Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:069/21.4BALSB
Data do Acordão:06/02/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS
DIREITO À GREVE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
DIREITO FUNDAMENTAL
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Sumário:I - O procedimento para a determinação dos serviços mínimos (no qual se inclui o princípio da iniciativa dos trabalhadores) consubstancia uma concretização legal do disposto no n.º 3 do artigo 57.º da CRP, razão pela qual só se poderá admitir a desprocedimentalização da determinação dos serviços mínimos se se provar especial urgência ou impossibilidade de cumprimento daquele procedimento, no caso, do regime previsto no artigo 398.º da LGTFP.
II - Viola o princípio da proporcionalidade a adopção de uma requisição civil sem prévio recurso à negociação com os trabalhadores e sem alegar e provar a impossibilidade dessa negociação prévia.
III - A requisição civil para assegurar “o regular funcionamento dos postos de fronteira”, determinada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021 e efectivada pela Portaria n.º 116/2021, viola o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP (princípio da proporcionalidade), na medida em que se consubstancia numa restrição ao direito à greve que não respeita o (vai além do) necessário para a salvaguarda dos outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
IV - Ao não explicitar o número de trabalhadores necessários para assegurar o cumprimento das necessidades impreteríveis, ou seja, aqueles que considera indispensáveis para assegurar os serviços mínimos, mas antes autorizar a Direcção do SEF a requisitar todos os funcionários que se mostrem necessários para “assegurar o regular funcionamento dos postos de fronteira”, a medida adoptada pelo Governo aniquila por completo o direito à greve, atingindo o seu núcleo essencial, razão pela qual viola também o n.º 3 do artigo 18.º da CRP.
Nº Convencional:JSTA000P27802
Nº do Documento:SA120210602069/21
Data de Entrada:05/28/2021
Recorrente:SIIFF – SINDICATO DOS INSPECTORES DE INVESTIGAÇÃO, FISCALIZAÇÃO E FRONTEIRAS
Recorrido 1:CONSELHO DE MINISTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:



I – Relatório

1 – O SIIF – Sindicato dos Inspectores de Investigação, Fiscalização e Fronteiras [SIIF], com os sinais dos autos, intentou neste Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, al. iii), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais («ETAF»), e dos artigos 109.º e ss. do Código de Processo nos Tribunais Administrativos («CPTA»), intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, contra o Conselho de Ministros, pedindo a condenação da Entidade Requerida a: i) não executar a Resolução do Conselho de Ministros de 27.05.2021, que procede ao reconhecimento da necessidade de requisição civil dos trabalhadores da área da investigação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF); ii) reconhecer a desnecessidade de requisição civil desde que cumpridos os serviços mínimos estabelecidos, não autorizando todos os seus membros e em particular o Ministro da Administração Interna a efectivar a requisição civil por portaria; iii) condenar o Requerido a abster-se de praticar quaisquer actos que afectem o direito à greve do Requerente e dos seus Associados, desde que cumpridos os serviços mínimos decretados e acordados tudo com as devidas e legais consequências.

2 – O Conselho de Ministros, citado, veio apresentar a sua defesa por impugnação, alegando, no essencial, que a requisição civil foi o meio encontrado para, no âmbito do contexto especialmente grave decorrente da situação pandémica, ultrapassar a “desadequação superveniente” do teor do acordo alcançado com o Requerente em matéria de fixação de serviços mínimos face ao aumento exponencial dos passageiros aéreos.

3 – No dia 30 de Maio de 2021, foi publicada no Diário da República a Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021, que procede ao reconhecimento da necessidade da requisição civil de trabalhadores da carreira de investigação e fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fonteiras que exercem funções em postos de fronteira, e a Portaria n.º 116/2021, de 30 de Maio, que efectiva a requisição civil cuja necessidade foi reconhecida pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021, de 27 de Maio.

Cumpridas todas as diligências deste processo urgente, cumpre decidir.



II - Fundamentação

II.1. De facto

Resultam provados nos autos, com relevância para a questão em litígio, os seguintes factos:

1. Por ofício datado de 16.05.2021, o Requerente comunicou ao Senhor Ministro da Administração Interna, ao Senhor Ministro das Finanças, ao Senhor Diretor Nacional do SEF e ao Senhor Diretor da Direção Regional da Madeira, que:

«nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 394º, 395º e 396º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei nº35/2014, de 20 de Junho e artigos 530º a 539º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras - CIF/SEF, que se encontram colocados/prestam serviço na Direção Regional da Madeira irão exercer o direito à greve das 09h00 às 12h00, nas seguintes datas:

31 de maio, 07, 14, 21 e 28 de junho de 2021

Para os efeitos previstos no art.º 397º da LGTFP, e de acordo com a decisão exarada no Acórdão 3/2021/DRCT – ASM, de 04/05/2021, relativamente à definição dos serviços mínimos para garantir a realização de todos os atos estritamente indispensáveis à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, na última greve decretada por sindicato afeto aos funcionários da CIF/SEF, propõe-se a nomeação do seguinte efetivo:

PF004 - Aeroporto Cristiano Ronaldo – 02 Inspetores;

Restantes Postos de Fronteira – 01 Inspetor independentemente da categoria»

[Doc. n.º 2, junto aos autos]

2. Por ofício datado de 17.05.2021, o Requerente comunicou ao Senhor Ministro da Administração Interna, ao Senhor Ministro das Finanças, ao Senhor Diretor Nacional do SEF e à Senhora Diretora da Direção de Fronteiras de Lisboa do SEF, que:

«nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 394º, 395º e 396º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei nº35/2014, de 20 de Junho e artigos 530º a 539º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras - CIF/SEF, que se encontram colocados/prestam serviço na Direção de Fronteiras de Lisboa irão exercer o direito à greve das 05h00 às 07h00 (turno da noite), das 07h00 às 09h00 (turno da manhã), nas seguintes datas:

De 01 a 15 de junho de 2021.

Para os efeitos previstos no art.º 397º da LGTFP, e de acordo com a decisão exarada no Acórdão 3/2021/DRCT – ASM, de 04/05/2021, relativamente à definição dos serviços mínimos para garantir a realização de todos os atos estritamente indispensáveis à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, na última greve decretada por sindicato afeto aos funcionários da CIF/SEF, propõe-se a nomeação do seguinte efetivo:

          PF001 - Aeroporto
          Humberto Delgado
    05h00 às 07h00

    (turno da noite)

    01 Inspetor Coordenador ou Inspetor

    Chefe, 04 Inspetores

    07h00 às 09h00

    (turno da manhã)

    01 Inspetor Coordenador ou Inspetor

    Chefe, 09 Inspetores

PF201 – Porto de Lisboa
      05h00 às 07h00 (turno da noite)
          01 Inspetor
      07h00 às 09h00 (turno da manhã)
          01 Inspetor
»

[Doc. n.º 3, junto aos autos]

3. Por ofício datado de 17.05.2021, o Requerente comunicou ao Senhor Ministro da Administração Interna, ao Senhor Ministro das Finanças, ao Senhor Diretor Nacional do SEF e ao Senhor Diretor da Direção Regional do Algarve, que:

«nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 394º, 395º e 396º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei nº35/2014, de 20 de Junho e artigos 530º a 539º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras - CIF/SEF, que se encontram colocados/prestam serviço no PF002 – Aeroporto de São Luís, irão exercer o direito à greve das 09h00 às 12h00, nas seguintes datas:

De 01 a 15 de junho de 2021.

