a empresa, ou seja, envolvendo colegas e até da clientela do próprio estabelecimento, pondo em risco o seu eficaz funcionamento e até subsistência”.


- Que já não existe “um posto de trabalho compatível, o comportamento anterior e posterior aos conflitos judiciais do trabalhador que em geral deterioram a relação de confiança com o empregador, com a sua conduta ofensiva e difamatória perante terceiros, bem como o mal-estar ciado com os colegas e clientes” (Conclusão t).


-


Nas Conclusões do seu recurso


A Trabalhadora contra-alegou.


Em conformidade com o disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.


2. Fundamentação


De Facto


1. A Autora é trabalhadora da Ré empregadora e exerce as suas funções de técnica auxiliar de farmácia na Farmácia do ... desde o dia 2 de março de 2002.


2. E aufere a retribuição mensal ilíquida de 847,97€.


3. Correu termos neste Tribunal Ação de Impugnação Judicial da Regularidade e Licitude do Despedimento n.º140/20.0..., instaurado pela ora Autora contra a Ré empregadora, no âmbito da qual foi proferida sentença a 14-07-2020, com a declaração de ilicitude do despedimento da ora Autora trabalhadora, com a condenação da ora Ré empregadora a “b) pagar à Trabalhadora as retribuições vencidas desde 31.12.2019 até ao trânsito em julgado da presente decisão; c) a reintegrar a trabalhadora na sua categoria e antiguidade”.


4. A 13.06.2022 a Autora trabalhadora ainda não tinha recebido os valores que lhe são devidos, nem regressou ao seu posto de trabalho.


5. A Autora trabalhadora instaurou ação de execução da decisão proferida e deduziu incidente de liquidação.


6. A ora Ré empregadora deduziu embargos de executado.


7. Por sentença datada de 02.02.2022, foi homologada transação no incidente de liquidação em que a Ré empregadora reconheceu ser devedora das quantias peticionadas.


8. Por sentença datada de 02.02.2022 foi homologada transação nos embargos de executado em que a ora Ré empregadora acordou “a trabalhadora será reintegrada a 14/02/2022, devendo apresentar-se no local de trabalho pelas 09:00horas”.


9. A 07 de março de 2022, a ora Ré empregadora intentou, novamente, execução nos próprios autos, com dispensa de citação prévia, a qual deu origem ao processo 140/20.0..., e ao processo de embargos de executado apresentado pela entidade empregadora (140/20.0...), tendo estes últimos sido liminarmente indeferidos, por sentença datada de 31-05-2022.


10. Por carta datada de 21 de março de 2022, a Ré empregadora enviou comunicação de suspensão preventiva por instauração de procedimento disciplinar, na qual o mandatário da requerida assume a posição de instrutor, alegando “com fundamento em comportamentos por si provocados e ocorridos após dia 14 de fevereiro último (…) as ameaças e injúrias dirigidas à gerente BB e por essa razão se mostrar inconveniente a sua presença no local de trabalho”.


11. Por carta datada de 19 de abril de 2022, foi enviado à Autora trabalhadora a Intenção de Despedimento e Nota de Culpa.


12. A Autora trabalhadora respondeu à Nota de Culpa.


13. Por carta datada de 1 de Junho de 2022 a Ré empregadora comunicou à Autora trabalhadora a decisão de despedimento por justa causa.


14. A Autora trabalhadora apresentou-se ao trabalho no dia 14.02.2022, pelas


09:00horas, tendo a Ré empregadora ordenado que a mesma fosse para casa, para cumprir período especial de férias que terminaria no dia 25 de março de 2022.


15. Após contestar, de forma pacífica, tal decisão, a Autora trabalhadora viu-se obrigada a ir para casa.


16. No dia 14, perante o comunicado a Autora trabalhadora tentou questionar acerca da legalidade de tal decisão, bem como alertar para a imperatividade de cumprimento da sentença acima mencionada.


17. Por e-mail de sexta-feira à tarde anterior foi transmitida à Autora trabalhadora o período de férias que duraria até ao dia 25 de março.


18. Na mesma data, e através de e-mail dirigido pela mandatária da requerente ao mandatário instrutor do processo disciplinar, a Autora trabalhadora comunicou que, face ao estabelecido na sentença judicial em causa, se iria apresentar no local de trabalho às 9h00 no mencionado dia 14, devendo, na mesma data, ser ressarcida do valor total em dívida também fixado naquela sentença.


