Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1727/23.4YRLSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
EXTRADIÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CONSENTIMENTO
NULIDADE DA DECISÃO
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO/M.D.E./RECONHECIMENTO SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: JULGAMENTO ANULADO
Sumário :
I. Ao presente processo de extradição, são aplicáveis a Convenção bilateral de Extradição entre Portugal e os Estados Unidos da América, assinada em Washington em 7 de Maio de 1908, com as alterações introduzidas pelo Instrumento entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América, de 14 de Julho de 2005 e o respetivo Anexo, em execução do Acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos da América sobre Extradição, de 25 de Junho de 2003 e, subsidiariamente, a Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

II. São ainda convocáveis as normas da Constituição da República que estabelecem e desenvolvem direitos fundamentais com incidência no processo de extradição e do Código de Processo Penal, este de aplicação subsidiária (n.º 2, do art. 25.º da Lei n.º 144/99).

III. O recorrente foi detido pelo SEF, com base numa Red Notice.

IV. O art. IX do Anexo ao Instrumento entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América, de 2005, remete as condições e disciplina do processo de extradição simplificado (faculdade do Estado requerido) para “os princípios e procedimentos previstos no seu ordenamento jurídico”.

V. Não existindo disposição convencional que dispense a apresentação do pedido de extradição há lugar à aplicação do n.º 6, do art. 40.º, da Lei n.º 144/99, de 31.08.

VI. A Decisão recorrida, de homologação de consentimento prestado em auto de declarações destinado a validar a detenção, não se mostra precedida da receção do pedido de extradição, imposta pelo n.º 6, do art. 40.º da Lei n.º 144/99, de 31.08, e de Despacho de admissibilidade da Ministra da Justiça (arts. 46.º, nº 2 e 48.º, da mesma Lei).

VII. Tal Decisão, homologatória do consentimento, na falta de pedido de extradição e de decisão administrativa, pôs termo ao processo (art. 40.º, n.º 5 da referida Lei), tomando conhecimento e dispondo sobre matéria de que, legalmente, não podia conhecer.

VIII. Ao tomar conhecimento a final do objeto do processo (al. a) do n.º 1, do art 97.º do CPP), a decisão de homologação deve ter em conta os requisitos definidos no artigo 374.º do CPP, configurando eventuais omissões ou excessos de pronúncia a nulidade prevista na al. c), do n.º 1, do artigo 379.º do mesmo CPP.1

IX. Conclui-se pela nulidade da Decisão recorrida, nulidade essa que é objeto de conhecimento obrigatório em recurso (n.º 2, do art. 379.º do CPP).

Decisão Texto Integral:

A. Relatório

1. AA, notificado da decisão, de 23/06/2023, que homologou o consentimento dado pelo Extraditando e bem assim que determinou que o Extraditando seja entregue ao Estado de emissão do pedido, não se conformando com a referida decisão, veio da mesma interpor recurso.

Apresentou as seguintes conclusões: (transcrição)

“A.

I. Em 19/06/2023 o Ministério público juntou aos presentes autos um Requerimento com o seguinte conteúdo:

“A detenção ocorrida a 7 de junho de 2023, de Taha Zouheir, resultou de um pedido formulado pelas autoridades judiciárias dos Estados Unidos da América, com vista à sua extradição para este país. — (art.º 39.º da Lei n.º 144/99 de 31/8)

Na sequência da sua audição, a qual ocorreu a 9 de junho de 2023, foi validada a detenção do extraditando, ficando o mesmo provisoriamente detido às ordens destes autos, situação processual em que se encontra.

Entretanto as autoridades judiciárias americanas remeteram expediente datado de 7 de junho de 2023, reiterando o propósito de enviar para Portugal o pedido formal de extradição de Taha Zouheir, encontrando-se em curso a recolha de elementos probatórios que o irão instruir e solicitando para o efeito a prorrogação do prazo para 40 dias.

Consequentemente, requer-se ao abrigo do disposto no n.º 5, do art.º 38º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, que se deverá aguardar o competente pedido formal de extradição bem como a apresentação de garantias formais de que não será aplicado ao extraditando a pena de prisão perpétua, caso seja condenado, devendo considerar-se que o Estado requerente tem para o efeito o prazo de 40 dias.”

II Nem o Recorrente, nem o seu defensor, foram notificados do referido Requerimento.

III. Em 21/06/2023 foi proferido despacho nos seguintes termos:

“Aguardem os autos nos termos requeridos.”

Como referem Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, de 2007, volume I, pág. 534: “A extradição como forma de cooperação está sujeita a importantes pressupostos negativos, justificativos da recusa de cooperação, como a não observância das exigências da Convenção Europeia para Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e de outros instrumentos relevantes na matéria, ratificados por Portugal.

IV. Em 20/06/2023 o Ministério Público apresentou requerimento com o seguinte conteúdo:

O Ministério Público neste Tribunal vem, requerer a V. Exa o seguinte:

1— Conforme informação recebida através do Gabinete de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal da Procuradoria-Geral da República, as autoridades judiciárias do Estado Requerente, os Estados Unidos da América, informaram que por despacho judicial emitido por um juiz do Tribunal Distrital Geral de ..., proferido a 14 de junho de 2023, foram revogados os mandados no âmbito dos quais o extraditando AA estava acusado da prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada e de recurso a arma de fogo na prática de ofensa à integridade física qualificada, sendo que este último previa pena de prisão perpétua.

2 — Assim, o pedido extradicional, conforme referido pelas autoridades judiciárias do Estado de emissão, se circunscreve agora a três acusações, a saber:

a) Homicídio qualificado, na forma tentada

b) Recurso a arma de fogo na prática de crime (ofensa à integridade física grave).

c) Ofensa à integridade física grave.

3 — Crimes estes puníveis com penas máximas de 10, 3 e 20 anos de prisão, respectivamente, razão pela qual já não há necessidade de se aguardar pelas solicitadas garantias de não aplicação de pena de prisão perpétua.

4 — Nestes termos, dado que o extraditando, aquando da sua audição judicial, declarou, de forma livre e consciente, que consentia na sua remoção para os Estados Unidos da América, verifica-se que não existe qualquer obstáculo constitucional a que possa ser homologado tal consentimento, por força do disposto das disposições combinadas dos artigos IX do Instrumento entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América, conforme estipula o art.º 3.º n.º 2, do Acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos da América sobre Extradição, assinado em 25 de junho de 2003, e o art.º 40.º n.º 3 da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

— Assim, face ao teor da informação ora enviada, se requer a homologação do consentimento do extraditando, que é irrevogável, e subsequentemente, dado que o acto judicial de homologação equivale, para todos os efeitos, à decisão final do processo de extradição, se determine a sua entrega ao Estado de emissão do pedido, os Estados Unidos da América.

Junta: Ofício emitido pelo Ministério da Justiça do EUA e sua tradução, bem como cópia do ofício n.º 263575.23 de 15 de junho de 2023 do Departamento de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal.

Lisboa, 20 de junho de 2023”

V Nem o Recorrente, nem o seu defensor, foram notificados do referido requerimento do Ministério Público, onde este além do mais requer: “… a homologação do consentimento do extraditando, que é irrevogável, e subsequentemente, dado que o acto judicial de homologação equivale, para todos os efeitos, à decisão final do processo de extradição, se determine a sua entrega ao Estado de emissão do pedido, os Estados Unidos da América.”

