Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1218/21.8PBVIS.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO PER SALTUM
HOMICÍDIO TENTADO QUALIFICADO
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO ENTRE FUNDAMENTOS E A DECISÃO
ERRO DE DIREITO
MEIO INSIDIOSO
Data do Acordão: 06/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
I - Ao contrário do que alega o recorrente, a decisão mostra-se fundamentada de facto, tendo sido feito o exame crítico das provas produzidas em julgamento, estando explicitada, de forma objetiva, a apreciação feita (percebendo-se o juízo decisório e quais as provas em que se baseou) e, a forma como o tribunal fundamentou a sua convicção (ainda que não seja modelar), satisfaz a exigência que decorre do n.º 2 do artigo 374.º do CPP, razão pela qual não ocorre a invocada nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, alínea a), do mesmo código. Como é evidente a busca do recorrente pela “perfeição” do acórdão não permite concluir pela falta de fundamentação e de exame crítico das provas (que não podem ser vistas de forma parcelar, como o faz o recorrente, só do ponto de vista de algumas das provas pessoais sobre as quais o tribunal não manifestou um juízo valorativo expresso, embora, no global, esteja implícita essa valoração).

II - Os vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP terão de resultar do texto da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. Ora, analisando o texto da decisão recorrida é evidente a sua clareza, mostrando coerência lógica entre factos provados e não provados e com a respetiva fundamentação de facto – motivação –, não patenteando qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta. Daí que não se verifiquem os vícios apontados pelo recorrente.

III - O modo de atuação da arguida para matar a vítima, ocorrido em 28.10.2021, aqui descrita de forma resumida, e cuja morte apenas não aconteceu por circunstâncias alheias à sua vontade, aconteceu com recurso a “meio insidioso”, na medida em que, como resulta do exposto, a arguida atuou de surpresa, de forma dissimulada, ao engano/traição, sendo certo que já todo o parco relacionamento com a vítima tinha acabado em 2017. A atuação da arguida em 28.10.2021, atacando o assistente por trás, não tendo aquele oportunidade para reagir ou opor-se (para se defender), assim tirando vantagem dessa situação de vulnerabilidade da vítima, tentando matá-lo com a facada que lhe deu nas costas, numa zona vital, mostram bem a forma dissimulada, traiçoeira, enganadora, como atuou. Esta forma de atuar da arguida para matar a vítima revela, sem dúvida, a utilização de “meio insidioso” e mostra, também, considerando todo o demais circunstancialismo apurado em que o crime foi cometido, uma especial censurabilidade, evidenciada pela sua atitude de total desprezo pela vida humana, tal como igualmente decorre da forma como tudo se passou e resultou provado (sendo acentuado o desvalor da sua conduta). Podemos, pois, concluir, que se mostra preenchida a circunstância qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. i), do Código Penal, ainda que o crime tivesse sido cometido na forma tentada.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça



I - Relatório

1. No processo comum (tribunal coletivo) nº 1218/21.... do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., da comarca de ..., por acórdão de 21.12.2022, foi decidido, além do mais:

- A) Condenar a arguida AA como autora material de:

a) - um crime de homicídio qualificado na forma tentada, agravado pelo uso da arma, p. e p. arts.º 22.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 23.º, nº 2, 73º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e) do Código Penal e art 86º, nº3, 4 e 5, da citada Lei n.º 5/2006, de 23/0, uma pena de 6 anos e 9 meses de prisão;

b) - um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86.º, n.º 1, alínea d), com referência ao art.º 2.º, n.º 1, alínea m), e art.º 3.º, n.º 2, alínea ab), todos da Lei 5/2006 de 23/02, uma pena de 9 meses de prisão.

c) - um crime de perseguição, previsto e punido pelo art.º 154.º-A, n.º 1, do Código Penal, uma pena de 1 ano de prisão.

B) Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares, condenar a arguida numa pena única de 7 (sete) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

C) Condenar a arguida, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 154.º-A, do Código Penal, na pena acessória de frequência de um programa específico de prevenção de condutas típicas da perseguição, sob o controlo e supervisão da DGRSP nos moldes acima indicados.

D) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização formulado pelo assistente BB e condenar a demandada / arguida AA no pagamento àquele da quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais, quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal, devidos desde a presente decisão até efetivo e integral pagamento;

No mais, absolvendo a arguida do demais peticionado pelo assistente.

E) - Condenar a demandada AA a pagar ao demandante C..., E.P.E, pelos cuidados de saúde prestados a BB, a quantia de € 1.357,12, acrescida de juros vincendos após a notificação e até efetivo e integral pagamento.


2. Desse acórdão interpôs recurso o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

1. Por acórdão datado de 21 de dezembro de 2022, foi a arguida AA condenada, em autoria material e em concurso efectivo, pela prática de: a) - um crime de homicídio qualificado na forma tentada, agravado pelo uso da arma, p. e p. artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 23º, nº 2, 73º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. j), do Código Penal - ainda que na decisão recorrida se aluda, certamente por lapso de escrita, à alínea e) - e artigo 86º, nº3, 4 e 5, da citada Lei n.º 5/2006, de 23/02, uma pena de 6 anos e 9 meses de prisão; b)- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86.º, n.º 1, alínea d), com referência ao art.º 2.º, n.º 1, alínea m), e art.º 3.º, n.º 2, alínea ab), todos da Lei 5/2006 de 23/02, uma pena de 9 meses de prisão. c)- um crime de perseguição, previsto e punido pelo art.º 154.º-A, n.º 1, do Código Penal, uma pena de 1 ano de prisão. Em cúmulo jurídico das penas parcelares, foi a arguida condenada na pena única de 7 (sete) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

2. Nos termos do disposto no artigo 97º, nº 5, Código de Processo Penal, “os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. O dever de fundamentação das decisões judiciais é hoje um imperativo constitucional, preceituando o artigo 205º, nº 1, da Lei Fundamental que, “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”

3. Decorre do artigo 374º, nº2, do Código de Processo Penal, que a fundamentação da sentença penal é composta por dois grandes segmentos: -o primeiro consiste na enumeração dos factos provados e não provados; -o segundo consiste na exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.

4. No que se reporta à exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão deve ser completa mas tem que ser concisa, contendo e enunciação das provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo tribunal, bem como a análise crítica de tais provas.

5. Esta análise crítica deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram, ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais

6. O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.

7. Ora, no acórdão recorrido, consta no início da fundamentação da matéria de facto a fórmula tabelar: “A convicção do tribunal formou-se no conjunto das declarações e prova testemunhal produzida em julgamento com os documentos e perícias juntas aos autos, conjugada com regras de experiência comum e do normal acontecer (cfr. art.º 127º do Código de Processo Penal).”

8. Não se coloca em causa o valor da prova pericial, por força do disposto nos artigos 127º, 1ª parte, 151º, e 163º, nº 1, do Código de Processo Penal, nem a prova documental existente nos autos, por não ter sido a mesma posta em crise pelos sujeitos processuais.

9. Porém, no que se refere às provas produzidas em julgamento, de natureza pessoal – as declarações da arguida e do assistente e os depoimentos das testemunhas (da acusação e de defesa) -, o Tribunal a quo, fazendo uma súmula, limitou-se a reproduzir o que foi dito em julgamento pela arguida, pelo assistente e pelas demais testemunhas, sem contudo emitir qualquer juízo valorativo sobre a referida prova, ou seja, não esclareceu da relevância/credibilidade que foi atribuída aos depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento e às declarações que pela arguida e assistente foram prestadas, nem explicou os motivos que conduziram a que a sua convicção probatória valorasse num determinado sentido o depoimento de uma testemunha em detrimento de outro.

10. Esta falta de fundamentação na apreciação critica da prova, não nos permite saber qual o processo racional e lógico da formação da convicção do Tribunal a quo que determinou o sentido da decisão.

11. A lei não obriga a que a fundamentação da decisão indique a concreta prova de cada um dos factos provados e não provados, nem que se proceda à reprodução do teor de cada depoimento prestado, repetindo o que cada testemunha referiu ou descreveu, mas exige-se que reflicta o processo lógico da formação da convicção do tribunal, de modo a permitir a transparência da sua formação e aferir se houve ou não valoração ilícita de provas – cfr. Ac. da Relação de Lisboa de 10.11.2020, proc.9/18.8GBALM.LI-5.

12. Assim, não tendo o acórdão recorrido cumprido o dever de fundamentação na apreciação crítica da prova, exigido pelo artigo 374º nº 2 do Código de Processo Penal, fica sem se saber em que depoimentos/declarações se baseou o Tribunal a quo para dar como provada a factualidade que determinou a condenação da arguida.

13. A falta do exame crítico das provas, imposto pelo artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal (e a consequente falta de fundamentação) determina, nos termos do artigo 379º, nº 1, a), do citado diploma legal, a nulidade do acórdão, que desde já se invoca.

14. Assim, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra da qual conste o exame crítico da prova de natureza pessoal – as declarações da arguida e do assistente e os depoimentos das testemunhas (da acusação e de defesa) - produzida em sede de audiência de julgamento.

15. O acórdão recorrido padece também dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, previstos no artigo 410º, nº2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal.

16. Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando a matéria assente seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador.

17. A factualidade provada, descrita nos pontos 1º, 14º a 23º, 26º a 29º, não permite, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, subsumir a conduta da arguida ao crime do homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, ao actuar com frieza de ânimo, tal como decidido pelo Tribunal a quo.

18. Entende a doutrina e a jurisprudência que actua o agente com “frieza de ânimo” quando o crime tenha sido praticado a coberto de evidente sangue-frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo de preparação e execução do crime, congeminado por forma a denotar insensibilidade, indiferença pelos outros e profundo desrespeito pela pessoa humana, pela saúde e integridade física e vida alheias, residindo a justificação da agravação na insensibilidade e resistência persistente às contra-motivações sociais e ético-jurídicas que o levariam a desistir do seu desígnio, reveladora de uma vontade criminosa particularmente intensa e, portanto, de especial perigosidade.

19. Ora, da matéria de facto dada como provada não se retira em que momento teria a arguida formulado o desígnio de tirar a vida ao assistente, designadamente para se aferir se actuou de forma refletida, calculada, com imperturbada calma na preparação e execução do crime, nem se esse propósito se manteve e perdurou pelo menos por 24 horas, nem sequer se aquela havia planeado, de forma detalhada e cautelosa, o modo como iria atingir mortalmente o ofendido, ponderando os meios a utilizar, o local e o momento adequado para actuar.

20. A ausência destes factos - do elenco da matéria assente- em que se traduz a qualificativa do crime de homicídio, prevista na alínea j) do nº2, do artigo 132º, do Código Penal, inviabiliza, em nosso entender, que se possa afirmar ter actuado a arguida com a frieza de ânimo no cometimento do crime perpetrado na pessoa do assistente.

21. Também a factualidade dada como provada, relativamente ao elemento subjectivo do tipo, é insuficiente para enquadrar a actuação da arguida na alínea j), do nº2, do artigo 132º, do Código Penal, por não existirem factos donde se possa extrair ter aquela agido com frieza de ânimo, pois da mesma não consta (como deveria constar) ter a arguida actuado de forma reflectida, calculada, na prossecução de um plano que previamente havia delineado para tirar a vida ao assistente, para cuja execução ponderou os meios a utilizar, bem como o local e momento adequado para actuar, mostrando-se indiferente perante as consequências dos seus actos.

22. A “intenção” com que a arguida actuou constitui matéria de facto que, por se tratar do foro psicológico, é muitas vezes indemonstrável de forma naturalística, mas o tribunal pode considerá-la provada, através de outros que com eles normalmente se ligam, ou, dito de outra forma, inferi-la a partir de outros factos objectivos que resultem provados. A circunstância do dolo poder ser provado (e, portanto, inferir-se) com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da vida, não significa que fica prescindida a respectiva alegação dos factos que o integram.

23. Assim, revelando-se a factualidade provada insuficiente para subsumir a conduta da arguida à norma incriminadora prevista na alínea j), do nº2, do artigo 132º, do Código Penal, considerando todos os seus elementos típicos, padece o acórdão recorrido do vício de da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previstos no artigo 410º, nº2, alínea a), do Código de Processo Penal, que desde já se invoca.

24. Verificando-se o invocado vício, tal obriga ao reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do disposto no artigo 426º, nº1, do citado diploma legal, com vista a serem esclarecidas as questões suscitadas.

25. Todavia, em nossa modesta opinião, entendemos que a factualidade provada (após a sanação da nulidade e dos vícios invocados), tal como se encontra descrita na decisão recorrida, permite a condenação da arguida pelo cometimento do crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso da arma, desde logo por não traduzirem os factos provados ter actuado a arguida com especial censurabilidade ou perversidade.

26. Os conceitos de “especial perversidade” e “especial censurabilidade” não são equivalentes, reportando-se o primeiro a qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, enquanto o segundo se refere a formas especialmente graves de execução do crime.

27. Haverá especial censurabilidade quando “as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores”, podendo afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às “componentes da culpa relativas ao facto”, fundando-se, pois, “naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude”.

28. Haverá especial perversidade quando se esteja perante “uma atitude profundamente rejeitável”, no sentido de “constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade”, estando aqui em causa as “componentes da culpa relativas ao agente.” (Teresa Serra Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, páginas 63 e 64)

29. Ademais, como é sabido, o nosso legislador utilizou no artigo 132º, do Código Penal, a chamada técnica dos exemplos-padrão, sendo as circunstâncias elencadas nas diversas alíneas do nº 2 meros indícios não taxativos e meramente enunciativos da existência ou inexistência da especial censurabilidade ou perversidade do agente aludida no nº1. É a especial censurabilidade ou perversidade do agente o fundamento da aplicação da moldura penal agravada do homicídio qualificado, e não as circunstâncias indicadas nos exemplos-padrão, que não são de funcionamento automático. - Ac. do STJ de 18.2.98, proc. n.º 1086/97

30. Ora, da factualidade dada como provada não se verifica uma censurabilidade global agravada da conduta da arguida que permita subsumir a sua actuação com frieza de ânimo, pois para além de não existirem factos donde se possa retirar ter actuado de forma reflectida, calculada, na prossecução de um plano que previamente havia delineado para tirar a vida ao assistente, para cuja execução ponderou os meios a utilizar, bem como o local e momento adequado para actuar, também não podemos dizer que o modo como o crime foi executado – a arguida, empunhando na mão direita a faca de cozinha (com lâmina em inox, pontiaguda, com 13,5cm de comprimento), espetou-a com força nas costas do assistente, provocando-lhe ferida dorsal com cerca de 3 cm de extensão, sangrante com atingimento muscular e duvida de atingimento da cavidade pleural-, é susceptível de revelar uma especial censurabilidade ou perversidade a actuação arguida – isto é, um juízo de culpa acrescida ou agravada. Assim entendemos por ter de ser analisada a conduta da arguida sem perder de vista a imagem global do facto.

