Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
403/21.7PBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INJUNÇÃO
CUMPRIMENTO DA INJUNÇÃO
PROVA DO CUMPRIMENTO DA INJUNÇÃO
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 124.º, N.º 1, 282.º, N.º 4, 368.º, N.º 2, ALÍNEA E), 379.º, N.º 1, ALÍNEA C), E 389.º-A, N.º 1, ALÍNEAS A) E B), TODOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
1 – Determinada a suspensão provisória do processo mediante o cumprimento de injunções e regras de conduta, se o arguido, no decurso da suspensão, apenas cumpre parcialmente a injunção e nem sequer dá conhecimento desse cumprimento parcial no processo, pode o Ministério Público deduzir acusação e remeter o processo para julgamento.

2 – Prosseguindo o processo para julgamento, alegando o arguido na contestação o cumprimento da injunção, comprovando-a, e justificando a circunstância de não ter dado conhecimento desse cumprimento no processo através da junção dos pertinentes comprovativos por força de limitações decorrentes do seu baixo grau de escolaridade, ou mesmo analfabetismo, essa linha de defesa não pode ser ignorada, não podendo o juiz deixar de se pronunciar sobre esses factos, dando-os como provados ou como não provados, deles retirando as consequências que no caso concreto se imponham.

3 – Estando ainda em causa o pagamento tardio de uma parcela da quantia fixada a título de injunção, não tendo o M.P. tomado declarações ao arguido antes da dedução da acusação e remessa dos autos para julgamento, os termos da contestação impunham que se averiguasse se o sucedido era resultado de má vontade ou grosseira negligência, traduzindo um verdadeiro incumprimento, ou se não constituía senão reflexo das limitações pessoais do arguido e de uma verdadeira dificuldade em compreender o sentido da obrigação que sobre ele impendia, desde logo, por força da necessidade de averiguar «se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança», como dispõe o nº 2, al. e), do art. 368º do CPP.

4 – Tendo a sentença omitido a descrição como provados ou como não provados dos factos relevantes alegados na contestação e não se tendo pronunciado sobre questão de que devia conhecer, padece de nulidade por via do disposto no art. 379º, nº 1, als. a) e c), do CPP.

Sumário elaborado pelo relator
Decisão Texto Integral:
Relator: Jorge Jacob
1.º Adjunto: Isabel Valongo
2.º Adjunto: José Eduardo Martins
                                                                                                                           

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

… após julgamento com documentação da prova produzida em audiência foi proferida sentença decidindo nos seguintes termos:

«Condenar o arguido …, pela prática, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo art.º 3.º, n.º 2 do D 2/98, de 3 de Janeiro, com referência aos art.os 121.º, n.º 1, 122.º, n.º 2 e 125.º do Código da Estrada, numa pena de 85 dias de multa, à taxa diária de 5€; procedendo-se ao desconto de 1 dia de detenção sofrido, nos termos do disposto no art.º 80 , nº 2 do C.P., pelo que assim se fixa a pena a cumprir em 84 dias de multa, à taxa diária de 5€, perfazendo o montante de 420€».

Inconformado, recorre o arguido retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

I. O Arguido foi acusado da prática de crime de condução sem habilitação legal, após o Ministério Público ter concluído que o mesmo incumpriu a injunção aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo.

II. A injunção aplicada consistia a entrega de 400,00€ a uma IPSS à sua escolha, no prazo de 4 (quatro) meses – cujo prazo se iniciou a 7 de Dezembro de 2021 ….

Porém, e na verdade

III. O Arguido cumpriu a injunção aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo – com a entrega a 10 de Dezembro de 2021 da quantia de 100,00€, a 7 de Março de 2022 a quantia de 150,00€, e em 11 de Abril de 2022 a quantia de 150,00€, à Associação Humanitária do Bombeiros Voluntários do ... …

IV. Embora tenha entregue a última quantia 3 dias após o termo da suspensão.

V. Notificado para juntar por escrito a prova do cumprimento da injunção aplicada, só o fez após o Ministério Público ter deduzido acusação.

VI. O Ministério Público limitou-se a notificar um Arguido, que apenas sabe assinar o seu nome, e sem estar assistido por defensor, para que este juntasse por escrito prova do cumprimento da injunção aplicada.

VIII. Trata-se de aplicar aqui os mesmos princípios de garantia dos direitos de defesa do incidente de incumprimento da suspensão da execução da prisão, previstos nos artigos 55.º e 56.º, ambos do Código Penal.

XII. Em momento algum o Ministério Público notificou o Arguido para que este informasse se cumpriu a injunção e, em caso negativo as razões desse incumprimento.

XIII. Nem procedeu à audição do Arguido para esse fim.

XIV. A injunção aplicada ao Arguido não foi a de juntar ao processo os respectivos comprovativos de entrega da quantia monetária em causa, uma vez que, apenas se trata de um dever processual acessório.

XV. Embora já se encontrassem no processo os comprovativos do cumprimento da injunção aplicada e a informação de que o Arguido não havia cometido qualquer crime no referido prazo de 4 meses, o Tribunal a quo recebeu a acusação deduzida contra o Arguido.

XVI. E, em consequência o Arguido requereu à Mma. Juiz do Tribunal a quo que fosse determinado esgotado o objecto do processo e, que fosse dado sem efeito a audiência de julgamento designada, absolvendo o Arguido da respectiva instância, atento o cumprimento da referida injunção, e que assim estaríamos perante uma irregularidade processual, nos termos do artigo 123.º do Código de Processo Penal.

XVII. A Mma. Juiz do Tribunal a quo, por considerar que o instituto da suspensão provisória do processo apenas tem lugar em fase de inquérito, e encontrando-se os autos em fase de julgamento, nada determinou, e, consequentemente designou dia para a Audiência de Julgamento.

XVIII. E, assim, a audiência realizou-se e o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º2/98 de 03/01, com referência aos artigos 121.º, n.º1, 122.º, n.º2 e 125.º do Código da Estrada, numa pena de 85 dias de multa, à taxa diária de 5€, procedendo-se ao desconto de 1 dia de detenção sofrido, nos termos do disposto no artigo 80.º, n.º2 do Código Penal pelo que se ficou a pena a cumprir em 84 dias de multa à taxa diária de 5€, perfazendo o montante de 420€.

XIX. Nos termos do artigo 123.º, n.º2 do Código de Processo Penal oficiosamente pode ser ordenada “a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando puder afectar o valor do acto praticado.”

XX. Salvo o devido e sempre merecido respeito por proficiente entendimento em contrário, é manifesto que esta irregularidade afecta o acto praticado pelo Ministério Público de remeter os autos para julgamento em processo abreviado sem previamente averiguar do cumprimento da injunção aplicada.

XXI. E, em consequência o Tribunal a quo não podia conhecer do mérito da causa.

XXII. A Sentença recorrida encontra-se ferida de nulidade, uma vez que, o Tribunal a quo não analisou a excepção invocada pelo Arguido, nos termos do artigo 379.º, n.º1 alínea c) do Código de Processo Penal.

XXIV. De acordo com o explanado, verificada a excepção que obstava a que o Tribunal conhecesse do mérito da causa, impunha-se a absolvição do Arguido e o arquivamento dos Autos.

            O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

            Nesta instância o Exmº. Procurador-Geral Adjunto exarou fundamentado parecer, sustentando que os direitos de defesa, designadamente o direito ao contraditório, do arguido-recorrente, foram desproporcional e injustificadamente comprimidos e que o tribunal a quo não se pronunciou sobre questão relevante para a decisão da causa que fazia parte do objeto do processo.

            Foram colhidos os vistos legais.

O âmbito do recurso afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido.

No caso vertente, visto o teor das conclusões formuladas, importa fundamentalmente averiguar se o tribunal a quo omitiu o conhecimento de matéria alegada pelo arguido, relevante para a decisão a proferir, dando causa à nulidade prevista no art. 379º, nº 1, al. c), do Código de Processo Penal.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

            1. No dia 07/09/2021, cerca das 12h e 25m, na Rua ..., na cidade das ..., o arguido conduzia o automóvel, com a matrícula ..-IX-.. sem que para o efeito estivesse habilitado com o respectivo título legal.

            2 . O arguido quis conduzir o veículo ora em causa, o que conseguiu, apesar de saber que não possuía documento legal que o habilitasse a tal actuação, agindo de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido por lei.

            3. O arguido confessou de forma integral e sem reservas os factos constantes da acusação.

            4. À data de 12 de Dezembro de 2022 tinha averbado ao seu certificado de registo criminal a prática de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de condução em estado de embriaguez, praticados em 6 de Julho de 2022, pelos quais foi condenado no processo nº 193/22...., que correu termos pelo Juízo Local Criminal ....

            …

            Relativamente a matéria de facto não provada foi consignado na sentença que «não existem factos de relevo para a decisão da causa que não tenham resultado provados em audiência de julgamento».

            A matéria de facto provada foi fundamentada nos seguintes termos:
            A convicção do tribunal no que respeita à factualidade acusatória resulta da confissão integral e sem reservas efectuada pelo arguido em audiência de julgamento, em conjugação com o teor do auto de noticia. Também, no que diz respeito ao facto de o arguido não ser titular de carta de condução, o tribunal teve em consideração o teor do ofício do IMT que consta de fls. 7 dos autos.
            Relativamente às condições pessoais do arguido, as declarações que o mesmo prestou a esta matéria e quanto aos antecedentes criminais, o teor do Certificado de Registo Criminal de fls. 117 e ss.

            Apreciando e decidindo:
            Em sede de recurso vem sustentado que o tribunal a quo não conheceu da totalidade da matéria de facto relevante, tendo deixado de apreciar questões suscitadas pelo ora recorrente, nomeadamente, a matéria de excepção que alegou na contestação.
            Ora, sobre o âmbito da matéria a conhecer em audiência, há que atender em primeiro lugar ao disposto no nº 1 do art. 124º do CPP, em cujos termos constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis, ponderando ainda o que estatui o art. 339º, nº 4 do mesmo diploma na parte em que estatui que «(…) a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º»,

            Resulta dos autos que em 12/11/2021 …, o Ministério Público submeteu à apreciação do Mmº Juiz de Instrução Criminal proposta de suspensão provisória do processo pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do disposto pelo artigo 281º, nº2, al. m), do CPP, com a imposição ao arguido da seguinte injunção: «entregar a quantia de €400 (quatrocentos euros) a IPSS à sua escolha, devendo juntar o comprovativo nestes autos, no prazo de 10 dias».

            Essa proposta mereceu a concordância do Mmº. Juiz de Instrução Criminal, tendo a Exma. Procuradora da República determinado a Suspensão Provisória do Processo nos termos que haviam sido propostos, o que foi notificado ao arguido por via postal simples com prova de depósito, assinada em 2/12/2021.

            Não tendo dado entrada nos autos, até 27/05/2022, data posterior ao termo do prazo de demonstração da entrega da quantia da injunção, o M.P. determinou a notificação do arguido para, em 10 dias, vir aos autos apresentar prova do cumprimento da injunção imposta (prova de depósito assinada em 01/06/2022).

            O arguido não se pronunciou, pelo que em 01/07/2022 veio a ser proferido despacho pelo M.P. determinando o prosseguimento dos autos nos termos do disposto nos arts. 282.º, n.º 4, al. a) e 384.º, n.º 4, ambos do CPP, seguindo-se a acusação para julgamento sob a forma de processo abreviado, pela prática do crime de condução sem habilitação legal.

            Contudo, em 05/07/2022, o arguido juntou aos autos três documentos, deles decorrendo que havia procedido à entrega aos Bombeiros Voluntários do ... das seguintes quantias:

            - Em 10/12/2021, a quantia de €100,00;

            - Em 07/03/2022, a quantia de €150,00;

            - Em 11/04/2022, a quantia de €150,00;

            Em 12/09/2022 foi proferido despacho de recebimento de acusação para julgamento em processo abreviado.

            Em 06/10/2022, o arguido apresentou contestação em que alegou o seguinte:
            DA EXCEPÇÃO DILATÓRIA:
            1.º - A 2 de Dezembro de 2021 foi o Arguido notificado da suspensão provisória do processo, e de que, dispunha do prazo de 4 (quatro) meses para entregar a quantia de 400,00€ a uma IPSS à sua escolha – Cfr. notificação com a referência 98623025.
            2.º - Em cumprimento pela obrigação que assumiu o Arguido pagou a 10 de Dezembro de 2021 a quantia de 100,00€, a 7 de Março de 2022 a quantia de 150,00€, e em 11 de Abril de 2022 a quantia de 150,00€, à Associação Humanitária do Bombeiros Voluntários do ... – Cfr. documentos fls… dos Autos. Porém,
            3º - E na verdade, o Arguido só a 5 de Julho de 2022 juntou aos Autos os referidos comprovativos de pagamento – Cfr. documentos fls… dos Autos.
            4.º - Isto é, o Arguido cumpriu a injunção a que estava obrigado.
            5.º - Mas não comprovou o seu pagamento nos Autos, apesar de notificado para o efeito.
            6.º - Salvo o devido e sempre merecido respeito por entendimento diverso, que é muito, a não comprovação do pagamento pelo Arguido nos Autos, não significa necessariamente que o mesmo não tenha efectuado o seu pagamento.
            …
            9.º - E, embora, da notificações efectuada ao Arguido (com a referência 98623025) conste “deverá diligenciar durante o decurso do prazo da suspensão provisória do processo pela junção dos respectivos comprovativos da entrega da quantia monetária em causa”,
            10.º - A verdade é que o Arguido não assimilou tal obrigatoriedade. Uma vez que,
            11.º - Apenas tem a 2.ª classe, apenas sabe assinar o seu nome e pouco sabe ler.
            12.º - Para o Arguido com o pagamento da quantia de 400,00€ aos Bombeiros Voluntários a sua obrigação estava cumprida.
            13.º - A boa-fé processual do titular do inquérito e a observância de regras estritas de legalidade tendo em vista a finalidade última do processo e no caso a suspensão, impõem que o Ministério Público deva certificar-se do cumprimento efectivo ou não, da injunção.
            …
            16.º - Uma vez que, a revogação da suspensão provisória do processo não é automática, depende de uma valoração da culpa do arguido no incumprimento.
            17.º - Isto é, para ordenar o prosseguimento do processo o Ministério Público deve averiguar se o incumprimento é doloso ou pelo menos negligente a título grosseiro, e se o incumprimento se verificou.
            18.º - No caso dos Autos o Ministério Público não notificou o Arguido para que o mesmo informasse se cumpriu a injunção e, em caso negativo as razões.
            19.º - Nem procedeu à audição do Arguido para esse fim. Pelo que,
            20.º - Não poderia o Ministério Público, sem previamente se certificar de que a injunção fora incumprida proferir acusação e remeter os autos a juízo.
            …

            Esta linha argumentativa foi retomada pela Ilustre Defensora Oficiosa do arguido em alegações, como pertinentemente nota o Exmo. Procurador-Geral Adjunto.

            No entanto, sobre a matéria da contestação, a Mma Juiz tinha-se pronunciado, dando o tema por encerrado, por despacho de 19/10/2022 com o seguinte teor:

            «Fls. 110 e ss.:

            Considerando que os factos invocados são extemporâneos, porquanto o instituto da suspensão provisória do processo apenas tem lugar em fase de inquérito, encontrando-se os autos em fase de julgamento, nada a determinar.

            **

            Para a realização de Audiência de Julgamento, designo o dia 10.01.2023, pelas 14:15H, desde já designando, para eventual continuação, o dia 18.01.2023, pelas 10:00H.

            Notifique»

            Ora, não há dúvida de que o ónus da demonstração da entrega do montante determinado na injunção recaía sobre o arguido, que até foi notificado para se pronunciar e nada disse sobre o tema, pelo que por essa via nada obstava a que se tivesse dado seguimento ao processo para julgamento, como efectivamente sucedeu.

            Não obstante, a matéria alegada na contestação não poderia ter deixado de ser objecto de apreciação por imperativo legal, desde logo, na fixação da matéria de facto, posto que traduzia a linha de defesa adoptada pelo arguido e não se tratava de matéria irrelevante para a decisão a proferir.

            Na verdade, não estamos perante uma pura omissão de cumprimento da injunção, mas perante um cumprimento que apenas parcialmente foi efectuado para além do prazo assinalado. E se é certo que não foi dado conhecimento do cumprimento no momento ajustado, esse cumprimento veio ao conhecimento do processo em momento anterior ao julgamento e foi expressamente invocado pelo arguido, razão pela qual, ainda que os autos prosseguissem para julgamento, em sede de sentença não poderia ter deixado de ser fixada a matéria pertinente alegada na contestação e dela retiradas as consequências tidas como as ajustadas ao caso, posto que o processo penal é muito mais do que um Kafkiano amontoado de papéis ou uma sacramental sucessão de actos tendentes a uma finalidade pré-determinada. É, essencialmente, um meio actuante e dinâmico ao serviço da realização da justiça, postulando a observância de procedimentos que funcionem como garantia de uma efectiva defesa do arguido.

            Assim, a partir do momento em que se verificou que o arguido tinha procurado cumprir a injunção, ainda que com algum atraso na sua realização, sendo essa a finalidade essencial da injunção, havia que retirar daí as consequências que tal constatação impunha, primeiro, fixando a correspondente matéria de facto; depois, valorando o impacto dessa factualidade em sede de sentença, desde logo, por força da necessidade de verificar, face ao disposto no nº 2, al. e), do art. 368º do CPP, «se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança», sabido que a partir do momento em que é determinada a suspensão provisória do processo, a possibilidade de ulterior condenação do arguido pelos factos que determinaram a suspensão pressupõe o incumprimento da injunção. Havia assim que verificar, como condição de validade do prosseguimento do processo e da condenação penal, se ocorria um verdadeiro incumprimento da injunção, nos termos previstos no art. 282º, nº 4, do CPP.

            De resto, não tendo o M.P. tomado declarações ao arguido sobre o não cumprimento atempado da injunção e a falta de junção dos comprovativos, tal iniciativa deveria ter sido desenvolvida em audiência, desde logo porque constituía matéria com relevo para a defesa do arguido e alegada na contestação; depois, porque se impunha verificar se o sucedido tinha decorrido de má vontade ou de grosseira negligência, ou se não constituía senão reflexo das suas limitações literárias, ou seja, de uma verdadeira dificuldade em compreender o sentido da obrigação que sobre ele impendia, tanto mais que a demonstração nos autos do pagamento efectuado desempenha uma função meramente acessória relativamente à injunção propriamente dita.  Por outro lado, sempre estaria salva ao tribunal a possibilidade de, suscitando-se dúvidas, indagar junto da entidade beneficiária do valor da injunção aquilo que tivesse por conveniente. Nessa medida, assiste razão ao Exmº Procurador-Geral Adjunto quando afirma que ocorreu violação desproporcional dos direitos de defesa do arguido, além do mais, quando a matéria alegada pela defesa foi tratada nos termos constantes do despacho que supra se transcreveu, retirando ao arguido qualquer possibilidade de reacção, tanto assim que em sede de processo abreviado apenas é admissível recurso da sentença ou do despacho que puser termo ao processo.

            Em conclusão, a sentença não observou o disposto no art. 389º-A, nºs 1, als. a) e b), por remissão do art. 391º-F, sendo nula quer por essa via, quer pela omissão de pronúncia relativamente a questões que o tribunal deveria ter apreciado, conforme decorre do art. 379º, nº 1, al. c), do CPP.

III – DISPOSITIVO:

            Nos termos apontados, acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e determinando que o tribunal recorrido profira nova sentença em que aprecie as questões de facto e de direito que o caso suscita, tal como se apontaram, podendo, se necessário, reabrir a audiência para esse efeito.

Sem taxa de justiça.


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Coimbra, 11 de Outubro de 2023

(Processado e revisto pelo relator a assinado electronicamente)