Para os efeitos previstos no art.º 397º da LGTFP, e de acordo com a decisão exarada no Acórdão 3/2021/DRCT – ASM, de 04/05/2021, relativamente à definição dos serviços mínimos para garantir a realização de todos os atos estritamente indispensáveis à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, na última greve decretada por sindicato afeto aos funcionários da CIF/SEF, propõe-se a nomeação do seguinte efetivo:

          PF002 – Aeroporto de São Luís
    09h00 às 12h00
    01 Inspetor Coordenador ou Inspetor

    Chefe, 04 Inspetores

»

[Doc. n.º 4, junto aos autos]

4. Por ofício datado de 18.05.2021, o Requerente comunicou ao Senhor Ministro da Administração Interna, ao Senhor Ministro das Finanças, ao Senhor Diretor Nacional do SEF e ao Senhor Diretor da Direção Regional do Norte do SEF, que:

« nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 394º, 395º e 396º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei nº35/2014, de 20 de Junho e artigos 530º a 539º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras - CIF/SEF, que se encontram colocados/prestam serviço na Direção Regional dos Açores - Ilha de S. Miguel, irão exercer o direito à greve das 06h00 às 08h00, nas seguintes datas:

De 02 a 15 de junho de 2021.

Para os efeitos previstos no art.º 397º da LGTFP, e de acordo com a decisão exarada no Acórdão 3/2021/DRCT – ASM, de 04/05/2021, relativamente à definição dos serviços mínimos para garantir a realização de todos os atos estritamente indispensáveis à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, na última greve decretada por sindicato afeto aos funcionários da CIF/SEF, propõe-se a nomeação do seguinte efetivo:

PF007 (Aeroporto João Paulo II), PF209 (Porto de Ponta Delgada) - 1 Inspetor»

[Doc. n.º 5, junto aos autos]

5. Por ofício datado de 20.05.2021, o Requerente comunicou ao Senhor Ministro da Administração Interna, ao Senhor Ministro das Finanças, ao Senhor Diretor Nacional do SEF e Senhora Diretora da Direção Regional dos Açores do SEF, que:

«nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 394º, 395º e 396º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei nº35/2014, de 20 de Junho e artigos 530º a 539º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras - CIF/SEF, que se encontram colocados/prestam serviço no PF003 – Aeroporto Francisco Sá Carneiro, irão exercer o direito à greve das 09h00 às 12h00, nas seguintes datas:

5, 12, 19 e 26 de junho de 2021.

Para os efeitos previstos no art.º 397º da LGTFP, e de acordo com a decisão exarada no Acórdão 3/2021/DRCT – ASM, de 04/05/2021, relativamente à definição dos serviços mínimos para garantir a realização de todos os atos estritamente indispensáveis à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, na última greve decretada por sindicato afeto aos funcionários da CIF/SEF, propõe-se a nomeação do seguinte efetivo:

          PF001 – Aeroporto Francisco Sá Carneiro
    09h00 às 12h00
    01 Inspetor Coordenador ou Inspetor

    Chefe, 04 Inspetores

»

[Doc. n.º 6, junto aos autos]

6. Por email de 17.05.2021, a Senhora Coordenadora dos Recursos Humanos do SEF solicitou a pronúncia do Requerente sobre a possibilidade de aumentar os serviços mínimos em Porto Santo, na sequência do email do Senhor Diretor Regional da Madeira, referindo este email o seguinte:

«Por nos ter sido solicitado, relativamente a “funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras - CIF/SEF, que se encontram colocados/prestam serviço na Direção Regional da Madeira irão exercer o direito à greve das 09h00 às 12h00, nas seguintes datas:

31 de maio, 07, 14, 21 e 28 de junho de 2021. Para os efeitos previstos no art.º 397º da LGTFP, e de acordo com a decisão exarada no Acórdão 3/2021/DRCT – ASM, de 04/05/2021, relativamente à definição dos serviços mínimos para garantir a realização de todos os atos estritamente indispensáveis à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, na última greve decretada por sindicato afeto aos funcionários da CIF/SEF, propõe-se a nomeação do seguinte efetivo: PF004 - Aeroporto Cristiano Ronaldo – 02 Inspetores; Restantes Postos de Fronteira – 01 Inspetor independentemente da categoria.”, importa esclarecer em termos de análise:

1. Nada a opor quanto ao Aeroporto da Madeira – nomeação de 02 Inspetores;

2. Nada a opor quanto ao Porto do Funchal – nomeação de 01 Inspetor;

3. Quanto ao Aeroporto de Porto Santo, conforme informação da operação que dispomos para o período da manhã das segundas-feiras e que se remete em anexo, há previsão de dois voos do Reino Unido a chegar – total de 378 passageiros (189+189), os quais têm partida prevista de cerca de uma hora depois. Neste caso, a nomeação adequada é de 02 Inspetores».

[Doc. n.º 7, junto aos autos]

7. Por email de 18.05.2021 o Senhor Presidente do Requerente comunicou que o Requerente nada tinha «a opor em relação ao aumento do efetivo para 2 Inspetores, como garante dos serviços mínimos propostos para o Aeroporto de Porto Santo».

[Doc. n.º 7, junto aos autos]

8. Por ofício datado de 20.05.2021, o Departamento de Relações Colectivas de Trabalho da Direção Geral da Administração e do Emprego Público convocou o Requerente para a realização de uma reunião para promoção de acordo para definição de serviços mínimos requerida pelo SEF.

[Doc. n.º 8, junto aos autos]

9. Conforme acta da reunião de 20.05.2021, as partes acordaram em assegurar os seguintes serviços mínimos «PF007 (Aeroporto João Paulo II) – 2 inspetores PF209 (Porto de Ponta Delgada) – 1 inspetor»».

[Doc. n.º 9, junto aos autos]

Não resultou provada outra factualidade relevante.

II.2. De Direito


1 – Da verificação dos pressupostos do artigo 109.º do CPTA
Dispõe o artigo 109.º do CPTA que este meio processual pode ser requerido quando “a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adopção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar”.

1.1. Um primeiro pressuposto é o de que esteja em causa, na factualidade subjacente ao litígio, o exercício em tempo útil de um direito, liberdade e garantia.

1.1.1. De acordo com o teor da Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021 e o disposto no n.º 1 do artigo 2.º da Portaria n.º 116/2021, a factualidade subjacente ao presente litígio reporta-se, no essencial, à requisição civil dos trabalhadores da carreira de investigação e fiscalização do SEF, que exercem funções nos postos de fronteira, para “garantir o regular funcionamento dos mesmos e a adequada fluidez no controlo documental e sanitário de passageiros” (artigo 2.º, n.º 1 da Portaria n.º 116/2021), abrangendo “os trabalhadores da carreira de investigação e fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que devam exercer funções” nos locais e horários referidos nos avisos prévios de greve subscritos pelo SIIF (artigo 3.º n.º 1 da Portaria n.º 116/2021) “e que se mostrem necessários para assegurar o regular funcionamento dos postos de fronteira” (artigo 3.º, n.º 1 da Portaria n.º 116/2021).