31. Tal como consta dos factos provados, a arguida revela padecer se sintomatologia depressiva, com toma de medicação antidepressiva há cerca de 4 anos. Na altura dos factos, vivenciava grandes níveis de ansiedade decorrentes do falecimento da sua mãe e das dificuldades económicas que atravessava, contando apenas com o apoio do seu cônjuge (de quem estava separada de facto) para pagamento da renda da habitação onde residia, “mantendo uma vivência muito solitária ao longo dos anos, apresentando dificuldade em estabelecer relações de amizade atendendo ao seu comportamento reservado.” – cfr. Facto provado nº49. Para além do seu cônjuge, a arguida não possui rectaguarda familiar que constitua um suporte ou referência de apoio – o seu único irmão reside na .... Logo após a ocorrência dos factos, repetiu várias vezes que amava o assistente, pedindo-lhe desculpa pelo sucedido, conforme depoimento prestado pelas testemunhas CC e DD em sede de audiência de julgamento – cfr. fls.24 da decisão recorrida.

32. Estas circunstâncias neutralizam, na nossa perspectiva, a aparência insensível da conduta assumida pela arguida, permitindo subsumi-la ao crime de homicídio simples, na forma tentada.

33. Nestes termos, os factos provados, tal como se encontram descritos na decisão recorrida (após a sanação da nulidade e dos vícios invocados), permitem integrar a actuação da arguida ao crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, previsto e punido pelos artigos 22º, nºs 1 e 2, al. b), 23º, nº 2, 73º, 131º, do Código Penal e artigo 86º, nº3, 4 e 5, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, pelo qual, em nosso entender, deverá ser condenada.

34. O acórdão recorrido padece ainda do vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto no artigo 410º, nº2, alínea b), do Código de Processo Penal.

35. O vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste tanto na contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, como também entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou até mesmo entre a fundamentação e a decisão. Ou seja, uma situação em que, seguindo o fio condutor do raciocínio lógico do julgador, os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si ou uns com os outros ou, ainda, com a fundamentação da decisão.

36. Consta da factualidade provada no ponto 20 o seguinte: “20.º A dado momento, o assistente parou de andar porque já tinha estabelecido a chamada com a PSP ..., momento em que a arguida aproximou-se mais de si, reduzindo a distância que os separava para cerca de 2 metros e voltou a investir sobre o assistente com a faca que mantinha empunhada, ao mesmo tempo que vociferou “eu mato-te”, ao que o assistente reagiu, tentando agarrar com a sua mão esquerda a mão direita da arguida, momento em que esta desferiu um golpe na mão esquerda do assistente com a faca, que atingiu o dedo polegar do mesmo, que logo começou a sangrar, tendo o assistente deixado cair o seu telemóvel.”

37. Por sua vez, na fundamentação da matéria de facto da decisão recorrida, relativamente ao golpe que o assistente sofreu na sua mão esquerda com a faca de cozinha, atingindo o seu dedo polegar, consta o seguinte: “Quando se apanhou com rede disse vou ligar para a policia e a arguida vem com faca atrás de si. Tentou segurar a mão e foi aí que fez um golpe no dedo e largou o telemóvel, com a dor” – cfr. fls.17 do acórdão recorrido. Mais se acrescenta que: “Na altura em que agarra a mão (entenda-se a mão da arguida que trazia a faca) se fere foi uma aproximação a dizer “eu mato-te” vinha rápido com a faca na mão. A arguida não chegou a investir contra si.” cfr. fls.18 do acórdão recorrido. Por fim, reportando-se ainda a esta situação, consta da fundamentação da matéria de facto o seguinte: “Só sentiu faca a ser espetada. “o que é que acabaste de fazer, vou chamar a policia” recua a ligar à policia e a arguida vem na sua direção com a faca na mão e consegue segurar-lhe a mão e fica ferido no dedo. Afasta-se para ter rede, corta-se e a faca cai; de telemóvel na mão, pede ajuda às pessoas para o socorrer. Fica ferido entre o polegar e o indicador da mão esquerda.”- cfr. fls.18 e 19 do acórdão recorrido

38. Ora, da factualidade provada resulta ter sido a arguida que desferiu um golpe na mão esquerda do assistente com a faca de cozinha que empunhava, atingindo-o no dedo polegar.

39. Porém, da fundamentação da matéria de facto, retira-se que o golpe sofrido pelo assistente na sua mão esquerda, foi provocado quando este tentava retirar (como retirou) a faca da mão da arguida.

40. Conclui-se, assim, que a factualidade vertida no ponto 20 da decisão recorrida está em contradição com o que consta a esse propósito da fundamentação da matéria de facto, pois, não pode o Tribunal a quo dar como provado que o golpe sofrido pelo assistente na sua mão esquerda foi provocado pela arguida, e simultaneamente fazer constar da fundamentação da matéria de facto que esse golpe ocorreu quando o ofendido retirou a faca à arguida, ou seja, aquele, ao tirar-lhe a faca, cortou-se no seu polegar esquerdo.

41. Assim, atenta a oposição entre o facto provado no ponto 20 da decisão recorrida e o que consta da fundamentação da matéria de facto relativamente a essa situação, sendo inconciliáveis entre si, permite-nos concluir que padece o acórdão recorrido do vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto no artigo 410º, nº1, alínea b), do Código de Processo Penal, que desde já se invoca.

42. Decidindo, como decidiu, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 22º, nºs 1 e 2, alínea b), 23º, nº 2, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea j), do Código Penal, e artigos 374º, nº2, 379º, nº1, alínea a), 410º, nº2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal.

43.Face ao exposto, deverá a decisão recorrida ser revogada, sanando-se a nulidade e os vícios invocados, e condenar-se a arguida pelo crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, atendendo à a imagem global do facto, à luz da qual deverá ser analisada a sua conduta.


3. Na resposta o assistente, apresentou as seguintes conclusões:

1ª O Acórdão proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., não deverá merecer, de V.as Ex.as, qualquer reparo ou censura, por o mesmo, não padecer de quaisquer alegadas nulidades ou vícios. Designadamente,

2ª Quanto à nulidade do acórdão por falta de fundamentação na apreciação crítica da prova, dir-se-á que a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o ato de decidir numa tarefa impossível.

3ª Não afirmando a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respetivo conteúdo.

4ª Resulta da douta sentença que o Tribunal “a quo” ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio da livre apreciação da prova a que se refere o art. 127º do CPP, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar ao veredito de facto.

5ª O douto acórdão no início da motivação, enumera o conjunto de provas em que o Tribunal “a quo” fundamentou a sua convicção, analisando criticamente toda a prova, documentos, perícias e depoimento de testemunhas, com a análise crítica do depoimento da testemunha, CC.

6ª Donde se torna evidente da douta sentença que o tribunal recorrido ao expor a motivação da decisão de facto, elencou as provas que serviram para formar a respetiva convicção, quer as de natureza documental, quer testemunhal, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado tenha ficado ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

7ª Não assiste, por isso, razão ao recorrente quanto a tal alegada nulidade.

8ª Quanto ao alegado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, dirse-á que contrariamente à tese pugnada pelo Ministério Público, o referido acórdão não sofre de qualquer vício, já que, não são só os pontos 1º, 14º a 23º, 26º a 29º da factualidade provada permitem subsumir a conduta da arguida no referido crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, como ainda são reforçados pelos pontos 11º e 12º da factualidade provada.

9ª e os pontos 11º e 12º da factualidade provada demonstram que antes da agressão houve, da parte da arguida, uma análise detalhada e estudo prévio do local do crime, dos horários de entrada e saída do assistente da sua habitação, da forma como se poderia entrar nas instalações (garagem do prédio), familiarizando-se com as redondezas da habitação do assistente e com o próprio prédio onde residia.

10ª Tal factualidade para além de se objetivar na prática de um crime de perseguição – pelo qual a arguida foi condenada e que não é aqui objeto de recurso por parte do Ministério Público –, é também passível de ser subsumida no crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, uma vez que é demonstrativa de que houve premeditação e frieza de ânimo na prática do crime, através de um estudo, da familiarização com o local onde o crime foi praticado e da prévia compra de uma faca de cozinha com 13,5 centímetros de comprimento de lâmina (cfr. factualidade provada ponto 16º).

11ª Contrariamente ao alegado na conclusão 19. do recurso do Ministério Público, toda a factualidade dada como provada nos pontos 1º, 14º a 23º, 26º a 29º, conjuntamente com os pontos 11º e 12º demonstram à saciedade que, apesar de não ter ficado provado qual o hiato temporal em que o pensamento da arguida passou a ser o de tirar a vida ao assistente, toda a estratégia para o fazer (tirar a vida ao assistente) foi montada, estruturada, analisada, cuidadosamente pensada e realizada e não o foi por um período de 24 horas, mas sim de meses.

12ª E a atuação cuidada e realizada com frieza de ânimo na execução crime é demonstrada pelo facto de a arguida ter efetuado uma espera à vítima, munida de uma faca com 13,5 centímetros de comprimento de lâmina, num local onde lhe possibilitasse a vigilância das imediações da habitação do assistente, introduzindo-se furtivamente na garagem do assistente, aí aguardando a sua chegada, por saber previamente a sua rotina e as horas a que o assistente chegaria a casa, atacando-o pelas costas (cfr. factualidade provada, pontos 11º e 16º).

13ª Tal factualidade evidencia e demonstra o estudo e o exercício de uma “vigilância constante sobre os movimentos” do assistente, que se revelaram cruciais para a consumação do crime e para qualificação do mesmo.

14ª E a especial censurabilidade revela-se ainda, na circunstância da arguida, após ter espetado a faca no assistente, o ter perseguido, investindo com a faca que mantinha empunhada e vociferando “eu mato-te” (cfr. factualidade provada, ponto 20º), demonstrando a sua frieza de ânimo e profundo desrespeito pelo padrão normal vigente na sociedade e, naturalmente, pela vida do assistente.

15ª Donde resulta que o douto acórdão não padece de qualquer eventual vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

16ª A conclusão 31. Do recurso, não pode servir para o enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida num específico tipo legal de crime, mas sim para determinação da medida da pena (art. 71º do Código Penal), tendo em conta a factualidade provada nos pontos 48º e 49º do acórdão do Tribunal “a quo”. Ademais

17ª A premeditação é uma constante no caso sub judice, tendo em conta todos os atos preparatórios da arguida – estudo do local, estudo da rotina do assistente, compra da faca de cozinha, espera realizada num local de boa visibilidade e sem movimentação, introdução na garagem do prédio (cfr. factualidade provada, pontos 11º, 15º a 18º)] e a própria conduta da mesma [ataque com a faca de cozinha pelas costas (cfr. factualidade provada, ponto 18º)] – o que tudo são atos demonstrativos de firmeza, propósito, tenacidade e irrevogabilidade da sua decisão, claramente indiciada pela persistência durante um apreciável espaço de tempo.

18ª Os pontos 1º, 11º, 12º, 14º a 23º, 26º a 29º da factualidade provada permitem estabelecer que houve uma planificação, atempada e estruturada, para a realização dos intentos da arguida, o tirar a vida ao assistente.

19ª Existe uma relação direta entre a conduta da arguida e a premeditação, o que nos leva a ter que considerar o “critério de agravação subjacente” à alínea j) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal (premeditação) para o caso concreto, premeditação, essa, demonstrativa de uma especial censurabilidade da conduta da arguida.

20ª Censurabilidade, revelada pelos factos posteriores à primeira tentativa de homicídio, nomeadamente o facto de ter perseguido o assistente, ter investido com a faca que mantinha empunhada e ter vociferado “eu mato-te” (cfr. factualidade provada, ponto 20º).

21ª O modo de execução do crime e as consequências do crime não podem ser confundidas.

22ª O modo de execução do crime é revelador da especial censurabilidade ou perversidade da atuação da arguida, porquanto a arguida, quando se esgueirou para junto do assistente e o atacou pelas costas, visou atingir os órgãos vitais do assistente, porquanto trazia na mão direita a faca, mas atinge o lado oposto do assistente (cfr. factualidade provada, pontos 18º e 23º), por pouco não atingindo os órgãos vitais deste.

23º Já as consequências do crime, não podem ser valoradas para efeitos de enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida, em virtude de as mesmas serem distintas dos elementos objetivos do tipo legal de crime.

24ª Se fizéssemos um exercício de inversão dos papéis dos intervenientes, tendo em conta as diferenças anatómicas do homem e da mulher médios, nomeadamente ao nível de estatura, peso, força ou rapidez, as consequências do crime – tendo em conta o modo de execução do crime que foi perpetrado pela arguida – seriam bem mais gravosos, com a possibilidade de não se estar a tratar de um homicídio na forma tentada, mas sim de um homicídio.

25ª Com este raciocínio lógico entende-se que as consequências não são um meio para diminuir a culpa ou alterar/modificar o enquadramento jurídico-penal, são antes o ponto de princípio para a determinação da medida da pena.

26ª O que existiu foi uma falha na execução, que não altera a evidente intenção de tirar a vida ao assistente aliada ao gritante desvalor do bem jurídico, vida.

27ª Finalmente e quanto ao alegado vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, dir-se-á que, não se entende a alegada contradição.

28ª É que temos um primeiro momento em que o assistente é apunhalado pelas costas e um segundo momento em que a arguida o tenta novamente agredir, se o assistente se corta ao agarrar a faca para evitar a agressão ou se é a arguida que vai para o agredir e o corta na mão ao segurar-lhe a faca, não se percebe a alegada contradição.

29ª Uma vez que, o erro de julgamento que pudesse ser capaz de conduzir à modificação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, não se verifica em qualquer uma das situações aí elencadas e a diferente valoração da prova não se confunde com o erro de julgamento ou com qualquer dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal.

30ª A livre convicção tem de ser objetiva e motivada de modo a permitir um controlo pelos destinatários da mesma, pela sociedade e pelos tribunais de recurso, mas, verificada tal motivação, a mesma só nos casos excecionais legalmente previstos (erro de julgamento e vícios) ou situações de arbitrariedade ou juízos puramente subjetivos e imotiváveis, é possível ser sindicada por um tribunal de recurso. O que não é o caso.

Termina dever o recurso ser julgado improcedente e, em consequência, ser integralmente mantido o acórdão recorrido, com as legais consequências.


4. Subiram os autos a este Tribunal (após o Tribunal da Relação se ter declarado incompetente face às questões suscitadas no recurso e pena aplicada à arguida) e, o Sr. PGA emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.


5. A arguida respondeu ao Parecer do Sr. PGA, discordando do mesmo e pedindo o provimento do Recurso, pelos motivos nele aduzidos.


6. Verificada pela Relatora a competência deste Tribunal para o conhecimento do recurso (nos termos do art.432.º, n.º 1, al. c) e 434.º do CPP, uma vez que anteriormente o processo havia passado na Relação que se declarara incompetente), foi ordenado que fossem colhidos os vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

As questões colocadas pelo Ministério Público em sede de recurso são as seguintes:

1ª - nulidade do acórdão, por falta de exame crítico da prova de natureza pessoal (arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP);

2ª - insuficiência para a decisão da matéria de facto prevista no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP (quanto à qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. j), do CPP, ainda que tenha sido imputado o crime de homicídio na forma tentada) e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão prevista no art. 410.º, n.º 2, al. b) do CPP (oposição entre o ponto 20 dos factos provados e o que consta da motivação de facto);

3ª - erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito (sustenta o recorrente que o crime de homicídio tentado cometido pela arguida deveria ser desqualificado).


