Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0276/19.0BEALM
Data do Acordão:09/16/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PAULA CADILHE RIBEIRO
Descritores:NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE JULGAMENTO EM MATÉRIA DE FACTO
Sumário:I - Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões.
II - Se a decisão recorrida for totalmente omissa quanto aos factos provados necessários à aplicação do direito, verifica-se omissão absoluta de julgamento em matéria de facto, a ser conhecida oficiosamente, face ao disposto no n.º 3 do artigo 682.º do Código de Processo Civil.
Nº Convencional:JSTA000P26323
Nº do Documento:SA2202009160276/19
Data de Entrada:03/03/2020
Recorrente:A............, S.A.
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório
1.1. A……….., S.A., identificada nos autos, interpõe recurso da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, na impugnação judicial que deduziu contra o ato de segunda avaliação do prédio, com o artigo 5862 da matriz da União de Freguesias de Almada, Cova da Piedade, Pragal e Cacilhas, que fixou o Valor Patrimonial Tributário (VPT) em €155.489.350,00, na qual foi julgada procedente a exceção dilatória da ilegitimidade processual ativa e, em consequência, foi a Fazenda Pública absolvida da instância.

1.2. Concluiu da seguinte forma as suas alegações de recurso:
“A. A Recorrente não se conforma com a sentença recorrida a qual julgou procedente a excepção dilatória da ilegitimidade processual activa da aqui Recorrente e, em consequência, absolveu a Fazenda Pública da instância.
B. Tendo como pano de fundo a jurisprudência que interpretou e aplicou o disposto nos n.os 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT e o artigo 30.º do CPC (ex vi artigo 2º, al. e) do CPPT), “o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar (por contraposição ao réu quando tem interesse directo em contradizer); o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção, sendo que, na falta de indicação da lei em contrário, são titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como ela é configurada pelo autor” (cfr. Acórdão do TCA Sul, de 13.02.2014, proferido no processo n.º 07329/14).
C. A Recorrente entende que os factos demonstrativos da sua legitimidade processual activa estão cabalmente provados nos autos através da prova documental junta aos mesmos, identificada supra nas alegações, os quais não foram – nem podiam ter sido atendendo ao valor probatório dos documentos que deles fazem prova – contestados pela AT, pelo que não se revelam sequer controvertidos.
D. À data do procedimento avaliativo do VPT do terreno em causa, a Recorrente havia celebrado com o Estado Português um CPCV, de acordo com o qual iria adquirir a propriedade do terreno até 31 de Dezembro de 2018 (cfr. Documento n.º 2 junto com a p.i.), e, pese embora não ter sido finalizado o processo de adjudicação do terreno na data prevista, o mesmo estava iminente à data da instauração da presente impugnação, tal como declarado pelo Estado Português na Declaração subscrita em 27 de Março de 2019 (vide Documento n.º 4 junto com a p.i.).
E. A adjudicação concretizou-se efectivamente, encontrando-se a propriedade do terreno registada a favor da Recorrente desde 27 de Junho de 2019 (vide Documentos n.ºs 17 e 18 juntos com o requerimento apresentado em 24.07.2019 pela aqui Recorrente).
F. A Recorrente, enquanto proprietária do terreno no final do corrente ano (31.12.2019), será o sujeito passivo do IMI referente ao ano de 2019, imposto esse que irá incidir (de acordo com o n.º 1 do artigo 1.º e o n.º 1 do artigo 8.º, ambos do CIMI) sobre o VPT (ilegalmente) fixado em €155.409.350,00, no procedimento de segunda avaliação, bem como do AIMI enquanto proprietária do terreno a 01.01.2020 que também incidirá sobre aquele VPT (cfr. artigo 135.º-A do CIMI).
G. Desde que se acha fixado definitivamente em sede administrativa – no seguimento de aludido procedimento de segunda avaliação – o dito VPT e, portanto, o acto de determinação da matéria tributável que nele culminou não produziu qualquer efeito fiscal material, directa ou indirectamente; ie. é ainda um valor fiscalmente relevante em potência.
H. Como é sabido, no plano do IMI e do AIMI, dada a isenção subjectiva total de que goza o Estado, o VPT fixado a 28 de Dezembro de 2018 não gerou qualquer IMI a pagar no tocante a esse ano e nem tão pouco AIMI.
I. No entanto, já se sabia, à data de produção de efeitos do acto do VPT em crise, que o sujeito passivo stricto sensu da relação jurídica-fiscal de determinação da matéria tributável em IMI, jamais seria devedor de imposto, o que vale por dizer que se o Estado/DGTF impugnasse o VPT que foi o próprio Estado a fixar, na sua veste de AT, estaria, concretamente, a defender directamente o interesse de futuros adquirentes dos terrenos avaliados, posicionando-se, paradoxalmente, como sujeito passivo não titular de um interesse próprio.