VI Como tem vindo a ser defendido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nos termos do artigo 6º da C.E.D.H. “qualquer elemento oferecido por uma entidade independente e objectiva (por exemplo, pareceres do Ministério público) deve ser comunicado às partes a quem deve ser concedida a oportunidade de sobre ele se pronunciar…” A Convenção Europeia dos Direitos do Ho0mem, Ireneu Cabral Barreto, 2015, 5º Edição, Almedina, pág. 170.

VII. Veja-se a este propósito os Acórdãos de 20 de fevereiro de 1996, R96-I, pág. 206, Vermeulen, da mesma data, R96-I, pág. 234, Niderost-Huber, de 18 de fevereiro de 1997, citados pelo referido autor.

VIII. Assim, ao terem sido juntos ao processo diversos requerimentos apresentados pelo Ministério Público, antes de ter sido proferida a decisão de 23/06/2023, a qual, aliás, veio a ser proferida em consequência de um desses Requerimentos, estava o Tribunal obrigado a ordenar a notificação desta resposta ao Recorrente para que o mesmo tivesse conhecimento da mesma.

IX. Impedindo-se, assim, o Arguido não só de tomar conhecimento do requerimento apresentado pelo Ministério público, como de responder ao mesmo.

X. O Tribunal a quo violou, assim, os artigos 3º, n. º3, 4º, 195º, n. º1, do C.P.C., bem como os artigos artigo 61º, n.º1, alínea a) do C.P.P.

XI. Assim, dúvidas não podem restar que todos os atos praticados após 09/06/2023 se encontram feridos de manifesta Nulidade, nos termos do artigo 120º, n.º2, alínea d) do C.P.P., a qual para os devidos e legais efeitos foi invocada em devido tempo. Sendo certo que, mesmo que assim não se entendesse, então sempre estaríamos perante uma Irregularidade, nos termos do artigo 123º do C.P.P., a qual também se invoca, por dever de patrocínio.

XII. Sendo certo que, sempre será inconstitucional o artigo 54º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, quando interpretada no sentido de que:

“No âmbito de um processo de extradição não está o Tribunal da Relação obrigado a ordenar a notificação ao Extraditando dos requerimentos apresentados pelo Ministério Público, após a sua audição, e antes de proferida a decisão final, para que este, querendo, se possa pronunciar sobre os mesmos.”

Tal interpretação viola os artigos 2º e 20º da Constituição da República Portuguesa.

Também,

XIII. Em 09/08/2023, o Arguido foi notificado da decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, na sua língua materna, ou seja, Árabe. Acontece, porém, que os crimes imputados em Português não são os mesmos que se encontram imputados em Árabe!!!

XIV. A decisão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, refere que o Arguido se encontra “Acusado” de homicídio qualificado, na forma tentada, por seu lado a decisão traduzida em Árabe refere que o Arguido cometeu um crime de homicídio consumado!!!

XV. Acresce que, a promoção do Ministério Público referia que o Arguido se encontrava Acusado da prática de:

- Um crime tentado de homicídio de primeiro grau, punido pelo Código do Estado da ... Secções .......-26, .......-32, com pena máxima de 10 anos, sendo também punível pelo artigo 131º, 23º, n. º1, 3 e 72 e 73º do Código Penal Português, com pena de 8 a 16 anos, especialmente atenuada.”

Nos termos da promoção do Ministério Público de 09/06/2023, o Arguido encontrava-se Acusado da prática de um crime equivalente à tentativa de homicídio simples…

XVI. Na sua promoção de 20/06/2023 o Ministério Público vem alegar o seguinte:

“2 – Assim, o pedido extradicional, conforme referido pelas autoridades judiciárias do Estado de emissão, se circunscreve agora a três acusações, a saber:

a) Homicídio qualificado, na forma tentada;

XVII. Segundo a promoção do Ministério Público de 20/06/2023, o Recorrente deixou de estar Acusado de um crime de homicídio Simples, na forma tentada, para passar a estar acusado da prática de um crime de Homicídio Qualificado, na forma tentada…

XVIII. Sendo certo que, sobre este crime o Ministério Público não indica sequer qual a pena que o Recorrente pode vir a sofrer se for condenado e, na decisão em crise, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa vem admitir a nova imputação promovida pelo Ministério Público:

“O pedido extradicional, conforme referido pelas autoridades judiciárias do Estado de emissão, circunscreve agora as seguintes acusações: homicídio qualificado, na forma tentada, recurso a arma de fogo na prática de crime (ofensa à integridade física grave), ofensa à integridade física grave.

XIX. Existindo uma agravação do crime imputado resultam, desde logo, duas circunstâncias, em primeiro lugar, a Decisão de Extradição, proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, assenta num crime diverso daquele sobre o qual o Arguido foi confrontado em sede de tomada de declarações, como à frente melhor analisaremos, em segundo lugar, não foi apurada a moldura penal deste novo crime.

XX. Assim, as contradições acima referidas consubstanciam, no entendimento do Recorrente, uma violação clara dos artigos 31.º e 54.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

Outrossim,

XXI. Não constam da ata de audição do Recorrente o conteúdo, sentido e teor de quaisquer declarações por si prestadas mas, apenas e só, a conclusão de que o mesmo consentiu na execução do mandado e consequente entrega às autoridades judiciárias americanas.

XXII. Esta omissão torna-se mais notória quando, da compulsão dos autos anteriormente a essa diligência, também não consta o cumprimento do disposto no art.º. 40.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, nomeadamente que, quando foi detido, tivesse sido informado (…) “da possibilidade de consentir ou não consentir em ser entregue à autoridade judiciária de emissão”

XXIII. Sendo que, no caso sub judice é aplicável o disposto nos artigos 57.º a 67.º do Código de Processo Penal, devendo ser entregue à pessoa procurada, quando for detida, documento de que constem os direitos referidos nos números anteriores.”

XXIV. O “consentimento” na execução do mandado, para ter relevância, tem que ser livre, informado e autodeterminado e, acima de tudo, esclarecido, ponderado e refletido, com vista à manifestação da sua vontade, de forma inequívoca.

XXV. O Recorrente também não foi informado sobre a irrevogabilidade do “consentimento”, assim como de que, consentindo na entrega, renunciava ao procedimento de extradição regulado nos artigos 51º a 62º da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto.

Acresce que:

XXVI. Consultados os autos, pelo menos através da plataforma “Citius” não encontramos no mesmo qualquer pedido formal de Extradição, onde constem os elementos mínimos exigidos a um processo desta natureza!!!

XXVII. O presente procedimento viola o artigo 44.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

XXVIII. Estando omissos, nos autos e no “Auto”, as informações facultadas ao Recorrente com vista a que prestasse o seu consentimento à sua entrega ao país emissor do mandado de detenção, a(s) decisão(ões) proferida(s) pelo Tribunal da Relação de Lisboa, encontram-se feridas da nulidade insanável a que alude o disposto no art. 119.º, al. d) do Código de Processo Penal, o que aqui se suscita.

B)

XXIX. O Recorrente apenas após contratar os serviços jurídicos de um Advogado, e de lhe ter sido explicado o alcance do Consentimento manifestado tomou consciência do mesmo.

XXX. O Recorrente NÃO CONSENTE na sua extradição, disso mesmo informou o Tribunal a quo.

C)

XXXI. É inconstitucional o artigo 40.º, n.º.4, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, quando interpretado no sentido que:

“O consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão, prestado pelo detido, é irrevogável e não está sujeito a qualquer período temporal de retratação.”