II. Fundamentação


7. Consta do acórdão sob recurso, na parte relativa à decisão sobre a matéria de facto, o seguinte (segundo transcrição dessa parte do acórdão da 1ª instância):

A - FACTOS PROVADOS

1.º A arguida e o assistente BB conheceram-se em meados do ano de 2016, no ‘...’, sito no antigo Mercado Municipal de ... e a partir do primeiro encontro, sucederam-se outros encontros casuais entre ambos no mesmo Bar e, cerca de 2 meses após se terem conhecido, a arguida e o assistente iniciaram encontros de circunstância que ocorriam em casa do assistente e que se prolongaram cerca de 1 ano.

2.º Com o passar do tempo, o comportamento da arguida alterou-se, tendo esta começado a dizer ao assistente que este “era só dela” e/ou que “iria ser só dela”, comportamento que deixou o assistente preocupado e fez com que se começasse a afastar da arguida, passando a evitar encontros com a mesma.

3.º Quando a arguida se apercebeu do afastamento do assistente, começou a dizer-lhe que “se não és meu, não és de mais ninguém” e a insistir que deviam continuar com o relacionamento, o que fez com que o assistente decidisse pôr termo à relação, o que aconteceu em meados do ano de 2017, o que aparentemente a arguida aceitou.

4.º Desde data não concretamente apurada, mas por volta do mês de Setembro ou Outubro de 2017, a arguida, com o propósito de provocar medo, inquietação e condicionar a liberdade de determinação do assistente de forma a que este reatasse a relação entre ambos, começou a forçar os contactos entre os dois.

5.º- Em finais do ano de 2017, após várias insistências da arguida, o assistente aceitou encontrar-se com a mesma e explicou-lhe que o seu comportamento não tinha fundamento, uma vez que eram ambos pessoas livres e descomprometidas e que cada um deveria seguir com a sua vida.

6.º A arguida não aceitou tal decisão do assistente e mantendo o propósito de provocar medo, inquietação e condicionar a liberdade de determinação do assistente, passou a tentar contactar e/ou a contactar o assistente através de todas as formas possíveis, o que fazia de forma frequente e sequencial.

7.º Com vista a concretização do propósito formulado, a arguida tentava ligar e/ou ligava e enviava mensagens de texto, imagem e voz: a partir do seu telemóvel com o n.º ...00 para o telemóvel do assistente com o n.º ...86; a partir da aplicação Whatsapp associada ao número de telemóvel ...00 para o telemóvel do assistente com o n.º ...86; e através da sua conta de Facebook para a conta de Facebook do assistente.

8.º A arguida sabia que o assistente não queria receber as suas mensagens e/ou tentativas de contacto, tanto assim que o assistente bloqueou a arguida em todos os meios de contacto possíveis: telemóvel, aplicações e redes sociais.

9.º Não obstante o assistente tivesse bloqueado o número de telemóvel da arguida, o mencionado em 7.º, esta passou a contactar o assistente através de outros números de telemóvel, designadamente dos números ...41, ...99, ...70, +7(91...) ... 18, ...98 e ...78, e apesar de o assistente ter bloqueado a conta de Facebook da arguida, esta criou outras contas com nomes fictícios, como “EE” e “FF”, a partir das quais manteve as tentativas de contacto com o assistente, sempre com o propósito de provocar medo, inquietação e condicionar a liberdade de determinação do mesmo, o que perdurou até ao dia 28/10/2021.

10.º Assim, desde finais de 2017, com regularidade e insistentemente, a arguida enviou ao assistente, a partir dos diversos números de telemóvel indicados em 9.º supra, da aplicação Whatsapp associada aos mesmos, e das várias contas de Facebook que criou, mensagens de texto ou imagem ou voz, chegando a efetuar mais de 20 tentativas seguidas de telefonemas para o assistente.

11.º A partir de data não concretamente apurada, mas pelo menos por volta de inícios de Setembro de 2021, a arguida passou a frequentar diariamente as imediações da residência do assistente, sita na Av. ..., ..., em ..., e também os locais que este frequentava, nomeadamente a “Pastelaria ...”, sita na Rua Dom ..., n.º ..., próxima da residência do assistente e com vista para esta, exercendo uma vigilância constante sobre os movimentos deste, o que o levou a ter de deixar de frequentar a mencionada pastelaria.

12.º A partir de finais de Setembro de 2021, a arguida passou também a dirigir-se ao prédio onde residia o assistente, sito na Av. ..., ..., em ..., e, sempre com o propósito, concretizado, de provocar medo, inquietação e condicionar a liberdade de determinação do assistente, e de o forçar a contactar consigo, tocava de forma insistente em todas as campainhas do prédio.

13.º Tal comportamento da arguida fez com que o assistente, por diversas vezes, para obter tranquilidade e descanso, tivesse sido obrigado a desligar a campainha do intercomunicador de sua casa.

14.º Em data não concretamente apurada, mas anterior e próxima das 12h00 do dia 28/10/2021, a arguida, porque o assistente não reatou a relação consigo, como ela pretendia, formulou o propósito de lhe tirar a vida.

15.º Na execução desse seu propósito, a arguida comprou e muniu-se de uma faca de cozinha, com lâmina em inox, pontiaguda, com 13,5cm de comprimento, e cabo plástico preto, com 10,5cm, perfazendo o comprimento total de 24cm.

16.º No dia 28/10/2021, pelas 11h30m, com vista à concretização do propósito formulado de tirar a vida ao assistente, a arguida, trazendo consigo a faca mencionada em 15.º supra, dirigiu-se à “Pastelaria ...”, efetuou um pedido e dirigiu-se à esplanada da pastelaria, a qual tem visibilidade para o prédio onde reside o assistente, local onde se sentou numa cadeira e permaneceu até às 12h02, momento em que se levantou e se dirigiu à entrada da garagem do prédio onde o assistente reside e ali esperou a chegada do mesmo.

17.º Por volta das 12h10m, o assistente chegou à entrada da garagem, conduzindo o veículo automóvel de marca Mercedes, modelo A, com a matrícula ..-ZD-.. e entrou na garagem, tendo a arguida, nesse momento e sem ser vista pelo assistente, aproveitado para se introduzir na mesma.

18. O assistente estacionou o carro na garagem e dirigiu-se apeado para o elevador, momento em que a arguida caminhou na sua direção, pelas costas e sem ser por este vista e, empunhando na mão direita a mencionada faca, espetou-a com força nas costas do assistente, com a intenção de lhe tirar a vida, atingindo-o na região dorsal esquerda, tendo o assistente logo começado a sangrar.

19.º Ao sentir a facada, o assistente virou-se para trás e deparou-se com a arguida, que empunhava a faca, e perguntou-lhe “o que é que fizeste? Vou já ligar à polícia”, tendo de imediato retirado o telemóvel do bolso, ao mesmo tempo que começou a dirigir-se para o portão da entrada da garagem para conseguir ter rede e iniciou um telefonema para a PSP ..., tendo a arguida, mantendo o propósito de tirar a vida ao assistente, seguido no encalço deste a cerca de 4 metros de distância.

20.º A dado momento, o assistente parou de andar porque já tinha estabelecido a chamada com a PSP ..., momento em que a arguida aproximou-se mais de si, reduzindo a distância que os separava para cerca de 2 metros e voltou a investir sobre o assistente com a faca que mantinha empunhada, ao mesmo tempo que vociferou “eu mato-te”, ao que o assistente reagiu, tentando agarrar com a sua mão esquerda a mão direita da arguida, momento em que esta desferiu um golpe na mão esquerda do assistente com a faca, que atingiu o dedo polegar do mesmo, que logo começou a sangrar, tendo o assistente deixado cair o seu telemóvel.

21.º O assistente, apesar de ferido na região dorsal esquerda e no polegar da mão esquerda, conseguiu agarrar a mão da arguida e atirar a faca para o chão, momento em que lhe deu um empurrão e a conseguiu afastar de si, aproveitando para apanhar a faca do chão e recuperar o telemóvel.

22.º Nesse momento a arguida começou a encaminhar-se na direção da saída da garagem, no que foi seguida pelo assistente, que a conseguiu alcançar e agarrar com a mão direita, tendo levado a mesma para o exterior da garagem e pedido auxílio, gritando “ajudem por favor”, tendo acorrido DD, que ouviu os gritos e se aproximou, e segurou a arguida até que chegaram outras pessoas e elementos da PSP, nomeadamente CC, sócia da pastelaria “...”, que chamou o “112” e GG e DD, agentes da Polícia de Segurança Pública que efetuaram a detenção da arguida.

23.º Como consequência direta e necessária da conduta da arguida, sofreu o assistente dores e as lesões melhor descritas no Relatório de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, de fls. 321-323, no Relatório da Perícia Médico-Legal, de fls. 353-355, no Relatório institucional de episódio de urgência, de fls. 49-57 e na História Clínica, de fls. 58-59, de onde consta, além do mais cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, nomeadamente:

“(…) ferida perfurante, sem corpo estranho, da parede posterior esquerda do toráx, com penetração da cavidade toráxica e pneumotoráx “…ferida dorsal com cerca de 3 cm de extensão, sangrante com atingimento muscular e duvida de atingimento da cavidade pleural (…) e ainda ferida do 1º dedo da mão esquerda….”, lesões essas que determinaram 60 dias para a cura, com afectação da capacidade de trabalho geral (3 dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (7 dias) (…);

Do evento resultou em concreto, perigo para a vida do assistente”.

24.º Com as condutas descritas em 6.º a 13.º supra, que se traduziram em atormentar o assistente, de forma frequente e sequencial, fosse dia ou noite: quer enviando mensagens de texto e/ou voz para o telemóvel, Whatsapp e/ou Facebook assistente; quer tocando repetidamente à campainha de casa do assistente e a todas as campainhas do prédio onde o mesmo residia; impedindo o assistente de descansar e de manter uma rotina tranquila, perturbando, inclusive, o período de descanso noturno do mesmo, a arguida agiu com o propósito concretizado de provocar medo e inquietação no assistente, perturbando a paz e sossego deste e prejudicando e limitando os movimentos do mesmo, bem sabendo que desse modo o lesava na sua liberdade pessoal.

25.ºComo consequência direta e necessária das condutas da arguida supra descritas, o assistente passou a sentir-se constrangido na sua liberdade de determinação, na sua vida privada, na sua paz e sossego, chegando inclusivamente a recear pela sua integridade física e pela própria vida, tanto assim que bloqueou a arguida de todos os meios de contacto possíveis, desligou o intercomunicador da campainha e contactou a PSP e Polícia Municipal ..., pedindo auxílio.

26.ºA arguida bem sabia que a sua atuação, descrita em 14.º a 20.º supra, era adequada a produzir a morte do assistente, atento o instrumento utilizado para a agressão e a zona – região dorsal esquerda - que, intencionalmente, visou atingir e que contém no seu interior diversos órgãos vitais, desde logo o coração e pulmões e vasos sanguíneos de grande calibre, morte que só não aconteceu por circunstâncias alheias à vontade da arguida.

27.º A arguida sabia que o objeto que usou para atingir o assistente - faca, atentas as suas dimensões, forma, peso e material, era meio idóneo a provocar no corpo do assistente lesões capazes de acarretar a morte, como era sua intenção.

28.º A arguida sabia ainda que não lhe era permitido a detenção e uso da referida faca nas circunstâncias supra descritas, cujas características bem conhecia, e que a mesma estava fora dos locais do seu normal emprego, a cozinha, e que não tinha objeto justificação para a sua posse, bem sabendo que a mesma poderia ser utilizada como arma de agressão fatal, fim para o qual a arguida a comprou e detinha.

29.º A arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que todas as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei como crimes.

Do pedido de indemnização cível:

30º Por via do comportamento da arguida, o assistente passou a sentir medo e a sentir-se inseguro, o que se refletiu negativamente, não só na sua vida pessoal e familiar, como na sua atividade profissional de docente universitário evidenciando sinais de irritabilidade;

31º A demandada passou a frequentar a “Pastelaria ...” sita na Rua D. ..., nº ..., em ..., junto ao local onde reside o demandante, a qual se situa junto ao início do acesso à entrada das garagens do prédio onde o mesmo reside, com o único objetivo de, através desse local privilegiado, passar, como passou, a controlar os hábitos e rotinas diárias do assistente e as suas entradas e saídas de casa, bem como, às horas em que o fazia.

32º- Em consequência das sobreditas condutas que persistiram ao longo do tempo, perpetradas pela demandada – com o propósito concretizado de provocar no demandante medo e inquietação numa espécie de vingança pessoal pelo fim da relação - o demandante passou a andar perturbado, com medo, psicologicamente abatido, pelo cansaço e pelo desgaste dessa conduta, apreensivo mais triste e abatido.

33º- O demandante sentiu no momento da agressão, no local da facada e, posteriormente, durante o tempo que aguardou por apoio médico, fortes dores físicas, em resultado do traumatismo torácico e do corte profundo no polegar e um mal-estar geral prolongado.

34º- Decorrente das referidas agressões e lesões o demandante sentiu dores profundas no momento da agressão com o impacto da lamina introduzida no seu corpo e posteriormente mau estar físico, tendo ficado profundamente abalado, física e psicologicamente.

temeu pela vida em resultado de ter tido a sensação de morte, com a perda da sua vida, que poderia ter ocorrido naquele momento.

35º- Durante um período de tempo, foram familiares mais próximos que o transportavam de casa para o trabalho e para outros locais, uma vez que não conseguia andar sozinho e/ou conduzir.

36º- A conduta da demandada provocou dores físicas na pessoa do demandante, causou-lhe temor e receio pela sua vida, tendo mesmo, na ocasião em que foi esfaqueado e nos momentos em que se seguiram, sofrido um estado de inquietação e insegurança, com reflexos, no desempenho da sua vida pessoal, familiar e profissional.

Do pedido de indemnização cível do Centro Hospitalar ...:

37º- O Centro Hospitalar ..., E.P.E. é uma pessoa coletiva que presta cuidados de saúde.

38º- Na sequência dos factos praticados pela arguida, a demandante prestou cuidados de saúde a BB que ascenderam a € 1.357,12 (cfr Docs de fls 467 e 468).

Das condições pessoais da arguida:

39- AA é natural de ..., na ... e descende de um agregado familiar com uma dinâmica familiar relacional que descreve como coesa e afetiva. Tem dois irmãos germanos. Os progenitores exerciam atividade laboral, o pai como polícia e a mãe como funcionária de uma empresa de elevadores.

40º O pai faleceu quando a arguida tinha 20 anos de idade.

41º- A arguida concluiu o 12.º ano de escolaridade. Realizou um curso de tecnologia de produção de produtos lácteos durante 3 anos, vindo a trabalhar como vendedora de produtos químicos.