J. Torna-se já muito fácil concluir que o interesse processual da Recorrente é evidente, substancial e urgente: a manutenção na ordem jurídica do resultado da segunda avaliação do terreno causará à Recorrente o pagamento de IMI, por ano, manifestamente indevido, de €423.971,11, e o pagamento do Adicional do AIMI também indevido de €471.079,01, o que perfaz quase €900.000,00 de imposto indevido ao ano (tal traduz mais de 300% do que o imposto que, nos termos da lei, deveria ser o devido se a fixação do VPT não padecesse dos vícios invocados na p.i).
K. O próprio Estado Português, representado pela DGTF, reconheceu tácita mas inequivocamente na Declaração junta como Documento n.º 4,
o legítimo interesse da Recorrente na instauração da impugnação: “Tendo em conta o supra exposto, e que a A........, como adjudicatária/adquirente do referido prédio, como futuro sujeito passivo do IMI que sobre ele vier a recair e como futuro alienante do mesmo prédio, terá um interesse legítimo na reacção contra o aludido acto de fixação do valor patrimonial tributário, O ESTADO PORTUGUÊS não se opõe a que a A………… instaure judicialmente impugnação judicial contra o acto de segunda avaliação do terreno para construção descrito em D), nos termos do artigo 77.º do Código do Imposto Municipal sobre os Imóveis e das disposições aplicáveis do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
L. Temos assim o Estado a caucionar abertamente a condição da Impugnante de futuro proprietário do imóvel em causa, numa altura em que, como a própria DGTF atesta, o procedimento de adjudicação estava a chegar ao seu fim, mas havia que impugnar o acto de fixação do VPT em segunda avaliação dentro do prazo legalmente estabelecido de 90 dias contados da sua notificação à DGTF.
M. Sucede que, para o tribunal a quo, a circunstância de a Recorrente não ser, a 31 de Dezembro de 2018 (data da notificação da segunda avaliação), a proprietária do terreno inscrita na matriz, data em que foi recepcionado o resultado da segunda avaliação do VPT do mesmo, impede-a de promover a presente impugnação judicial.
N. É que, na ausência de uma das circunstâncias elencadas no artigo 13.º do CIMI e de um facto que suscite uma reclamação da matriz nos termos do artigo 130.º do CIMI, o proprietário, usufrutuário ou superficiário do prédio, que adquira o mesmo a uma entidade isenta, não disporá de qualquer meio para assegurar que o VPT avaliado cumpre
efectivamente o disposto na lei e que não sofrerá o ónus de um IMI e de um AIMI excessivos.
O. Ademais, o órgão recorrido olvida que o sujeito passivo do IMI é conhecido apenas no último dia de cada ano – segundo o n.º 1 do artigo 8.º do Código do IMI, “o imposto é devido pelo proprietário do prédio em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeitar” – e que o acto de avaliação do VPT não produz efeitos apenas em relação ao proprietário que recebeu essa notificação, mas em relação a todos os proprietários futuros do imóvel.
P. Mais notório do ponto de vista da legitimidade processual será o caso de um promitente comprador como a Impugnante que, já não se podendo furtar a celebrar o contrato definitivo, fique impotente perante um acto ilegal de fixação do VPT quando, por qualquer motivo, o sujeito passivo não queira ou não possa opor-se-lhe.
Q. Uma coisa é certa: do ponto de vista material, não há a mínima dúvida de que a Recorrente não só tem um interesse legítimo nesta impugnação, como também é único devedor de imposto conhecido e quase certo à data da notificação da avaliação em causa (31/12/2018), pois além de promitente compradora, obteve do próprio Estado confirmação escrita de que iria efectivamente adquirir o imóvel em questão. Se há dúvidas sobre um interesse legítimo, essas recaem sobre o putativo sujeito passivo (o Estado) e jamais sobre a impugnante. R. Em especial quanto à legitimidade processual activa conferida a todos aqueles que provem ter um interesse legalmente protegido, nos termos do n.º 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT (e ainda aplicando subsidiariamente o artigo 30.º do CPC) a jurisprudência e a doutrina têm sido unânimes na interpretação deste conceito. Terá legitimidade processual quem: “retira imediatamente (interesse directo) um beneficio específico não contrário à lei (interesse legítimo) para a sua esfera jurídica (interesse processual), interesse esse que terá que ser aferido de acordo com o alegado pela impugnante na sua petição, por referência à relação material controvertida” (Acórdão do TCA Sul, de 15.02.2011, proferido no processo n.º 04463/11).