XXXII. Tais interpretações violam os artigos 2.º, 18.º, 20.º, 29.º, 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o Artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

D)

XXXIII. O Recorrente foi detido e presente ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa pelo Ministério Público com os seguintes fundamentos:

“2. Com base num mandado de detenção internacional n.º 2023-.....03, emitido em 6 de junho de 2023, pelo Tribunal de Comarca, ..., ..., Estados Unidos da América, correspondente à notícia vermelha da interpol n.º A-..69/6-2023, processo n.º 2023/...16, referência ....70/2023/GNI.

3. Segundo o qual o detido é procurado pelas autoridades judiciárias americanas para efeitos de procedimentos criminal, pela prática dos factos constantes da notícia vermelha anexa, constitutivos de:

• Um crime tentado de homicídio de primeiro grau, punido pelo Código do Estado da ..., secções .......-26, .......-32, com pena máxima de 10 anos, sendo também punível pelo artigo 131º, 23º, n.º1, 3 e 72º e 73º do Código Penal português, com pena de 8 a 16 anos, especialmente atenuada;

• um crime de utilização de arma fogo para prática de crime, punido pelo Código do Estado da ..., secção .......-53.1, com pena máxima de 20 anos, sendo também punível pela Lei 5/2006, de 23 de fevereiro.

• Ofensa à integridade física dolosa qualificada, punido pelo Código do Estado da ..., secção .......-51.2, .......-32, com prisão perpétua, sendo também punível pelo artigo 144.º e 145.º do Código Penal Português, com pena de prisão de 2 a 10 anos ou até 12 anos.

XXXIV. Em 20/06/2023 o Senhor Procurador Geral Adjunto remeteu aos presentes autos um requerimento, o qual não foi notificado ao Recorrente, pelo que, como acima se referiu o mesmo não teve possibilidade de se pronunciar, com o seguinte conteúdo:

1 – Conforme informação recebida através do Gabinete de Cooperação Judiciária Internacional em matéria Penal da Procuradoria – Geral da República, as autoridades judiciárias do Estado Requerente, os Estados Unidos da América, informaram que por despacho judicial emitido por um juiz do Tribunal Distrital Geral de ..., proferido a 14 de junho de 2023, foram revogados os mandados no âmbito dos quais o extraditando AA estava acusado da prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada e de recurso a arma de fogo na prática de ofensa à integridade física qualificada, sendo que este último previa pena de prisão perpétua.”

XXXV. Analisados os presentes autos não constam dos mesmos quaisquer mandados judiciais das Autoridades Americanas, os quais, teriam, desde logo que estar devidamente traduzidos para a língua utilizada por Fernando Pessoa.

Mas mais,

XXXVI. Se os mandados iniciais, pelos quais o Recorrente foi detido foram revogados, conforme refere o Ministério Público, então a sua detenção é manifestamente ilegal.

XXXVII. Conforme resulta do Requerimento do Ministério Público de apresentação do Recorrente ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o mesmo foi detido com base num mandado de detenção internacional n.º 2023-.....03, emitido em 6 de junho de 2023, pelo Tribunal de Comarca, ... County, ..., Estados Unidos da América, cfr. fls. dos autos.

XXXVIII. Temos, portanto, que o mandado que esteve subjacente à detenção do Arguido ocorrida no dia 07/06/2023, correspondente à notícia vermelha da Interpol n.º A-..69/6-2023, processo n.º 2023/...16, Referência ....70/2023/GNI, foi revogado em 14/06/2023!!!!

XXXIX. Pelo que, ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os artigos 31º, 44º, 54º, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão deve o presente Recurso obter provimento, e, em consequência deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo ser revogada.

2. Respondeu o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Lisboa, defendendo que o recurso não merece provimento e extraindo as seguintes conclusões: (transcrição)

“1 – O pedido de extradição em apreço refere-se a factos que constituem crimes, punidos à luz da lei do Estado requerente e do Estado requerido, com pena de prisão de máximo não inferior a 1 ano;

2 – O Recorrente prestou consentimento para entrega às autoridades de emissão e não renunciou ao princípio da especialidade, tudo nos termos previstos na lei, com observância do disposto nos art.º 40.º e 54.º da LCJIMP, o que fez de forma livre e esclarecida;

3 – A apresentação de uma nova qualificação jurídica pelas entidades norte americanas, que recaíu sobre os mesmos factos pelos quais o extraditando foi ouvido, é favorável ao extraditando na medida em que exclui, dos crimes agora enunciados, a susceptibilidade de qualquer deles poder vir a ser punido com pena de prisão perpétua;

4 – Neste contexto, pode mesmo considerar-se que essa apresentação constitui uma verdadeira garantia de que a pena de prisão perpétua não terá aplicação, â luz do disposto no artº 6º nº 2 alª b)- da LCJIMP;

5 – Sendo favorável ao extraditando, e tendo sido apresentada em momento posterior á sua audição, essa apresentação dispensa uma nova audição ou alguma outra comunicação, ao extraditando ou ao defensor que, a ter lugar, constituiria a prática de um acto inútil, proibido por lei;

6 – Assim a não audição e a não comunicação ao extraditando ou defensor não viola o princípio do contraditório nem configura qualquer nulidade de procedimento e não configura a nulidade prevista na alª d) do nº 2 do CPP, não pondo em causa a decisão final proferida;

7 – O legislador ao exigir um facto “punível” – cfr citado art. 31.º da LCJIMP – como um dos requisitos formais para a execução de um pedido de extradição fixa como patamar mínimo a ilicitude típica da conduta de acordo com as leis de ambos os Estados;

8 – Por isso, a não correspondência in totum, a nível de qualificação jurídica, de nomen iuris, e/ou as penas aplicáveis aos ilícitos criminais previstos no Estado requerente e previstos em Portugal, em nada colide com o princípio da dupla incriminação, como decorre de forma muito clara do artº I nº 3 alª do Anexo ao Instrumento entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América, de 14 de Julho de 2005;

9 – São por isso irrelevantes as referências distintas, no que se refere á qualificação jurídica dos factos descritos, quer no Requerimento Inicial, quer na Decisão final, não configurando qualquer violação do disposto no citado artº 31 da LCJIMP;

10 – A declaração prestada pelo requerido, perante o Mmº Juiz Desembargador, que presidia à diligência, e perante a Procuradora-Geral adjunta, em representação do Estado, assim como na presença do seu Defensor (que declarou acompanhar a promoção do MºPº, a qual faz referência expressa ao consentimento prestado), e com o apoio do intérprete, reduzida a escrito e seguida das respectivas assinaturas, segundo a qual consentiu na entrega às autoridades norte-americanas e não renunciou ao princípio da especialidade, é o garante objectivo e concreto de que se tratou de uma declaração prestada de forma livre e esclarecida e com observância do disposto nos artº 40 e 54 da LCJIMP;

11 – A decisão de homologação é uma decisão que aprova a forma como o consentimento foi prestado e que tem o seu fundamento, precisamente, na forma voluntária como foi prestado e no conhecimento, por quem o presta, das consequências da sua prestação;

12 – Atento o teor do “Auto de Declarações de Detido” parece-nos muito claro que a liberdade do requerido ao proferir a sua declaração - na parte em que aceita a entrega às autoridades norte-americanas e também na parte em que não renuncia ao princípio da especialidade - não pode ser questionada e, consequentemente, também o não pode a decisão que o homologou; 13 – Tendo o extraditando prestado o seu consentimento à entrega às autoridades do Estado requerente passam a ter aplicação as “Regras especiais relativas ao processo simplificado de extradição” previstas nos artº 74 e 75 da LCJIMP ex-vi do artº IX Anexo ao Instrumento entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América, de 14 de Julho de 2005;

14 – Pelo que a não apresentação do pedido formal de extradição pelas autoridades norte-americanas, não viola o disposto no artº 44º da citada LCJIMP, assim como não configura a nulidade prevista no artº 119 nº 1 alª d)- do CPP;

15 – Os preceitos constitucionais invocados pelo Recorrente não contrariam a solução que determina a irrevogabilidade do consentimento, prevista pelo artº 40º da LCJIMP, na medida em que a liberdade para prestar o consentimento, é o garante dessa mesma prestação e só ela determina a irrevogabilidade do consentimento;

16 – Do mesmo modo, que a alegada inconstitucionalidade do artº 54 não se configura pois que em nada corresponde á sua letra e também não corresponde á interpretação efectuada pelo próprio tribunal.