1.1.2. Verifica-se, por isso, que estamos perante um pedido de condenação da Entidade Requerida a respeitar o (exercício do) direito à greve.
O direito à greve (expressamente consagrado no n.º 1 do artigo 57.º da CRP) foi já suficientemente caracterizado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional como um direito, liberdade e garantia [v., por todos, os acórdãos do TC n.ºs 289/92, 868/96 e 199/2005].
No acórdão do TC n.º 572/2008 pode ler-se ou seguinte:
«[…] o nosso texto constitucional configura a greve como uma liberdade ou como um «clássico» direito de defesa. O que o artigo 57º da CRP confere a quem trabalha é a faculdade (a liberdade) de recusa da prestação de trabalho contratualmente devida, faculdade essa cujo exercício não pode ser obstaculizado pelo Estado ou pelos poderes públicos, que têm portanto perante ela o dever primacial de não fazer ou de não interferir que caracteriza precisamente a estrutura típica dos «direitos, liberdades e garantias». Mas, para além disso, a liberdade de greve apresenta características tais que a associam com estreiteza ao princípio de socialidade inscrito na parte final do artigo 2º da CRP. Não apenas por se tratar de um direito que, sendo embora de titularidade individual, é necessariamente de exercício colectivo; mas, sobretudo, pelos efeitos vinculativos que dela decorrem quanto a privados. Na verdade, a liberdade de recusa da prestação de trabalho contratualmente devida opõe-se também (e desde logo) aos próprios privados empregadores, que têm perante ela um igual dever de tolerar, ou de não obstaculizar e de não interferir.
Quer isto dizer que, ao escolher consagrar a greve como um direito, liberdade e garantia [dos trabalhadores], a Constituição escolheu também conferir ao trabalho subordinado aquele especial meio de defesa (que se traduz na pressão exercida pela recusa da prestação juslaboral) que a História mostrou ser um instrumento adequado para a afirmação dos seus interesses. Tal significa que a CRP reconhece que em Estado de direito democrático não deixam de existir conflitos económicos e sociais; que, em tais conflitos, haverá seguramente uma parte mais frágil; e que tal parte carece de maior protecção, pela institucionalização de meios próprios e exclusivos de defesa que não são reconhecidos à outra «parte». Assim sendo, o direito consagrado no artigo 57º – não deixando de apresentar a estrutura típica de uma liberdade ou de um clássico direito de defesa – tem uma razão de ser que o liga, estreitamente, ao princípio da socialidade inscrito na parte final do artigo 2º da CRP. O direito de greve é, entre nós, um direito, liberdade e garantia dos trabalhadores porque a Constituição o concebeu como instrumento de realização da democracia económica e social (artigo 2º, in fine), ou como meio para a realização dessa especialíssima tarefa do Estado que é a de «[p]romover (…) a igualdade real entre os portugueses (…)» (artigo 9º, alínea d) […]».

A lei também não deixa dúvidas quando à titularidade deste direito-liberdade por parte dos trabalhadores com vínculo de emprego público (artigo 394.º, n.º 1 da LGTFP).
E os actos identificados pelo Requerente como fonte da violação daquele direito materializaram-se na aprovação da requisição civil dos trabalhadores da carreira de investigação e fiscalização do SEF que exercem funções nos postos de fronteira por efeito da Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021 e das normas da Portaria n.º 116/2021, de 30 de Maio,
ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 637/74, de 20 de Novembro.

1.1.3. A greve em causa foi comunicada através de avisos prévios de greve subscritos pelo SIIFF, para os trabalhadores da carreira de investigação e fiscalização do SEF que exercem funções nos postos de fronteira, para vigorar nos seguintes termos:
Na Direção de Fronteiras de Lisboa, das 05h00 às 07h00 (turno da noite), das 07h00 às 09h00 (turno da manhã), entre os dias 1 a 15 de junho de 2021;
No PF002 — Aeroporto de São Luís, das 09h00 às 12h00, entre os dias 1 a 15 de junho de 2021;
No PF003 — Aeroporto Francisco Sá Carneiro, das 09h00 às 12h00, nos dias 5, 12, 19 e 26 de junho de 2021;
Na Direção Regional da Madeira, das 09h00 às 12h00, nos dias 31 de maio, 7, 14, 21 e
28 de junho de 2021;
Na Direção Regional dos Açores — Ilha de S. Miguel, das 06h00 às 08h00, nos dias 2 a 15 de junho de 2021.
Assim, tendo a greve em causa início no dia 31 de Maio de 2021 na Direção Regional da Madeira e tendo a RCM n.º 65/2021 e a Portaria n.º 116/2021 sido aprovadas nos dias 27 e 30 de Maio, respectivamente, e publicadas no dia 30 de Maio, surpreende-se destas datas que apenas a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias pode, de forma atempada, i. e., em tempo útil, decidir o presente litígio e assegurar a tutela jurisdicional efectiva do direito, liberdade e garantia lesado ou ameaçado de lesão.

1.1.4. Acresce ainda dizer que a factualidade antes enunciada revela que, neste caso, a tutela jurisdicional requerida para a protecção do direito, liberdade e garantia alegadamente violado ou ameaçado de violação não pode ser assegurada mediante o decretamento provisório de uma providência cautelar (artigo 110.º-A e 131.º do CPTA), porquanto a questão a decidir – existência ou não de violação do direito à greve antes de iniciada a mesma – apenas pode ser assegurada através da emissão de uma decisão que julgue imediatamente do mérito da causa.
A factualidade subjacente não se compagina com a adopção de uma regulação provisória da situação, designadamente, de suspensão de eficácia dos actos que determinam a efectivação da requisição civil, pois daí resultaria que os serviços essenciais de interesse público e as necessidades sociais impreteríveis que a requisição civil visa proteger ficariam irremediavelmente violados, não sendo possível a sua reparação a posteriori. Verifica-se, por isso, o preenchimento do requisito da subsidiariedade deste meio processual e a idoneidade ou propriedade do seu uso para resolver o presente litígio.

1.1.5. Por último, o Requerente SIIF é parte legítima no presente processo urgente, ex vi do disposto no artigo 338.º, n.º 2 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP). O referido artigo reconhece às associações sindicais de trabalhadores em funções públicas legitimidade processual para defesa dos direitos e interesses colectivos e para a defesa colectiva dos direitos e interesses individuais legalmente protegidos dos trabalhadores que representam.
Sendo o direito à greve um direito de exercício colectivo e a faculdade de recorrer à greve um “direito inerente aos sindicatos”, e estando consagrado nos Estatutos do SIIF [publicados no Boletim de Trabalho e Emprego, 3.ª série, n.º 21 de 8 de Julho de 2017] a competência do mesmo para declarar a greve [artigo 29.º n.º 2. al. d)], fiscalizar e reclamar a aplicação das leis, instrumentos de regulamentação colectiva e demais normativos de trabalho, na defesa dos interesses dos associados [artigo 6.º n.º 2. al. d)] e ainda para representar o SIIF em juízo em fora dele [artigo 29.º n.º 2. al. c)], há que concluir o que o Requerente é parte legítima na presente intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.