S. Acresce ainda que o disposto no artigo 77.º do Código do IMI e o artigo 134.º do CPPT, que regulam a impugnação dos actos de segunda avaliação, não afastam a aplicação do artigo 9.º CPPT no que contende com a legitimidade processual activa que esta última confere a quem demonstre ter um interesse legalmente protegido; de resto, o n.º 1 do artigo 77.º remete mesmo para as normas reguladoras do processo de impugnação no CPPT.
T. Ora, a maior parte, ou diríamos mesmo, todas as normas específicas dos Códigos fiscais que consagram direitos específicos de impugnação – por exemplo nos artigos 131.º, 132.º, 133.º-A do CPPT - fazem menção expressa ao sujeito passivo, ao contribuinte, ao substituto, ao substituído ou ao responsável, mas é lícito inferir que daqui resulta uma compressão tal do princípio da impugnação pelo titular de um interesse legítimo, que o destitui de qualquer valor prático ou efectivo? É claro que não, sendo evidente que o papel que tais menções expressas desempenham não vai nem pode ir ao ponto de ameaçar a eficácia daquele princípio fundamental do Estado de Direito democrático que é o princípio da tutela jurisdicional efectiva.
U. Acresce ainda que, a evolução da redacção do artigo 77.º do CIMI demonstra precisamente o que se vem de dizer, e não tem, de todo, o alcance restritivo que a AT lhe dá na contestação.
V. O conceito de contribuinte não se confunde com o de sujeito passivo, na medida em que o primeiro é aquele que a norma visa como destinatário efectivo do imposto e aquele cuja capacidade contributiva,
enriquecimento ou consumo a norma de incidência pretende gravar; já o segundo é o titular de uma relação jurídico-tributária passiva, mas pode não ser o contribuinte, tal como pode acontecer no IMI com quem faça obras num imóvel que suscitam uma nova avaliação para determinação de um novo VPT e depois vende o mesmo imóvel antes do final do ano em causa.
W. É patente que a introdução do n.º 3 do artigo e a menção a sujeito passivo não visou restringir o núcleo de impugnantes lesados pelo acto administrativo, mas somente esclarecer que quer o sujeito passivo quer as autarquias que sejam credores da receita do IMI têm legitimidade para impugnar e devem ser notificados do acto, conferindo a estes últimos uma nova legitimidade que havia sido rejeitada por este Tribunal Superior (nomeadamente no Acórdão de 17-11-2010, rec. Nº 0624).
X. É totalmente incongruente com este dictum e com a ratio legis do direito à impugnação sustentar que o mesmo legislador que, num sistema de garantias dos contribuintes, assegura um direito de impugnação a uma autarquia – a junta de freguesia – que nem sequer tem o direito de desencadear um procedimento de segunda avaliação e que apenas tem o direito de a impugnar para defender a sua receita, não reconhece esse direito a alguém que o próprio Estado atesta que será o verdadeiro contribuinte relativamente à avaliação em causa.
Y. A Recorrente, enquanto sujeito passivo do IMI e AIMI apurado com base no VPT manifestamente ilegal e titular de um interesse legalmente protegido, não alcançará uma tutela jurisdicional efectiva (ou seja, plena, eficaz) por outro meio que não seja a impugnação do acto de segundo avaliação do VPT do terreno do qual sabia que se ia tornar – e efectivamente se tornou – proprietária.
Z. A interpretação normativa perfilhada pelo Tribunal a quo, no sentido de que o n.º 3 do artigo 77.º do Código do IMI e o n.º 1 do artigo 134.º do CPPT apenas conferem legitimidade processual activa àquele que for o titular do imóvel sujeito à segunda avaliação que se pretenda impugnar judicialmente, não admitindo o uso do mesmo meio a quem demonstre a titularidade de um interesse legalmente protegido e um interesse directo na demanda, consubstancia uma violação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, previsto nos n.º 1 e 5 do artigo 20.º e no n.º 4 do artigo 268.º, ambos da CRP, que se invoca para todos os efeitos legais.
AA. Por fim, ponderando a matéria em causa e a conduta exemplar das partes, é forçoso concluir que se verificam todos os pressupostos para o douto Tribunal decidir no sentido da dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos e para os efeitos n.º 7 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais, o que se requer.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE, REVOGANDO-SE A SENTENÇA PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, ASSIM SE JULGANDO COMO NÃO VERIFICADA A EXCEPÇÃO DA ILEGITIMIDADE PROCESSUAL ACTIVA DA AQUI RECORRENTE, E ORDENANDO-SE EM SEGUIDA A BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL A QUO A FIM DE SER APRECIADO O MÉRITO DO PEDIDO FORMULADO.”