3. É o seguinte o teor da Decisão recorrida:

“O extraditando AA estava acusado da prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada e de recurso a arma de fogo na prática de ofensa à integridade física qualificada, sendo que este último previa pena de prisão perpétua.

O pedido extradicional, conforme referido pelas autoridades judiciárias do Estado de emissão, circunscreve agora as seguintes acusações: homicídio qualificado, na forma tentada, recurso a arma de fogo na prática de crime (ofensa à integridade física grave), ofensa à integridade física grave.

Tais crimes são puníveis com penas máximas de 10, 3 e 20 anos de prisão, respectivamente, razão pela qual já não há necessidade de se aguardar pelas solicitadas garantias de não aplicação de pena de prisão perpétua.

Assim, não existe obstáculo constitucional à homologação do consentimento, por força das disposições combinadas dos artigos IX do Instrumento entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América, conforme estipula o art° 3°, n°2, do Acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos da América sobre Extradição, assinado em 25 de junho de 2003, e o art° 40°, n° 3 da Lei n° 144/99, de 31 de agosto.

Desta feita, homologo o consentimento dado pelo extraditando que foi efectuado voluntariamente e em plena consciência das suas consequências.

Pelo exposto, determino que o extraditando seja entregue ao estado de emissão do pedido.”

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigo 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida e a nulidades não sanadas, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2 e 3, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995).

Este Tribunal é, assim, chamado a apreciar e decidir sobre:

– Se a não notificação dos atos praticados nos autos após audição do extraditando, em 09.06.2023, até à prolação da decisão final, em 23.06.2023, viola o princípio do contraditório e está ferida de nulidade (artº 120, nº 2 al. d) do CPP);

– Se as referências distintas à qualificação jurídica dos factos descritos, no Requerimento Inicial e na Decisão final, permitem concluir que a decisão final proferida assenta em crime diverso daquele sobre o qual o extraditando foi confrontado aquando da sua audição, constituindo violação dos arts.º 31º e 54º da Lei 144/99;

– Se o consentimento prestado pelo extraditando é irrelevante, por violar o disposto no artº 40º da Lei n.º 144/99 e a sua irrevogabilidade inconstitucional;

–Se a não apresentação de pedido formal de extradição pelo Estado requerente integra a nulidade prevista pela alª d), do nº 1 do artº 119 do CPP;

Cumpre decidir.

B. Fundamentação

I. Os momentos do processo:

1. A Nota Vermelha da Interpol nº 2023/...16, de 07.06, dava conhecimento da existência de “mandado de detenção ou decisão com o mesmo efeito” n.º 2023-.....03, de 6 de junho de 2023, emitido pelo Tribunal de Comarca, ..., ..., Estados Unidos da América, relativamente ao cidadão de nacionalidade marroquina, AA, para efeitos de procedimento criminal.

2. A NV declarava que o pedido devia ser tratado como um pedido formal para detenção provisória.

3. Dela consta uma descrição sumária dos factos puníveis e da qualificação jurídico-penal e pena máxima prevista para cada um dos crimes, sendo acompanhada de elementos que permitiam a identificação do procurado.

4. O requerido foi detido no dia 7 de junho de 2023, na sequência de interceção à chegada ao aeroporto de Lisboa.

5. São estes os factos: “No dia .../6/2023, atentou contra a vida de um homem, na sequência de uma discussão verbal ocorrida num bar em ..., .... Estados Unidos com uma mulher a quem queria oferecer uma bebida. Porque esta recusou, chamou-lhe cabra (bitch), tendo sido protegida pelos seus amigos que de seguida abandonaram o local. Entretanto, o ora detido seguiu o grupo até ao parque de estacionamento, de mota e depois a pé, munido de uma arma de fogo, dirigiu-se à vítima, disse-lhe: “Diz as merdas que quiseres” e disparou vários tiros, causando-lhe ferimentos no braço, nádegas e costelas. De seguida, abandonou o local, de mota. A vítima foi transportada para o hospital para ser assistida”.

6. Tais factos estão descritos no Requerimento inicial para audição do Recorrente, assim como a respetiva qualificação jurídica constante da NV.

7. De entre os elementos que foram juntos ao Requerimento inicial, constam:

- Notícia Vermelha;

- Auto de Notícia do SEF;

- Auto de formalização da detenção – artº 254 do CPP;

- Auto de constituição como arguido – artº 58 nº 1 alª c) e 196, do CPP;

- Boletim Individual do Detido.

8. Em 9 de Junho de 2023, o requerido foi apresentado ao MP que promoveu a sua audição imediata que teve lugar nessa mesma data.

9. O requerido não constituiu mandatário, tendo sido ouvido, acompanhado de intérprete e defensor que então lhe foi nomeado.

10. Nesta audição, o Recorrente declarou consentir na execução do mandado e na consequente entrega â autoridade judiciária requerente, e tomou posição relativamente ao princípio da especialidade, ao qual não renunciou.

11. Foi elaborado “Auto de Declarações de Detido (art. 54.º)”, assinada pelo Exmº Juiz Desembargador, que presidiu â audição; pela Senhora PGA; pelo Recorrente e seu Defensor.

12. O Exmº Juíz Desembargador proferiu o seguinte despacho:

“Valido a detenção do Requerido, a qual foi efectuada a pedido de autoridade judiciária dos Estados Unidos da América, com base numa noticia vermelha inserida no Sistema de Informação Interpol com o nº A-.../6-2023, por factos que integram:

- um crime tentado de homicídio de primeiro grau, punido pelo Código do Estado da ..., secções .......-26, .......-32, com pena máxima de 10 anos, sendo também punível pelo artigo 131.º, 23.º n.º 1, 3 e 72 e 73.º do Código Penal Português, com pena de 8 a 16 anos, especialmente atenuada;

- um crime de utilização de arma fogo para prática de crime, punido pelo Código do Estado da ..., secção .......-53.1, com pena máxima de 20 anos, sendo também punível pela Lei 5/2006, de 23 de fevereiro.

- Ofensa à integridade física dolosa qualificada, punido pelo Código do Estado da ..., secção .......-51.2, .......-32, com prisão perpétua, sendo também punível pelo artigo 144.º e 145.º do Código Penal Português, com pena de prisão de 2 a 10 anos ou até 12 anos.

Os quais admitem a detenção efectuada nos termos do artº. 39º da Lei 144/99, de 31 de agosto, que assim se valida.

Perante o consentimento prestado, com não renúncia à regra da especialidade, ao abrigo do artigo 40º nº 3 da Lei indicada, irá colher-se e formalizar-se a respectiva declaração.