42º Aos 23 anos a arguida veio viver para Portugal, onde já residiam uns amigos, em ..., na expectativa de obter melhores condições socioprofissionais, tendo iniciado, naquela altura, atividade laboral na área da indústria .... Posteriormente, trabalhou cerca de um ano na área da restauração, em ..., para onde foi viver com um amigo. De seguida, foi trabalhar para um bar na ....

43º- Após fixar residência em ... conheceu HH, com quem contraiu matrimónio há cerca de 15 anos, numa fase em que aquele esteve separado da companheira, referindo ter coabitado com a arguida cerca de dois anos, em .... No decurso do matrimónio, a arguida dependia financeiramente do cônjuge, que sempre trabalhou como .... Após a separação de facto, o casal manteve o relacionamento de amizade, beneficiando aquela do apoio do seu cônjuge ao longo dos anos. AA refere-se ao relacionamento entre o casal como ajustado, sem indicações de desajustes comportamentais relevantes, nem notícia de qualquer participação nas autoridades policiais, informação corroborada pelo ex-cônjuge. Foram referidos por aquele problemas graves de depressão da arguida, com tentativa de suicídio pelo menos duas vezes, referindo que foi atendida no hospital de ..., não sabendo confirmar se foi por psiquiatra, desconhecendo se mantinha algum tipo de acompanhamento e se aquele seria regular.

O mesmo supõe que a arguida teria consultas no médico de família, o que a arguida confirma. Acrescenta que, quando se sentia pior, AA refugiava-se no consumo de bebidas alcoólicas, que associava a medicação antidepressiva, situação que é negada pela arguida. Considera a arguida uma pessoa solitária, triste, pouco sociável e desconfiada.

44º- A arguida estabelecia contato com os familiares na ..., visitando, ocasionalmente, a mãe, que veio a falecer, há cerca de 4 anos, situação que a terá deixado muito deprimida. Não estabelece um relacionamento positivo com o irmão que vive na ..., tendo o outro falecido.

45º- Há cerca de 5 anos, AA conheceu o ofendido nos presentes autos, referindo que manteve com aquele um relacionamento amoroso que durou cerca de um ano, o qual descreve como positivo, apresentando dificuldade em compreender o motivo que levou à separação do casal. O ofendido discorda que tenha existido um relacionamento amoroso entre ambos, referindo que apenas se verificavam encontros de circunstância, naquele período. Após perceção por parte do ofendido de que a arguida poderia estar a identificar o relacionamento íntimo, que pontualmente mantinham, com uma relação amorosa, este pôs termo a tais encontros, em meados de 2017, passando a ser alvo, ao longo de quatro anos, segundo refere, de comportamentos desajustados perpetrados pela arguida. BB acrescenta que nunca se apercebeu de consumos excessivos de bebidas alcoólicas por parte da arguida.

46º- A situação que vivenciou teve forte impacto na vida do ofendido, aos diferentes níveis, continuando a temer pela sua segurança.

47º- Ao nível laboral, segundo o antigo patrão, para o qual trabalhou há já alguns anos, a arguida sempre se revelou “uma pessoa calma e afável, sem registo de problemas de relacionamento com patrão, colegas e clientes, revelando estupefação perante a natureza dos factos acusatórios.

48º- À data dos factos constantes do presente processo, AA referiu que residia sozinha na Av. ..., em ..., numa habitação arrendada. A arguida encontrava-se a exercer atividade laboral num bar daquela cidade, não obstante, não comparecer no local de trabalho há cerca de duas semanas, referindo incapacidade psicológica para o exercício de funções. Refere beneficiar de acompanhamento pelo médico de família há cerca de quatro anos, realizando medicação ansiolítica e antidepressiva.

49º- A arguida revela padecer de perturbação depressiva com terapêutica medicamentosa, vivenciando, à altura, grandes níveis de ansiedade, em razão do falecimento da mãe e das dificuldades económicas que atravessava. Contava com o apoio do cônjuge no pagamento da renda da habitação onde vivia, mantendo uma vivência muito solitária ao longo dos anos, apresentando dificuldade em estabelecer relações de amizade atendendo ao seu comportamento reservado.

50- Ao nível futuro, AA revela como projetos a pretensão de permanecer em Portugal, dando continuidade ao exercício da sua atividade laboral, quando em meio livre.

Impacto da situação jurídico-penal

51º- Sendo este, segundo refere a arguida, o seu primeiro confronto com o sistema de justiça penal, deu entrada preventivamente no Estabelecimento Prisional ... de Santa Cruz do Bispo, em ... .10.2021, à ordem do presente processo.

52º- Em relação à natureza dos factos pelos quais se encontra acusada, a arguida verbaliza reconhecer, em abstrato, a ilicitude dos mesmos, identificando os danos que tais comportamentos podem provocar nas pontuais vítimas.

Relativamente ao impacto do presente processo na sua vida, centra-se, sobretudo, nos custos pessoais decorrentes da sua reclusão. Enfatiza o impacto que a mesma tem tido particularmente na sua esfera emocional, para além de se centrar em si própria, apresentando parca manifestação de empatia para com o ofendido.

53º Em meio prisional, a arguida apresenta punição datada do presente ano por adoção de comportamento incorreto para com elementos de vigilância de serviço a quem desobedeceu de forma pública e notória, perturbando o normal funcionamento da ala prisional.

Beneficia de acompanhamento pelos Serviços Clínicos ..., na especialidade de Psiquiatria. Recusou o acompanhamento psicológico.

Não beneficia de visitas no EP, estabelecendo contato por correspondência com o cônjuge, também recluído, até março do corrente ano.

54º- Do CRC (de fls 507 verso) nada consta.


*


B - FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevo para a decisão da causa, não se provou:

Da acusação pública:

- que, nas circunstâncias descritas em 1- dos factos dados como provados, entre a arguida e o assistente se tivesse iniciado uma relação de namoro;

- que a arguida sabia que o assistente BB já havia mantido uma relação amorosa consigo e por isso a sua conduta é especialmente censurável.

Do pedido cível:

- que por via da atuação da arguida o assistente tenha deixado de ter um sono contínuo, repousante e reparador, acordando sistematicamente durante a noite sobressaltado, com insónias;

- que o assistente tenha ficado com incapacidade para raciocinar com facilidade, com lentidão de reflexos.


*


C - MOTIVAÇÃO

A convicção do tribunal formou-se no conjunto das declarações e prova testemunhal produzida em julgamento, com os documentos e perícias juntas aos autos, conjugada com regras de experiência comum e do normal acontecer (cfr. art.º 127º do CPP).

Assim, da prova documental junta aos autos cujo teor se dá qui por integralmente reproduzido, destacam-se:

- Informação clínica de fls. 19 a 21 – relatório institucional de episódio de urgência, de onde consta além do mais que o assistente foi admitido no serviço de urgência do Hospital pelas 12h41 do dia 28-10-2021, tendo tido alta pelas 18h40 do mesmo dia;

- História clínica e Diário Clinico de fls 58 a 60;

- Participação da Polícia ... de fls 32 de onde consta a indicação de que uma moradora do mesmo prédio do assistente denuncia que “(…) uma mulher desconhecida andava a tocar nas campainhas do prédio e, que essa situação já se repetia por diversas vezes desse há cerca de um mês a esta parte”. Nesse dia a arguida foi abordada pela polícia e conduzida a sua casa para se identificar.

Sobre o teor deste documento, viria a ser ouvido como testemunha o Sr agente municipal graduado II.

- Reportagem fotográfica de fls 36 a 47, com relevo para o casaco apreendido à arguida com vestígios hemáticos, com o pormenor da faca usada na agressão e do buraco efetuado na camisa e no casaco do assistente;

- auto de exame efetuada à arma branca – faca, de fls 73 e 74.

- auto de interrogatório judicial da arguida de fls 81 e ss, com destaque para as declarações prestadas, valoradas nos termos legais e em sintonia com a declarações prestadas em audiência de julgamento, tendo a arguida mantido uma posição de “vitimização” perante os factos: o assistente terminou a relação, sem lhe dar qualquer explicação, por mensagem, o “que não se faz”. Diz que passou a sofrer de depressão por “ter perdido o amor da sua vida” e a sua mãe, tomando medicação por isso há 4 anos. Referiu que quando se infiltrou na garagem do assistente era “só para lhe falar”. Quanto ao facto de ir munida de uma faca, não foi para ameaçar, não foi por vingança, foi “só pelo mal que ele me fez, este tempo todo” querendo significar que continuava à espera de explicação, “para ter paz”. A faca adquiriu-a antes, numa loja dos “300” por € 1,00.

- Relatório de inspeção judiciária de fls 127 a 151, com destaque para a reportagem fotográfica de fls 129 e ss, nomeadamente da vista geral de acesso às garagens do prédio do assistente e do interior das mesmas, com o pormenor da porta da garagem que dá acesso ao elevador do prédio e do portão de saída, com vestígios hemáticos na zona percorrida pelo assistente e pela agressora.

- esquema do local de agressão de fls 151;

- transcrição / prints de algumas mensagens ainda mantidas no telemóvel do assistente (de fls 165 e ss).

- Relatório de exame médico-legal de fls 179 a 182;

- análise de ADN para pesquisa e estudo comparativo dos vestígios biológicos recolhidos (fls 186 e 187);

- Relatório de perícia médico-legal (fls 214 a 216) com destaque para a suas conclusões em termos do resultado das lesões, em concreto, em termos de “perigo de vida do examinado”;

- auto de visionamento de registo de imagens fls 220 e ss, onde é detetada a presença da arguida ao balcão, a fazer o seu pedido, com destaque para a hora que aparece visível na parte superior esquerda (fls 220 a 234), o que permite visualização os factos repardso estabelecer todo o percurso da arguida até ao momento da prática do factos.

- auto de reconstituição de fls 244 a 249;

- reportagem fotográfica de fls 255 e 256;

- relatório final de fls 258 e ss;

- Relatório de avaliação do dano corporal em direito de fls 321 a 323.

- Fls 464 a 466: documentos para pagamento das despesas hospitalares do assistente;

- Do relatório social da DGRSP de fls 575 verso e ss

- cópia de participação de fls 633 e ss junta em sede de audiência de julgamento.


*


O assistente BB, casado, separado de facto desde 2016, professor universitário na área da informática, de 46 anos, prestou declarações, referindo que em meados de 2016 conheceu a arguida, num bar em ..., afirmando ter passado a manter uma relação íntima, periódica, “estando semanas sem se verem”. O terminus dessa relação foi em 2017. Inicialmente encontravam-se no bar, posteriormente sempre em casa do assistente. No final da noite encontravam-se, em nenhuma das vezes pernoitando juntos. Nunca lhe pareceu nada de adverso da parte da arguida: “era o tipo de relação que ambos queríamos”. No período inicial não se apercebeu de nada da parte da arguida. No total foram 10 a 15 vezes que se encontraram, de setembro de 2016 a março de 2017. Tem maio de 2017, o assistente pôs termo à relação, “por um conjunto de manifestações da parte da arguida”: passados uns meses do inicio da relação, a arguida foi-lhe dizendo que gostava de estar comigo e depois já não gostava de estar comigo. “Tu és meu, eu estou a brincar” quando eu dizia ninguém e de ninguém. Foi o que me deixou preocupado e passei a usar o trabalho e a necessidade de estar com o meu filho como pretexto para deixar de estar com ela. Antes do fim e até maio, disse que falou com ela, pela forma como ela se estava a posicionar, não tinha o mínimo interesse: postura de posse deixava-o extremamente desconfortável, isto depois de um mês de afastamento.

Tinha acabado de sair de um casamento de muito anos: olhava para alguém com quem se sentisse bem, até às primeiras manifestações de posse. Até o seu filho atingir os 18 nos (há pouco tempo) decidiu não se divorciar. Quando terminou os encontros com a arguida, a reação por parte desta foi “também não quero estar contigo” e esteve cerca de dois meses sem contactos. Depois a arguida voltou a contatar o assistente em meados de agosto / setembro, começando a ligar-lhe e a dizer-lhe que tinha saudades dele, que afinal gostava de dele, altura em que o assistente disse lhe não querer reatar algo que não queria continuar: a arguida pareceu aceitar, mas depois voltou a insistir uma semana depois. Entre setembro e o final do ano de 2017 foi insistindo que queria falar com o assistente e o assistente aceitou falar e depois no final do ano, aceitou ir ao bar falar com ela para lhe explicar porque não queria continuar a relação e que não tinha sentido. Aparentemente, a arguida pareceu aceitar. Depois dessas duas conversas, os problemas começaram a agudizar-se. Depois desse encontro e à porta da casa do assistente, a arguida começou a telefonar, a contata-lo para falar e o assistente a dizer-lhe que não tinha nada para dizer. No inicio atendia, a arguida começava a falar e a pedir desculpa ou agredi-lo verbalmente “és um cabrão, não vales uma merda”. Ligava mais 3 ou 4 vezes. Voltava a ligar uma semana depois ou enviava mensagem: tanto dizia que o assistente era “um merdas” como queria falar com o mesmo. Deixou de atender. Também tocava à companhia, insistindo nos toques e o filho do assistente a perguntar o que se passava até ter de desligar o intercomunicador. Acontecia e depois deixava de acontecer durante 3 ou 4 semanas, com outros números de telefone. Na sua profissão o assistente não fazia ideia de quem lhe ligava até descobrir que era a arguida a trata-lo mal: “eu mato-te se não és meu, não és de ninguém”. Passado um mês, outro número para conseguir chegar à fala com o assistente, ia usando outras formas de contacto nomeadamente através das redes sociais. Não podendo garantir se era ou não a arguida, nas redes sociais a abordá-lo. Esta perseguição foi desde 2017 até aos dias dos factos, foi constante. Lembra-se que a última vez que atendeu chamada da pessoa, ligaram-lhe de um número privado. Atendeu em setembro de 2018 quando estava com alunos a seu cargo, em ..., ao final da tarde tinha muitas chamadas não atendidas /perdidas da arguida. Bloqueava o numero quando se apercebia que era dela. A arguida criava outros heterónimos. Senti isso como forma de o atingir: sentia medo, incapacidade. Não conseguia perceber como é que alguém o tentava contactar. Tinha receio que a arguida aparecesse no seu trabalho. Tinha vergonha que ela estivesse no hall de entrada para o agredir para o provocar para que o mesmo a agredisse e destruir a sua vida. No seu trabalho estacionava diariamente, olhando sempre à volta para ver se ela estava ali, para o destruir.

Em 2018 chegou a ligar para o 112, dizendo que estava uma pessoa à porta de sua casa, a tentar bater-lhe no peito e arranhá-lo nos braços, foi no Verão, em junho. Veio para a porta do prédio no hall de entrada já fora e ela tentou dar-lhe pontapés. E ai adicionou o número da Policia. Nesse dia segurou a arguida e a PSP tomou conta da ocorrência. O assistente trabalha muito em casa sai para ir buscar o se filho ao liceu e a arguida estava muito por aquela zona. Estava apenas presente e mostrava-se: a saída da garagem tem rampa para a esplanada do café. Entendia que era para me atormentar; hoje entende isso como para o controlar nos seus horários.

Sentiu que algo de grave se estava a passar com a pessoa: “não vales nada”..