1.1.6. Em suma, estão verificados in casu todos os pressupostos e requisitos legais para o conhecimento do peticionado neste processo urgente, pelo que passamos ao conhecimento do fundo da questão.



2 – Da violação in casu do direito à greve

2.1. O direito à greve é – já o dissemos – um direito, liberdade e garantia dos trabalhadores também com vínculo de emprego público, de natureza individual e de exercício colectivo, que se traduz na “abstenção concertada ao trabalho”, não existindo uma influência jurídica específica na densificação do conceito pelo facto de este direito ser exercido por trabalhadores com vínculo à Administração Pública (acórdão do TC n.º 153/2001), salvaguardado, claro, o disposto no artigo 270.º da CRP e nos regimes legais especiais (artigo 394.º n.º 2 da LGTFP).
Também o diploma que aprova o regime de exercício de funções e o estatuto do pessoal do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) (Decreto-Lei n.º 290-A/2001, de 17 de Novembro) não contempla qualquer excepção à titularidade ou gozo do direito à greve por parte destes trabalhadores, podendo ler-se no n.º 1 do artigo 8.º do referido estatuto o seguinte: “[S]em prejuízo do disposto na legislação de segurança interna e no presente diploma, o pessoal do SEF goza dos direitos e está sujeito aos deveres e incompatibilidades previstos na lei geral”.

2.1.1. A respeito da fundamentalidade material do direito à greve pode ler-se o seguinte no acórdão do TC n.º 289/92:
«A fundamentalidade material do direito à greve liga-se, pois, aos princípios constitucionais da liberdade e da democracia social. A sua especial inserção no elenco dos direitos, liberdades e garantias confere-lhe uma protecção constitucional acrescida que se traduz no 'reforço de mais-valia normativa' (G. Canotilho) do preceito que o consagra relativamente a outras normas da Constituição. O que significa: 1) aplicabilidade directa, sendo o conteúdo fundamental do direito afirmado já ao nível da Constituição e não dependendo o seu exercício da existência de lei mediadora; 2) vinculação das entidades públicas e privadas, implicando a neutralidade do Estado (proibição de proibir) e a obrigação de a entidade patronal manter os contratos de trabalho, constituindo o direito de greve um momento paradigmático da eficácia geral das estruturas subjectivas fundamentais; 3) limitação das restrições aos casos em que é necessário assegurar a concordância prática com outros bens ou direitos constitucionalmente protegidos - sendo certo que a intervenção de lei restritiva está expressamente vedada quanto à definição do âmbito de interesses a defender através da greve (CRP, artigo 57.º, n.º 2)».

2.1.2. Da jurisprudência constitucional a respeito da caracterização do direito à greve de trabalhadores com vínculo de emprego público podemos também retirar, com interesse para a decisão dos presentes autos, que “[…] A greve traduz-se na abstenção concertada da prestação do trabalho, pelo que os efeitos do respectivo exercício não podem deixar de aproximar-se dos efeitos das faltas na relação da prestação de serviços […]” (acórdão do TC n.º 153/2001) (sublinhado nosso).


2.2. Reconhecida e caracterizada a fundamentalidade do direito à greve importa agora analisar os termos em que o mesmo pode legitimamente ser restringido.

2.2.1. A jurisprudência constitucional teve também oportunidade de afirmar anteriormente que “[…] o direito de greve é limitável nos mesmos termos em que o são todos os restantes direitos que integram a categoria, ou seja, de acordo com o previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da CRP. Assim, e desde logo, as restrições [ao direito] só poderão ser efectuadas por lei (1.º frase do n.º 2 do artigo 18.º); nos casos expressamente autorizados pela Constituição (2.º frase); e para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos (3.º e última frase) […]” (acórdão do TC n.º 572/2008).
E a mesma jurisprudência esclareceu ainda que as normas legais que regulam a obrigação de “prestação de serviços” durante a greve, assim como a definição desses serviços”( No caso do acórdão do TC n.º 572/2008 discutia-se a apreciação dos artigos 598.º e 599.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, entretanto revogado, e que actualmente correspondem ao teor dos artigos 537.º e 538.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro.) devem qualificar-se e seguir o regime jurídico das normas restritivas de direitos, liberdades e garantias. Pode ler-se a este respeito o seguinte no acórdão do TC n.º 572/2008:
“[…] Não restam dúvidas que as normas sob juízo, contidas nos artigos 598º e 599º do Código de Trabalho, contêm verdadeiras restrições ao direito de greve constitucionalmente consagrado. Por mais difícil que seja a distinção apriorística e abstracta entre normas que restringem um direito e normas que [apenas] conformam ou condicionam o seu modo de exercício – por ser o distinguo, as mais das vezes, de natureza meramente gradativa – a verdade é que, no caso, se trata inquestionavelmente de uma restrição ao direito. Como as normas do Código do Trabalho acima transcritas visam identificar as circunstâncias em que se exigirão dos trabalhadores o cumprimento de certas obrigações durante a greve, delas resulta uma indubitável «compressão» ou «amputação» do âmbito do direito fundamental que a Constituição consagrou. Como vimos, tal direito – consagrado no artigo 57º - faculta ao trabalhador a possibilidade de recusa de todas as prestações laborais contratualmente devidas. Ora, é precisamente o exercício pleno dessa faculdade que as normas legais vêm, em certa medida e em certas circunstâncias, impedir, nisso se corporizando a «compressão» ou «restrição» do direito constitucionalmente consagrado.
A restrição conforma-se com as duas primeiras exigências que o n.º 2 do artigo 18.º da CRP impõe às normas que introduzem limites aos direitos: foi definida por lei, e mediante autorização expressa da Constituição. […]”.


2.2.2. Esta jurisprudencial doutrinal é transponível e aplicável ao caso dos autos.

O direito à greve dos trabalhadores da carreira de investigação e fiscalização do SEF é restringível nos termos do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da CRP.

Existe um regime legal que estabelece essa restrição, materializado nos artigos 397.º e 398.º da LGTFP, o qual impõe a prestação de serviços mínimos durante a greve para assegurar a satisfação de necessidades sociais impreteríveis, como é o caso dos serviços de segurança (artigo 397.º, n.º 2, al. a) da LGTFP), tendo em conta que, de acordo com o n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 252/2000, de 16 de Outubro (diploma que aprova a estrutura orgânica do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), o SEF é um “serviço de segurança, organizado hierarquicamente na dependência do Ministro da Administração Interna, com autonomia administrativa e que, no quadro da política de segurança interna, tem por objectivos fundamentais controlar a circulação de pessoas nas fronteiras, a permanência e actividades de estrangeiros em território nacional, bem como estudar, promover, coordenar e executar as medidas e acções relacionadas com aquelas actividades e com os movimentos migratórios” e ainda que entre as atribuições do SEF se incluiu a de “impedir o desembarque de passageiros e tripulantes de embarcações e aeronaves que provenham de portos ou aeroportos de risco sob o aspecto sanitário, sem prévio assentimento das competentes autoridades sanitárias” (artigo 2.º, n.º 1, al. b) do Decreto-Lei n.º 252/2000), a que se soma a competência do n.º 6 do artigo 25.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de Abril, para “No âmbito da fiscalização do cumprimento das regras aplicáveis ao tráfego aéreo em matéria de confinamento obrigatório, verificar o país de origem dos passageiros ou onde estes realizaram o teste molecular por RT-PCR, comunicando-o informaticamente às autoridades de saúde”.