19. A Autora trabalhadora não foi consultada quanto ao gozo de férias fixado.


20. A Autora trabalhadora temia que, se não se apresentasse ao trabalho no dia e hora estipulados, aquela utilizasse tal ausência contra si, iniciando novo processo de despedimento.


21. No referido dia 14 de fevereiro, quando a Autora trabalhadora se apresentou foi recebida pelo ora instrutor e pela entidade empregadora, sendo que esta nessa data não falou com a Autoras trabalhadora.


22. A requerente trabalhadora foi questionada pelo advogado Dr. CC, instrutor, sobre se não havia recebido o e-mail que enviou no dia 11-02-2022, ao final da tarde.


23. A trabalhadora confirmou a receção do e-mail, mas que, no dia do acordo judicial que deu lugar à reintegração, tinha perguntado à juiz acerca das férias, e que esta lhe tinha dito que a trabalhadora tinha direito a ser consultada e a escolher o respetivo período, tendo tais direitos sido confirmados pela sua advogada.


24. A Autora trabalhadora telefonou à sua advogada, a qual falou, via telefone, com o advogado da entidade patronal, que se encontrava no local.


25. Após a conversa entre os mandatários terminar, a Autora trabalhadora falou com a advogada, via telemóvel, tendo sido aconselhada a regressar a casa, pois a marcação das férias seria objeto de contestação escrita, facto que efetivamente ocorreu.


26. A Autora trabalhadora não teve qualquer comportamento autoritário, afrontoso, rude ou perturbador do serviço normal da farmácia.


27. Nesta data, a Autora trabalhadora não teve qualquer contacto direto com a entidade patronal (que não saiu do seu gabinete).


28. A Autora trabalhadora no final, pediu para que aquela tratasse do registo e caderneta da prática farmacêutica, uma vez que para obter a cédula profissional falta a entidade patronal proceder ao respetivo registo, sendo que este pedido já havia sido formulado anteriormente e que, naquele dia, foi feito de forma educada e nada insistente, não passando de um lembrete.


29. Nessa sequência, o advogado da Ré empregadora foi até ao interior questionar sobre este assunto a entidade patronal.


30. Tal documento não lhe foi entregue e a Autora trabalhadora abandonou calma e educadamente o local, não tendo proferido quaisquer palavras.


31. Nesse dia e ocasião encontravam-se na farmácia dois clientes, um local e um estrangeiro, a funcionária DD e a empregada de limpeza de nome EE


32. A Autora trabalhadora compareceu no dia 16-02-2022, às 9h00 (hora da abertura da farmácia e que corresponde ao horário de entrada que a trabalhadora antigamente cumpria), e pediu para falar com a entidade patronal, a ver se esclareciam a questão das férias, com entrega do original da declaração comprovativa, e horário de trabalho, o qual ainda não lhe havia sido comunicado.


33. Nessa ocasião e enquanto esperava a chegada da gerente da Ré, a Autora trabalhadora aproveitou para comprar um xarope para a sua filha e após o respetivo pagamento, disse à colega, com respeito e sem qualquer tom juncoso ou provocador, que iria aguardar na sala de espera da farmácia.


34. O que fez em silêncio.


35. Quando a gerente chegou, às 11h20m, acompanhada pelo marido, a Autora trabalhadora cumprimentou-o.


36. De seguida, a Dr.ª BB questionou a Autora trabalhadora sobre o motivo da sua estadia no local, ao que esta respondeu que tinha ido pedir a declaração comprovativa das férias, que lhe foi entregue em mão no momento, e a caderneta completa para entregar na Direção Regional do Trabalho (onde lhe pediram tal documento para obtenção da Cédula Profissional).


37. A troca de palavras que decorreu, de forma pacífica, sem qualquer alteração de voz e com cordialidade mútua.


38. A Ré empregadora foi ao seu gabinete, tendo a Autora trabalhadora aguardado pelo seu regresso em silêncio.


39. Quando regressou, a Ré empregadora trouxe documentos para a Autora trabalhadora assinar, ao que esta respondeu que só iria assinar após falar com a sua advogada.


40. Perguntou, ainda, quando deveria regressar ao trabalho e qual o horário que iria ter, bem como quando iria receber o valor que lhe é devido a título de indemnização fixado no processo judicial ao que a Ré empregadora respondeu não saber ao certo, pelo que ia esclarecer esses assuntos junto da contabilidade e do seu advogado.


41. A conversa terminou quando a Autora trabalhadora questionou a representante da Ré empregadora acerca da dívida supramencionada, alegando esta que não iria continuar a conversa por desconhecimento e porque isso era um assunto a tratar com os advogados, tendo pedido para a trabalhadora sair.