Descreveu o dia dos factos: 28-10-2021, quinta feira normal em que teria reuniões na escola superior de tecnologia no politécnico de .... Vinha para preparar o almoço para si e para o seu filho e tendo chegado antes do meio dia, no seu Mercedes classe A de cor cinzenta, entrou para rampa ativando o comando, o que dá tempo para entrar outro carro. Já tinha entrado com a arguida para a garagem e por isso a mesma sabia do lugar que lhe era destinado. Ao entrar na garagem não a viu. Há lugares alugados e é frequente ver pessoas a entrar pela lateral. Apercebeu-se de um vulto enquanto se deslocava para o lugar. Estacionou o carro, tirou a mochila, o telemóvel, as chaves de casa e dirigiu-se para o elevador para subir para casa. Tem zona ampla das garagens e depois tem porta de acesso a pequeno hall que dá acesso às escadas para subir. Fica na projeção da traseira do carro, a direito a 5 / 6 m a direito. Estava a entrar na porta de acesso ao elevador não se apercebeu de ninguém. Ai, á porta do hall, sentiu frio nas costas sem se aperceber naquele instante que era uma faca espetada, quando se virou viu a arguida com a faca na mão. Foi simplesmente apunhalado: afasta-se dizendo “o que acabaste de fazer”. Afasta-se dela e vai em direção ao portão da garagem. Na altura em termos físicos, estava sob efeito da adrenalina mas passado um bocado sentiu-se mal ao nível respiratório. Quando se apanhou com rede disse vou ligar para a policia e a arguida vem com faca atrás de si. Tentou segurar a mão e foi ai que fez um golpe no dedo e largou o telemóvel, com a dor. Conseguiu que a arguida deixasse cair a faca e voltar à chamada empurrou-a para poder chegar à faca mantendo-a na sua mão e com a outra estava a falar ao telefonema. Foi quando a viu chegar ao portão. Chegaram pessoas que vinham do barbeiro depois de ter gritado a pedir ajuda “esta senhora tentou matar-me”. Estava com sinais de sangue e batimentos cardíacos acelerados. Depois veio o funcionário da barbearia que lhe estancou o sangue (era socorrista). Viu as funcionárias do café que lhe vieram trazer água. Depois pediu a um senhor para mandar uma mensagem ao filho para lhe dizer que não o podia ir buscar.

Na altura em que agarra a mão se fere foi uma aproximação a dizer “eu mato-te” vinha rápido com a faca na mão. A arguida não chegou a investir contra si. O Sr DD que saiu da barbearia, agarrou-a viu-o a correr até chegar ao local onde estava o assistente, depois chegou a PSP. Depois foi levado pelos bombeiros até ao hospital, onde ficou internado 2, 3 dias. A faca de cozinha era grande.

A instâncias do Ministério Público, o assistente explicou as fotografias juntas aos autos: (cfr fls 130: portão da garagem; fls 133 vista para o portão que tem de se ativar; fls 130: vista da Pastelaria ... debaixo da arcada. Espaço de Esplanada fora, no passeio de acesso à esplanada do café. Mais à frente, situa-se o .... Dias antes via a arguida parada num pequeno largo (um pequeno espaço com calçada portuguesa). A última vez que a viu lá, relativamente ao dia dos factos terá sido, uma semana, máximo duas semanas. Foram várias as vezes que a viu junto à sua casa. Era aleatório o dia em que ela aparecia: era mais uma forma de o cercear. Os padrões eram as chamadas sempre à hora de jantar, os toques de campanhia também. Fls 151: croquis da garagem: vem da Rua m..., vira à direita para o portão de garagem (novo) – entre o nº1 e nº2 e depois sempre do 1 para cima fica mesmo por de trás do carro, em cerca de 4 m. Apercebe-se do vulto quando está perto do novo portão, esquece-se e depois só sente a facada. Fls 132: porta de acesso ao hall que fica a 4 m do local onde estaciona. Aí sente a facada. Não se apercebeu minimamente de onde vinha a arguida. Seria difícil ela vir do lado da parede para onde o assistente se dirigiu. Só sentiu faca a ser espetada. “o que é que acabaste de fazer, vou chamar a policia” recua a ligar à policia e a arguida vem na sua direção com a faca na mão e consegue segurar-lhe a mão e fica ferido no dedo. Afasta-se para ter rede, corta-se e a faca cai; de telemóvel na mão, pede ajuda às pessoas para o socorrer. Fica ferido entre o polegar e o indicador da mão esquerda.

Ouviu um senhor a dizer para arguida “não pense que vai fugir” e que vai atras dela para a puxar. A faca foi apreendida nesse dia (fls 141). Pessoas pegaram nela e embrulharam-na num pano, que o assistente reconheceu.

Fls 238 e ss: reconstituição: entra estaciona veiculo ..fls 248 aí olha para as pessoas.

As mensagens de telemóvel, recuperou algumas para juntar ao processo, todos os números que bloqueou, alguns números não conseguiu recuperar (Fls 165 e ss).

“Feliz dia das bruxas”: tentou demovê-la de o contatar, dizendo que estava a recolher provas (fls 167). Outras vezes a arguida apagava as mensagens. Fls 167: tentativas de contacto com outros números não identificados / desconhecidos (um número russo).

Fls 255: foi o senhor DD que pediu para tirar fotografias ao assistente como prova, porque não sabia o que podia acontecer.

Referiu por fim que a relação tida entre ambos, nunca foi de namoro nem para si, nem para ela. Sentimento de posse; a arguida sempre foi dizendo que “o matava”, chegaram a ser 20 chamadas de cada vez. A partir do momento em que bloqueou o seu número e que não aceitou falar mais com ela, a partir de fevereiro março de 2018 até ao dia dos factos, as coisas pioraram: ouvi-a ao mesmo tempo tocar na sua campainhia e nas dos outros vizinhos todos.

A policia municipal foi chamada uma vez pelos vizinhos (existe participação no processo) queria preservar o seu filho desta loucura. Veio cá abaixo por ver que era a policia municipal: “por favor esta pessoa quer me matar” (fls 32). Sentiu medo, receio: alterou todas as suas rotinas: ia para o trabalho por sítios diferentes, estacionava em sítios diferentes, combinava com o seu filho na escola, em sítios diferentes. Passou semanas com medo, atento, a não atender telefonemas, a esconder e a tentar esconder do seu filho, a mostrar que “estava tudo bem”. A viver com receio da próxima abordagem daquela pessoa. Passado um mês volta tudo à estaca zero. Vive num 1º andar. Conheceu a arguida num bar. Vivia nas redondezas. Não sabe se ela continuava a trabalhar. O comportamento da arguida era doentio. Num dos telefonemas disse que estava com depressão e que queria falar comigo. Num telefonema antes de ela ir a sua casa em junho de 2018 e que voltou, arranhou-o e disse que teve depressão e que “queria ficar em paz”. As vezes pensa que não consegue perceber como alguém chega a este extremo. A arguida queria é que o assistente ficasse com ela, só assim “ficaria em paz”.

Na véspera dos factos, abeirou-se do edifício, a hora tardia por volta das 23h30 /00h00 perto do período de descanso em casa, com o seu filho e viu-a.

Em que isto o afetou: mudou hábitos, rotinas, aquela pastelaria passou a ir lá muito raramente. As vezes que a viu deambular, esse comportamento era para o atormentar, hoje entende como para o controlar.

Em termos sociais, lúdicos ficou limitado: só há pouco tempo iniciou nova relação. Não podia no seu íntimo partilhar com o meu filho. Raramente ia ao ... por medo de a encontrar. Ficava muitas noites a seguir a esses comportamentos alterados, ficava com falta de paciência, menos disponível, mais desconfiado ao nível da abordagem das pessoas. Não tinha as mínimas condições. Tirando aquela mensagem de resposta, da sua parte nunca houve a tentativa de fazer nada mais. Tentou desaparecer.

Facada, adrenalina até que alguém conseguisse segurar a senhora. A partir dai tive muitas dores, pensou que ia morrer, não conseguia respirar, foi horrível.

Depois dos factos a sua vida mudou. Não conseguiu reatar os seus hábitos. Colegas e amigos asseguraram o que precisava de fazer em termos profissionais. Deixou de conduzir durante um mês, não tinha mobilidade na mão, dormência, ainda hoje sente.

Medo foi se intensificando já antes de 2018. Sentiu desde finais de 2017 medo progressivo, em que temia pela sua vida. Ver uma pessoa à porta da sua casa e o medo do seu filho abrir a porta enquanto que estivesse na varanda: “só de imaginar isso”.

Para si, foi a sensação de “tirar-lhe a vida aos bocadinhos” e naquele momento em concreto diz me que me quer tirar a vida depois e me ter espetado faca em concreto.

Comportamentos psicóticos: a arguida dizia “és meu” quando repetido muitas vezes, junto a outras afirmações e depois o oposto “eu não gosto de ti, só estou a aqui pelo prazer”. Para si é um comportamento psicótico, de perseguição “isto enquanto leigo” e que terminou com uma tentativa de o matar.

Este comportamento se foi ao longo da relação por causa desta ambiguidade, foi por aí e que fez com que deixasse o relacionamento e culminou com o agravamento da situação. Por fim referiu que não apresentou antes queixa por ter vergonha, para evitar a exposição social.


*


JJ, casado, agente principal PSP, em ..., intervenção neste processo: foi chamado ao local no dia em que o Senhor estava ferido e que foi para o Hospital. Encontrava-se a Senhora que supostamente lhe tinha feito os ferimentos. Já estava a ser abordada pelos colegas, algemada pelos mesmos. No local havia sangue, estava lá a faca usada na prática do ilícito. A camisa da vitima estava rasgada nas costas junto ao ombro. Havia vários sítios de sangue. Reportagem fotográfica fls 129 e ss: vestígios hemáticos coincidentes com o local e circunstância dos ferimentos do arguido. A arguida estava muito reservada e muito calada. A Unidade de Policia Técnica é que é chamada para estas questões. Chegou a ver faca de cozinha, cabo preto, com lâmina, de 20 e tal cm com ponta aguçada, fls 141. Estava lé e foi recolhida pelo colega KK. Chegou o INEM e a vitima foi conduzida ao Hospital.

LL, casado, docente do ensino superior, na mesma escola onde trabalha o assistente. Não teve conhecimento de nenhum relacionamento entre ambos, nunca os viu juntos, apenas sabia que tinham encontros. A ideia que tinha era que não era um relacionamento “sério”, tinham alguns encontros. O assistente nunca lhe disse que namorava com ela. Da informação que passava o relacionamento entre eles era de “natureza sexual”. Soube que terminou depois e aquilo que ele ia passando às vezes, era uma preocupação, não era constante o que acontecia quando ela o contactava, não era do dia a dia, era de tempos a tempos (intervalos de vários meses), quando se encontravam ás vezes para jantar e falavam sobre isso, pois ainda que se vissem diariamente no trabalho, o assistente não falava sobre isso. O assistente sentia-se incomodado pela situação, sentida vergonha de se expor. Admite que isto acontecesse com mais frequência. Eram telefonemas e o assistente chegou a dizer-lhe que bloqueou os telefonemas. Outras situações: tentar entrar no prédio, houve uma vez que foi agredido por ela, nos braços sinais de agressão (“arranhado”, mostrou-lhe). Só referiu o facto de tocar à campainha, o dia em que houve essa agressão. Mensagens ou telefonemas para ele, sim. Já não se lembra do teor da mensagem. Abatido, sim mas não conseguia associar a esta situação, era mais andar em baixo. No contexto profissional ele nunca falou nisso. Esporadicamente dizia sentir-se incomodado com as mensagens da arguida. Sabe o desfecho da situação, mas para si foi uma surpresa, o assistente nunca lhe disse temer essa situação. A situação arrastou-se por alguns anos, sim. Aquilo que ele “passava” não deixava antever que fosse tão grave. Sentia que havia medo por parte do BB. Receio era mais a vergonha, o medo que os vizinhos soubessem. Das vezes que esteve em casa do assistente, não se apercebeu da campainha. A conversa das mensagens era despoletada por desabafos do momento.

MM, solteira, ..., 55 anos, vizinha mora no segundo andar: as campainhas, tocaram várias vezes. Era o mês de falecimento da sua mãe, e foi traumático para si. Trabalha das 9h30 até as 21h durante 3 semanas, um mês de outubro de 2021. Foi 3 semanas antes, vários dias. Perguntava para onde ela ia, ela dizia que ia para o segundo, para o terceiro (“esqueci-me das chaves”). A testemunha estranhava, pois conhecia as pessoas, por ser ela a arrendar as casas, achou estranho. Começou a assustar-se, andou amedrontada e começou a pensar que a confundiram com alguém. Pelo intercomunicador a arguida tinha máscara. Como a sua mãe esteve acamada 20 anos, os toques perturbavam-na. Não esteve com a arguida de frente. Sei que tocavam algumas vezes, começou a preocupar-se pela insistência. A testemunha não abria a porta. Na véspera dos factos estava próximo do falecimento da minha mãe e achou que campainha tocou mais um pouco o que me incomodou mais um bocado. O seu namorado é policia municipal e ligou-lhe para ele vir ajudar e ele veio. Depois e que me apercebi que poderia haver ligação. Não falei com vizinhos depois sobre isto. E a primeira vez que vê a arguida, sem máscara e fisicamente. Foi sempre ao intercomunicador, era entre as 19 e as 21h: era a hora em que se encontrava em casa.

II, divorciado, 47 agente da policia municipal ..., vizinho do 2º andar do assistente. Companheiro da anterior testemunha. Mora lá vai fazer 2 anos, desde 2019. Conhece de vista o assistente. Estava de serviço e dirigiu-se á casa onde estava a senhora outra vez a tocar ás campainhas: a arguida disse-lhe que queria falar com uma pessoa foi aí que soube que era com o Sr BB. Foi em outubro do ano passado. Quando a testemunha estava em casa, ela dizia que queria ir para o segundo andar, que se tinha esquecido da chave. Nesse dia 27 fui lá de carro patrulha. Disse me que queria entrar para prédio e só soube quando o BB apareceu na parte de dentro do prédio a dizer que estava ligar para a policia. Fiquei a falar com a arguida e que já tinha tido um relacionamento com ele e que queria falar com ele. Ele foi para dentro, pedi-lhe identificação, que não a tinha que a tinha ao pé do continente, na avenida da ..., no antigo prédio da .... Um quarto de hora a pé. Costumava vê la através do intercomunicador de casa, fixando o seu rosto por causa das feições asiática.

- Fls 32: participação do dia 27 que elaborou.

Isto foi no mês de outubro; à volta da campainha não se lembra de mais nenhuma situação. Conseguiu ver que era a mesma pessoa do intercomunicador. O BB dirigiu-se sempre a mim, manifestando algum receio. Quando o viu a arguida ficou um bocadinho agitada. Quando lhe transmitiu que ia ligar para a policia disse que aquela senhora o estava a importunar. Recolheu-se quando lhe disse que tomava conta da ocorrência.