1.3. A Administração Tributária e Aduaneira (AT) não contra-alegou.

1.4. O excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso e revogar-se a sentença recorrida, e de os autos baixarem à 1.ª instância para apreciação do mérito da causa, se a tal nada obstar.

1.5. Os autos foram aos vistos dos Excelentíssimos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

1.6. As questões que cumpre decidir são as seguintes:
i) Saber se a sentença recorrida errou ao julgar a Impugnante, ora Recorrida, parte ilegítima para impugnar a segunda avaliação do prédio em causa nos autos, por não ser a sua proprietária à data de 31 de dezembro de 2018, data em que o Estado Português, seu proprietário, foi notificado do seu resultado, nem ser a sua proprietária aquando da instauração da impugnação judicial, apesar ter celebrado com o Estado Português um contrato-promessa de compra e venda desse imóvel.
ii) Saber se a interpretação normativa perfilhada pelo Tribunal a quo, no sentido de que o n.º 3 do artigo 77.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) e o n.º 1 do artigo 134.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) apenas conferem legitimidade processual ativa àquele que for o titular do imóvel sujeito à segunda avaliação que se pretenda impugnar judicialmente, não admitindo o uso do mesmo meio a quem demonstre a titularidade de um interesse legalmente protegido e um interesse direto na demanda, consubstancia uma violação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, previsto nos n.º 1 e 5 do artigo 20.º e no n.º 4 do artigo 268.º, ambos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

2. Fundamentação de facto


O Tribunal recorrido não efetuou o julgamento da matéria de facto.

3. Fundamentação de Direito
A ora Recorrente impugnou judicialmente o ato de segunda avaliação do prédio com o artigo 5862 da matriz da União de Freguesias de Almada, Cova da Piedade, Pragal e Cacilhas. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada julgou a Impugnante, ora Recorrente, parte ilegítima (ilegitimidade ativa), dando procedência à exceção arguida pela Fazenda Pública, que absolveu da instância com base no artigo 577.º, alínea e), do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT. Fundamentou o decidido no estabelecido no artigo 77.º, n.º 3, do CIMI, que determina que podem impugnar os atos de segunda avaliação de prédios urbanos os sujeitos passivos do imposto, ou seja, o proprietário, usufrutuário ou superficiário do imóvel a 31 de dezembro do ano a que respeita (artigo 8.º do CIMI). E dando conta que não é controvertido que a 31 de dezembro de 2018, data que também corresponde à da notificação do resultado da segunda avaliação, o proprietário e sujeito passivo do imposto era o Estado Português, situação que se mantinha aquando da apresentação da impugnação judicial, era ao Estado Português que competia, como sujeito passivo do imposto e como recetor do ato de segunda avaliação, querendo, impugnar judicialmente esse ato de segunda avaliação, como o havia feito na fase graciosa de discordância do valor fixado. E acrescentou o Tribunal recorrido que a aquisição do imóvel pela Impugnante não tinha a virtualidade de lhe consagrar a posteriori legitimidade processual, por tal entendimento não ter a mínima correspondência com o teor do citado artigo do CIMI. Referiu ainda que o facto de o Estado Português estar isento de imposto não é argumento para conceder a outrem, nomeadamente à
Impugnante, qualquer legitimidade em substituição, que os conceitos de não sujeição a tributação e isenção de tributação são distintos e não se confundem.