A referida restrição legal encontra-se, hoje, expressamente autorizada pelo n.º 3 do artigo 57.º da CRP.

E, por último, a prestação dos mencionados serviços mínimos é essencial para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, designadamente, a circulação de pessoas em postos de fronteira sob o necessário controlo das regras de segurança interna e de saúde pública, as quais assumem importância acrescida no actual contexto pandémico.

2.2.3. Da jurisprudência constitucional que temos vindo a acompanhar resulta claro que a obrigação de prestação de serviços mínimos consubstancia, em si, a restrição ao direito fundamental à greve, tendo em vista assegurar, no quadro do exercício deste direito, a salvaguarda de outros direitos e bens jurídicos.

Nas impressivas palavras do acórdão do TC n.º 199/2005 pode ler-se o seguinte: “[…] [A] necessidade de uma tal consideração ponderada e omnicompreensiva do direito à greve com a tutela de realização das prestações direccionadas à satisfação de necessidades sociais impreteríveis é, assim, sintomática da necessidade de articulação dos valores constitucionais implicados na tensão dialéctica dos pólos em causa: por um lado, a consideração da necessidade de tutela e garantia de certos valores fundamentais impõe que a protecção do seu conteúdo essencial coloque “fronteiras” inultrapassáveis ao exercício do direito à greve; mas, por outro lado, a imposição de tais limites deve ter em linha de conta o respeito pelo direito à greve em termos que não impliquem o seu sacrifício fora do apodíctico âmbito tutelar preordenado a impedir a frustração do núcleo intangível dos bens jurídicos que recortam a esfera das necessidades sociais impreteríveis […]”.

Por essa razão, e tendo em conta que não existem dúvidas, nem as partes controvertem a questão de o direito à greve dos trabalhadores da carreira de investigação e fiscalização do SEF ter de contemplar a definição de serviços mínimos, afigura-se-nos essencial, para a decisão a proferir neste caso, apurar se existiu ou não uma definição de serviços mínimos segundo as regras legalmente fixadas.

2.2.3.1. A este respeito, impõe o artigo 396.º da LGTFP que as entidades com legitimidade para decidirem o recurso à greve dirijam ao empregador público, ao membro do Governo responsável pela área da Administração Pública e aos restantes membros do Governo competentes, por meios idóneos, nomeadamente por escrito ou através dos meios de comunicação social, um aviso prévio de greve, com o prazo mínimo de cinco dias úteis ou, no caso de órgãos ou serviços que se destinem à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, de 10 dias úteis (n.º 1 do artigo 396.º da LGTFP). Desse aviso tem de constar a proposta de definição dos serviços necessários à segurança e manutenção do equipamento e instalações, bem como, sempre que a greve se realize em órgão ou serviço que se destine à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, uma proposta de definição de serviços mínimos (n.º 2 do artigo 396.º da LGTFP).

2.2.3.2. De acordo com a factualidade assente, foram enviadas cartas endereçadas ao Ministro da Administração Interna, Ministro das Finanças, Director Nacional do SEF e Directores das respectivas Direcções Regionais do SEF, com o aviso prévio da greve, do qual constam os dias e horas em que será exercido o direito à greve, bem como a proposta de definição dos serviços mínimos para cada posto de fronteira.

Da mesma documentação junta aos autos, resulta ainda, com relevância, que: i) no seguimento do envio daqueles avisos prévios, teve lugar uma troca de emails, na qual o SIIF acedeu à proposta de aumento do efectivo de 1 para 2 inspectores no âmbito dos serviços mínimos propostos para o aeroporto de Porto Santo (pontos 6 e 7 da matéria de facto); ii) que no cumprimento do n.º 2 do artigo 398.º da LGTFP, a Direcção-Geral da Administração Pública e do Emprego Público convocou os representantes dos trabalhadores e os representantes das entidades empregadoras públicas interessadas, para a negociação de um acordo quanto aos serviços mínimos e quanto aos meios necessários para os assegurar. Dessa reunião, que teve lugar no dia 21 de Maio de 2021, às 11h00, lavrou-se acta (ponto 8 da matéria de facto assente) na qual se deixou consignado o acordo de aumentar de 1 para 2 o número de inspectores a prestar serviço durante o período de greve no aeroporto João Paulo II, ficando ainda 1 inspector indicado para a prestação daqueles serviços no Porto de Ponta Delgada.

Dessa reunião participaram representantes do SEF, do SIIFF e da DGAEP.

Concluiu-se do exposto que foram seguidos os trâmites legalmente determinados no artigo 398.º da LGTFP e que os serviços mínimos foram fixados por acordo, bem como que, face à existência desse acordo, não se verificaram os pressupostos para o accionamento do colégio arbitral previsto no n.º 3 do artigo 398.º da LGTFP.

Em suma, os serviços mínimos foram definidos, segundo a procedimentalização legalmente estipulada na LGTFP e fixados por acordo em 21 de Maio de 2021 para uma greve que teria início no dia 31 de Maio de 2021.

A questão concreta que está na origem do presente litígio surge, alegadamente, após esta data, em razão de um aumento exponencial do fluxo de passageiros aéreos relativamente ao que estava previsto no momento em que se fixou aquele acordo. Foi para assegurar a “satisfação das necessidades sociais impreteríveis” emergentes dessa nova factualidade, no quadro do contexto complexo gerado pela pandemia, que o Conselho Ministros alega ter tido necessidade de utilizar a requisição civil.

E é com base nesse pressuposto que importa avaliar, agora, da conformidade constitucional da restrição imposta pela requisição civil aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021 e efectivada pela Portaria n.º 116/2021, centrando esta análise no seguinte:

i) Conformidade da medida com o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2 da CRP)

ii) Respeito pelo conteúdo essencial do artigo 57.º, n.º 1 da CRP (artigo 18.º, n.º 3 da CRP)

2.2.4. Da conformidade da requisição civil com o princípio da proporcionalidade.

A análise da conformidade da medida com o princípio da proporcionalidade terá de assentar em duas dimensões: i) a primeira procedimental, no sentido de apurar se a requisição civil era a via adequada para assegurar a “satisfação das necessidades sociais impreteríveis” face ao circunstancialismo apurado; ii) a segunda material, no sentido de averiguar dos fundamentos que justificam a compressão do direito à greve na medida fixada pela própria requisição civil.