Em face do doutamente promovido, tendo em conta a gravidade dos factos, a circunstância do requerido não ter qualquer ligação ao território nacional a que apenas acedeu por simples escala em voo para o seu país de origem, subsistindo assim um marcado perigo de fuga, que põe em causa as finalidades da presente extradição, nos termos dos artºs. 193º, nºs. 1 e 2, 202º, nº. 1 e 204º, nº. 1, al. a), do CPP, determina-se que aquele aguarde os ulteriores termos do processo na situação de prisão preventiva.

Verificando-se que o imputado crime de ofensa à integridade física dolosa qualificada é punido no Estado Requerente com prisão perpétua, o que ao artº. 30º, nº. 1 da CRP não autoriza, nos termos das disposições combinadas do artº. 6º, nº. 1, al. f), 2, al. b) e 3, da Lei 144/99, de 31 de agosto e bem assim das normas acima referenciadas do Instrumento entre Portugal e os EUA sobre a extradição - Washington 2005, aprovado pela resolução da AR nº. 46/2007, de 10 de Setembro, solicite, com nota de urgência, para o que se sugere, o prazo de 8 dias, que a Autoridade de Emissão formalize a garantia de que tal pena não será aplicada ou executada, sustando-se, até esse momento, a homologação a que se reporta o artº. 40º, nº. 4 da citada Lei 44/99.

Passe os competentes mandados de condução ao Estabelecimento Prisional de ... e proceda às notificações e demais diligências necessárias.

Comunicações habituais (PGR, Ministério da Justiça e Gabinete Nacional de Interpol)”. O antecedente despacho foi notificado a todos os presentes.

13. Em 14/06/2023, as autoridades norte-americanas vieram aos autos informar que havia sido alterada a qualificação jurídica que recaíra sobre os factos participados, na medida em que deixou de se efetuar a subsunção dos factos aos crimes: de ofensa à integridade física qualificada e de recurso a arma de fogo para a prática de ofensa à integridade física qualificada e, em sua substituição, passaram a qualificar-se esses factos como:

- um crime de ofensa á integridade física grave, punido com uma pena de 20 anos de prisão;

- um crime de recurso a arma de fogo para a prática de ofensa á integridade física grave, punido com uma pena de 3 anos de prisão;

14. Para o efeito, aquelas autoridades enviaram à PGR um email, no qual informaram que haviam sido emitidos novos mandados, em conformidade com a nova qualificação adotada e respetivas penas aplicáveis.

15. Na sequência desta informação, em 20/06/2023 o MP veio aos autos requerer que fosse então proferida decisão a homologar o consentimento prestado pelo extraditando.

16. Em 23/06/2023 foi proferida a decisão de homologação supra transcrita.

17. A decisão foi notificada ao defensor oficioso e ao extraditando, este a 29/06/2023.

18. Em 3.07.2023 o extraditando apresentou requerimento, invocando nulidades diversas de procedimento, assim como da notificação da própria decisão e pondo em causa o consentimento prestado pelo extraditando.

19. Em 12.07.2023, foi proferida decisão, não reconhecendo qualquer das nulidades de procedimento invocadas, mas, tão só, a irregularidade respeitante à notificação da própria decisão de homologação do consentimento ao extraditando, tendo sido, por isso, determinada a sua repetição, devidamente traduzida na língua materna do extraditando, indeferindo o demais.

20. Em 17.07.2023, foi junto aos autos Certificado de Tradução da decisão, de português para árabe, a que se seguiu nova notificação dessa decisão em 9/8/023.

II. Do direito

1. A extradição constitui uma das formas de cooperação internacional em matéria penal, mediante a qual um Estado (requerente) solicita a outro Estado (requerido) a entrega de uma pessoa que se encontre no território deste, para efeitos de procedimento penal ou para cumprimento de pena ou de medida de segurança privativas de liberdade, por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.

As condições em que é admissível e pode ser concedida, quando Portugal seja Estado requerido (extradição passiva), são fixadas primeiramente pelas disposições constantes de tratados internacionais, multilaterais ou bilaterais sobre extradição em que Portugal seja parte, e, em geral, pelas disposições, substantivas e processuais, fixadas no regime jurídico relativo á cooperação internacional em matéria penal (Lei nº 144/99, de 31 de agosto).

O artigo 229º do Código de Processo Penal estatui que a extradição (bem como outras formas de cooperação internacional relativamente à administração da justiça penal) é regulada pelos tratados e convenções internacionais e, só na sua falta ou insuficiência, intervém o disposto em lei especial. É o que, igualmente, dispõe o artigo 3º nº 1 da Lei n.º 144/99.

Ao presente processo de extradição, são, assim, aplicáveis a Convenção bilateral de Extradição entre Portugal e os Estados Unidos da América, assinada em ... em 7 de Maio de 1908, com as alterações introduzidas pelo Instrumento entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América, de 14 de Julho de 2005 e o respetivo Anexo, em execução do Acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos da América sobre Extradição, de 25 de Junho de 2003 e, subsidiariamente, a Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

São ainda convocáveis as normas da Constituição da República que estabelecem e desenvolvem direitos fundamentais com incidência no processo de extradição e do Código de Processo Penal, este de aplicação subsidiária (n.º 2, do art. 25.º da Lei n.º 144/99).

A extradição, como forma de cooperação2, está sujeita a importantes pressupostos negativos, justificativos da recusa de cooperação, como a não observância das exigências da Convenção Europeia para Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 1950, a Convenção das Nações Unidas contra a tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984 e o Pacto internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, todos ratificados por Portugal.

2. O procedimento simplificado, no quadro das relações bilaterais Portugal-Estados Unidos

A Convenção bilateral de Extradição entre Portugal e os Estados Unidos da América, de 1908, não previa, naturalmente, um modelo de simplificação do processo de extradição (modalidade que se esboçou quase um século após a sua assinatura).

Dispunha sobre a detenção provisória, nos seguintes termos:

“ARTIGO 11.º

As clausulas da presente convenção serão applicaveis a todo e qualquer territorio pertencente quer a uma quer a outra Parte Contratante, ou que esteja na sua occupação ou dependencia, emquanto durar essa occupação ou dependencia.

O pedido de extradição deverá ser feito pelos agentes diplomaticos das Partes Contratantes. Na ausencia d'esse agente, quer do pais, quer da sede do Governo, ou quando a extradição se pretender effectuar de uma possessão colonial de Portugal ou de territorio designado no paragrapho precedente, mas que não faça parte de qualquer dos Estados Unidos, o pedido poderá ser feito pelos respectivos agentes consulares mais graduados.

Os referidos agentes diplomaticos ou consulares poderão pedir e obter um mandado provisorio de captura contra a pessoa cuja entrega for reclamada, e, realizada esta diligencia, os juizes e magistrados dos dois governos terão respectivamente poder e autoridade para, em presença da queixa feita sob juramento, lançar um mandado de captura contra a pessoa accusada e esta deverá ser trazida á sua presença para serem ouvidas e examinadas as provas da culpabilidade d'ella ; e se, depois d'esta audiencia e exame, a prova for julgada sufficiente para justificar a accusação, o juiz ou magistrado que a realizar deverá certificá-lo á autoridade administrativa competente, a fim de que possa ser expedido o mandado para a entrega do refugiado.