- CC, divorciada, ..., 39 anos, dona da Pastelaria .... Conhece de vista o BB, vai la poucas vezes, nunca foi “cliente de estar”. Conhece a arguida como cliente. Os factos ocorreram em outubro do ano passado. A arguida já ia la há uns tempos mas nunca foi assídua. Já ia lá há mais de 4 meses e ia lá uma ou duas vezes por mês. Maio junho agosto, uma ou duas vez por mês. Ficava do lado da frente. Antes ia “uma vez por acaso”. A vez que ficou mais tempo foi no dia em que “aconteceu isto”. Ia sempre sozinha. Foi na hora do almoço, ela almoçou. Lembra-se de ela ter entrado e ter pedido o almoço. Estava bastante gente cá fora, mas depois vagou mesa cá fora. Esteve 20 minutos pelos menos. Ela nesse dia fez pagamento e quando nos apercebemos ela já tinha desparecido. A funcionária disse “olha ela afinal está ali baixo” (tinha saído sem pagar) e colega viu-a cá em baixo nas garagens e advertiu-a que saiu sem pagar. Loja de “€ 1,00” existia ao pé da pastelaria. Existe também a loja do “...” à frente, nas imagens de vídeo vigilância dava para ver as movimentações da arguida. Foto da entrada da garagem.

Fls 220. Imagem de vídeo vigilância. A arguida, mais tarde levantou-se e sentou-se lá fora: a hora está certa. Fls 130: a arguida aparece encostada. Chegou a falar com a arguida junto às garagens. Fls 222: video vigilância. Explicou como as coisas decorreram na garagem: estava outro senhor a agarrar a arguida. Chamou o Inem a pedir auxílio. Papel para embrulhar a faca. Tinham mesas que ainda apanhavam a visão da rampa da frente da casa. Normalmente ela ficava sempre cá fora. Alteração em termos de comportamentos? Ela sempre foi muito calma. A arguida passado um bocado abandonou o local e foi logo para fora, sem pagar. Só demos conta quando já não estava lá. Vimos nas câmaras que ela se dirigiu para baixo.

Á frente do policia, a arguida disse que “amava” o assistente.

Mesa cá fora reduzidas, por causa do Covid e alugaram outra loja para ter mais esplanada para trás. De referir que o depoimento desta testemunha foi muito importante no sentido de explicar que a arguida teria sempre que passar pelo seu estabelecimento (pela camara de vídeo vigilância) para ir à loja do “euro” e que para chegar à loja do ..., o tempo que ela leva a aparecer de novo na imagem, não dava tempo. Entre o momento em que ela sai e o assistente chega pensa que foi menos que 5 minutos. A instâncias da defesa, o acesso alternativo pela rua ..., teria que entrar por dentro de um ginásio, por uma porta de acesso que não é publico.

DD, solteiro, desempregado, técnico de automóveis, 48 anos, estava junto ao café R..., a pé, ia ser atendido pelo barbeiro e ouviu chamar por socorro. Viu a faca. Quando vê o ofendido, já estava com a faca na mão e na outra estava a pingar sangue. Mando-o sentar no R... estava pálido. A arguida tentou diversas vezes chegar à faca, “ela queria apanha-la mais do que uma vez” e a testemunha deu um pontapé a faca depois de ela se aperceber que chamaram autoridades pediu para ir embora “largue-me que eu quero ir embora” enquanto que a testemunha a bloqueava. Depois tentou-se ir embora. A autoridade policial pensou que tinha sido a testemunha a agredir o assistente. A arguida só dizia “eu amo te BB, desculpa”, só dizia isso, fazendo tudo muito friamente. O assistente saiu desesperado com a faca na mão e a arguida atras dizia “se não és meu, não és de mais ninguém”, ouvindo dizer que o matava. O assistente esta assustado debilitado só pedia que se afastassem de si.

A testemunha NN, solteiro, agente da PSP, 29 anos,

Juntou aos autos a participação em que interveio, numa anterior ocasião, não se recordando de nada de muito em concreto.

Por fi, a inspetora da PJ OO, confirmou a versão do assistente, explicando os documentos de fls 238 a 250 dos autos, explicando a localização da loja do “euro” por referência à Pastelaria.

A testemunha da defesa PP comerciante na hotelaria e similares, reformado, 66 anos, conhece a arguida do tempo em que há uns anos, trabalhou num bar de que foi proprietário, “...”, ..., “aparecia esporadicamente”. Conhece-a há 15 anos, com sendo casada, o seu ex marido era mecânico, chegou a almoçar com eles. Ela nunca foi pessoa de arranjar confusões com ninguém. Não consegue entender como isto aconteceu. Degradação do seu estado mental, nos últimos tempos estava depressiva. Tinha-lhe falecido a mãe e a tendência era refugiar-se nos medicamentos, mas nunca a vi maltratar alguém: fechava-se. Conhece o ofendido não sabia do relacionamento deles. Conhece-o como boa pessoa.

Quando isto aconteceu, ela já lá não estava há 3 semanas e andava a tomar medicação para a depressão “por causa da mãe”. Nunca se referiu ao assistente. Eu não sabia quem era a pessoa, só o conheci no tribunal. Ela vive sozinha em quartos, com muitas dificuldades, provavelmente alguém a ajudava. No Bar do depoente, servia bebidas. Desde há 15 anos que trabalhava esporadicamente. Conhece o ofendido dos “bares” amigos de amigos, copos. Quando é que a arguida ficou mais deprimida, disse não ter a certeza mas acha que foi depois do falecimento da mãe: soube na altura porque ela já estava a entrar na fase de depressão. Não sabe se era acompanhada por algum médico.

Conheceu-a como sendo casada com o marido, não lhe conhecendo mais ninguém.

Não se recorda do ano em que a viu mais depressiva. Desde que a via estava completamente transtornada, depressiva. Isolou-se muito, apercebeu-se pessoalmente. Ela dizia que andava a tomar antidepressivos. Vivia com dificuldades, andava quase sempre com a mesma roupa. Ultimamente não estava em condições de trabalhar.


*


8. Feita esta transcrição da decisão sobre a matéria de facto que consta do acórdão da 1ª instância impugnado, vejamos então as questões colocadas pelo recorrente.

1ª Questão

Invoca o recorrente que há nulidade do acórdão, por falta de exame crítico apenas da prova pessoal, entendendo, em resumo que, nessa parte, o Coletivo não emitiu qualquer juízo valorativo sobre essa prova, limitando-se a fazer uma sumula, reproduzindo o que foi dito pela arguida, pelo assistente e testemunhas de acusação e de defesa, o que não satisfaz o dever de fundamentação exigido pelo art. 374.º, n.º 2, do CPP, ficando sem se saber em que depoimentos/declarações se baseou o tribunal a quo para dar como provada a factualidade que determinou a condenação da arguida, impondo-se, por isso, a revogação do acórdão e a sua substituição por outro da qual conste o exame crítico da prova de natureza pessoal produzida em sede de julgamento.

Pois bem.

Como sabido, quando procede à apreciação das provas, o julgador, neste caso o Coletivo, está sujeito a determinados limites que tem de respeitar, nomeadamente, decorrentes da vinculação temática e do funcionamento do princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), bem como das respetivas “exceções” ou limitações.

A ideia da livre apreciação da prova, «uma liberdade de acordo com um dever»[1], assenta nas regras da experiência[2] e na livre convicção do julgador.

Esse critério de apreciação da prova, implica que o julgador proceda a uma valoração racional, objetiva e crítica da prova produzida, valoração essa que, por isso, não se pode confundir com qualquer “arte de julgar”.

Com efeito, como tem vindo repetidamente a afirmar a nossa jurisprudência[3], a livre apreciação da prova não significa “apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova”, nem apreciação subjetiva do julgador, o que, aliás, está de acordo com a posição defendida, entre outros, por Jorge de Figueiredo Dias e por Germano Marques da Silva.

Este último Autor esclarece que a livre valoração da prova deve ser entendida como «valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão»[4].

Daí resulta, também, que a produção da prova, que deva servir para fundar a convicção do julgador, seja realizada na audiência (artigo 355º do CPP), «segundo os princípios naturais de um processo de estrutura acusatória: os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova»[5].

Esta valoração da prova, que vai ser obrigatoriamente expressa na fundamentação da sentença (artigos 374º, nº 2, CPP e 205º, nº 1, da CRP), é importante porque constitui «um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere). E, nessa medida, é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões»[6].

Do exposto decorre, por outro lado, uma «íntima conexão existente entre o princípio da livre apreciação da prova, o princípio da presunção de inocência, o dever de fundamentação das sentenças, o direito ao recurso, e o direito à tutela efectiva»[7].

A decisão sobre a matéria de facto é “o resultado de todas as operações intelectuais, integradoras de todas as provas oferecidas e que tenham merecido a confiança do Juiz”[8].

Dispõe o art. 374º, nº 2, do CP que, “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”

A nulidade a que se refere o art. 379º, nº 1, alínea a), do CPP, reporta-se a todas as menções referidas no nº 2 do art. 374º do mesmo código.

Ou seja, a sanção da nulidade da sentença ou acórdão reporta-se à decisão que não contenha a fundamentação a que se refere o art. 374º, nº 2, do CPP, a qual é composta pela enumeração dos factos provados e não provados, por uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão e pela indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Lendo a motivação da sentença sob recurso percebe-se que o Coletivo se baseou, de forma expressa, nos diferentes meios de prova (prova pericial, documental, declarações da arguida, do assistente e das testemunhas que indicou e particularizou), os quais apreciou no seu conjunto e de forma articulada, percebendo-se o raciocínio que foi feito.

Nessa avaliação conjunta, o tribunal a quo fez o exame crítico das provas que expressamente indicou na motivação, explicitando de forma objetiva as razões determinantes da sua convicção, ainda que não tenha sido modelar na análise que fez de toda a prova oral que indicou (optando por expor a versão de cada um dos intervenientes, percebendo-se a valoração que fez das declarações da arguida e do assistente, nomeadamente, quando se refere ao depoimento da testemunha inspetora da PJ QQ – que confirma a versão do assistente – e percebendo-se, pelo que descreveu, que os relatos que fez, articulados com a demais provas que indicou, foram os que o convenceram no sentido dos factos que deu como provados).

Podemos, assim, concluir, que a decisão impugnada contém a fundamentação e exame crítico das provas que foram produzidas em julgamento (tendo o Coletivo, ainda que de forma pouco modelar, particularizado os aspetos que considerou relevantes quer nas declarações e depoimentos que indicou e analisou, quer na prova documental e pericial que citou, que o convenceram), mas o que sucede é que o recorrente confunde a sua discordância quanto à forma como o Tribunal reproduziu o que arguida, assistente e testemunhas disseram sobre determinadas questões que foram expostas na motivação, com falta de fundamentação.

Como é evidente essa confusão feita pelo recorrente (ou até a busca do recorrente pela “perfeição” do acórdão) não permite concluir pela falta de fundamentação e de exame crítico das provas (que não podem ser vistas de forma parcelar, como o faz o recorrente, só do ponto de vista de algumas das provas pessoais sobre as quais o tribunal não manifestou um juízo valorativo expresso, embora, no global, esteja implícita essa valoração).

Lendo a referida fundamentação de facto (quer decisão proferida sobre a matéria de facto, quer a respetiva motivação) percebe-se que o Coletivo se baseou, de forma expressa, nos meios de prova que indicou e particularizou, os quais apreciou de forma articulada, objetiva, racional e lógica (não transparecendo qualquer arbitrariedade na apreciação da prova que foi feita).

Acrescente-se que, “a fundamentação não tem de obedecer a qualquer modelo único e uniforme, podendo (e devendo) variar de acordo com as circunstâncias de cada caso e as razões que neste determinaram a convicção do Tribunal.”[9]

Nem sequer a Constituição (art. 205.º) impõe qualquer “modelo único de fundamentação”.

Isso significa que, ao contrário do que alega o recorrente, a decisão mostra-se também fundamentada de facto, tendo sido feito o exame crítico das provas produzidas em julgamento, estando explicitada, de forma objetiva, a apreciação feita (percebendo-se o juízo decisório e quais as provas em que se baseou) e, a forma como fundamentou a sua convicção (ainda que não seja modelar), satisfaz a exigência que decorre do n.º 2 do artigo 374.º do CPP, razão pela qual não ocorre a invocada nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, alínea a), do mesmo código.

2ª Questão

Invoca o recorrente o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto prevista no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP (quanto à qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. j), do CPP, ainda que tenha sido imputado o crime de homicídio na forma tentada) e o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão prevista no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP (por haver oposição entre o ponto 20 dos factos provados e o que consta da motivação de facto).

Vejamos então.

Como sabido, tratando-se de recurso per saltum, visto o disposto nos arts. 432.º, n.º 1, al. c) e 434.º do CPP, este STJ pode conhecer dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP invocados pelo recorrente.

Ora, os vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP terão de resultar do texto da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[10].

Dispõe o art. 410.º, n.º 2, do CPP:

Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP) “supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. A insuficiência significa, por outro lado, que não seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto. Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objectivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objecto do processo, e não na perspectiva subjectiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.”[11]

Ora, lendo a decisão sobre a matéria de facto dada como provada não se pode concluir que haja insuficiência de factos.

Os factos ali descritos estão suficientemente caracterizados, permitindo, proferir uma decisão, designadamente a que foi proferida, como adiante melhor se verá.

Os diversos episódios ocorridos foram suficientemente relatados e concretizados nos factos dados como provados.

Ou seja, tais factos são suficientes para fundamentar a aplicação à arguida de uma pena, mesmo considerando os factos que foram dados como não provados.

Aliás, o que sucede neste caso é que o recorrente parece confundir o vício previsto no art. 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP com a invocação de eventual erro de direito (uma vez que, na sua perspetiva, os factos dados como provados, tal como a matéria que constava da acusação, não permitiam considerar verificada a circunstância qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. j), do CP).

Portanto, não ocorre qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provado, improcedendo, nessa parte, a argumentação do recorrente.

Relativamente à invocação do vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão prevista no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, sustenta o recorrente que existe oposição entre o ponto 20 dos factos provados e o que consta da motivação de facto a esse respeito.

No entanto, também nesse aspeto não lhe assiste razão.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP) “é somente aquela que é intrínseca ao próprio teor da sentença, “considerada como peça autónoma e não também as contradições eventualmente existentes entre a decisão e o que consta do processo, no inquérito ou na instrução”.

Porém, não se deteta qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, mesmo tendo em atenção a argumentação do recorrente, que é irrelevante para o caso concreto.

O que consta da fundamentação do acórdão, considerando as declarações da arguida e do assistente na totalidade, articuladas com as demais provas, não evidenciam que exista a contradição apontada.

Como bem diz o Sr. PGA (apoiando-se igualmente na argumentação do assistente), o certo é que “Do depoimento do assistente resulta que a arguida, com a faca na mão, lançou-se na sua direção anunciando que ia matá-lo e que ele feriu-se no dedo quando tentou defender-se agarrando-lhe a mão que empunhava a faca. À vista do animus com que a arguida atuou é possível que esta tencionasse atingir outra parte do corpo do assistente e que apenas acertou no polegar em razão da ação daquele. Mas as declarações do assistente também não excluem a conclusão alcançada pelo tribunal.  Seja como for, tal preciosismo é completamente irrelevante para a decisão condenatória, nomeadamente para a qualificação jurídica dos factos e para a determinação da pena.”

