Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1047/14.5TBGMR-A.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: LETRA DE FAVOR
RELAÇÕES MEDIATAS
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/04/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

I- A excepção consistente na assinatura de favor sendo, naturalmente, oponível no domínio das relações imediatas, designadamente e em particular, nas relações entre o favorecente e o favorecido, já não o é nas relações mediatas, onde a letra de favor é equiparada à letra regular.

II- O abuso de direito (artigo 334º do CC) pode ser objecto de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não está vedado ao Tribunal, ainda que a sua invocação constitua questão nova (artigo 660º do CPC/artigo 608º, n.º 2 NCPC) mas isso não significa que o Tribunal considere ocorrido o abuso de direito à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos.

III- Assim, desta limitação ao princípio do conhecimento ex officio do abuso de direito, decorre que, mesmo que se considere que esse fundamento (abuso de direito) é de conhecimento oficioso, será sempre necessário que esteja demonstrada a respectiva factualidade para que o mesmo possa ser apreciado.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Embargantes/executados: A. M. e R. M., melhor identificados nos autos principais.
Embargada/exequente: X Portugal Limited, exequente nos autos à margem identificados.

Causa de pedir:

Até data imprecisa do ano de 1992 ou 1993, os Executados/Embargantes aceitaram letras de câmbio, sacadas pela sociedade “Fábrica de Cutelarias – Y, L.da”, adiante designada apenas por “Cutelarias, L.da”, e pelo sócio e gerente desta, Alberto,
2.º mas subjacente ao aceite destas letras não existia qualquer dívida de natureza comercial ou civil, tratando-se, assim, de letras aceites “por mero favor”,
3.º cuja “convenção de favor” se baseou, exclusivamente, nas relações de confiança e de amizade, então, existentes entre os Executados/Embargantes e aquele Alberto,
4.º e no compromisso que o mesmo Alberto assumiu, intervindo por si e na qualidade de sócio e gerente e em representação da “Cutelarias, L.da,” pelo qual se obrigou a efectuar o pagamento das mencionadas letras de favor, nas datas dos seus vencimentos.
5.º Sucedeu, porém, que o dito Alberto e a sociedade “Cutelarias, L.da,” endossaram letras do aceite dos ora Executados/Embargantes, do montante global de Esc. 11.000.000$00, ao “Banco A, S.A.”, e não as pagaram nas datas dos seus vencimentos, nem posteriormente.
6.º O “Banco A, S.A.” intimou os Executados/Embargantes a procederem ao pagamento das letras mencionadas no artigo anterior;
7.º e no dia 29 de Novembro de 1993, acordaram na regularização da respectiva dívida, em trinta e duas prestações mensais sucessivas de Esc. 343.750$00 cada uma, vencendo-se a primeira amortização em Fevereiro de 1994, tudo nos termos e condições constantes do acordo escrito intitulado “Contrato de Abertura de Crédito a Médio Prazo”, que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido, (Documento n.º 01)
8.º do qual, por comodidade, se transcrevem as cláusulas primeira, terceira, quarta e sétima: “Primeira O Banco abre, a favor do Primeiro Contratante, um crédito: a) de Esc. 11.000.000$00 (onze milhões de escudos); b) destinado à regularização dos aceites à “Fábrica de Cutelarias – Y, L.da” e a Alberto; c) pelo prazo de trinta e três meses; d) a ser utilizado de imediato. Terceira: O reembolso ou liquidação do crédito concedido será efectuado em trinta e duas amortizações mensais, constantes e sucessivas, no valor de Esc: 343.750$00 cada uma, vencendo-se a primeira amortização em Fevereiro de 1994.” Quarta: Para caucionar o bom pagamento das responsabilidades emergentes deste contrato será entregue ao Banco, nesta data, uma livrança, em branco, convenientemente subscrita pelo Primeiro Contratante, podendo o Banco proceder ao seu completo preenchimento fixar o seu vencimento e apresentá-la a desconto ou a pagamento pelo valor total das importâncias em dívida até ao limite do crédito aberto se, à data do vencimento do crédito estiver por liquidar qualquer quantia da responsabilidade do Primeiro Contratante, ou ainda se verificar a situação prevista na cláusula sétima deste contrato. Sétima: O incumprimento por parte do Primeiro Contratante, de qualquer das obrigações assumidas neste contrato, ou a ele inerentes, implica o imediato vencimento de todo o crédito, com a consequente exigibilidade da totalidade dos montantes em dívida. O capital vencerá juros de mora à taxa dos juros compensatórios acrescida de 4% ao ano, podendo, contudo, o Banco, optar pela taxa de mora legal, caso esta seja superior.”
9.º A livrança dos autos foi subscrita e entregue ao “Banco A, S.A.”, “em branco”, no dia 29 de Novembro de 1993, juntamente com uma declaração escrita e assinada, na mesma data, com a autorização para o seu preenchimento, cujas fotocópias igualmente se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidas, (Documentos n.ºs 2 e 3) 10.º destinando-se a livrança a substituir as letras referidas nos art.ºs 5.º e 6.º, e a caucionar o cumprimento das obrigações do acordo de pagamento alegado no art.º 7.º.
11.º A primeira amortização estabelecida no plano de pagamento acordado venceu-se no mês de Fevereiro de 1994 e a última no mês de Setembro de 1996.
12.º Os Executados/Embargantes não efectuaram o pagamento de qualquer das prestações, nas datas dos seus vencimentos,
13.º mas fizeram entregas parcelares de dinheiro do montante global de Esc. 2.953.101$00, para amortização do valor da dívida.
14.º O “Banco A, S.A.” preencheu a livrança dos autos pelo valor que, então, se encontrava em dívida – Esc. 8.046.899$00 –,
15.º fixou o seu vencimento no dia 28 de Fevereiro de 1997,
16.º e deu-a depois à execução contra os Executados/Embargantes, cujo Processo Executivo deu entrada no Tribunal da Comarca de Guimarães, no dia 04-06-1998, e correu termos pelo 3.º Juízo Cível, com o n.º 494/1998, (Documento n.º 04)
17.º no qual foi penhorado o vencimento do Executado,
18.º e foram penhoradas, dia 06 de Outubro de 1999, as Fracções Autónomas “O”, “L”, “J”, “T” e “S” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.º ... da freguesia de ... - Lojas n.ºs … – . (Documento n.º 05)
19.º O exequente não promoveu a venda dos imóveis penhorados;
20.º e no dia 19-06-2013, o Tribunal proferiu o despacho que se transcreve: “Ante o trânsito em julgado do despacho que declarou extinta por deserção a instância, determino o levantamento da penhora incidente sobre o vencimento do executado (cfr, fls.62 e 65) e dos imóveis descritos a fls. 35. (Documento n.º 06)