A Recorrente não se conforma com o decidido pugnando pela sua legitimidade ao abrigo dos n.ºs 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT e do artigo 30.º do CPC. Alega que à data do procedimento avaliativo do VPT do terreno em causa, havia celebrado com o Estado Português um contrato-promessa de compra e venda, de acordo com o qual iria adquirir a propriedade do terreno até 31 de dezembro de 2018, e que pese embora não ter sido finalizado o processo de adjudicação do terreno na data prevista, o mesmo estava iminente à data da instauração da impugnação judicial, tal como declarado pelo Estado Português na Declaração subscrita a 27 de março de 2019. E que a adjudicação se concretizou efetivamente, encontrando-se a propriedade do terreno registada a favor da Recorrente desde 27 de junho de 2019. Enquanto proprietária do terreno no final do ano de 2019, será o sujeito passivo do IMI referente a esse ano, imposto esse que irá incidir (de acordo com o n.º 1 do artigo 1.º e o n.º 1 do artigo 8.º, ambos do CIMI) sobre o VPT (ilegalmente) fixado em €155.409.350,00, no procedimento de segunda avaliação, bem como do Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (AIMI), enquanto proprietária do terreno a 01/01/2020 que também incidirá sobre aquele VPT (artigo 135.º-A do CIMI). Esclarece que no plano do IMI e do AIMI, dada a isenção subjetiva total de que goza o Estado, o VPT fixado a 28 de dezembro de 2018 não gerou qualquer IMI a pagar no tocante a esse ano e nem tão pouco AIMI. E que assim, será fácil concluir que o seu interesse processual é evidente, substancial e urgente: a manutenção na ordem jurídica do resultado da segunda avaliação do terreno irá determinar o pagamento de IMI, por ano, manifestamente indevido, de €423.971,11, e o pagamento do Adicional do AIMI também indevido de €471.079,01, o que perfaz quase €900.000,00 de imposto
indevido ao ano (o que nas suas contas traduz mais de 300% do que o imposto que, nos termos da lei, deveria ser o devido se a fixação do VPT não padecesse dos vícios invocados na petição inicial). Num outro ângulo, alega que já se sabia, à data de produção de efeitos do ato do VPT em crise, que o sujeito passivo stricto sensu da relação jurídica-fiscal de determinação da matéria tributável em IMI, jamais seria devedor de imposto, o que vale por dizer que se o Estado/DGTF (Direção-Geral do Tesouro e Finanças) impugnasse o VPT que foi o próprio Estado a fixar, na sua veste de AT, estaria, concretamente, a defender diretamente o interesse de futuros adquirentes dos terrenos avaliados, posicionando-se, paradoxalmente, como sujeito passivo não titular de um interesse próprio. E que o próprio Estado Português, representado pela DGTF, reconheceu tácita mas inequivocamente na Declaração junta como Documento n.º 4, o legítimo interesse da Recorrente na instauração da impugnação: “Tendo em conta o supra exposto, e que a A……., como adjudicatária/adquirente do referido prédio, como futuro sujeito passivo do IMI que sobre ele vier a recair e como futuro alienante do mesmo prédio, terá um interesse legítimo na reacção contra o aludido acto de fixação do valor patrimonial tributário, O ESTADO PORTUGUÊS não se opõe a que a A………. instaure judicialmente impugnação judicial contra o acto de segunda avaliação do terreno para construção descrito em D), nos termos do artigo 77.º do Código do Imposto Municipal sobre os Imóveis e das disposições aplicáveis do Código de Procedimento e de Processo Tributário”. Concluiu, o Estado Português caucionou abertamente a condição da Impugnante de futuro proprietário do imóvel em causa, numa altura em que, como a própria DGTF atesta, o procedimento de adjudicação estava a chegar ao seu fim, mas havia que impugnar o ato de fixação do VPT em segunda avaliação dentro do prazo legalmente estabelecido de 90 dias contados da sua notificação à DGTF.