2.2.4.1. A Entidade Requerida “fundamenta” a necessidade da requisição civil determinada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021 da seguinte forma: i) “a salvaguarda da Segurança Nacional, a necessária preservação da segurança interna e o adequado controlo da situação pandémica, obriga a um exigente funcionamento dos postos de fronteira”, também para evitar aglomerações de pessoas que possam dar origem à propagação da doença; ii) “na época em que a greve está marcada, há um conjunto de feriados em que, tipicamente, o número de passageiros [chegadas ao território nacional] aumenta, para além de coincidir com o início da época balnear”, sendo estes indicadores relevantes para a retoma económica, sobretudo no sector do turismo; iii) “a efetivar-se a referida greve, tal faria perigar o controlo da pandemia, bem como constituiria um efeito dissuasor da vinda de turistas estrangeiros, pondo em causa a possibilidade de recuperação económica por via do turismo, impedindo a esperada retoma deste sector”.

2.2.4.2. A respeito da questão procedimental e das razões pelas quais se aprovou a requisição civil no dia 27 de Maio de 2021, sem existirem provas de que entre o dia 21 (data em que foi aprovado por acordo o âmbito dos serviços mínimos a cumprir) e o dia 27 (data em que foi aprovada a Resolução do Conselho de Ministros) tenham existido contactos entre a Direcção do SEF e o Requerente com o propósito de rever e actualizar o teor do acordo em matéria de serviços mínimos fixados, face à alteração superveniente dos dados respeitantes ao volume de passageiros aéreos, a “justificação” constante da Resolução do Conselho de Ministros é a seguinte: “Apesar de terem sido acordados serviços mínimos, estes revelam-se supervenientemente como não estando dimensionados para dar resposta adequada à situação excepcional suprareferida, nem permitirem assegurar o regular funcionamento de serviços essenciais de interesse público. De facto, no dia 17 de maio, foi anunciada a constituição de um corredor aéreo entre o Reino Unido e Portugal, constituindo-se, desde esta data, o nosso país como um destino preferencial para turistas britânicos, o que gerou, nos dias que se seguiram, uma procura exponencial de voos e de reservas de alojamentos turísticos […] Assim, verifica-se que os serviços mínimos, estabelecidos com base na informação disponível até à primeira quinzena de maio, tornaram-se inadequados para fazer face ao inesperado aumento de passageiros e consequente aumento exponencial do volume de trabalho nos postos de fronteira aérea, no período abrangido pelo pré-aviso de greve. Torna-se, portanto, imperioso adotar uma postura preventiva e garantir, desde já, as condições necessárias ao regular funcionamento dos postos de fronteira, nomeadamente aérea.”.

Na sua resposta, a Entidade Requerida “não impugna os pressupostos de facto assumidos pelo SIIFF”, limitando-se a reiterar o teor da Resolução do Conselho de Ministros quanto ao aumento significativo do tráfego aéreo, sem apresentar razões concretas para explicar a inexistência de qualquer diligência no sentido de modificar (ou pelo menos tentar obter um acordo nesse sentido) o teor do acordo alcançado quanto aos serviços mínimos.

Resulta desta factualidade uma violação do princípio da iniciativa dos trabalhadores para a avaliação da greve; princípio que o Tribunal Constitucional identifica e caracteriza no acórdão n.º 572/2008 da seguinte forma: “[…] [S]ignifica tudo isto, porém – e este é o ponto fundamental que se pretende agora sublinhar – que o legislador não deixou de devolver aos próprios trabalhadores a iniciativa e a responsabilidade da «qualificação» da greve que pretendam desencadear. A disciplina de aviso prévio contida nos n.ºs 2 e 3 do artigo 595.º quer dizer isso mesmo. Em princípio, são as «entidades com legitimidade para decidirem o recurso à greve» que avaliam, em primeira mão, o «impacto comunitário» resultante da sua acção concertada. São por isso elas que, interpretando a lei, decidem se o aviso prévio deve ser feito com a antecedência de cinco dias (regime geral), ou de dez dias (regime especial aplicável para as situações em que esteja em causa a «satisfação de necessidades socais impreteríveis»); como são ainda elas que propõem, nesse mesmo aviso prévio e no caso de lhe ser aplicado o regime especial, a definição do que sejam os serviços mínimos indispensáveis para a satisfação de tais necessidades (n.º 3 do artigo 595.º). […]”.

Uma asserção que vale, mutatis mutandis, para o regime jurídico consagrado nos artigos 397.º e 398.º da LGTFP. Resulta destes preceitos que também no âmbito da relação jurídica de trabalho em funções públicas a intenção do legislador foi a de atribuir o poder de iniciativa aos trabalhadores na qualificação da greve (definindo o pré-aviso) e na avaliação do seu impacto social, ao proporem o âmbito dos serviços mínimos. Um “direito à primeira palavra”, que não põe em causa a possibilidade de a última palavra sobre esta questão ter o contributo determinante da entidade pública empregadora e poder provir de um colégio arbitral sempre que não seja possível alcançar um acordo. Sendo essencial que a definição dos serviços mínimos respeite os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (artigo 398.º da LGTFP).

No mesmo sentido, aponta também o decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 199/2005, onde se pode ler: “[…] [N]ão julgar inconstitucional o artigo 8.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto, na interpretação segundo a qual a definição dos serviços mínimos a prestar em caso de greve que se destinem à satisfação de necessidades sociais impreteríveis compete às associações sindicais e aos trabalhadores, com exclusão do Governo[…]”.

É por se saber que o exercício do direito à greve terá sempre impacto na regular prestação dos serviços públicos e por se saber também que em matéria de serviços que satisfazem necessidades sociais impreteríveis o exercício deste direito está sempre necessariamente limitado pela necessidade de salvaguarda daquelas necessidades, que o legislador procedimentalizou o modo de determinação dos serviços mínimos.

O regime legal que disciplina o modo de determinação dos serviços mínimos (no qual se incluiu a referida iniciativa dos trabalhadores) consubstancia uma concretização legal do disposto no n.º 3 do artigo 57.º da CRP, razão pela qual há que ter especial cuidado na análise de medidas que se traduzam na desprocedimentalização da determinação dos serviços mínimos, pelo menos, sem alegar e provar urgência ou impossibilidade de cumprimento daquele regime jurídico.

Ora, no caso, a Entidade Requerida não alega nem prova na sua resposta que tenha havido impossibilidade no cumprimento das determinações legais de procedimentalização da fixação do âmbito dos serviços mínimos perante os novos dados de facto a respeito do aumento exponencial do número de passageiros aéreos (pontos 16.º a 24.º da Resposta), designadamente, não explica a razão pela qual considerou impossível a convocação de nova reunião nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 538.º, n.º 2 da LGTFP, perante a notícia de uma alteração dos pressupostos de facto em que assentara o acordo alcançado e que o tornavam não só desactualizado, mas também inadequado e inapto para assegurar a “satisfação das necessidades sociais impreteríveis”, o que impunha a sua necessária modificação.

E a Entidade Requerida não alega nem prova, igualmente, que a excepcional gravidade da situação, designadamente do risco pandémico que descreve, tenha interferido com o respeito pela observância daquelas disposições legais, escusando-se com a fórmula conclusiva de “imperiosidade na adopção de uma postura preventiva para assegurar o regular funcionamento dos postos de fronteira, nomeadamente aérea”.