De resto, estando o tribunal a relatar o que o assistente teria dito em audiência, nos segmentos que considerou relevantes, mesmo que aquele tivesse entrado em contradição, tal não era impeditivo que desse como provado o que consta no ponto 20, uma vez que tal matéria resulta de toda a prova produzida em julgamento e do raciocínio feito pelo Coletivo de acordo com as regras da experiência comum e com as regras da lógica e do normal acontecer, tendo em atenção que todo o episódio aconteceu de forma dinâmica.

Aliás, do texto da decisão sob recurso, conjugado com as regras da experiência comum, não ressalta que outra pudesse ser a decisão sobre a matéria de facto (que nem sequer o recorrente indica).

O Acórdão sob recurso, sendo de evidente clareza, mostra coerência lógica entre factos provados e não provados e com a respetiva fundamentação de facto – motivação –, não patenteando qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta.

Na decisão sob recurso não há distorções de ordem lógica e tão pouco foi feita qualquer apreciação que seja ilógica, arbitrária, incongruente ou insustentável.

E, o que é decisivo é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência e não as apreciações subjetivas do recorrente, que se revelem inconsequentes.

Portanto, improcede toda a argumentação do recorrente ora em análise, relativa à decisão recorrida sobre a matéria de facto, sendo certo que não foram violados os princípios e preceitos legais por ele invocados.

Em conclusão: não se verificando qualquer dos vícios aludidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP e não havendo nulidades, arguidas ou mesmo de conhecimento oficioso, está definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto.

3ª Questão

Na perspetiva do recorrente, mesmo os factos dados como provados não preenchem a circunstância qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. j), do CP, pelo que o crime de homicídio tentado, pelo qual também foi condenada a arguida, deveria ser desqualificado.

Sobre a subsunção jurídico-penal, na parte que é impugnada pelo recorrente, consta do acórdão recorrido:

A arguida vem acusada da prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 132º /1 e 2 als b) e j) e 22 nºs1 e 2 alíneas a) e b), 23.º, n.º 2 e 73.º, 14º nº 1 e 26º todos do Código Penal, agravado pela arma.

Do crime de homicídio.

De acordo com o disposto no artigo 131º do Código Penal “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.

O crime de homicídio descrito neste preceito legal constitui o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida.

O bem jurídico protegido no crime de homicídio, é a vida humana, mais rigorosamente, a vida de pessoa já nascida e o correspondente direito à mesma.

O direito à vida funda-se na norma constitucional que consagra a sua inviolabilidade e proíbe a pena de morte (cfr. artigo 24ºnºs 1 e 2 da CRP).

Do ponto de vista objetivo, o tipo legal exige a verificação de um ato que seja causa da morte de uma pessoa, isto é, de pessoa diferente do agente, tratando-se, assim, de um crime de dano e de resultado.

O “causar morte” significa que tem de se estabelecer o indispensável nexo de imputação objetiva do resultado à conduta.

No tocante ao elemento subjetivo do tipo de ilícito, exige-se vontade de praticar o ato causal da morte e o conhecimento de que essa conduta causa a morte, tendo, assim, a conduta do agente de ser praticada a título de dolo, em qualquer das suas modalidades previstas no artigo 14º, do Código Penal: direto, necessário ou eventual

No caso vertente importa reter o que decorre do artigo 132º do Código Penal:

1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.

2. É susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

“(…)

b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau.

(…)

j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.”

Assim, no artigo 132º do Código Penal encontra-se previsto o crime de homicídio qualificado, sendo que para a verificação deste ilícito a lei exige uma maior culpabilidade do agente, isto é, a conduta tem de se rodear sempre de circunstâncias que demonstrem uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, que são as que se encontram exemplificadas neste normativo e não são de funcionamento automático.

Nesta matéria, como é sabido, o legislador, no artigo 132º do Código Penal, lançou mão da técnica dos exemplos-padrão, circunstâncias estas que dependem do caso concreto (neste sentido vide Figueiredo Dias, Direito Penal Português, pág. 203 a 205; Acs do S.T.J. de 13-02-1997, Proc. Nº 986/96 e de 18-02-1998, Proc. nº 1086/97). As circunstâncias enunciadas a título exemplificativo, são meros elementos constitutivos da culpa (do desvalor da atitude do agente), não funcionando automaticamente, implicando, por essa via, um exame global dos factos de modo a chegar ou não à conclusão da existência de especial censurabilidade ou perversidade (cfr por todos o Ac do S.T.J. de 03-06-1998, Proc. nº 301/98 in www.dgsi.pt e de 07-12-1999 in CJ, T 3, pág. 234).

Para que estejamos perante um ilícito de homicídio qualificado é essencial que as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade pela sua anormal gravidade (cfr. Margarida Silva Pereira, in "Os Homicídios" pág. 40).

Assim, ocorrendo alguma das circunstâncias exemplificativamente elencadas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal (ou outras situações valorativamente análogas às expressamente previstas), tem-se por indiciado, concretizado aquele tipo de culpa agravado.

No caso presente, arredada a hipótese de relação de namoro, uma das circunstâncias enunciadas no nº 2 do artigo 132º do Código Penal que ora interessa, diz respeito ao facto de ser especialmente censurada a atuação do agente quando determinada pela frieza de ânimo (al j).

A arguida vinha acusada por agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas (artigo 132º n.º 2 alínea j) do Código Penal)

Atua com frieza de ânimo quem forma a sua vontade de matar outrem de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução.

Trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.

Com a previsão simultânea dos três tipos de circunstâncias referidas na al. j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, o legislador português pretendeu afinal englobar uma realidade unitária, suscetível de possibilitar por si mesma um maior juízo de censura jurídico-penal sobre o agente; é a particular intensidade da vontade criminosa daquele que age com reflexão ou domínio de si, e não sob emoções ou impulsos de momento, e que desse modo pode manifestar uma personalidade marcadamente mais desviada dos padrões supostos pela ordem jurídica.

Na situação dos autos, da matéria de facto dada como provada, dúvidas não restam que se vislumbra como objetivamente preenchida as circunstâncias da alínea j) do n.º 2 do artigo 132º uma vez que a motivação da arguida está patenteada nos factos dados como provados que revelam a frieza de animo, em que a arguida atua dominada por emoções e impulsos de momento. A arguida esperou na Pastelaria pela chegada do assistente, perseguindo-o até ao interior da garagem para onde se infiltrou. Durante o tempo em que esperou e controlou a sua chegada, comeu algo. Visava, com a sua atuação, atingir o assistente com a faca que empunhava, atingindo-o numa zona corporal que sabia ser vital para a pessoa humana e em todos os momentos, agiu sempre de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

Atua com frieza de ânimo quem forma a sua vontade de matar outrem de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na execução e persistente na resolução.

Trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.

Na situação dos autos, da matéria de facto dada como provada, dúvidas não restam que se vislumbra como objetivamente preenchida as circunstâncias da alínea j) do n.º 2 do artigo 132º uma vez que o comportamento da arguida foi deliberado, reflexivo, frio e persistente, não tendo agido, por exemplo, dominada por emoções e impulsos de momento. A reflexão sobre o meio empregue, tudo a revelar que foi vontade formada e consolidada (na jurisprudência, cfr neste sentido Ac STJ de 05-07-2017 proc nº 1074/16.8JAPRT.P1).

A circunstância de a arguida ter apunhalado a vítima pela forma descrita leva-nos a concluir que esta, á distância a que se colocou do assistente e com o instrumento de natureza corto perfurante usado, sabia que estava a atingir uma zona vital que o deixou a sangrar, o que a arguida quis, só não tendo sobrevindo uma circunstância letal, devido à rápida intervenção dos socorros.

Aqui chegados, como é sabido, havendo tentativa do cometimento do homicídio esta será sempre punível por força do disposto no art.º 23º, n.º1 do Código Penal.

Nos termos do art.º 22º, nº 1, do Código Penal, há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.

São atos de execução: a) os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) os que forem idóneos a produzirem o resultado típico; c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicados nas alíneas anteriores.

No caso vertente, olhando a factualidade provada acima transcrita conclui-se pelo preenchimento do tipo legal imputado à arguida, na sua forma tentada.

Percebemos que o animus de atuação da arguida, relativamente à possibilidade de causação do resultado morte previsto no tipo, que previu e mereceu da sua parte um juízo de conformação, deverá ser entendida nos quadros do dolo direto (art. 14º C.P.).

E, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, temos que a arguida praticou um crime de homicídio qualificado na forma tentada de que vinha acusada (al j) do nº2) pelo qual terá de ser condenada.


*


Da agravação pelo uso da arma no momento da prática do crime

O artigo 86º n.º 3 a n.º 5 da Lei n.º 5/2006, de 23/02, dispõe o seguinte:

“3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravados de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou o uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma;

4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente;

5 - Em caso algum pode ser excedido o limite máximo de 25 anos da pena de prisão.”

O uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo legal fundamental é o previsto no artigo 131º do Código Penal.

A agravação do nº 3 do artigo 86º, encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma. Para haver agravação, basta o uso de arma no cometimento do crime.

O nº 3 do artigo 86º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respetivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada.

O uso de arma não é elemento do crime de homicídio, como acima se expôs, e, no caso, não levou ao preenchimento do tipo qualificado do artigo 132º, pelo que o crime de homicídio qualificado praticado pela arguida deverá ser agravado, nos termos previstos no artigo 86º n.º 3, 4 e 5 da Lei n.º 5/2006, de 23/02.

Nesse sentido, vide, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30/10/2013 e de 31/03/2011.

(…)

Vejamos então.

Dispõe o Artigo 132.º (homicídio qualificado)

1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

            (…)

j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;

De forma resumida, seguindo o ensinamento de Jorge de Figueiredo Dias[12], dir-se-á que “O CP de 1982 reuniu sob o conceito de premeditação alguns dos entendimentos que diferentes ordenamentos lhe conferiam” e, por isso, passou a englobar a “frieza de ânimo”, “a reflexão sobre os meios empregados” e a “persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas” neste exemplo padrão.

E, em síntese, como também explicam Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette[13], “Há frieza de ânimo quando ocorre «uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar» (BMJ, 358/260), ao nível específico da execução a frio: frigido pacatoque animo. A reflexão, que precede ou acompanha a execução, indicia, doutra banda, «uma acrescida perigosidade» (FIGUEIREDO DIAS, ibidem, 39) e traduz maior intensidade do dolo. O decurso do tempo, com «persistência na intenção de matar» é, de sua natureza, revelador de intensa vontade criminosa. De resto, como em todos os casos, e agora muito particularmente, cabe sempre um cuidadoso exame no concreto, para que, v.g., se não tome a resistência à ideia do crime ou o sobrestar antes de começar como exasperação da culpa.”

Feitas estas breves considerações teóricas sobre a acima indicada circunstância qualificativa do crime de homicídio, acrescente-se que é a partir dos factos dados como provados, que se procede ao enquadramento jurídico-penal e se verifica se há ou não o invocado erro de direito.

As ilações e conclusões que a recorrente extrai, quando apenas considera parte dos factos provados, também são demasiado subjetivas e pessoais para poderem ser atendidas.

Analisando os factos dados como provados e as ilações que deles se podem retirar em termos objetivos, é bom de ver que os mesmos não permitem o preenchimento desta qualificativa, em qualquer das suas vertentes.

Com efeito, os factos apurados não apontam que a arguida tivesse agido com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios (faca) que utilizou para tentar matar o assistente, nem tão pouco deles se pode retirar que tivesse persistido na intenção de matar o assistente por mais de 24 horas.

O que sucede antes é que a matéria de facto dado como provada, como adiante melhor se explicará, é adequada a preencher a previsão da alínea i), como em seguida se verá.

Ou seja, não há quaisquer dúvidas que os factos apurados não permitem o preenchimento do exemplo padrão previsto no art. 132.º, n.º 2, al. j) do Código Penal, pelo que nessa parte é manifesto que procede a argumentação do recorrente.

No entanto, como já se adiantou, os factos apurados, como se irá explicar, são adequados a preencher antes a previsão da alínea i), do n.º 2, do art. 132.º, do CP, na forma tentada.

Assim.

Dispõe o Artigo 132.º (homicídio qualificado)

1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;

Como salienta Jorge de Figueiredo Dias[14], ainda que a propósito da utilização do veneno, que “deve ser posta no mesmo nível da de qualquer outro meio insidioso (assim também MAIA GONÇALVES art. 132.º 5 f II), derivando a possibilidade de qualificação da circunstância de os meios utilizados tornarem especialmente “difícil a defesa da vítima ou arrastarem consigo o perigo de lesão de uma série indeterminada de bens jurídicos” (FERNANDA PALMA, cit. 65). O que serve também para dar a compreender que “insidioso” será todo o meio em cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno – do ponto de vista pois do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto.”

Aliás, Paulo Pinto de Albuquerque[15] realça que o “uso de veneno ou outro meio insidioso (…) revela a atitude do agente que age dissimuladamente ou traiçoeiramente, sem permitir à vítima uma possibilidade razoável de defesa.”

E, precisamente essa atuação de surpresa, à traição, de forma enganadora, aproveitando a situação da vítima que está em situação de impossibilidade de reagir, de se defender, porque é apanhada de surpresa ou até nem tem possibilidade de esboçar qualquer gesto de defesa é que caracteriza a utilização dos meios insidiosos, como tem vindo a ser realçado igualmente pela jurisprudência, nomeadamente, entre outros, nos acórdãos de 15.04.2021, no processo 82/19.1PBSTR.E1.S1 [Relatora – Margarida Blasco], de 19.12.2019, no processo 111/12.0PTLRS.L1.S1 [Relatora – Margarida Blasco], de 20.05.2020, no processo 17.0GBMFR.S1 [Relatora – Conceição Gomes], de 24.09.2014, no processo 994/12.3PBAMD.L1.S1 [Relator – Raul Borges], de 12.06.2003, no processo 03P1671 [Relator – Carmona da Mota], de 12.1.2022, no processo 4183/19.8JAPRT.S1 [Relatora – Conceição Gomes], de 15.01.2019, no processo 4123/16.6JAPRT.G1.S1 [Relator – Lopes da Mota] e de 10.11.2022, no processo 324/21.3JAVRL.G1.S1 [Relatora – Maria do Carmo Silva Dias] e ac. do TC nº 20/2019, no Processo 776/16 [Relator – Lino Rodrigues Ribeiro].

Ora, analisando os factos dados como provados e as ilações que deles se podem retirar em termos objetivos é bom de ver que se tem de atender ao contexto em que tudo se passou e, independentemente de a arguida, também ter sido condenada pelo crime de perseguição, a verdade é que não se pode esquecer, que a arguida pelo menos desde inícios de Setembro de 2021 passou a exercer uma vigilância constante sobre os movimentos do assistente, nos moldes indicados no ponto 11.º dado como provado, o que lhe facilitou executar o seu plano em 28.10.2021 de tirar a vida ao assistente, morte que apenas não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade da arguida.