42. Esta acedeu e saiu da farmácia, tranquilamente.


43. Em dezembro de 2018 a Ré empregadora apresentou à Autora trabalhadora diversas propostas de acordo de cessação do seu contrato de trabalho, o que a Autora trabalhadora recusou.


44. A farmácia da Ré empregadora situa-se no ... e tem três funcionários, sendo um deles a gerente da Ré, a qual exerce funções também ao balcão junto dos outros funcionários.


De Direito


No nosso sistema legal a reintegração do trabalhador no mesmo estabelecimento da empresa sem prejuízo da sua categoria e antiguidade é a consequência normal de um despedimento ilícito, mormente disciplinar, como resulta do artigo 389.º, n.º 1, alínea b) do Código do Trabalho. Aliás, o trabalhador terá que optar pela indemnização substitutiva se a pretender em vez da reintegração (artigo 391.º, n.º 1).


A faculdade de oposição à reintegração por parte do empregador (artigo 392.º) deve ser encarada como uma norma excecional que, em todo o caso, requer que o empregador alegue e demonstre os factos constitutivos desse pedido de exclusão da reintegração.


Não exercendo a trabalhadora qualquer cargo de administração ou de direção, a empresa do seu empregador é, no entanto, microempresa. Contudo, de acordo com a lei, não basta que o trabalhador trabalhe numa microempresa para que a reintegração seja excluída, tendo o empregador o ónus de demonstrar “factos e circunstâncias que tornem o regresso do trabalhador gravemente prejudicial e perturbador do funcionamento da empresa” (artigo 392.º, n.º 1 do CT). Acresce que não será atendível o fundamento da oposição à reintegração que seja culposamente criado pelo empregador (artigo 392.º, n.º 2 do CT).


Ora do elenco dos factos provados não resulta que tenha sido demonstrado qualquer facto dos referidos no n.º 1 do artigo 392.º que torne “gravemente prejudicial e perturbador” o regresso da trabalhadora.


O que se verifica é que a Trabalhadora, agora Recorrida, sempre se comportou com tranquilidade, decoro e educação – cfr. factos 15, 26, 30, 33, 34, 35, 37, 42 – apesar da reiterada violação dos seus direitos de que foi vítima.


E também não procede a invocação de que a Recorrida daria mostras de grande litigiosidade, a qual seria uma fonte de conflitualidade com o seu empregador e danosa para a imagem da empresa junto da sua clientela.


Como certeiramente se afirma no bem fundamentado Parecer junto aos autos neste Tribunal pelo Ministério Público:


“[A]contece que, do cotejo entre os factos alegados pela recorrente e a factualidade considerada provada, não se verifica qualquer coincidência, particularmente em relação aos aspetos invocados que seriam mais relevantes, em concreto, que: (i) a trabalhadora tenha demonstrado em vários processos judiciais uma grande conflitualidade com a empregadora; (ii) por circunstâncias diretas e indiretas do seu comportamento, tenha provocado graves problemas com os colegas e até com a clientela da farmácia.


Pelo contrário, o que ressalta, por um lado, é que a recorrente despediu ilicitamente a recorrida por duas vezes, sendo que não cumpriu a primeira decisão em que foi condenada, o que originou as ações subsequentes interpostas – cf. factos dados como provados sob os pontos 3) a 9), bem como da sentença dos presentes autos.


Daqui se extrai, salvo melhor opinião, que o conflito laboral, bem como o seu agravamento, é da responsabilidade da recorrente, não existindo quaisquer elementos que possam criar a convicção de poder ser imputado à recorrida”.


Concorda-se inteiramente com as passagens transcritas. Se de conflitualidade se pode falar a mesma deve imputar-se à conduta da empregadora, a qual depois de uma transação homologada em que assumiu que iria reintegrar a trabalhadora (facto 9) acabou por não cumprir aquilo a que se obrigara. E a mera invocação de que o posto de trabalho já não existe não pode, igualmente, ser fundamento para a recusa da reintegração.


E não se vislumbra nos factos provados nada que dê suporte às alegações de conflitos com colegas, com a clientela e muito menos qualquer conduta ofensiva e difamatória perante terceiros.


Decisão: Acorda-se em negar a revista e confirmar o Acórdão recorrido.


Custas pela Recorrente


Lisboa, 3 de novembro de 2023


Júlio Gomes (Relator)


Ramalho Pinto


Domingos José de Morais