A questão central do recurso prende-se com a legitimidade do promitente-comprador para impugnar a segunda avaliação do prédio objeto do contrato-promessa.

Ora, apesar de toda a factualidade invocada pela Impugnante na petição inicial para sustentar o seu interesse na demanda, reiterada em sede de alegações de recurso, respeitante à propriedade do bem, à existência e termos do contrato-promessa, à postura do proprietário Estado Português durante o procedimento avaliativo e também depois, a sentença recorrida não contém qualquer probatório autonomamente formalizado, no qual se especifiquem os factos provados e não provados, limitando-se o Tribunal recorrido a julgar procedente a exceção dilatória da ilegitimidade processual ativa e a absolver a Fazenda Pública da instância.

O Tribunal recorrido não respeitou o disposto do n.º 2 do artigo 123.º do CPPT, que determina que o juiz discrimine na sentença a matéria provada ou não provada, fundamentando as suas decisões. O que nos termos do artigo 125.º, n.º 1 do CPPT constitui causa de nulidade da sentença. De acordo com os comandos da lei impunha-se ao Tribunal recorrido que, antes de conhecer da exceção, fizesse o julgamento da matéria de facto pertinente, designadamente a alegada pela Impugnante na petição inicial para sustentar a sua legitimidade e, só depois, aplicasse o direito.

Para além dos poderes excecionais referidos no n.º 3 do artigo 674.º do CPC, a atividade do Supremo Tribunal Administrativo, enquanto tribunal de revista, em processos julgados inicialmente pelos tribunais tributários, deve limitar-se à
aplicação do direito aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido - artigo 682.º, n.ºs 1 e 2, do CPC ex vi artigo 281.º do CPPT.

O n.º 3 do artigo 682.º do CPC restringe a volta do processo ao tribunal recorrido apenas em duas hipóteses: no caso de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito; e quando há contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito. Sobre a omissão absoluta da matéria de facto na sentença recorrida nada diz.
Mas se o Supremo Tribunal pode ordenar a ampliação da matéria quando ela é insuficiente para a aplicação do direito, por maioria de razão pode determinar o julgamento da matéria de facto quando a sentença o omite em absoluto.
Até porque, numa situação destas, como é a dos autos, não existem condições para o Supremo Tribunal levar a cabo a sua atividade de aplicar o direito “Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido”, como dispõe o n.º 1 do artigo 682.º do CPC, porque o tribunal recorrido nada fixou.
Quando tal acontece impõe-se conhecer oficiosamente da omissão e anular a sentença recorrida, nos termos do artigo 682.º, n.º 3 do CPC, a fim de que o tribunal recorrido proceda ao necessário julgamento da matéria de facto – cf. entre outros mais antigos, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 18/12/2013, recurso 351/13, de 13/04/2016, recurso 1175/14, de 01/02/2017, recurso 1352/16, de 10/05/2017, recurso 1451/16 e de 28/02/2018, recurso 079/18.

Em face do exposto, e porque se entende que a apontada inexistência da decisão sobre a matéria de facto inviabiliza a decisão jurídica do pleito, impõe-se, a anulação da decisão recorrida e a consequente remessa dos autos ao tribunal recorrido, nos termos do artigo 682.º, n.º 3 do CPC, a fim de que este proceda ao necessário julgamento da matéria de facto.

Em conclusão:


I - Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões.
II - Se a decisão recorrida for totalmente omissa quanto aos factos provados necessários à aplicação do direito, verifica-se omissão absoluta de julgamento em matéria de facto, a ser conhecida oficiosamente, face ao disposto no n.º 3 do artigo 682.º do Código de Processo Civil.

4. Decisão
Nestes termos acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em anular a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada a fim de que ali se proceda ao julgamento da matéria de facto em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito a proferir.

Sem custas.

Lisboa, 16 de setembro de 2020. - Paula Cadilhe Ribeiro (relatora) - Francisco Rothes - Joaquim Condesso.