Não está em causa que, face aos novos dados, o acordo alcançado com o Requerente em 21 de Maio de 2021 se tornado obsoleto e que, por essa razão, atendendo também à especial gravidade do contexto, o mesmo não possa manter-se. Está apenas em causa a via escolhida para promover a necessária alteração da definição dos serviços mínimos.

Conclui-se, por isso, que existiu uma violação do princípio da proporcionalidade na adopção da medida de requisição civil sem prévio recurso à negociação com o Requerente.

2.2.4.3. No plano da análise material da proporcionalidade da medida da requisição civil, a mesma não se apresenta também isenta de problemas.

Quanto à adequação, não fica justificada a razão pela qual houve necessidade de adoptar a medida de requisição civil com o propósito de “assegurar o regular funcionamento dos serviços”. O afluxo crescente de passageiros nos aeroportos e a necessidade de promover a retoma económica e financeira, aliados à necessidade de assegurar o controlo sanitário e prevenir contágios não se podem subsumir a um “caso excepcionalmente grave” fundamentador em si da impossibilidade de respeitar as disposições legais em matéria de fixação de serviços mínimos.

Não pode, por isso, considerar-se conforme com o disposto no n.º 3 do artigo 57.º da CRP a adopção de uma medida de requisição civil que visa, a título de “postura preventiva”, assegurar condições para garantir o “regular funcionamento dos postos de fronteira”, ou seja, não se trata sequer de assegurar o cumprimento de serviços mínimos para salvaguarda de necessidades sociais impreteríveis, mas sim de garantir a “regularidade do funcionamento dos serviços”, cujos trabalhadores convocaram uma greve segundo a forma legalmente prevista.

Torna-se assim aparente que a requisição civil extrapola, injustificadamente, o necessário para assegurar a concordância prática entre o exercício do direito à greve e o conteúdo das necessidades sociais impreteríveis identificadas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021, tendo como efeito prático o impedimento do exercício do direito à greve, ou seja, a respectiva suspensão. De resto, é isso que se retira expressamente da seguinte passagem da Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021 “[…] Assim, verifica-se que os serviços mínimos, estabelecidos com base na informação disponível até à primeira quinzena de maio, tornaram-se inadequados para fazer face ao inesperado aumento de passageiros e consequente aumento exponencial do volume de trabalho nos postos de fronteira aérea, no período abrangido pelo pré-aviso de greve. Torna-se, portanto, imperioso adotar uma postura preventiva e garantir, desde já, as condições necessárias ao regular funcionamento dos postos de fronteira, nomeadamente aérea […]”.

Recordamos, em linha com a jurisprudência do TC no acórdão n.º 153/2001, que “[…] os efeitos do respectivo exercício [do direito à greve] não podem deixar de aproximar-se dos efeitos das faltas na relação da prestação de serviços […]”, ou seja, que o exercício do direito à greve por parte dos trabalhadores, mesmo com o respeito pelos serviços mínimos, haverá sempre de traduzir-se numa perturbação do normal funcionamento dos serviços. Por isso, ao apresentar como fundamento da requisição civil a necessidade de garantir as condições necessárias ao regular funcionamento dos postos de fronteira, não pode deixar de concluir-se que a Resolução do Conselho de Ministros que adopta a requisição civil restringe o direito à greve de forma constitucionalmente inadmissível.

A requisição civil no domínio da greve é um meio que tipicamente se destina a colmatar a falha dos serviços mínimos na satisfação das necessidades essenciais. E essas falhas devem ser, senão reais, pelo menos plausíveis ou prováveis. Ora, no caso, a requisição civil foi adoptada não com o objectivo de colmatar ou prevenir essas falhas, mas com o propósito de preventivamente assegurar o regular funcionamento dos postos de fronteira, em especial da fronteira aérea. Trata-se, pois, de uma utilização, senão indevida daquele meio legalmente previsto, pelo menos não suficientemente justificada pela Entidade Requerida.

A este respeito, a Entidade Requerida afirma na sua resposta que a requisição visou não apenas assegurar a manutenção dos serviços sociais impreteríveis, mas também “ultrapassar a desadequação dos serviços mínimos acordados face à alteração muito significativa das circunstâncias”. E justifica o seu uso com o facto de se tratar de “uma medida administrativa destinada a assegurar o regular funcionamento de actividades fundamentais cuja paralisação momentânea ou contínua acarretaria perturbações graves da vida social, económica e até política”, devendo por isso interpretar-se o seu uso neste contexto, a essa luz, ou seja, como “mecanismo de intervenção administrativa geral, não especialmente vocacionado para o mundo laboral”.

No fundo, a Entidade Requerida sustenta a conformidade jurídica da requisição civil no facto de ela estar aqui a ser utilizada enquanto instrumento administrativo geral para assegurar a protecção de bens e valores essenciais que o Estado, que exigem um regular funcionamento dos serviços de controlo nos postos de fronteira, e não como instrumento de ultima ratio para neutralizar efeitos ilegítimos da greve.

Ora, é precisamente por não ser um instrumento exclusivo, típico e especialmente concebido para o domínio do conflito laboral que o seu uso deve ficar reservado para um plano secundário, isto é, para quando os expedientes próprios do direito laboral se revelem inaptos ou insuficientes para assegurar o cumprimento dos serviços mínimos. E não, como parece resultar da argumentação expendida pela Entidade Requerida, como um meio alternativo, que o Governo-Administração-Empregador Público pode utilizar sempre que considerar que uma greve legitimamente convocada pode, por razões supervenientes, pôr em causa a salvaguarda de necessidades sociais impreteríveis, justificando assim um “encurtamento ou um desvio aos trâmites legais” no âmbito da resolução de diferendos laborais em matéria de greve.

A medida é também injustificada porque na origem da sua utilização, não existiu sequer um litígio quanto à determinação dos serviços mínimos, nem mesmo quanto à sua actualização, uma vez que o não chegou sequer a colocar-se essa questão ao Requerente. Haveria, nas palavras da Entidade Requerida, uma mera desactualização dos termos do acordo, o que, em si, não justifica a adequação, nem a necessidade deste meio sem antes recorrer aos expedientes próprios do direito do emprego público para tentar obter uma actualização dos serviços mínimos.

Dir-se-á que os expedientes legalmente previsto não contemplavam expressamente uma solução para o caso, uma vez que o artigo 397.º e 398.º da LGTFP não prevêem a possibilidade de ter de existir uma actualização do acordado em matéria de serviços mínimos. Mas a verdade é que também não proíbem que essa actualização venha a ser acordada se razões de facto preponderantes, como parece ser o caso aqui, o exijam. O acordo, que em princípio deveria ser respeitado, pode e deve ser alterado se se demonstrar que existe uma alteração superveniente das circunstâncias. E o contexto complexo e grave da pandemia é um fundamento acrescido para sustentar a legalidade dessa modificação, seja mediante acordo, seja mediante o recurso excepcional a um colégio arbitral.