E, precisamente por conhecer previamente os movimentos do assistente que, quando executou o seu plano de matar o assistente em 28.10.2021, fez-lhe a espera, sentando-se, pelas 11h30, na esplanada da Pastelaria ..., que tinha visibilidade para a casa do assistente, fazendo um pedido, levando consigo a arma do crime (a faca identificada no ponto15 dos factos provados, com lâmina em inox, pontiaguda, com 13,5cm de comprimento, que havia comprado quando formulou o propósito de tirar a vida ao assistente – cf. ponto 14 provado) e quando aquele ali chegou por volta das 12h10, entrando com o seu veículo na garagem, a arguida aproveitou para entrar furtivamente na mesma garagem e, estando ele a dirigir-se para o elevador, sem ser por ele vista, vinda de trás, atacou-o pelas costas, dando-lhe uma facada com força nas costas, na região dorsal esquerda, com intenção de lhe tirar a vida, começando ele a sangrar (ou seja, agiu de forma traiçoeira e de surpresa, para o assistente não poder reagir, como não reagiu, num momento em que estava indefeso, quando foi vítima dessa primeira facada) – cf. particularmente pontos 14 a 18 provados.

E, mesmo depois do assistente no circunstancialismo descrito no ponto 19 provado se ter afastado para ligar à polícia como lhe disse, a arguida manteve o propósito de lhe tirar a vida e foi no seu alcance, voltando a investir sobre ele com a faca que mantinha empunhada, vociferando “eu mato-te”, tendo o assistente reagido, tentando agarrar com a sua mão esquerda a mão direita da arguida, momento em que esta desferiu um golpe na mão esquerda do assistente com a faca, que o atingiu no dedo polegar, que começou a sangrar (ver ponto 20 provado), sendo só depois do assistente, apesar de ferido, ter procurado agarrar a arguida, a faca e ter pedido auxílio, nos moldes descritos nos pontos 21.º e 22.º, é que a mesma arguida com o auxílio de terceiros foi detida.

A arguida agiu dolosamente, com intenção de matar o assistente, bem sabendo que com toda a sua atuação, atento o instrumento que utilizava para a agressão e zona – região dorsal esquerda – que visou atingir, que continha no seu interior diversos órgãos vitais, desde logo o coração e pulmões e vasos sanguíneos de grande calibre, a morte só não aconteceu por circunstâncias alheias à sua vontade.

Ora, este modo de atuação da arguida para matar a vítima, ocorrido em 28.10.2021, que aqui descrevemos de forma resumida, e cuja morte apenas não aconteceu por circunstâncias alheias à sua vontade, aconteceu com recurso a “meio insidioso”, na medida em que, como resulta do exposto, a arguida atuou de surpresa, de forma dissimulada, ao engano/traição, sendo certo que já todo o parco relacionamento com a vítima tinha acabado em 2017.

A atuação da arguida em 28.10.2021, atacando o assistente por trás, não tendo aquele oportunidade para reagir ou opor-se (para se defender), assim tirando vantagem dessa situação de vulnerabilidade da vítima, tentando matá-lo com a facada que lhe deu nas costas, numa zona vital, mostram bem a forma dissimulada, traiçoeira, enganadora, como atuou.

Esta forma de atuar da arguida para matar a vítima revela, sem dúvida, a utilização de “meio insidioso” e mostra, também, considerando todo o demais circunstancialismo apurado em que o crime foi cometido, uma especial censurabilidade, evidenciada pela sua atitude de total desprezo pela vida humana, tal como igualmente decorre da forma como tudo se passou e resultou provado (sendo acentuado o desvalor da sua conduta).

Podemos, pois, concluir, que se mostra preenchida a circunstância qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. i), do Código Penal.

Apesar de estamos perante uma alteração da qualificação jurídico-penal, não há que cumprir o art. 424.º, n.º 3, do CPP[16], por ser inaplicável, uma vez que a alteração da qualificação jurídica é conhecida da arguida, como se vê pela resposta ao parecer do Sr. PGA, quando aderiu ao recurso do Ministério Público, que já se tinha pronunciado sobre esta circunstância qualificativa, embora afastando a sua verificação.

Em suma: ainda que por motivos diversos dos invocados pelo recorrente, altera-se a qualificação jurídico-penal do crime de homicídio qualificado tentado cometido pela arguida, por existir erro de direito e, uma vez que se mostra preenchida a circunstância qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. i), do Código Penal, tal significa que, nessa parte, a arguida se constituiu autora material de um crime de homicídio qualificado tentado p. e p. nos arts. 22.º, n.º1 e n.º 2, al. b), 23.º, n.º 2, 73.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. i), do Código Penal.


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Apesar da alteração da qualificação jurídico-penal, não se justifica alterar a medida da pena concreta aplicada pela 1ª instância quanto ao crime de homicídio qualificado tentado p. e p. nos arts. 22.º, n.º1 e n.º 2, al. b), 23.º, n.º 2, 73.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. i), do Código Penal, cometido pela arguida.

Consta nessa parte da decisão recorrida:

Da Escolha e Medida Concreta da Pena

Ao crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e) do Código Penal é aplicável prisão compreendida entre 12 anos e 25 anos.

Ao crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e) do Código Penal, agravado pelo uso da arma no momento da prática do crime nos termos do artigo 86º n.º 3, 4 e 5 da Lei n.º 5/2006, de 23/02 é aplicável prisão compreendida entre 16 anos e 25 anos (cfr art 41º, nº3, do C.Penal).

Ao crime de homicídio qualificado, agravado e na forma tentada, p. e p. arts.º 22.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 23.º, nº 2, 73º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e) do Código Penal e art 86º, nº3, 4 e 5, da citada Lei, é aplicável prisão compreendida entre 3 anos, 2 meses e 12 dias e 16 anos e 8 meses.

Não se coloca, pois, a questão de escolha da pena, pois o ilícito em apreço é apenas punível com pena de prisão.

Ao crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86.º, n.º 1, alínea d), com referência ao art.º 2.º, n.º 1, alínea m), e art.º 3.º, n.º 2, alínea ab), todos da Lei 5/2006 de 23/02, é aplicável prisão até 4 anos (mínimo 1 mês) ou multa até 480 dias (mínimo 10 dias).

Ao crime de perseguição, previsto e punido pelo art.º 154.º-A, n.º 1, do Código Penal, é aplicável prisão até 3 anos (mínimo 1 mês) ou multa (mínimo 10 a 360 dias).

Tendo presente o comando do artigo 70.º do C. Penal “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa ou pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".

Às finalidades da punição refere-se o artigo 40.º, n.º 1 do C. Penal, que estatui "A aplicação das penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade".

No caso presente pese embora a arguida não tenha antecedentes criminais, no contexto em que os crimes dos presentes autos ocorreram, importa prevenir o cometimento de novos crimes. Na verdade, por razões de prevenção geral e especial, opta-se neste caso concreto, pela aplicação da pena de prisão em detrimento da pena de multa, quanto a todos os crimes perpetrados pela arguida.

Quanto à medida concreta da pena, tomar-se-á em conta o princípio geral contido no n.º 1 do art. 71º C.Penal: a análise da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Sabemos que na aplicação de penas a defesa da ordem jurídico-penal é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstrata, entre um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias na validade da norma violada e um máximo consentido pela culpa do agente.

A culpa funciona como fundamento e, sobretudo, como limite de pena a não ultrapassar em caso algum (n.º 2 do art. 40º C.P.); as exigências de prevenção geral – de integração (as expectativas comunitárias na validade e vigência das normas violadas) – e especial – de ressocialização – farão, pois, com que se encontre o quantum concreto de pena a aplicar.

Relativamente ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, agravado pelo uso da arma branca e ao crime de detenção da referida arma, face à factualidade apurada entendemos que a gravidade dos factos praticados pela arguida é inequívoca, mormente se considerarmos a frieza e a facilidade com que a mesma se muniu de uma faca que adquiriu para o efeito e se infiltra na garagem da vitima para a apunhalar pelas costas: a inusitada violência inerente a tal conduta contrasta com a leveza da explicação que adianta para o seu ato, escudando-se no facto de ter atuado movida pela depressão causada pelo facto de o assistente a ter deixado sem lhe dar uma qualquer explicação. O dolo assumiu a forma direta, pois que atuou a arguida de modo consciente, determinada e orientada por uma vontade de preenchimento dos tipos de ilícito em questão.

A facilidade com que a arguida se socorre dessa faca, alegadamente para resolver um assunto que pretende esclarecer com o assistente, há mais de 4 anos, o que denota problemas de personalidade a exigir a intervenção penal.

As consequências decorrentes da sua conduta são significativas, tendo em a perfuração da pleura, com derrame pleural dos quais decorreu em concreto perigo de vida do assistente.

As necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso são prementes, tendo em conta a insegurança e a necessidade de proteção da tranquilidade publica.

No tocante à prevenção especial, importa assegurar a ressocialização da arguida por forma a evitar a prática de novos crimes, no futuro face à personalidade revelada, nomeadamente atenta a atitude de vitimização (“perdi o amor da minha vida”, “deixou-me deprimida” etc) que continua a assumir.

As circunstâncias acima enumeradas aplicam-se com as devidas adaptações ao crime de perseguição cometido através de diversos atos perpetrados ao longo de vários anos.

De salientar por fim a sua ausência de integração familiar e social, sendo de salientar que o seu marido de quem se separou de facto e única pessoa com quem mantém contacto se encontra também ele a cumprir pena de prisão, presentemente.

Relativamente à prevenção geral - defesa de ordem jurídica, necessidade da pena - há que ter em conta a gravidade dos efeitos deste tipo de crime, bem como o próprio sentimento de insegurança que gera na sociedade.

O tribunal, mantem assim a preferência pela aplicação de pena de prisão, relativamente a todos os crimes, considerando as condições pessoais da arguida e o seu comportamento anterior e posterior aos factos, no contexto do ilícito global perpetrado.

Tomando em consideração todos os aspetos mencionados, entende o Tribunal justa e adequada a aplicação de:

- pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, agravado pelo uso da arma, p. e p. arts.º 22.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 23.º, nº 2, 73º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e) do Código Penal e art 86º, nº3, 4 e 5, da citada Lei n.º 5/2006, de 23/0, uma pena de 6 anos e 9 meses de prisão;

(…)

Com efeito, a moldura penal abstrata desse crime é a mesma e as circunstâncias agravantes e atenuantes avaliadas, que justificaram a aplicação da pena individual de 6 anos e 9 meses de prisão, mostram-se ajustadas, adequadas e proporcionadas, face às circunstâncias do caso concreto, nada mais havendo a acrescentar nessa matéria, apesar da alteração da qualificação jurídico-penal efetuada.

Em conclusão: com ressalva da apontada alteração da qualificação jurídica relativa ao crime de homicídio qualificado tentado cometido pela arguida, no mais improcede o recurso do Ministério Público, sendo certo que nessa parte julgada improcedente não foram violados os princípios e preceitos legais por ele citados.


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III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

-  conceder parcial provimento ao recurso do Ministério Público, ainda que por motivo diverso e, em consequência, alterar a qualificação jurídico-penal do crime de homicídio qualificado tentado cometido pela arguida, por existir erro de direito e, nessa parte, condenar a arguida como autora material de um crime de homicídio qualificado tentado p. e p. nos arts. 22.º, n.º1 e n.º 2, al. b), 23.º, n.º 2, 73.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. i), do Código Penal, mantendo a pena de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de prisão;

- no mais, manter o decidido no acórdão da 1ª instância e, por isso, negar no mais provimento ao recurso do Ministério Público.

- sem custas por delas estar isento o recorrente.


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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 21.06.2023


Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Pedro Branquinho Dias (Juiz Conselheiro Adjunto)

Teresa Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

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[1] Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal (lições coligidas por Maria João Antunes), Coimbra: Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-89, p. 139, refere que «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo» (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos)».
[2] Regra de experiência que, como diz Paolo Tonini, A prova no processo penal italiano (trad. de Alexandra Martins e Daniela Mróz, de La prova penale, 4ª ed., publicado em Pádua, pela Cedam – Casa Editrice Dott. António Milani, em 2000 e posterior actualização de Setembro de 2001), São Paulo, Brasil: Editora Revista dos Tribunais LTDA, 2002, pp. 55 e 56, “expressa aquilo que acontece na maioria dos casos”, sendo “extraída de casos similares”, gerando “um juízo de probabilidade”, de um “idêntico comportamento humano”, devendo o juiz formular “um raciocínio de tipo indutivo” e sucessivamente “um raciocínio dedutivo”.
[3] Entre outros, Acórdãos do TC nº 1165/96, de 19/11/1996, BMJ nº 461/93ss., nº 102/99 de 10/2/1999, BMJ nº 484/119 ss., e do STJ de 25/2/1999, BMJ nº 484/288ss., de 6/4/2000, BMJ nº 496/169ss, de 15/6/2000, BMJ nº 498/148 ss., de 17/2/2005 (relator Rodrigues da Costa), proferido no processo nº 4300/2004, de 17/2/2005 (relator Simas Santos), proferido no processo nº 58/2005, de 17/2/2005 (relator Pereira Madeira), proferido no processo nº 222/2005 e de 12/7/2005 (relator Simas Santos), proferido no processo nº 169/99.5TBMDL, 1º Juízo do Tribunal de Mirandela.
[4] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa: Verbo, 1993, p. 111.
[5] José Damião da Cunha, «O regime processual da leitura de declarações na audiência de julgamento (arts. 356 e 357 CPP)», RPCC ano 7º, fasc. 3º (Julho-Setembro de 1997), 403.
[6] Assim, Ac. do TC nº 281/2005, DR II Série de 6/7/2005, p. 9844. Acrescenta-se, no mesmo acórdão, que «a fundamentação das sentenças penais – especialmente das sentenças condenatórias, pela repercussão que podem ter na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas – deve ser susceptível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da sua livre apreciação pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à decisão concretamente proferida. Afigura-se ser este o núcleo central da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais».
[7] Paulo Saragoça da Matta, «A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença», in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. de Fernanda Palma, Coimbra: Almedina, Junho 2004, p. 251.
[8] Assim, Ac. do STJ de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, relatado por Afonso Correia (consultado no mesmo site), chamando à atenção para o que se escreveu em Ac. de 8/2/99, em recurso de apelação do proc. nº 1/99 do Tribunal de Círculo de Chaves.
[9] Assim, Ac. do TC nº 27/2007, DR II Série de 23/2/2007.
[10] Cf., entre outros, Ac. do STJ de 19/12/1990, BMJ nº 402/232ss.
[11] Assim, entre outros, Ac. do STJ de 13/7/2005 (consultado no site do ITIJ).
[12] AAVV, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, anotação ao artigo 132.º de Jorge de Figueiredo Dias, p. 39.
[13] Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, Sociedade Editora, Lda, Lisboa, 2008, p. 346.
[14] Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 38 e 39.
[15] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, pp. 352 e 353.
[16] No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, p. 1164.