21.º Salienta-se que não ocorreu qualquer modificação subjectiva por substituição do exequente, por transmissão do direito de crédito cambiário titulado pela livrança exequenda, tendo-se cumprido o princípio da estabilidade da instância consagrado no art.º 260.º do CPC.
22.º Aliás, o “Banco A, S.A.”, notificado para se pronunciar sobre a eventual extinção da instância da execução por deserção, deduziu a sua oposição, por requerimento do dia 17 de Abril de 2013, conforme documento de fls 131 a 134, que se junta por fotocópia, e cuja certidão foi já requerida e se protesta juntar. (Documento n.º 07)
23.º A ora Exequente requereu e obteve o desentranhamento e a entrega da livrança dada à execução no processo identificado no art.ºs 16.º “supra”, conforme documentos que se juntam por fotocópia, e cuja certidão foi já requerida e se protesta juntar, (Documentos n.ºs 08 e 09)
24.º e com ela instaurou a presente e nova execução,
25.º alegando, uma inexistente operação de empréstimo subjacente à emissão da livrança dos autos - “os factos constitutivos da obrigação aqui em causa ou a sua relação causal ou fundamental é o relativo à operação celebrada de empréstimo concedido aos Executados subscritores …
26.º e fundamentando o seu alegado direito sobre a livrança dos autos, nos contratos de cessão de crédito cujas cópias juntou com o mesmo requerimento.
27.º Todavia, o Banco A, S.A. não concedeu qualquer empréstimo, aos Executados/Embargantes, nem estes receberam daquele qualquer quantia, por empréstimo, ou a qualquer outro título, subjacente à emissão da livrança dos autos.
28.º A livrança dos autos foi subscrita e entregue ao “Banco A, S.A.”, nas circunstâncias e para os fins mencionados nos art.ºs 5.º a 10.º que antecedem,
29.º ou seja, para substituir as letras aceites pelos Executados/Embargantes, que o Banco A, S.A. havia recebido por endosso dos sacadores, a sociedade “Cutelarias, L.da” e do dito sócio e gerente desta, Alberto, e para caucionar o plano acordado para o seu pagamento.
30.º O “Banco A, S.A” e os Executados/Embargantes não celebraram qualquer contrato, entre si, subjacente à sua intervenção nas referidas letras,
31.º decorrendo o crédito daquele e a correspondente dívida destes, exclusiva e respectivamente, da sua posição de portador legítimo e de aceitantes das mesmas,
32.º apenas existindo, entre eles, obrigações cambiárias, abstractas, e sem causa juridicamente relevante,
33.º que foram posteriormente substituídas pela nova obrigação cambiária titulada pela livrança dos autos.
34.º O “Banco B, S.A.” não é e nunca foi dono nem possuidor da livrança dos autos, nem titular do direito nela mencionado, nem sujeito da respectiva relação cambiária,
35.º e não interveio no Processo Executivo que correu termos pelo 3.º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Guimarães – Processo n.º 494/1998 – como cessionário do crédito do exequente, “Banco A, S.A.”.
36.º O contrato de cessão de créditos que o “Banco B, S.A.” celebrou com a “Sociedade Investments ...”, alegado no n.º 1 do requerimento executivo, não compreende qualquer direito de crédito titulado pela livrança dos autos,
37.º Os Executados/Embargantes não intervieram, ignoram e impugnam os documentos n.ºs 1 e 2, juntos com o requerimento executivo,
38.º e não foram notificados de qualquer transmissão do crédito titulado pela livrança dos autos, nomeadamente, não foram notificados nem aceitaram a sua transmissão do “Banco A, S.A.” para o “Banco B, S.A.”;
39º Em suma – a Exequente não adquiriu quaisquer direitos sobre a livrança dos autos, nem é sua portadora legítima.
40.º Mas ainda que a Exequente tivesse adquirido, legitimamente, direitos sobre a livrança – o que se não concede – podiam e podem os Executados/Embargantes recusar o cumprimento da prestação reclamada na presente execução, e opor-se, por qualquer modo, ao exercício dos direitos nela incorporados, nos termos do disposto no art.º 304.º do Código Civil.
41.º Com efeito, está completada, há já vários anos, a prescrição do direito de crédito titulado pela livrança, facto que a própria Exequente reconhece e alega;
42.º assim como está completada, a prescrição do direito de crédito que a mesma titula – contrato de abertura de crédito a médio prazo outorgado no dia 29 de Novembro de 1993 -, mencionado no art.º 7.º “supra”,
43.º prescrição que os Executados/Embargantes, efectiva e expressamente, invocam.
44.º Os Executados/Embargantes ignoram, se o “Banco A, S.A.”, identificou a operação relativa à subscrição e entrega da livrança dos autos, pelos números mencionados no art.º 3.º do requerimento executivo.
45.º A livrança dos autos prova apenas que os Executados/Embargantes deviam ao “Banco A, S.A.”, a quantia nela inscrita, quando foi preenchida e dada à execução, único facto que aqueles reconheceram e reconhecem.
46.º São falsos, e na medida do ora alegado se impugnam, os factos alegados no requerimento executivo.
47º Salienta-se ainda, que a livrança dos autos foi dada à execução pelo seu portador legítimo, o “Banco A, S.A.”, contra os respectivos obrigados cambiários, os ora Executados/Embargantes, no identificado processo n.º 494/98, que correu termos pelo 3.º Juízo, 3.ª Secção do Tribunal Judicial de Guimarães;
48.º a citação dos executados, teve lugar nos dias 17 e 18 de Novembro de 1998, e interrompeu a prescrição de todas as acções contra os subscritores da livrança, nos termos das disposições combinadas dos art.ºs 70.º, 71.º e 77.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, e do art.º 323.º n.º 1 do Código Civil, (Documentos n.ºs 10 e 11)
49.º mas o novo prazo prescricional começou a correr logo após o acto interruptivo, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 327.º do Código Civil, por a instância ter sido considerada deserta, cerca de QUINZE ANOS depois de iniciada.
50.º Assim, todas as acções contra os subscritores relativas à livrança dos autos prescreveram nos dias 17 e 18 de Novembro de 2001.
51.º Dir-se-á ainda, e por último, que o “Banco A, S.A.”, instaurou a execução, pelos fundamentos invocados no respectivo requerimento executivo, a saber: a) a sua qualidade de dono e legítimo possuidor da livrança; b) e o contrato de abertura de crédito na modalidade de conta corrente caucionada ao abrigo do qual a livrança foi emitida e lhe foi entregue.
52º Assim, a livrança dos autos não pode servir de base à presente e nova execução, desta feita, instaurada por terceiro, que nem sequer é seu legítimo portador, e tendo por fundamento a alegada e inexistente relação subjacente à sua emissão.
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Com estes fundamentos conclui pedindo a extinção da instância executiva contra si formulada.
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Contestação:

1.º Vêm os Embargantes opor-se à execução com fundamento na inexistência de um contrato que fundamente a relação subjacente à emissão da livrança, bem como na ilegitimidade da Embargante, desconhecimento da cessão de créditos operada e ainda na prescrição.
2.º Conforme adiante se demonstrará, está votada ao insucesso por inexistência de fundamentos fácticos ou de direito que fundamentem a pretensão dos Embargantes.

Vejamos,

3.º Começa a sua oposição enumerando uma série de factos que são irrelevantes aos presentes autos – vide artigo 1.º até 6.º.
4.º Importa sim que os mesmos aceitam ter subscrito a livrança e assinado o contrato que lhe está subjacente – vide arts. 28.º e 49.º dos Embargos – confissão que a Embargada aqui aceita, nos termos e para os efeitos dos artigos 46.º e 465 n.º 2 do CPC.
5.º De igual modo, aceitam e reconhecem ter assinado o contrato que fundamenta a livrança executada – o qual, aliás, juntam como documento n.º 1 dos doutos Embargos e que aqui nos dispensamos de juntar por razões de economia processual.
6.º Contudo, contrariamente ao que os mesmos alegam, nomeadamente nos artigos 10.º e 29.º dos Embargos, a livrança não se limita a substituir letras emitidas anteriormente referentes a outro contrato.
7.º Ao invés, essa livrança, que subjaz os presentes autos, serve de garantia ao contrato celebrado, um novo contrato celebrado, de abertura de crédito a médio prazo no qual os Embargantes são Outorgantes.
8.º Esse contrato previa o pagamento do montante estipulado em 36 (trinta e seis) prestações mensais – vide cláusula TERCEIRA do referido contrato.
9.º Veja-se ainda que os Embargantes reconheceram-se devedores do Banco da totalidade das quantias, respectivos juros e encargos – cláusula QUINTA do contrato subjacente.
10.º Daqui se retira que os embargantes são devedores das quantias mencionadas no contrato e reclamadas na presente execução. O que, em momento algum refutam!
11.º Ora, os Embargantes autorizaram o Banco a preencher a livrança dada como garantia (vide cláusula QUARTA do mesmo), em caso de incumprimento das prestações acordadas, o que veio a suceder e que os próprios Embargantes reconhecem – vide artigo 12.º dos doutos Embargos.
12.º Nessa senda, não tendo sido liquidado o valor devido ao Banco, foi preenchida a livrança e intentada execução, em 04-06-1998, a qual correu os seus termos sob o nº 494/1998 no 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães.
13.º Em sede da qual teve lugar a penhora de vencimento do Executado, ora Embargante, bem como de dois imóveis.
14.º Contudo, tal acção, findou-se por deserção que originou a devolução ao Executado, ora embargado de todas as quantias penhoradas bem como o levantamento da penhora que incidia sobre os imóveis.
15.º O que levou a Exequente a requerer o desentranhamento da livrança em questão.

II. Da Prescrição

16.º Porém, a extinção daquela execução não determina a extinção do direito peticionado e, por isso, não impede a Embargada de intentar nova acção, o que veio a fazer, em 14-04-2014, com a apresentação do presente requerimento executivo.
17.º E nem se diga que tinha operado a prescrição.
18.º Porquanto, ao caso em apreço aplica-se o prazo prescricional ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309.º do CC.
19.º Cuja contagem se iniciou na data de vencimento da livrança, em 28-02-1997, essa sim prescrita, conforme indicado no requerimento executivo e executada apenas enquanto mero quirógrafo.
20.º Não obstante, existem situações que acarretam a interrupção da contagem do referido prazo.
21.º De acordo com o artigo 70.º da LULL, a prescrição da livrança ocorreria em 28-02-2000, facto este que não chegou a advir porquanto se verificou uma situação de interrupção da prescrição.
22.º Porquanto, como estatui o artigo 323.º n.º1 C.C. (Código Civil): “A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.” (negrito e sublinhado nosso).
23.º Tendo ainda sido entendimento jurisprudencial, nomeadamente através do Acórdão n.º 08A1999 de 09/09/2008 do Supremo Tribunal de Justiça (in www.dgsi.pt), “que a instauração da acção executiva, como acto que visa o ressarcimento do seu crédito e, como tal, de exercer o seu direito, igualmente interrompe a prescrição prevista no artigo 70.º da LULL.”
24.º Logo, não poderão, com razão, os Embargantes vir indicar que houve prescrição do direito, tomando como base a data de vencimento da livrança.
25.º Porquanto, conforme supra se expôs, correu já acção executiva, melhor identificada no art. 11.º da presente contestação.
26.º Momento a partir do qual ocorreu a interrupção do prazo prescricional primitivo.
27.º A ideia que preside a esta forma de interrupção da prescrição – a prevista no art. 323.º - é dupla: (i) por um lado, o credor exerce o seu direito ou exprime a intenção de o fazer; (ii) por outro, tem o devedor conhecimento daquele exercício ou desta intenção (16) A referência à intenção directa ou indirecta de vir a exercer o direito a que o citado art. 323.º alude no seu nº 1 traduz a regra de que bastará uma diligência judicial que seja incompatível com o desinteresse pelo direito de cuja prescrição se trate (17). – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-03-2010.
28.º E, dispõe o art. 326.º do CC que “A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo integral a partir do acto interruptivo.”.
29.º Continuando assim aquele aresto: “E, quanto a saber em que momento começará a correr novo prazo prescricional, esse momento será naturalmente aquele em que a eficácia da causa interruptiva cessar. (…) Vindo a lei, desde logo, a estabelecer um regime especial – o da interrupção duradoura do prazo da prescrição – no mencionado art. 327.º nº 1, prescrevendo que: «Se a interrupção resultar de citação, notificação ou acto equiparado, ou de compromisso arbitral, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo».”.
30.º Ora, a decisão que pôs termo ao processo, ocorreu em 22-05-2013.
31.º Assim, resulta por demais evidente que, tendo sido intentada a presente acção executiva em 2014, não se tinha ainda verificado o decurso do prazo prescricional e, como tal, a Embargada, tempestivamente, recorreu às vias judiciais ao seu dispor de forma a fazer valer o seu direito.

III. Da legitimidade

32.º Posto isto, os Embargantes vêm ainda alegar que desconhecem qualquer cessão de créditos ocorrida, bem como, que a livrança dada em garantia o foi ao Banco A S.A. e não ao Banco B, S.A., como alegado pela ora Embargada.
33.º A este propósito, convém referir que o Banco A foi incorporado por fusão no Banco B S.A., como bem os Embargantes sabem.
34.º Ora, no seguimento dessa fusão, o Banco B, S.A. cedeu à Investments (...) o crédito aqui em questão, como aliás, o contrato de abertura de crédito celebrado com os Embargantes – vide cláusula NONA, conforme esclarecido no requerimento executivo.
35.º E, posteriormente, o referido crédito foi alvo de nova cessão de créditos, desta feita para a X Portugal Limited, tornando por isso, a mesma, parte legítima para demandar os Embargantes.
36.º Acresce que, contrariamente ao que os mesmos fazem crer, já tinham conhecimento desta cessão, bem como da situação em apreço uma vez que lhes foi enviada carta na qual, inclusivamente, a Embargada forneceu cópia da livrança subscrita, numa tentativa de resolução extrajudicial, conforme documentos n.º 1 e 2 que ora se juntam e se dão por integralmente reproduzidos.
37.º Não obstante, e apenas por mera hipótese académica, sempre se diga que a falta de notificação da cessão de créditos apenas poderia determinar a ineficácia da mesma perante os Embargantes, até ao momento em que tomam conhecimento da mesma, visto que não é necessário a concordância dos mesmos para que o negócio de cessão de concretize.
38.º Isto é, o conhecimento não influi na validade do negócio, mas apenas opera no plano da eficácia.
39.º Assim, e uma vez que os mesmos já têm conhecimento da cessão de créditos, no pior dos cenários desde a citação para a presente execução, é a mesma plenamente eficaz.
40.º E apenas podiam opor-se à mesma com os fundamentos previstos (taxativamente) no artigo 356.º do CPC, o que não sucedeu.
41.º Mais se diga que, ao contrário do que os Embargantes alegam, nos documentos 1 e 2 juntos com o requerimento executivo consta a identificação do crédito sobre os Embargantes que foi cedido à Embargada – vide página 18 daquele requerimento.
*
Foi proferido despacho saneador onde se julgaram improcedentes as excepções da ilegitimidade activa e da prescrição da obrigação sustentada num documento quirógrafo. - cfr. fls. 82 e ss..
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença em que, respondendo à matéria de facto controvertida, se decidiu nos seguintes termos:

Julgar improcedentes os presentes embargos de executado e, em consequência, determino o prosseguimento da execução apensa contra os ora embargantes.
Inconformado com tal decisão, apela o Requerente, e, pugnando pela respectiva revogação, formula nas suas alegações as conclusões que adiante se referirão.

Os Embargantes interpuseram ainda recurso de apelação do despacho saneador, sendo que, das respectivas alegações desses recursos extraíram, em suma, as conclusões que também a seguir se referem:

Primeira - Os factos alegados na petição de embargos, relativos ao “aceite de favor” das letras referidas no contrato de abertura de crédito a médio prazo; e à “inexistência de qualquer empréstimo subjacente à emissão da livrança”, não foram impugnados pela exequente/embargada; e foram confirmados pelos depoimentos e declarações de parte acima transcritos.
Segunda: - Os factos alegados nos art.ºs 16.º a 24.º da petição de embargos, relativos ao processo de execução instaurado pelo Banco A, S.A., e seus incidentes - processo de execução n.º 494/1998 do 3.º Juízo Cível de Guimarães - foram confessados pela exequente/embargada, nos art.ºs 12.º, 13.º, 14.º e 15.º da sua contestação, e foram provados pelos documentos juntos com a petição de embargos, e pela certidão judicial junta aos autos no dia 02 de Dezembro de 2016.
Terceira: - Os factos alegados nos art.ºs 1.º a 33.º da oposição à execução não foram impugnados e devem considerar-se admitidos por acordo, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 574.º do Código de Processo Civil, Quarta: - Foram, assim, provados todos e cada um dos factos alegados pelos embargantes/executados, integrados no objecto do litígio e nos temas da prova.
Quinta: - O Tribunal “ quo” não conheceu nem se pronunciou sobre os factos alegados nos art.º s 2.º, 3.º, 4.º e 16.º a 33.º da petição de embargos, e integrados no objecto do litígio, nem sobre os documentos que os comprovam, e por isso, a sentença recorrida está ferida de nulidade, nos termos do disposto nas alíneas b) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.
*****
Sexta: - Nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 703.º do CPC, os escritos de livrança podem ser dados à execução:
- como títulos de crédito cambiários, dentro do prazo de prescrição do art.º 70.º da LULL;
OU
- como títulos executivos enquadrados no âmbito dos documentos particulares.
Sétima: - Cabe, ao beneficiário e ou ao portador legítimo do escrito de livrança, fixar a sua função executiva e decidir se a deve dar à execução, como título de crédito cambiário, ou como quirógrafo.
Oitava: - O Banco A, S.A., tomador da livrança dos autos, deu-a à execução, no dia 04-06-1998, contra os ora Executados/Embargantes, para cobrança da respectiva obrigação cambiária - Processo n.º 494/ 1998 do 3.º Juízo Cível da Comarca de Guimarães - e fixou, assim, definitivamente, a natureza jurídica do escrito de livrança dos autos, como título cambiário executivo.
Nona: O processo referido na conclusão anterior terminou por deserção da instância e o levantamento das penhoras, por despachos dos dias 22-05-2013 e 19-06-2013, respectivamente.
Décima: - A norma do art.º 703.º, n.º 1, alínea c) do CPC não confere dupla e sucessiva eficácia executiva ao escrito de livrança, no sentido de poder ser dado à execução para cobrança da respectiva obrigação cambiária; e poder ser dado a segunda execução, para cobrança da obrigação causal, como mero quirógrafo, depois de ter sido declarada a extinção da instância da primeira execução, por deserção.
*****
Décima primeira: - A ora Exequente requereu e obteve o desentranhamento e a entrega da livrança, no identificado Processo n.º 494/1998 do 3.º Juízo Cível de Guimarães, e deu-a à execução, pela segunda vez, no dia 17-04-2014, alegando um contrato de empréstimo concedido pelo “Banco A, S.A. “ , aos subscritores, como causa de pedir ou relação subjacente à emissão da livrança.
Décima segunda: - A declaração constante do escrito de livrança dos autos - “Livrança de caução ao contrato de abertura de crédito a médio prazo” - é omissa quanto à data, e ao conteúdo, e à identificação das partes contratantes, e às obrigações e aos fins desse contrato de abertura de crédito, e por isso, dele não constam os factos constitutivos do contrato de abertura de crédito a que se reporta.
Décima terceira: - E os factos constitutivos da relação subjacente à emissão e entrega do escrito de livrança, alegados no n.º 3 do requerimento executivo - “ foi entregue uma livrança na quantia de 8.046.899$00, ou 40.137,76 €”, e no n.º 10 do mesmo requerimento - “operação celebrada de empréstimo concedido aos executados subscritores” - são falsos e não estão compreendidos no contrato de abertura de crédito subjacente à emissão da livrança, celebrado para regularização dos aceites à “Fábrica de Cutelarias - Y, L.da” e a “Alberto”, do montante de Esc: 11.000.000$00.
Décima quarta: - Além disso, pelo menos em tese, a subscrição e entrega da livrança, “em branco” importa apenas a obrigação de pagar o valor que o seu tomador nela vier a indicar, cuja dívida tanto pode ser do subscritor da livrança como de terceiro.
Décima quinta: O escrito de livrança dos autos e o requerimento executivo não preenchem os requisitos dos títulos executivos enquadrados no âmbito dos documentos particulares nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 703.º do CPC.
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Décima sexta: - Surpreendidos por a livrança ter sido dada à execução, pela segunda vez, mais de vinte e três anos, depois de a terem subscrito e entregue, em branco, ao “Banco A, S.A”, e pelos falsos fundamentos invocados no requerimento executivo, os ora recorrentes deduziram oposição à execução, por embargos, como era seu direito e obrigação, para reporem a verdade dos factos e alegarem a prescrição extintiva da obrigação cambiária e da obrigação subjacente à emissão da livrança,
Décima sétima: - Os ora recorrentes nunca fizeram crer que iriam renunciar ao direito de invocar a prescrição, e não compreendem nem aceitam que a sua invocação possa ser considerada de “abuso de direito”, na vertente “venire contra factum proprium”.
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Décima oitava: - O Banco A, S.A., não promoveu a venda dos imóveis penhorados e deixou o processo n.º 494/1998 do 3.º Juízo Cível da Comarca de Guimarães sem qualquer impulso durante mais de treze anos, cuja instância foi declarada deserta, por despacho do dia 22-05-2013.
Décima nona: Os factos referidos na conclusão anterior criaram a convicção, nos executados, da perda do interesse do Banco A, S.A., pela satisfação do crédito exequendo.
Vigésima: - Nem o “Banco B, S.A.”, nem a sociedade “Investments (...)”, nem a ora exequente/recorrida deduziram a sua habilitação no processo n.º 494/1998 do 3.º Juízo Cível da Comarca de Guimarães.
Vigésima primeira: A ora exequente deu a livrança à execução, pela segunda vez, e os executados, ora recorrentes, foram citados para os termos do processo, no dia 25-10-2016, ou seja: - mais de vinte e três anos, depois de terem subscrito e entregue a livrança, em branco, ao “Banco A, S.A”; mais de vinte e dois anos, depois de vencidas todas as prestações do contrato de abertura de crédito a médio prazo, que a livrança titula, por nenhuma das prestações ter sido paga, pontualmente; e mais de vinte anos, depois da data do vencimento da última prestação do contrato de abertura de crédito;
Vigésima segunda: - Os executados, com 81 e 75 anos de idade, vivem, exclusivamente, das suas pensões de reforma de € 929,48 e de € 264,32; e a pensão do executado A. M. foi penhorada, à ordem do presente processo executivo, e reduzida a € 601,30 mensais, com início no mês de Janeiro de 2017.
Vigésima terceira: - Os factos mencionados nas conclusões décima oitava, décima nona, vigésima, vigésima primeira e vigésima segunda excedem manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico e social dos respectivos direitos e constituem ou integram abuso de direito, nos termos do disposto no art.º 334,º do Código Civil, na vertente “venire contra factum proprium.” Neste sentido, v. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-11-2013 proferido no Processo 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, número convencional: 6.ª Secção.
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Vigésima quarta: - A douta sentença recorrida viola e ou não faz correcta aplicação e interpretação das normas dos art.ºs 574.º, n.º 2; 615.º, n.º 1, alínea d); 703.º, n.º 1, alínea c) e 732.º, n.º 2 do Código de Processo Civil; art.ºs 16.º;
70.º, parágrafo primeiro; 75.º; 76.º; 77.º e 78.º, parágrafo primeiro da LULL; e art.º 334.º do Código Civil.
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O Apelado apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência da Apelação.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas são, no caso, as seguintes:

- Apreciar da invocada nulidade da decisão recorrida por omissão de conhecimento, prevista no artigo 615, nº 1, al. d), do C.P.C..
- Apreciar da existência ou não de um título executivo.
- Apreciar da existência ou não de uma situação de abuso de direito na invocação da prescrição
- Apreciar da existência de abuso de direito por parte da Exequente.
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III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

A factualidade dada como assente e indemonstrada na sentença recorrida é a seguinte:

Factos provados.

1.- Os Executados/Embargantes aceitaram letras de câmbio, sacadas pela sociedade “Fábrica de Cutelarias – Y, L.da”, adiante designada apenas por “Cutelarias, L.da”, e pelo sócio e gerente desta, Alberto.
2.- Sucedeu, porém, que o dito Alberto e a sociedade “Cutelarias, L.da,” endossaram letras do aceite dos ora Executados/Embargantes, do montante global de Esc. 11.000.000$00, ao “Banco A, S.A.”, e não as pagaram nas datas dos seus vencimentos, nem posteriormente.
3.- O “Banco A, S.A.” intimou os Executados/Embargantes a procederem ao pagamento das letras mencionadas no artigo anterior.
4.- E no dia 29 de Novembro de 1993, acordaram na regularização da respectiva dívida, em trinta e duas prestações mensais sucessivas de Esc. 343.750$00 cada uma, vencendo-se a primeira amortização em Fevereiro de 1994, tudo nos termos e condições constantes do acordo escrito intitulado “Contrato de Abertura de Crédito a Médio Prazo”, conforme documento junto a fls. 10 a 13, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
5.- Nas cláusulas primeira, terceira, quarta e sétima do contrato identificado em 4., consta expressamente o seguinte: “Primeira: O Banco abre, a favor do Primeiro Contratante, um crédito: a) de Esc. 11.000.000$00 (onze milhões de escudos); b) destinado à regularização dos aceites à “Fábrica de Cutelarias – Y, L.da” e a Alberto; c) pelo prazo de trinta e três meses; d) a ser utilizado de imediato. Terceira: O reembolso ou liquidação do crédito concedido será efectuado em trinta e duas amortizações mensais, constantes e sucessivas, no valor de Esc: 343.750$00 cada uma, vencendo-se a primeira amortização em Fevereiro de 1994.” Quarta: Para caucionar o bom pagamento das responsabilidades emergentes deste contrato será entregue ao Banco, nesta data, uma livrança, em branco, convenientemente subscrita pelo Primeiro Contratante, podendo o Banco proceder ao seu completo preenchimento fixar o seu vencimento e apresentá-la a desconto ou a pagamento pelo valor total das importâncias em dívida até ao limite do crédito aberto se, à data do vencimento do crédito estiver por liquidar qualquer quantia da responsabilidade do Primeiro Contratante, ou ainda se verificar a situação prevista na cláusula sétima deste contrato. Sétima: O incumprimento por parte do Primeiro Contratante, de qualquer das obrigações assumidas neste contrato, ou a ele inerentes, implica o imediato vencimento de todo o crédito, com a consequente exigibilidade da totalidade dos montantes em dívida. O capital vencerá juros de mora à taxa dos juros compensatórios acrescida de 4% ao ano, podendo, contudo, o Banco, optar pela taxa de mora legal, caso esta seja superior.”
6.- A livrança apresentada à execução foi subscrita e entregue ao “Banco A, S.A.”, “em branco”, no dia 29 de Novembro de 1993, juntamente com uma declaração escrita e assinada, na mesma data, com a autorização para o seu preenchimento, conforme documentos juntos a fls. 12v e 13, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
7.- A livrança apresentada à execução destinou-se a caucionar o cumprimento das obrigações do “acordo de pagamento” descrito em 4 e 5 supra.
8.- A primeira amortização estabelecida no plano de pagamento acordado venceu-se no mês de Fevereiro de 1994 e a última no mês de Setembro de 1996.
9.- Os Executados/Embargantes não efectuaram o pagamento de qualquer das prestações, nas datas dos seus vencimentos, mas fizeram entregas parcelares de dinheiro do montante global de Esc. 2.953.101$00, para amortização do valor da dívida.
10.- Após o incumprimento contratual dos embargantes e nos termos acordados com estes, o “Banco A, S.A.” preencheu a livrança apresentada à execução pelo valor que, então, se encontrava em dívida – Esc. 8.046.899$00.
11.- Após o preenchimento dessa livrança nos termos do pacto de preenchimento, os embargantes nada mais liquidaram ao exequente por conta da mesma.

Fatos não provados.

Não se provaram os demais fatos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos fatos provados ou estejam em contradição com estes.

Fundamentação de direito.

Como fundamento da nulidade que invoca alegam os Recorrentes que os factos alegados na petição de embargos, relativos ao “aceite de favor” das letras referidas no contrato de abertura de crédito a médio prazo; e à “inexistência de qualquer empréstimo subjacente à emissão da livrança”, não foram impugnados pela exequente/embargada e foram confirmados pelos depoimentos e declarações de parte acima transcritos.

Tais factos, alegados nos art.ºs 16.º a 24.º da petição de embargos, relativos ao processo de execução instaurado pelo Banco A, S.A., e seus incidentes - processo de execução n.º 494/1998 do 3.º Juízo Cível de Guimarães - foram confessados pela exequente/embargada, nos art.ºs 12.º, 13.º, 14.º e 15.º da sua contestação, e foram provados pelos documentos juntos com a petição de embargos, e pela certidão judicial junta aos autos no dia 02 de Dezembro de 2016.
Ora, os factos alegados nos art.ºs 1.º a 33.º da oposição à execução não foram impugnados e devem considerar-se admitidos por acordo, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 574.º do Código de Processo Civil, pelo que, foram, assim, provados todos e cada um dos factos alegados pelos embargantes/executados, integrados no objecto do litígio e nos temas da prova.

Destarte, não tendo o tribunal conhecido nem se pronunciado sobre os factos alegados nos art.º s 2.º, 3.º, 4.º e 16.º a 33.º da petição de embargos, e integrados no objecto do litígio, nem sobre os documentos que os comprovam, a sentença recorrida está ferida de nulidade, nos termos do disposto nas alíneas b) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.

Começando pela primeira das aludidas nulidades, temos que, estruturalmente, na arquitectura do nosso ordenamento jurídico, a fundamentação das decisões constitui a sua verdadeira e válida fonte de legitimação, e por isso tal específico dever se encontra constitucionalmente plasmado (art. 205º, nº 1 da C.R.P., ao prescrever que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente devem ser fundamentadas na forma prevista na lei).

Tal dever de fundamentação (1) cumpre, em geral, duas funções: uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação de controle crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação, e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, juízo concordante ou divergente; outra, de ordem extraprocessual, que procura tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, garantindo a transparência do processo e da decisão.

Para que a decisão careça de fundamentação “não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito(2).

Assim, por exemplo, Miguel Teixeira de Sousa (3) refere que “... esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artigo 208º, nº 1 CRP e artigo 158º, n° 1 CPC) ...o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo ( ... ) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão ( ... ); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível".

No mesmo sentido se pronuncia, Lebre de Freitas (4), afirmando que "... há nulidade quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação".

De igual modo, Antunes Varela (5), entende que a nulidade existe quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão e não a mera deficiência de fundamentação.

De tudo o exposto, como evidente resulta que, quer a ausência total de fundamentação, quer a existência de uma fundamentação de facto ou de direito que seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial, constituirão causas de nulidade da sentença por falta de fundamentação.

A segunda das aludidas e invocadas nulidades - do art. 615º, nº 1, al. d), do C.P.C. -, abrange os casos nulidades da “omissão de conhecimento” e do “conhecimento indevido” (6).

O primeiro desses casos (7) consiste, assim, no facto de a decisão não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer, por força do disposto no art. 608º, nº 2 do C.P.C.. (8)

Daí que se possa afirmar que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não ter tido aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.

A segunda das referidas hipóteses, a prevista na alínea d) – a do conhecimento indevido ou excesso de pronúncia –, verifica-se em todos aqueles casos em que sejam conhecidas e apreciadas questões que na sentença não podiam ser tratadas ou julgadas, por não terem sido colocadas em causa por qualquer das partes e não serem de conhecimento oficioso.

Este tipo de nulidade, tal como a omissão de pronúncia, está também directamente relacionada com o comando legal fixado no nº 2, do artº 608º, do CPC, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

Esta norma suscita o problema de se saber qual o sentido exacto da expressão «questões» nele empregue, sendo elucidativos os ensinamentos de Alberto dos Reis, o qual refere que “(…) assim como a acção se identifica pelos seus elementos essenciais (sujeitos, pedido e causa de pedir) (…) também as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado”. (9)

E, assim sendo, óbvio resulta que o conceito (questões) terá ser considerado num sentido amplo, ou seja, englobando tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que sobre elas as partes hajam suscitado.

De tudo decorre, assim, que não basta à regularidade da decisão a fundamentação que contém, revelando-se ainda necessário que trate e aprecie o divergência jurídica carreada para autos pelas partes, podendo assim considerar-se que esta causa de nulidade da decisão complementa a da nulidade por falta de fundamentação, pois que, o contraditório proporcionado às partes com relação aos aspectos jurídicos da causa não pode deixar de encontrar a devida expressão e resposta na decisão. (10)

Destarte e, sintetizando, estando defeso ao Juiz ocupar-se de questões não suscitadas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso, a nulidade da decisão por pronúncia indevida (conhecimento indevido), constituindo hipótese inversa à da omissão de pronúncia, apenas ocorre nos casos em que na decisão se conhece questão de que não se podia tomar conhecimento.

Aqui chegados, vejamos então se a decisão recorrida enferma ou não dos apontados vícios, ou seja, se não especifica os fundamentos de facto e de direito e se deixou se pronunciar sobre qualquer questão de que não pudesse deixar de conhecer, como pretendem os Recorrentes.

Como é consabido, a doutrina e a jurisprudência distinguem, por um lado, “questões” e, por outro, “razões” ou “argumentos” e, concluem que só a falta de apreciação das primeiras – das "questões” – integra a nulidade prevista no citado normativo, mas já não a mera falta de discussão das «razões» ou «argumentos» invocados para concluir sobre as questões. (11)

Como supra se expôs, consideram os Recorrentes não ter sido tomada em consideração materialidade referente ao aceite de favor das letras referidas no contrato de abertura de crédito a médio prazo e à inexistência de qualquer empréstimo subjacente à emissão da letra da livrança, já que o tribunal não conheceu nem se pronunciou sobre os factos alegados nos artigos 2, 3, 4 e 16 a 33, da petição de embargos.

Ora, como é consabido, a subscrição de favor oferece duas características:

- O subscritor não tem a intenção de vir a desembolsar o montante da letra - ele quer apenas, apondo nela a sua assinatura, facilitar, pela garantia que representa, a circulação do título, não deixando, porém, de agir com a consciência de ficar cambiariamente obrigado em virtude da subscrição;
- Subjacente á obrigação cambiária assumida pelo favorecente, não se encontra uma relação jurídica fundamental estabelecida entre ele e o favorecido, além da que decorre da própria convenção de favor – o favorecente torna-se obrigado apenas pelo “favor” e não porque já o fosse em virtude doutra relação extra-cartular (12).

A subscrição de favor tem como causa o próprio favor, e, nesses casos, pode o favorecente opor ao favorecido a excepção, já que a relação entre ambos é uma relação de garantia e assim, se o favorecido invocar contra o favorecente o direito emergente da letra, este, reportando-se à convenção entre ambos estabelecida, paralisará essa pretensão, pois é sabido que numa relação de garantia em caso algum o garante responde para com o respectivo beneficiário (13).

Característico, na letra de favor, é a assunção de uma obrigação cambiária que não tem correspondência com qualquer relação subjacente ou fundamental (além da própria convenção de favor).

Para que de letra de favor se possa falar, necessário é que resultem provados os factos integradores da convenção de favor.

Todavia, a excepção consistente na assinatura de favor sendo, naturalmente, oponível no domínio das relações imediatas, designadamente e em particular, nas relações entre o favorecente e o favorecido, mas já não o é nas relações mediatas, onde a letra de favor é equiparada à letra regular.

Como refere Ferrer Correia, “o favorecente subscreve a letra não pensando em vir a pagá-la, mas terá de a pagar se o pagamento lhe for exigido por um portador mediato”. (14)

E assim sendo, sendo irrelevante a questão de saber se a subscrição foi prestada de favor, tal materialidade não se reveste de qualquer interesse para a decisão da causa, não se vislumbra que a decisão não contenha todos os fundamentos de facto e de direito e bem assim que tenha deixado de apreciar e decidir as questões litigadas pelas partes, e, por decorrência, que se verifique qualquer das invocada nulidades, improcedendo nesta parte a apelação.

Mais alegam os Recorrentes o escrito de livrança dos autos e o requerimento executivo não preenchem os requisitos dos títulos executivos enquadrados no âmbito dos documentos particulares nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 703.º do CPC.

A este propósito, porque nenhuns e novos fundamentos foram invocados, salienta-se o que com relação a este aspecto se refere na decisão recorrida, que é perfeitamente esclarecedor quanto a esta questão.

E aí se refere o seguinte:

Apesar da obrigação cambiária fundada na “livrança” dada à execução estar prescrita, não invalida que esse mesmo documento “livrança” possa subsistir como título executivo, desde que desse documento conste a causa da obrigação subjacente ou então essa mesma causa seja invocada no requerimento inicial da execução.

Com efeito, desde a alteração do Código de Processo Civil (decorrente do DL n.º 329-A/95, de 12.12), que o nosso legislador entendeu ampliar o elenco dos títulos executivos, por forma a decisivamente contribuir para a diminuição do número das acções declarativas condenatórias, assim se evitando a desnecessária propositura de acções que tivessem por alcance o reconhecimento de um direito do credor sobre o qual não havia verdadeira controvérsia, apenas tendo como finalidade facultar ao mesmo um título executivo.
E no seguimento desse propósito, alargou o espectro dos títulos com força executiva aos documentos particulares que contenham a assinatura do devedor e importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações (cfr. artigo 703.º, n.º 1, al. c), do C.P.C.).
Desta forma, face à actual redacção da al. c), do n.º 1, do artigo 703.º, do C.P.C., é manifesto que o legislador deixou, propositadamente, de fazer expressa referência ao que na legislação anterior fazia relativamente às letras, livranças, cheques e outros documentos, substituindo-os pela alusão a documentos particulares nas condições e com os requisitos naquela alínea mencionados – v., a propósito, Ac. da RC, de 3.12.98, in CJ/98, tomo 5, pág. 33.
Assim, é hoje pacífico na nossa doutrina e jurisprudência que, em face da redacção dada à citada al. c), do n.º 1, do art. 703.º, do C.P.C., é admissível que a livrança mesmo não constituindo título cambiário, possa servir de título executivo desde que o montante da obrigação pecuniária em que se traduz a quantia exequenda seja determinado ou determinável por exclusiva função do título .- cfr. neste sentido douto Ac. TRG, datado de 17-12-2013, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrg..
E, no caso, não podemos deixar de registar que a exequente até invocou a relação subjacente à emissão dessa livrança e do teor da mesma resulta, de um modo inequívoco as razões da sua subscrição pelos embargantes e o valor em dívida.

Assim, e pelas razões expostas improcede também, nesta parte, a presente apelação.

Alegam ainda os Recorrente que nunca fizeram crer que iriam renunciar ao direito de invocar a prescrição e não compreendem nem aceitam que a sua invocação possa ser considerada de abuso de direito, na vertente de “venire contra factum proprium”

No que concerne a este aspecto, quer porque a decisão recorrida não versa esta questão no seu conteúdo, quer porque a questão relativa à prescrição já foi decidida no despacho saneador, que foi objecto de recurso, nada se determina dado que é no recurso desse despacho e não no presente, que incide sobre a decisão final que não trata ou incide sobre um tal questão, que mesma terá de ser solucionada.

Improcede, assim, neste aspecto a presente apelação.

Alegam ainda os Recorrentes que a Exequente terá excedido o fim económico e social dos respectivos direitos invocados e praticou condutas que constituem ou integram abuso de direito, nos termos do disposto no art.º 334.º do Código Civil, na vertente “venire contra factum proprium.”

Isto porque o Banco A, S.A., não promoveu a venda dos imóveis penhorados e deixou o processo n.º 494/1998 do 3.º Juízo Cível da Comarca de Guimarães sem qualquer impulso durante mais de treze anos, cuja instância foi declarada deserta, por despacho do dia 22-05-2013.

Tais factos criaram a convicção, nos executados, da perda do interesse do Banco A, S.A., pela satisfação do crédito exequendo.

E nem o “Banco B, S.A.”, nem a sociedade “Investments (...)”, nem a ora exequente/recorrida deduziram a sua habilitação no processo n.º 494/1998 do 3.º Juízo Cível da Comarca de Guimarães.

Por outro lado, a ora exequente deu a livrança à execução, pela segunda vez, e os executados, ora recorrentes, foram citados para os termos do processo, no dia 25-10-2016, ou seja: - mais de vinte e três anos, depois de terem subscrito e entregue a livrança, em branco, ao “Banco A, S.A”; mais de vinte e dois anos, depois de vencidas todas as prestações do contrato de abertura de crédito a médio prazo, que a livrança titula, por nenhuma das prestações ter sido paga, pontualmente; e mais de vinte anos, depois da data do vencimento da última prestação do contrato de abertura de crédito;

E os executados, com 81 e 75 anos de idade, vivem, exclusivamente, das suas pensões de reforma de € 929,48 e de € 264,32; e a pensão do executado A. M. foi penhorada, à ordem do presente processo executivo, e reduzida a € 601,30 mensais, com início no mês de Janeiro de 2017.

Estando, no abuso de direito, em jogo, um princípio de ordem e interesse público, não depende da invocação das partes saber se, quem exercita o direito que se arroga, age motivado e sob condicionantes que tornem o seu exercício ilegítimo (15), e, como defendia Manuel de Andrade, ainda antes do actual C.C., verifica-se a existência de abuso de direito quando este era exercido “em termos clamorosamente ofensivos da justiça“, mostrando-se “ gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na colectividade“. (16)

No actual C.C. o Artº. 334º prescreve “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito“, sendo que, adoptou-se nesse preceito do C.C. a concepção objectiva de abuso de direito, uma vez que “não é necessária a consciência de se excederem com o seu exercício os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, basta que se excedam esses limites“. (17)

Como sustenta Orlando de Carvalho, o que importa averiguar é se o uso do direito subjectivo obedeceu ou não aos limites de autodeterminação, poder esse que existe, tão somente, para se prosseguirem interesses e não para se negarem interesses, sejam eles próprios ou alheios, e o abuso de direito “é justamente um abuso porque se utiliza o direito subjectivo para fora do poder de usar dele“ (18), havendo abuso de direito, segundo o critério proposto por Coutinho de Abreu “quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumental e na negação de interesses sensíveis de outrem“. (19)

O princípio do “venire contra factum proprium”, como aplicação do princípio da confiança do tráfico jurídico, faz com que não deva ser desiludida a outra parte quando esta confia em declarações ou no comportamento do titular do direi­to, pois, como afirma Menezes Cordeiro, “no essencial, a concretização da con­fiança, ela própria concretização de um princípio mais vasto, prevê, (...) a actuação de um facto gerador de confiança, em termos que concitem interesse por parte da ordem jurídica; a adesão do confiante a esse facto; o assentar, por parte dele, de aspectos im­portantes da sua actividade posterior sobre a confiança gerada - um determinado inves­timento de con­fiança - de tal forma que a supressão do facto provoque uma iniquidade sem remédio. O factum proprium daria o critério de imputação da confiança gerada e das suas consequên­cias”. (20)

Além disso, “normalmente, não se exige culpa por parte do res­ponsável pela criação da situação de confiança. Mas exige-se que ele estivesse em con­dições de poder agir doutra maneira, designadamente, que tivesse podido conhecer e impedir a aparência criada, usando o cuidado normal, que devesse e pudesse conhecer que, ao adoptar a conduta que cria a confiança, se priva para o futuro de parte da sua liberdade de decisão pessoal”. (21)

No que respeita aos pressupostos salienta Baptista Machado que “a con­fiança digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura”.
“Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação de confiança, é preciso que ela directa ou indirectamente revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro”. (22)

Logo, o conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica, apenas surgem, quando alguém, estando de boa fé, com base na situação de con­fiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida, de onde lhe resultarão danos, se a sua legítima confiança vier a ser frustrada.

Ora, como é entendimento pacificamente aceite “a questão do abuso do direito, que é de conhecimento oficioso, não está sujeita ao princípio da preclusão consagrado, quanto aos meios de defesa do réu, no art. 573º, visto caber nas excepções previstas no seu nº 2. Por isso, ainda que se possa entender que o réu a não invocara ao contestar, a partir daqueloutro articulado, é matéria que ficou flagrantemente incluída no leque de questões submetidas pelas partes à apreciação do tribunal – constituídas pelos pedidos formulados, causas de pedir invocadas e excepções deduzidas – e cujo conhecimento era imposto pelo nº 2 do art. 608º. (23)

Como é consabido, os recursos ordinários mais não visam do que permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida, o que tem directo reflexo na delimitação das questões que lhe podem ser dirigidas.

O ponto de partida do recurso é sempre uma decisão que recaiu sobre determinadas questões, visando-se com ele apreciar da manutenção, alteração ou revogação daquela, razão pela qual, enquanto meio de impugnação de uma decisão judicial, o recurso apenas pode incidir, em regra, sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo o tribunal ad quem confrontar-se com questões novas (24).

Os recursos constituem, assim, mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, pois que a diversidade de graus de jurisdição determina, em regra, que os tribunais superiores sejam apenas confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios (25).

E apenas podem ser excepcionadas desta regra aquelas situações em que essas questões novas sejam de conhecimento oficioso e o processo contenha os elementos imprescindíveis.

Uma tal regra encontra a sua justificação no princípio da preclusão, quer por desprezar a finalidade dos recursos (art. 627º, nº 1 do C.P.C.), quer para não impedir a supressão de graus de jurisdição.

Na situação vertente, à luz do exposto, do facto de constituir matéria de excepção não sujeita ao princípio de preclusão, torna legitima a invocação do abuso de direito por via recursória não obstando ao seu conhecimento o facto de a Recorrida apenas agora o ter suscitado e de sobre ele ainda não ter recaído qualquer decisão, designadamente a recorrida.

Todavia, se como inelutável resulta que isto assim é, é também incontornável realidade existe uma limitação a este princípio do conhecimento ex officio do abuso de direito.

Na verdade, pese embora o abuso de direito (artigo 334º do Código Civil) possa ser, como é, de conhecimento oficioso, não estando, por conseguinte, vedado o seu conhecimento ao Tribunal, isso não significa que este considere ocorrido o abuso de direito à luz de factos que não foram alegados nem se possam considerar adquiridos nos autos.

Isto é, “mesmo que se considere que esse fundamento (abuso de direito) é de conhecimento oficioso, será sempre necessário que esteja demonstrada a respectiva factualidade para que o mesmo possa ser apreciado(26).

Com efeito, “a aplicação do abuso de direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos, salva a hipótese de se tratar de posições indisponíveis. Além disso, as consequências que se retirem do abuso de direito devem estar compreendidas no pedido feito ao tribunal, em virtude do princípio dispositivo”. (27)

Significa isto que, não obstante ser o abuso de direito de conhecimento oficioso, não pode tal instituto ser apreciado à luz de factos não provados e de factos novos ou documentos novos que visam a alteração da matéria de facto.

Neste mesmo sentido, se decidiu no Acórdão do STJ de 28/11/2013, considerando que “o abuso de direito (artigo 334º do CC) pode ser objecto de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não está vedado ao Tribunal, ainda que a sua invocação constitua questão nova (artigo 660º do CPC/artigo 608º, n.º 2 NCPC) mas isso não significa que o Tribunal considere ocorrido o abuso de direito à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos”. (28)

E assim sendo, inelutável se torna concluir que o abuso de direito pode ser oficiosamente conhecido, ainda que, apenas, invocado nas alegações de recurso, mas a verdade é que o conhecimento oficioso não prescinde da alegação e prova da factualidade que se integre em tal conceito jurídico”, pelo que, para esse feito, é necessário que o tribunal disponha da factualidade pertinente, alegada pelas partes nos respectivos articulados. (29)

Ora, compulsados os autos à evidencia se constata que a presente questão da eventual existência de abuso de directo por parte da Recorrida apenas foi suscitada por via recursória, não tendo sobre ela recaído qualquer decisão, e bem assim que os factos agora invocados como fundamento dessa excepção não foram antes alegados e consequência também não foram considerados na decisão recorrida objecto de recurso.

As alegações de recurso mostram-se, por isso, ampliadas relativamente aos fundamentos alegados no articulado de oposição por embargos, pois que, vem apenas agora a Recorrente, nas alegações de recurso, ex novo, alegar a eventual existência da factualidade em que faz assentar o invocado de abuso de direito.

Por decorrência, e uma vez que o conhecimento desta excepção não prescinde da alegação e prova da factualidade que se integre em tal conceito jurídico”, sendo, para esse feito, é necessário que o tribunal disponha da factualidade pertinente, alegada pelas partes nos respectivos articulados, não se pode assim proceder ao conhecimento desta excepção.

Destarte, na impossibilidade de sere apreciada esta questões, por inexistência de matéria factual, improcede, sem mais, também nesta parte, a presente apelação.

E assim sendo, improcede, na íntegra a presente apelação.

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes.
Guimarães, 04/10/2018.

Jorge Alberto Martins Teixeira
José Fernando Cardoso Amaral.
Helena Gomes de Melo.

1. Como foi salientado já no Ac. TC nº 304/88, de 14/12 no BMJ 382/230 e no DR, II Série, de 11/04/1989.
2. Cfr. A. Varela e outros, obra citada, p. 687.
3. Estudos Sobre o Processo Civil. pg. 221.
4. In Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pg. 669.
5. In Manual de Processo Civil, pg. 667.
6. Cfr. A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 690.
7. Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, reimpressão, p. 142.
8. Cfr., p. ex., A. Varela e outros, obra citada, p. 690; Alberto dos Reis, obra e local citado (estabelecendo também uma correspondência directa entre o vício em questão e a exigência mencionada no art. 660º, nº 2 do C.P.C.); Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, 1982, p. 142.
9. Cfr. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., pg. 54.
10. Cfr. Anselmo de Castro, obra e local citados na nota anterior.
11. Cfr. Neste sentido, Acórdão STJ de 02.07.1974, de 06.01.1977 e de 05.06.1985, entre outros.
12. Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pp. 50 e 51.
13. Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pp. 52 e 53.
14. Cfr. in “Lições de Direito Comercial”, III, 1956, nº 13, pág. 49.
15. Cfr. Ac. S.T.J. 5.02.87, B.M.J. 364º, pag 787
16. Cfr. Manuel de Andrade – Teoria Geral das Obrigações, pag. 63
17. cfr. A. Varela, in R.L.J., ano 114, pag. 74-75 .
18. Cfr. Teoria Geral do Direito Civil – Sumários desenvolvidos, Coimbra, 1981, pag. 44.
19. Cfr. Coutinho de Abreu, Abuso de Direito, pag. 43.
20. Cfr. Menezes Cordeiro, ob. cit., pg 758.
21. Cfr. Baptista Machado, obra citada, pag. 414 e, também no sentido de inexigência de culpa, Menezes Cordeiro, obra e volume citados, pag. 761.
22. Cfr. Baptista Machado, Obra citada, pag. 416.
23. Cfr. Acórdão do S.T.J., de 12-7-2018, processo 2069/14.1T8PRT.P1.S1, in www.dgsi.pt
24. Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pg. 94.
25. Cfr. Abrantes Geraldes, obra e local supra referidos.
26. Cfr Ac. STJ de 4/02/2010, Revista n.º 2620/06.0TJPRT.S1-7ª Secção
27. Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, 2005, página 373.
28. Cfr. Revista n.º 161/09.3TBGDM.P2.S1, Relator Conselheiro Salazar Casanova, in www.dgsi.pt.
29. Cfr. Ac. STJ de 21/04/2010, Revista n.º 634/05.7TBMGR.C1.S1-2ª Secção.