O que se afigura é excessivo é determinar a se, por via da requisição civil, a necessidade de assegurar o normal funcionamento dos serviços.

E também não é possível acompanhar a argumentação da Entidade Requerida quando alega que a requisição civil que está subjacente à Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021 não se pode confundir com a requisição civil prevista no n.º 3 do artigo 514.º do Código do Trabalho. A primeira — aqui utilizada — cumpre uma função geral de salvaguarda do interesse público e de garantia do dever de protecção da saúde pública e da segurança nacional, ao passo que a segunda, está legalmente consagrada como medida a adoptar pelo Governo em caso de incumprimento da obrigação de prestação de serviços mínimos.

Ora, a aceitar-se como válido este argumento, que pretende sustentar a adopção da medida da requisição civil para assegurar o regular funcionamento do serviço nas “circunstâncias particularmente graves” do contexto económico e pandémico, haveria que concluir que ele se apresenta como um sucedâneo jurídico para a suspensão do direito à greve fora do contexto do estado de emergência, o que se afigura juridicamente inadmissível.

E para a desadequação do uso da requisição civil com o conteúdo que lhe foi dado contribui ainda o facto de estarmos a lidar com conceitos indeterminados – “necessidade social impreterível” e “situação excepcionalmente grave” – para cuja concreção o procedimento legal de fixação dos serviços mínimos se revela igualmente relevante, tendo como objectivo a densificação do respectivo conteúdo no âmbito da concreta factualidade em presença.

É que a questão do juízo sobre a proporcionalidade material da medida, ao contrário do que parece estar subjacente ao alegado pela Entidade Requerida nos pontos 73.º e 77.º da sua Resposta, não pode colocar-se no plano de uma metódica de controlo do princípio da proporcionalidade assente exclusivamente na ponderação entre o “peso” da necessidade de satisfação das necessidades sociais impreteríveis e o “peso” do exercício do direito à greve.

Diremos mais: no caso da restrição do direito à greve, atendendo a que o julgador não pode sequer avaliar ou trazer a esse juízo “os fundamentos da greve”, o exercício de simplificação e de recondução do teste da proporcionalidade a este juízo de ponderação dos bens e interesses em presença revela-se mesmo especialmente desadequado. Por isso o legislador constituinte impõe a procedimentalização do conflito na determinação dos serviços mínimos, e por isso é particularmente sancionável no plano jurídico a inobservância daquelas regras, e por isso também é insustentável a argumentação de que a requisição civil surge aqui como um instrumento geral de direito administrativo, com um uso alternativo e desligado das regras laborais do direito à greve.

Podemos assim concluir que o Conselho de Ministros, ao adoptar a requisição civil sem respeitar previamente o disposto no artigo 394.º da LGTFP inviabilizou o alcance de uma solução de concordância prática (materializada na identificação dos “novos valores de serviços mínimos”) entre o exercício do direito à greve e a satisfação das necessidades sociais impreteríveis que identificou. E o balanceamento assim gizado, que constitui, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional (v., neste sentido acórdãos n.ºs 572/2008 e 199/2005), uma imposição expressa do legislador constituinte para o legislador ordinário, materializada por este nos artigos 537.º e 538.º da LGTFP, não pode ser afastado sem uma justificação atendível.

Assim, ao não observar aquele procedimento e optar por requisitar os funcionários para assegurar o regular funcionamento dos serviços sem apresentar uma justificação válida para o efeito, a Entidade Requerida não logrou provar a adequação da medida adoptada, ou seja, não logrou demonstrar que a requisição civil seja, neste caso, um meio idóneo para a salvaguarda das necessidades sociais impreteríveis, seja em matéria económica, seja em matéria pandémica.

E, por maioria de razão, não provou também que a requisição civil fosse o meio mais benigno, ou único disponível, i. e, que fosse um meio necessário para alcançar a realização das necessidades sociais impreteríveis.

Conclui-se, pois, que a requisição civil, determinada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021 e efectivada pela Portaria n.º 116/2021, viola o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, na medida em que se consubstancia numa restrição ao direito à greve que não respeita o (vai além do) necessário para a salvaguarda dos outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

2.2.5. Da conformidade da requisição civil com o princípio da salvaguarda do núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias

Importa ainda acrescentar que a requisição civil adoptada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021 e o modo como a mesma se há-de efectivar segundo o disposto nos artigos 3.º e 4.º da Portaria n.º 116/2021, não se revela igualmente conforme com o disposto no n.º 3 do artigo 18.º da CRP in fine, porquanto não respeita o conteúdo essencial do direito à greve, previsto no n.º 1 do artigo 57.º da CRP.

Para além de a referida Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021 determinar a requisição civil e autorizar os Ministros de Estado, da Economia e da Transição Digital, da Administração Interna e das Infra-estruturas e habitação a efectivar essa requisição, sob a forma de portaria (faseada ou de uma só vez, consoante as necessidades), o artigo 3.º da Portaria n.º 116/2021 define de forma abstracta e imprecisa o âmbito da requisição, determinando que a mesma abrange os trabalhadores da carreira de investigação e fiscalização do SEF que devam exercer funções nos locais, datas e horários referidos nos postos de fronteira abrangidos pelo pré-aviso de greve e que se mostrem necessários para assegurar o regular funcionamento dos mesmos. Acresce que o artigo 4.º da mesma portaria atribui à Direcção Nacional do SEF a competência para a prática de actos de gestão corrente decorrentes da requisição civil.

Em suma, ao não explicitar o número de trabalhadores necessários para assegurar o cumprimento das necessidades impreteríveis, ou seja, aqueles que considera indispensáveis para assegurar os serviços mínimos, mas antes autorizar a Direcção do SEF a requisitar todos os funcionários que se mostrem necessários para “assegurar o regular funcionamento dos postos de fronteira”, a medida adoptada pelo Governo aniquila por completo o direito à greve, atingindo o seu núcleo essencial.

Reproduzem-se, por serem lapidares a este respeito, as palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira na anotação ao artigo 57.º da CRP (ponto X) a respeito da requisição dos trabalhadores em greve: «[…] Ela é seguramente inconstitucional como forma de neutralização do direito à greve; a requisição, sem quaisquer limites, traduzir-se-ia na colocação na inteira disponibilidade da Administração de um direito fundamental, que assim seria não só restringido, mas, também, atingido no seu conteúdo essencial (artigo 18.º, n.º 3) […]( In Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, pp. 758.)».

Conclui-se, assim, que a requisição civil, determinada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021 e efectivada pela Portaria n.º 116/2021 viola o disposto no n.º 3 do artigo 18.º da CRP na medida em que se atinge o conteúdo essencial do direito à greve.

III – DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em julgar procedente a presente intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, condenado a entidade demandada a não executar a requisição civil, cuja necessidade foi reconhecida pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2021, de 30 de Maio e efectivada pela Portaria n.º 116/2021, de 30 de Maio.

Sem custas.


Lisboa, 2 de Junho de 2021


A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, tem voto de conformidade com o presente acórdão dos Senhores Juízes Conselheiros Jorge Artur Madeira dos Santos e José Francisco Fonseca da Paz.

Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva