Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01975/02
Data do Acordão:03/12/2003
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:BAETA DE QUEIROZ
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL.
LIQUIDAÇÃO DE SOCIEDADE COMERCIAL.
RECURSO JURISDICIONAL.
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA.
ERRO NA FORMA DE PROCESSO.
CONVOLAÇÃO.
Sumário:I - A liquidação da sociedade não implica a extinção da execução fiscal anteriormente instaurada contra ela para cobrança de dívida de impostos.
II - O despacho do relator do Tribunal Central Administrativo que não admite recurso jurisdicional interposto para o Supremo Tribunal Administrativo é insusceptível de reclamação para a conferência.
III - Deduzida essa reclamação, deve ser convolada para reclamação para o presidente do tribunal superior.
Nº Convencional:JSTA00058989
Nº do Documento:SA22003031201975
Data de Entrada:12/11/2002
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC TCA.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - OPOSIÇÃO.
Legislação Nacional:CPC96 ART688 N1 N3 N5 ART700 N3.
CCOM888 ART142.
CSC86 ART147 N2 ART160 N2.
LGT98 ART21 N2 ART26 ART97 N3.
D 17730 DE 1929/12/07 ART20.
CPCI63 ART17.
CPTRIB91 ART14 ART169.
LPTA85 ART9 ART111.
DL 229/96 DE 1996/11/29 ART3.
CPPTRIB99 ART98 N4 ART279 ART281.
Aditamento:
Texto Integral: 1.1. A..., com sede em ..., Sintra, recorre do acórdão do Tribunal Central Administrativo (TCA) que desatendeu a reclamação do despacho do relator que não admitira o recurso do anterior acórdão do mesmo Tribunal negando provimento ao recurso interposto da sentença do Mmº. Juiz da 2ª Secção do 3º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, a qual julgara improcedente a oposição à execução fiscal instaurada para cobrança de dívida de imposto sobre o valor acrescentado e juros compensatórios relativo ao ano de 1990.
Formula as seguintes conclusões:
“I)
O Douto Acórdão Recorrido, provindo do TCA, desatendeu a reclamação para a conferência, constante de fls.... dos autos, com o fundamento de que o Douto Despacho do qual se reclamou para a conferência, relativo a indeferimento do requerimento de interposição de recurso jurisdicional para o STA, deveria ter sido objecto de reclamação para o Presidente desse Venerando Supremo Tribunal, e não para a conferência do TCA – artigos 688.º, 700.º, n.º 3, e 687.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPC, 176.º, n.º 3, do CPT, e 9.º, n.º 2, da LPTA.
II)
Como questão prévia, e de conhecimento oficioso, deverão os autos recorridos ser declarados extintos, por inutilidade superveniente da lide, em virtude da dissolução e liquidação da sociedade Recorrente, já reconhecida nos autos (maxime, fls. 101), sem prejuízo das restantes conclusões.
III)
Tal decisão viola o disposto nos artigos nos artigos 9.º, n.º 2, 111.º, n.º 2, e 131.º, n.º 1, da LPTA, no artigo 176.º, n.º 3, do CPT, e nos artigos 688º, 700.º, n.º 3 e 687.º, n.º 3, 1.º segmento, do CPC.
IV)
Antes de mais, o artigo 176.º, n.º 3, do CPT, não é aplicável aos recursos interpostos para o STA, como é o caso daquele que foi indeferido pelo TCA, por Despacho que foi objecto de reclamação para a conferência, que proferiu o Douto Acórdão Recorrido.
V)
É entendimento da melhor jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que dos despachos do Relator, designadamente aqueles que indefiram a interposição de recurso, cabe reclamação para a conferência (artigo 9.º, n.º 2, da LPTA) e não para o Presidente do Tribunal superior, não sendo de aplicar o artigo 688.º do CPC, mas antes o artigo 700.º da mesma lei processual – cabendo, então sim, recurso do Acórdão proferido pela conferência.
VI)
Este entendimento é válido nos recursos jurisdicionais de decisões provindas da jurisdição tributária, designadamente quando interpostos para esse Venerando Tribunal, conforme resulta dos artigos 9.º, n.º 2, e 111.º, n.º 2, da LPTA, ex vi, designadamente, do artigo 131.º, n.º 1, da LPTA.
VII)
O contrário não resulta igualmente do CPT, designadamente do seu artigo 176.º, n.º 3, invocado pelo Douto Acórdão Recorrido, e isto mesmo se tal normativo fosse considerado aplicável aos recursos interpostos para o STA, o que não se admite.
Pelo que o Douto Acórdão Recorrido viola o disposto nas seguintes disposições:
(a) artigos 9.º, n.º 2, 111.º, n.º 2, e 131.º, n.º 1, da LPTA;
(b) artigo 176.º, n.º 3, do CPT; e
(c) artigos 688º, 700.º, n.º 3 e 687.º, n.º 3, 1.º segmento, do CPC,
Termos em que, com o Mui Douto Suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juizes Conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo, deverá o presente recurso ser julgado procedente, com a consequente revogação do Douto Acórdão Recorrido (...)”.
1.2. Não há contra-alegações.
1.3. O Exmº. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal é de parecer que o recurso merece provimento, pois o acórdão impugnado, tendo julgado correctamente a questão de fundo, “podia e devia convolar a reclamação para a conferência em requerimento ao Presidente deste STA”.
1.4. O processo tem os vistos dos Exmºs. Adjuntos.
***
2. O aresto recorrido desatendeu a reclamação fundamentando-se em que do reclamado despacho do relator, não admitindo um recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), cabia reclamação para o Presidente deste último Tribunal, nos termos do artigo 688º do Código de Processo Civil (CPC), e não para a conferência da Secção do TCA, nos termos do artigo 700º nº 3 do mesmo diploma.
***
3.1. Importa começar pela questão que a recorrente suscita, como prévia, e de conhecimento oficioso, na conclusão II. Diz-se aí que “deverão os autos recorridos ser declarados extintos, por inutilidade superveniente da lide, em virtude da dissolução e liquidação da sociedade Recorrente, já reconhecida nos autos”.
Não quererá, decerto, a recorrente referir-se à extinção da instância do presente processo. É que estamos no âmbito de uma oposição à execução judicial, visando a extinção dessa execução, donde decorre que, a extinguir-se a instância, na oposição, a consequência seria o desaparecimento do entrave ao livre prosseguimento e conclusão da acção executiva.
O que pretende será, portanto, a extinção da instância executiva, face à invocada dissolução e liquidação da sociedade executada.
Trata-se, porém, de acontecimentos que não obstam ao prosseguimento do processo executivo.
É certo que a personalidade jurídica das sociedades, mantendo-se na fase de dissolução e durante a liquidação, se extingue com a aprovação das contas da liquidação e partilha pelos sócios, como se vê nos artigos 142º do Código Comercial e 160º nº 2 do Código das Sociedades Comerciais. O registo, por último, garante a eficácia da liquidação perante terceiros. A partilha, por seu turno, faz desaparecer o activo social sobrante em proveito dos sócios, sendo suposto estar, então, pago o passivo. Mas os débitos que já existiam e eram conhecidos – como é o caso do exigido, coercivamente, na execução fiscal em causa – não deixam de ser exigíveis.
Certa doutrina entende, mesmo, que a personalidade jurídica da sociedade persiste enquanto subsistirem débitos, ao menos relativamente aos credores; outros há que defendem que a personalidade, de facto ainda não extinta, face à existência de débitos a satisfazer, se reconstitui; e outros que entendem que a responsabilidade social é substituída pela dos sócios.
Independentemente da posição teórica que se perfilhe, é pela generalidade aceite que existe, até, a possibilidade de instauração de uma execução fiscal com base em título executivo do qual conste como devedor uma sociedade extinta, quando subjacente esteja um acto tributário de liquidação relativo a factos tributários ocorridos antes da extinção. Por maioria de razão, a extinção da sociedade não constitui obstáculo ao prosseguimento da execução anteriormente instaurada contra ela.
O nº 2 do artigo 147º do Código das Sociedades Comerciais estabelece que, mesmo quanto às “dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução”, “ficam ilimitada e solidariamente responsáveis todos os sócios ”. E a dívida aqui em causa já era exigível à data da dissolução, por isso que está em cobrança coerciva.
A sociedade extinta continua, de resto, a ser o sujeito da relação jurídica tributária, mesmo que a lei designe outros responsáveis pelo respectivo pagamento. Não implicando o fim da personalidade jurídica de um dado sujeito a extinção dos créditos dos seus credores, nada há na lei que impeça a Administração Fiscal de efectuar um acto tributário de liquidação já depois de extinta a pessoa (singular ou colectiva) sujeito passivo da obrigação jurídica tributária. Menos, de exigir o pagamento da obrigação fiscal já antes liquidada. Ainda que os sócios se substituam à sociedade na dívida de imposto (cfr., hoje, o artigo 21º nº 2 da Lei Geral Tributária, aonde se estabelece a sua responsabilidade solidária).
De resto, casos há em que, além dos sócios, podem existir outros responsáveis pela dívida de impostos, como os liquidatários: é obrigação sua, ao menos desde o decreto nº 17730, de 7 de Dezembro de 1929 (vd. o seu artigo 20º), começar por satisfazer os débitos à Fazenda - cfr. os revogados artigos 17º do Código de Processo das Contribuições e Impostos e 14º do Código de Processo Tributário e, hoje, o 26º da Lei Geral Tributária -, sob pena de se tornarem “pessoal e solidariamente responsáveis pelas importâncias respectivas”.
Em súmula, o desaparecimento da personalidade jurídica colectiva do respectivo sujeito passivo não é causa extintiva das obrigações de crédito, não obstando, pois, a que os credores façam valer os seus correspondentes direitos. Assim, a Administração Fiscal, munida de título executivo em que figura como devedora a sociedade extinta, pode fazer prosseguir (e, até, instaurar) acção executiva para a respectiva cobrança, desde que a dívida se tenha tornado exigível.
Improcede, pelo exposto, a conclusão II das alegações de recurso.
3.2. Como resulta do relatório supra, a recorrente apresentou, no TCA, requerimento de interposição de recurso jurisdicional de acórdão proferido por esse Tribunal, recurso esse que pretendia ver apreciado pelo STA. O relator do processo no TCA proferiu despacho de não admissão de tal recurso.
Reclamou, então, a recorrente, para a conferência (no TCA), pretendendo que fosse revogado o despacho do relator de não admissão do recurso e, consequentemente, este admitido.
O acórdão agora impugnado desatendeu a reclamação, por ela não caber de despachos do relator de não admissão de recurso, pois a reacção adequada ao caso é, antes, a reclamação para o presidente do tribunal de recurso - no caso, o STA.
Dispõe o artigo 688º nº 1 do CPC que “do despacho que não admita a apelação, a revista ou o agravo (...) pode o recorrente reclamar para o presidente do tribunal que seria competente para conhecer do recurso”. Acrescenta o artigo 700º nº 3 do mesmo diploma que, salvo o disposto no transcrito 688º, “quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária”.
Temos, consequentemente, que, de acordo com o regime estabelecido pelo CPC, dos despachos do relator reclama-se: em regra, para a conferência do mesmo tribunal; mas, no caso de se tratar de despacho que não tenha admitido recurso para outro tribunal, para o presidente deste último tribunal.
A razão da diferença de regimes parece evidente.
Em regra, os despachos do relator inserem-se dentro dos trâmites processuais que o processo deve percorrer no respectivo tribunal. Mas os tribunais superiores funcionam, em regra, em colectivo, e não com juiz singular. Razão por que a palavra do relator não é definitiva, havendo que levar a discordância com os seus despachos que não sejam de mero expediente à conferência, para que esta - ou seja, o tribunal - decida. Tanto mais que só das decisões colectivas (acórdãos) cabe recurso para o tribunal superior.
Mas, se o conteúdo do despacho do relator é não admitir um recurso para um tribunal superior, já não teria sentido fazer intervir a conferência, pois a admissão ou rejeição dos recursos é, sempre, objecto de despacho de um juiz singular, e não de um colectivo, inserindo-se, pois, dentro dos poderes que o relator exerce independentemente da confirmação pela conferência. Ao invés, o que tem sentido é levar a questão junto do tribunal que havia de apreciar o recurso, pois é a este que, em última análise, cabe decidir sobre a admissibilidade do recurso.
Daí a consagração legal, neste particular, da reclamação para o presidente do tribunal que deveria apreciar o recurso, e não para a conferência de que faz parte o relator reclamado.
A recorrente objecta, porém, invocando que não é aplicável ao caso o regime dos apontados artigos do CPC, mas, antes, o da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), cujo artigo 9º indica quais são as competências do relator, e em que casos cabe reclamação para a conferência dos seus despachos.
Este artigo 9º da LPTA, na sua redacção inicial, referia-se, apenas, ao relator no STA. O que bem se entende, se se atentar em que, ao tempo, não existia o TCA – embora já existisse Tribunal Tributário de 2ª Instância. Todavia, o artigo 3º do decreto-lei nº 229/96, de 29 de Novembro, veio estender o regime do artigo 9º da LPTA, também, ao relator no TCA.
Mas o artigo 9º da LPTA não tem aplicação aos recursos jurisdicionais interpostos em processo judicial tributário.
É o que resulta das disposições dos artigos 279º e 281º do CPPT, como, aliás, já acontecia na vigência do artigo 169º do CPT.
Nesta última norma prescrevia-se que “os recursos [das decisões proferidas em processos judiciais tributários] são interpostos, processados e julgados como agravos em processo civil, salvo as disposições em contrário deste Código e da lei orgânica do tribunal para quem se recorre”.
E, como, nem no CPT, nem na Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (LOSTA), nem no Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (RSTA), se prevê em contrário, havia que recorrer ao CPC, aonde se encontram as normas que presidem à interposição, processamento e julgamento daqueles recursos. Ou seja, a todos os seus passos, desde o requerimento, inclusive, de interposição.
Esta preferência que a lei atribuía à LOSTA, relativamente ao CPC, desapareceu com o CPPT, cujo artigo 281º, que sucedeu ao 169º do CPT, omitiu a expressão “salvo as disposições em contrário deste Código e da lei orgânica do tribunal para quem se recorre”.
Daí que, contra o que pretende a recorrente, não haja que apelar às regras que constam dos artigos 9º e 111º da LPTA, uma vez que o CPPT contem, como já se viu, uma regulação exaustiva da matéria que nos ocupa.
Improcedem, pelo exposto, as conclusões I, III, IV, V, VI e VII das alegações de recurso.
Improcedência que se afirma sem incorrer em colisão com a jurisprudência apontada nas alegações da recorrente: aí, ou se trata de recursos contenciosos – e não jurisdicionais, como o que nos ocupa -, ou de despachos do relator que versaram sobre outra matéria que não a não admissão de recurso jurisdicional, ou de despachos proferidos no âmbito de processos do contencioso administrativo – e não do tributário, como é o nosso caso.
3.3. Não obstante a improcedência dos fundamentos invocados pela recorrente, importa ver se, como defende o Exmº. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, o recurso merece provimento, pois o acórdão impugnado “podia e devia convolar a reclamação para a conferência em requerimento ao Presidente deste STA”.
Ora, ao reclamar do despacho do relator do processo, que não admitiu o recurso interposto, fazendo-o para a conferência, e não para o presidente do tribunal superior, a recorrente incorreu em erro na forma de processo – e não, apenas, num erro de identificação da entidade a quem dirigiu o pedido, uma vez que as duas reclamações em causa configuram meios processuais distintos.
O erro na forma de processo implica que este seja “convolado na forma do processo adequada, nos termos da lei”, conforme dispõe o artigo 98º nº 4 do CPPT (cfr., também, o artigo 97º nº 3 da Lei Geral Tributária).
Nos casos de impugnação de despachos que não admitam recursos jurisdicionais, a convolação está prevista, também, no nº 5 do artigo 688º do CPC, ainda que aí só se preveja a hipótese de ocorrer impugnação por meio de recurso, em vez de por via de reclamação. Dispõe, para este caso, a regra em apreço: “mandar-se-ão seguir os termos próprios da reclamação”.
Assim, os Mmºs. Juizes que integraram a conferência que proferiu o acórdão sob recurso, depois de afirmarem, como fizeram – e já se viu que bem – que do despacho do relator não cabia reclamação para eles, deviam ter devolvido o processo ao relator, para que este mandasse seguir os termos do nº 3 do artigo 688º do CPC, determinando a apensação por apenso da reclamação e, aí, admitindo o recurso ou mantendo o seu despacho de não admissão, convidando, neste último caso, se o achasse necessário, a reclamante a indicar de que peças pretendia certidão, ou mandando-as juntar de sua iniciativa, para que o apenso pudesse subir ao Presidente do STA.
***
4. Termos em que acordam, em conferência, os juizes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em, concedendo provimento ao recurso, revogar o aresto impugnado, para que, convolada a reclamação para a conferência em reclamação para o presidente do tribunal superior, se sigam os termos do disposto nos nºs. 3 e 4 do artigo 688º do Código de Processo Civil.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Março de 2003.
Baeta de Queiroz – Relator – Brandão de Pinho – Vitor Meira