Caso o criminoso refugiado tenha sido já condemnado pelo crime que motivou o pedido de sua entrega, será apresentada uma copia devidamente autenticada da sentença proferida pelo tribunal que o condemnou. Se, porem, o refugiado for apenas accusado do crime, apresentar-se-ha uma copia devidamente autenticada do mandado de captura, expedido no pais onde o crime tiver sido commettido, e dos depoimentos que motivaram a expedição d'esse mandado de captura, alem dos outros elementos de prova que possam considerar-se opportunos na materia.

ARTIGO 12.º

Quando uma pessoa tiver sido presa em virtude de um mandado provisorio de captura, expedido pela autoridade competente, nos termos do artigo xi da presente Convenção, e for trazida á presença do juiz ou magistrado para, em conformidade com o que atrás ficou estipulado, serem ouvidas e examinadas as provas da sua culpabilidade, e se reconhecer então que o mandado provisorio de captura foi expedido em satisfação de um pedido ou declaração do Governo que reclama a extradição, recebida pelo telegrapho, o juiz ou magistrado poderá deter a seu arbitrio o accusado por um prazo que não exceda dois meses, de modo a permittir que o Governo reclamante tenha ensejo de apresentar a esse juiz ou magistrado prova legal da culpa do accusado ; e se, ao terminar o referido prazo de dois meses, não tiver sido apresentada ao juiz ou magistrado a referida prova legal, será o preso posto em liberdade, comtanto que, a esse tempo, se não esteja effectivamente procedendo já ao exame das accusações feitas contra elle.”

O Instrumento entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América, de 14 de julho de 2005 e o respetivo Anexo, (conforme o artigo 3.º, n.º 2, do Acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos da América sobre Extradição, de 2003), estabelece o reconhecimento de que o referido Acordo UE-EUA sobre Extradição é aplicável à Convenção de Extradição de 1908, nos termos nele dispostos.

Assim, estabelece o n.º 3 do Instrumento que:

“Com a finalidade de executar o Acordo UE-EUA sobre Extradição, o anexo reflecte as disposições a serem aplicadas em relação à Convenção de Extradição de 1908 após a entrada em vigor deste Instrumento, sem prejuízo das disposições do Acordo UE-EUA sobre Extradição directamente aplicáveis.”

O art.º I do Anexo define o elenco das infrações que admitem extradição, a saber e no que ora importa:

“A - Em substituição do artigo ii da Convenção de Extradição de 1908, aplica-se o seguinte:

«1 - As infracções admitem extradição quando, nos termos da lei dos Estados requerente e requerido, sejam puníveis com pena privativa da liberdade por um período máximo de mais de um ano ou com pena mais grave. Também admitem extradição as infracções que consistam na tentativa, na cumplicidade ou na comparticipação na prática de uma infracção que admita extradição. Quando o pedido se refira à execução de uma sentença sobre uma pessoa condenada pela prática de uma infracção que admite extradição, o período de privação da liberdade por cumprir deve ser de, pelo menos, quatro meses.

2 - Quando for concedida a extradição relativamente a uma infracção que admita extradição, aquela deve ser também concedida relativamente a qualquer outra infracção especificada no pedido se esta for punível com pena privativa da liberdade inferior ou igual a um ano, desde que se encontrem preenchidos os outros requisitos da extradição.

3 - Para efeitos do presente artigo, considera-se que uma infracção admite extradição:

a) Independentemente de a lei dos Estados requerente e requerido classificar ou não a infracção na mesma categoria de infracções ou descrever ou não a infracção com a mesma terminologia;”

É, assim, admissível a extradição, verificadas:

- a dupla incriminação;

- a definição, em ambas as ordens jurídicas, de um limite máximo superior a 1 ano de pena privativa da liberdade,

- independentemente da categoria de infrações em que o facto punível se inscrever e da terminologia utilizada para a descrição daquele.

O artigo VI prevê a faculdade de transmissão de pedidos de detenção provisória, em alternativa aos canais diplomáticos, diretamente entre a Procuradoria-Geral da República de Portugal e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, ou através dos meios da Interpol.

O artigo IX estabelece o regime dos processos de extradição simplificados, “em complemento da Convenção de Extradição de 1908”, nos seguintes termos

«Se a pessoa sobre a qual recai um pedido de extradição consentir na sua entrega ao Estado requerente, o Estado requerido pode, de acordo com os princípios e procedimentos previstos no seu ordenamento jurídico, fazer entrega dessa pessoa tão rapidamente quanto possível, sem mais formalidades. O consentimento da pessoa sobre a qual recai o pedido pode incluir a anuência em renunciar à protecção da regra da especialidade.» (Destacado nosso)

Do Instrumento podemos, pois, retirar, para a definição do regime aplicável ao caso que:

- Existindo pedido de extradição e

- consentimento,

- o Estado requerido pode fazer entrega dessa pessoa sem mais formalidades,

- de acordo com os princípios e procedimentos previstos no seu ordenamento jurídico.

O art. IX reproduz o art. 11.º da Convenção UE-EUA.

Por fim, Portugal exarou Declaração com o seguinte conteúdo:

“A República Portuguesa declara que, nos termos do direito constitucional português, existem impedimentos à extradição relativamente a infracções puníveis com a pena de morte, com pena de prisão perpétua ou com pena de prisão de duração indeterminada.

Em consequência, a extradição por tais infracções só pode ser concedida de acordo com condições específicas desde que sejam consideradas pela República Portuguesa como compatíveis com a sua Constituição.

Na hipótese de surgir um caso em que estejam envolvidos os princípios constitucionais de Portugal acima descritos, a República Portuguesa invocará os termos do §4 do Instrumento.”

Nenhuma outra norma da Convenção UE-EUA, da Convenção de 1908 ou do Instrumento que a modifica se refere ao regime simplificado de extradição e ao consentimento.

Como vimos, o art. IX do Instrumento remete as condições e disciplina do processo de extradição simplificado (faculdade do Estado requerido) para “os princípios e procedimentos previstos no seu ordenamento jurídico”.

Chegamos, assim, à Lei 144/99, de 31.08, que prevê um procedimento simplificado no art. 40.º, nos seguintes termos:

“1 - A pessoa detida para efeito de extradição pode declarar que consente na sua entrega ao Estado requerente ou à entidade judiciária internacional e que renuncia ao processo de extradição regulado nos artigos 51.º a 62.º, depois de advertida de que tem direito a este processo.

2 - A declaração é assinada pelo extraditando e pelo seu defensor ou advogado constituído.

3 - O juiz verifica se estão preenchidas as condições para que a extradição possa ser concedida, ouve o declarante para se certificar se a declaração resulta da sua livre determinação e, em caso afirmativo, homologa-a, ordenando a sua entrega ao Estado requerente, de tudo se lavrando auto.

4 - A declaração, homologada nos termos do número anterior, é irrevogável.

5 - O acto judicial de homologação equivale, para todos os efeitos, à decisão final do processo de extradição.

6 - Salvo tratado, convenção ou acordo que dispense a apresentação do pedido de extradição, o acto de homologação tem lugar após a decisão do Ministro da Justiça favorável ao seguimento do pedido, caso em que o processo prossegue para efeitos daquela homologação judicial.

Não existindo disposição convencional que dispense a apresentação do pedido de extradição (ao contrário, o art. IX do Instrumento apresenta como condição do processo simplificado a existência de pedido de extradição) e, em consequência, a decisão do Ministro da Justiça, constituem elementos essenciais do processo:

- a existência de pedido de extradição;

- a decisão política de prosseguimento do processo.

Ao invés do que estabelece o art. 2.º do Terceiro Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Extradição, do Conselho da Europa, (Feito em Estrasburgo, a 10 de novembro de 2010), não é, pois, dispensada a apresentação de um pedido de extradição para que esta prossiga, quando “haja o consentimento dessas pessoas e o acordo da Parte requerida”.

Note-se que, no elenco de Estados não membros da UE que ratificaram a Convenção e o Terceiro Protocolo Adicional3, não se incluem os Estados Unidos.

Por sua vez, o art. 75.º da Lei n.º 144/99, de 31.08, inserido no Capítulo IV que define regras especiais relativas ao processo simplificado de extradição, apenas é aplicável, nos termos do disposto no artigo 74.º que estabelece o âmbito e finalidades do referido Capítulo, “nos casos em que a pessoa reclamada dá o seu consentimento a esta, em conformidade com o previsto na Convenção Relativa ao Processo Simplificado de Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, de 10 de Março de 1995.”4

Regulamentação, aliás, que hoje apenas tem interesse, face ao disposto no artigo 31.o, n.º 1. al. c) da Decisão-Quadro do MDE, para alguns Estados-Membros que declararam continuar a aplicar a Convenção aos pedidos relativos a factos anteriores à entrada em vigor da DQMDE, quanto a esses pedidos5.

Diversamente do que ocorre com as relações entre os Estados-Membros da UE,6 “em que por força do MDE, o elemento chave do processo de “entrega” passou a ser o próprio “mandado” de detenção emitido pela autoridade judiciária competente, nas relações com o exterior do «território único», aquele elemento chave continua a ser o ”pedido”, o que se justificará por nesses casos não se estar perante os pressupostos (confiança recíproca entre os Estados Membros, o reconhecimento mútuo e o postulado do respeito efectivo pelos direitos fundamentais em toda a União Europeia) que justificam a judiciarização do processo de detenção e de entrega”.

Exceto quando o direito convencional, expressamente, preveja a dispensa do pedido, o que, como vimos, claramente não é o caso.

Ora, no processo em apreciação, não há pedido de extradição, apenas uma Nota Vermelha7, com referência à existência de “mandado de detenção ou despacho equivalente” e, não houve submissão pela Procuradoria-Geral da República, do pedido, devidamente informado, preferencialmente, com a indicação da garantia prestada, a despacho da Ministra da Justiça, nem a subsequente decisão política de admissibilidade.

3. Como é sabido, o processo de extradição é de natureza mista, compreendendo uma fase administrativa e uma fase jurisdicional.

Em síntese do Tribunal Constitucional8, “No plano processual, os traços essenciais prescritos no artigo 46.º, n.º 1, da LCJ, são a natureza urgente do processo de extradição e o seu desdobramento em duas fases sucessivas: (i) uma fase administrativa, da competência do Ministro da Justiça, que visa a apreciação política do pedido de extradição, apurando-se se deve ter seguimento, ou se deve ser liminarmente indeferido por razões de ordem política, de oportunidade ou de conveniência (artigo 48.º da LCJ); e (ii) uma fase judicial, da competência da secção criminal dos Tribunais da Relação em cujo distrito judicial residir ou se encontrar o extraditando à data do pedido –atuando na veste de tribunal de primeira instância – que se destina à decisão da concessão ou não da extradição (artigo 49.º da LCJ)

Dando corpo ao comando constitucional consagrado no n.º 7 do artigo 33.º da CRP que refere que a extradição só pode ser determinada por autoridade judicial, estatui-se no n.º 3 do artigo 46.º da LCJ que a fase judicial (do processo de extradição) é da exclusiva competência do tribunal da Relação e destina-se a decidir, com audiência do interessado, sobre a concessão da extradição por procedência das suas condições de forma e de fundo, não sendo admitida prova alguma sobre os factos imputados ao extraditando.

A fase judicial do processo de extradição desdobra-se num conjunto de atos e diligências muito próximas do rito do processo criminal, designadamente:

a) Inicia-se, na sequência da decisão administrativa de prosseguimento do pedido, por impulso do Ministério Público junto do tribunal competente, que promove, no prazo de 48 horas, o respetivo cumprimento (artigo 50.º, n.ºs 1 e 2, da LCJ);

b) Em sede de apreciação liminar, o Juiz relator aprecia o pedido de extradição, em particular, a suficiência dos elementos que instruem o pedido, e se formular um juízo de viabilidade determina o prosseguimento dos autos, caso contrário determina o arquivamento (artigo 51.º, n.ºs 2 e 3, da LCJ);

c) Determinado o prosseguimento, é ordenada a entrega ao Ministério Público de um mandado de detenção do extraditando para que providencie pela sua execução e, assim que se concretize, o mesmo é presente ao Ministério Público para que promova a sua audição pessoal, por autoridade judicial, no prazo máximo de 48 horas após a detenção (artigo 53.º, n.º 2, da LCJ);

d) Em sede de audição de extraditando – que é naturalmente precedida da nomeação de defensor, se este não tiver advogado constituído –, com a assistência do magistrado do Ministério Público, do defensor do extraditando e do intérprete que tiver sido nomeado, o juiz relator procede à sua identificação, elucida-o sobre o direito de se opor à extradição ou de consentir nela, bem como da faculdade de renunciar ao benefício da regra da especialidade de acordo com o direito internacional convencional aplicável (artigo 54.º, n.º 1, da LCJ);

e) Se o extraditando consentir na sua entrega ao Estado requerente, segue-se a tramitação simplificada da extradição consagrada no artigo 40.º, n.ºs 2 a 5, da LCJ, ex vi artigo 54.º, n.º 2, primeira parte;

f) Se o extraditando se opuser à extradição, o juiz apreciará os fundamentos da oposição, seguindo-se a subsequente tramitação comum do processo, prevista nos artigos 55.º a 59.º da LCJ, e que compreende as seguintes etapas:

(i) dedução por escrito de oposição ao pedido de extradição e indicação de meios de prova admitidos pela lei portuguesa (artigo 55.º, n.ºs 1 e 2, da LCJ);

(ii) a produção de prova, não só a que tiver sido requerida pelos intervenientes, mas também a que seja reputada necessária pelo juiz relator, na presença do Ministério Público, do extraditando e do defensor, bem como do intérprete nomeado;

(iii) concessão de vista no processo, por 5 dias, para alegações;

(iv) na falta de oposição escrita ou após as alegações subsequentes à produção de prova, é proferida decisão final de autorização ou denegação da extradição, dentro dos prazos fixados no artigo 57.º, da LCJ;

(v) dessa decisão final cabe recurso para o STJ, a interpor pelo Ministério Público ou pelo extraditando, que terá efeito suspensivo, sempre que a decisão de extradição seja positiva (artigos 49.º, n.ºs 3 e 4, 58.º, n.ºs 1 a 4, e 59.º, n.ºs 1 e 2, da LCJ);

(vi) com base na certidão da decisão positiva de extradição, transitada em julgado, executa-se a entrega judicial do extraditando (artigo 60.º, n.º 1, da LCJ).”

Quando o processo é iniciado com um pedido de detenção provisória para extradição, ou com base na detenção pela autoridade policial, como aconteceu no caso em análise, compete ao Tribunal da Relação decidir sobre a confirmação da detenção e a respetiva manutenção, nos termos previstos, in casu, nos artigos 39º e 64º, ambos da Lei nº 144/99, de 31.08.

A detenção não diretamente solicitada, prevista no art. 39.º da LCJIMP (tal como a detenção provisória), que é feita de forma antecipada e prévia, destina-se a viabilizar um pedido formal de extradição, assim se integrando no processo de extradição9.

“A detenção provisória e a detenção não solicitada, prévias ao pedido formal de extradição formulado a Portugal por um Estado estrangeiro, constituem e integram já o processo de extradição.

Nestas situações, o procedimento e o prazo máximo da detenção do extraditando até que o Estado requerente apresente pedido formal de extradição, constam essencialmente do art.º 64º da LCJIMP.” 10

O Auto de Declarações de Detido, de 09.06, que, não se deve considerar reportado, como indicado, ao art.º 54, da Lei n.º 144/1999, de 31/8, mas ao art.º 64.º da mesma Lei, subsequente à detenção por autoridade policial, tinha a finalidade legal única de validação e manutenção da detenção.

A fase administrativa, iniciada com as diligências destinadas à entrega do pedido de extradição e das garantias eventualmente a prestar, tem, como elemento decisivo e habilitante do prosseguimento do processo, a decisão política de admissibilidade que releva da relação entre Estados soberanos (arts. 46.º, nº 2 e 48.º da Lei 144/99).

Por outro lado, sem pedido de extradição, imposto pelo n.º 6, do art. 46.º da Lei nº 144/99, com os requisitos legais que incluem a descrição tão completa quanto possível dos factos e suas consequências (arts. 23.º e 44.º da mesma Lei), de modo a permitir a verificação da dupla incriminação e a decisão informada, esclarecida e consciente do extraditando sobre o consentimento ou a oposição, não há lugar a decisão administrativa, nem à prestação de consentimento, nos moldes definidos, ou seja, válido.

O processo simplificado de extradição previsto no art. IX do Instrumento e regulado pelo art. 40.º, da Lei n.º 144/99, exclui, tão só, a fase de oposição e julgamento regulada pelos arts. 55.º a 57.º desta Lei, seguindo-se a decisão homologatória do consentimento, verificados que estejam, além da certificação das condições em que o próprio consentimento foi prestado, os demais pressupostos da extradição, em particular, no caso, a dupla incriminação concreta e a natureza e suficiência da garantia.

A Decisão recorrida não se mostra precedida da receção do pedido de extradição, imposta pelo n.º 6, do art. 40.º da Lei n.º 144/99, de 31.08, e de Despacho de admissibilidade da Ministra da Justiça (arts. 46.º, nº 2 e 48.º, da mesma Lei).

Ademais, o consentimento homologado na Decisão recorrida foi prestado em momento anterior à receção do pedido de extradição e, portanto, prévio ao cabal conhecimento dos factos (de que ainda se não dispõe), bem como da específica natureza da garantia (alteração da qualificação dos factos puníveis).

Apenas devendo ter lugar no auto de Declarações previsto no art. 54.º da Lei n.º 144/99, início da fase jurisdicional, subsequente à receção do pedido de extradição e à decisão administrativa.

Ao proceder como se de outro âmbito de cooperação se tratasse (da Lei do MDE ou da Convenção de Extradição do Conselho da Europa e seu Terceiro Protocolo Adicional), a Decisão recorrida pôs termo ao processo, sem prévia receção do pedido de extradição e sem decisão política e validou, homologando, sem fundamento legal, uma antecipação da prestação do consentimento que não foi declarado na posse da informação sobre os factos, tal como venham a ser descritos no pedido de extradição, bem como dos termos da garantia prestada, no momento legalmente previsto (art. 54.º da Lei.de Cooperação Internacional em Matéria Penal).

Assim, violando o disposto nos arts. 40.º, n.º 6, 46.º, nº 2 e 48.º da Lei n.º 144/99, de 31.08, tudo por remissão do art. IX do Instrumento entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América, de 14 de julho de 2005.

A Decisão recorrida, homologatória do consentimento, na falta de pedido de extradição e de decisão administrativa, pôs termo ao processo (art. 40.º, n.º 5 da referida Lei), tomando conhecimento e dispondo sobre matéria de que, legalmente, não podia conhecer.

A Decisão recorrida ao tomar conhecimento a final do objeto do processo (al. a) do n.º 1, do art 97.º do CPP), deve ter em conta os requisitos definidos no artigo 374.º do CPP, configurando eventuais omissões ou excessos de pronúncia a nulidade prevista na al. c), do n.º 1, do artigo 379.º do mesmo CPP.11

Pelo exposto, teremos de concluir pela nulidade da Decisão recorrida, nulidade essa que é objeto de conhecimento obrigatório em recurso (n.º 2, do art. 379.º do CPP).

Ficando, assim, prejudicadas as demais questões alegadas.

C. Decisão

Acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo extraditando AA, declarando-se a nulidade da Decisão recorrida.

Sem tributação (artigo 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto).

Envie cópia, de imediato, ao Tribunal da Relação de Lisboa.

A decisão deverá ser notificada ao extraditando com a intervenção do intérprete nomeado que a deverá ler e explicar (art. 92.º/2, CPP).

Supremo Tribunal de Justiça, 11.09.2023

Teresa de Almeida (Relatora)

Ernesto Vaz Pereira (1.º Adjunto)

Lopes da Mota (2.º Adjunto)

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1. Ver, entre outra jurisprudência, acórdão deste Tribunal, de 22.04.2020, no Proc. n.º 99/18.9YRLSB.S1, Rel. Raúl Borges.

2. Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, de 2007, volume I, pág. 534.

3. https://www.coe.int/en/web/conventions/full-list?module=signatures-by-treaty&treatynum=209

4. Convenção estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, relativa ao Processo Simplificado de Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, assinada em Bruxelas, em 10 de março de 1995. Aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 41/97; ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 41/97. As disposições desta Convenção foram substituídas pelas disposições da Decisão-Quadro 2002/584/JAI relativa ao mandado de detenção europeu e aos procedimentos de entrega entre os Estados-Membros da União Europeia (artigo 31.º). O ponto de partida para aplicação desta convenção é o pedido de detenção provisória; é dispensada a apresentação de um pedido, bem como a dos documentos exigidos pelo artigo 12º da Convenção Europeia de Extradição. A entrega é efetuada com base nas informações constantes do pedido de detenção provisória, tal como especificadas no artigo 4º da convenção (cfr. relatório explicativo da Convenção, JOCE, C 375, 12.12.1996).

5. E sem prejuízo da sua aplicação nas relações entre Estados-Membros e Estados terceiros (artigo 31.º, n.º1).

6. Ac. deste Tribunal, de 19.09.2007, Proc. n.º 07P3338, Rel. Raúl Borges.

7. “Red notices are published at the request of a National Central Bureau or an international entity with powers of investigation and prosecution in criminal matters in order to seek the location of a wanted person and his/her detention, arrest or restriction of movement for the purpose of extradition, surrender, or similar lawful action” (artigo 82 das Regras da Interpol sobre Processamento de DadosCfr. Artigos 82-87. Em https://www.interpol.int/Who-we-are/Legal-framework/Data-protection).

8. Ac. n.º 273/2022, de 26.04.

9. Ac. deste Tribunal, de 04.11.2021, no Proc. n.º 286/21.8YRLSB-A, Rel. Maria do Carmo Silva Dias.

10. Acórdão deste Tribunal, de 08.09.2021, no Proc. n.º 1618/21.3YRLSB-A, Rel. Nuno Gonçalves.

11. Ver, entre outra jurisprudência, acórdão deste Tribunal, de 22.04.2020, no Proc. n.º 99/18.9YRLSB.S1, Rel. Raúl Borges.