Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
275/22.4T8PCV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO FERNANDO SILVA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO EXEQUENTE
PROCEDÊNCIA DA OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO DO DIREITO INDEMNIZATÓRIO
INÍCIO DE CONTAGEM
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENACOVA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 858.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 323.º, N.º 2, 483.º, N.º 1, E 498.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
O prazo de prescrição do direito à indemnização derivado da responsabilização civil do exequente perante o executado, nos termos do disposto no art.º 858.º do Código de Processo Civil – sujeito ao regime prescricional do art.º 498.º, n.º 1, do Código Civil, portanto, um prazo de 3 anos –, só pode iniciar-se após a decisão de procedência da oposição (por embargos) à execução.
Decisão Texto Integral:
Relator: António Marques Silva
1.º Adjunto: António Pires robalo
2.ª Adjunta: Teresa Albuquerque
          

  Proc. 275/22.4T8PCV-A.C1

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. AA, BB e A..., Lda., intentaram acção judicial contra CC pedindo o pagamento de indemnização a título de danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos.

Sustentaram a sua pretensão no facto de o R. ter intentado contra eles acção executiva reclamando o cumprimento de obrigação pecuniária que não estava contida no título executivo, o que veio a ser reconhecido na oposição por embargos que deduziram, mas apenas após a efectivação de penhoras que lhes provocaram danos.

O A. contestou, tendo, além do mais, deduzido a excepção da prescrição dos direitos de indemnização, por considerar estar ultrapassado o prazo de 3 anos previsto no art. 438º n.º1 do CC a contar do conhecimento pelos lesados do seu direito indemnizatório.

Os RR. responderam à excepção, afirmando que apenas com a decisão de absolvição (na oposição à execução) se gerou na sua esfera o direito a ver “levantada/cancelada/restituída de toda e qualquer penhora determinada na Ação Executiva”, o que fundamenta a sua pretensão face ao incumprimento da mesma. E que a mesma decisão consolidou os direitos dos AA., que passariam a estar sujeitos ao prazo de prescrição de 20 anos nos termos do art. 309º do CC.

No saneamento foi decidido «declarar procedente a excepção de prescrição indicada pelos réus e em consequência declarar a prescrição do direito de indemnização dos autores sobre o réu relativamente aos danos patrimoniais e não patrimoniais e invocados na petição inicial e, em conformidade, e, consequentemente, absolver o réu dos pedidos de indemnização formulados em sede de petição inicial». Para tanto considerou que os AA. tiveram conhecimento dos factos que invocam como causa de pedir em 05.07.2018 (data da sua citação na execução) e 12.02.2019 (data da notificação para a reclamação de créditos deduzida naquela execução), não sendo a decisão da oposição constitutiva da invocada ilicitude da conduta do R.; e que, atendendo a tais datas estaria já verificada a invocada prescrição.

Desta decisão vem interposto o presente recurso, no qual os AA. terminam formulando as seguintes conclusões:

1. Tem o presente recurso em vista a reapreciação do decisão proferida em sede de despacho saneador, segundo a qual foi julgada procedente a exceção de prescrição do direito do Autor para propor a presente ação, porquanto consideram os AA/Recorrentes que:

2. I Da errada aplicação dos artº 298º, 318º a 327º e do artº 498º do CC,

O Despacho Saneador fundamentou a respetiva decisão quanto à exceção da prescrição, no sentido em que os autores tiveram conhecimento dos factos que invocam como causa de pedir em 05-07-2018 e não, como sustentam na réplica, em 13-07-2020, data em que foi proferida a decisão que os absolveu da instância executiva quanto aos danos não patrimoniais. Na verdade, tal sentença não é o evento que conferiu ilicitude à actuação do réu; tal sentença, atento o seu teor, é, em rigor, um efeito da inobservância de normas jurídicas, e não o elemento constitutivo de ilicitude. Ou seja, à data da prolação da referida sentença, os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, ao se verificarem, já se encontravam reunidos, tendo os autores deles tido conhecimento em 05-07-2018, quando foram citados para a execução e notificados das penhoras realizadas. () Em face de exposto decide-se declarar procedente a excepção de prescrição indicada pelos réus e em consequência declarar a prescrição do direito de indemnização dos autores sobre o réu relativamente aos danos patrimoniais e não patrimoniais e invocados na petição inicial e, em conformidade, e, consequentemente, absolver o réu dos pedidos de indemnização formulados em sede de petição inicial.

3. Ora, efetivamente não podem os AA./Recorrentes concordar com tal posição, principalmente face à falta de razoabilidade da decisão do Tribunal a quo para com o comportamento exigível ao pater familiae, ou seja, na apreciação de qual o momento para o homem comum que se pode pretender ser a data do conhecimento do direito, o que não poderá corresponder à data da simples e empírica percepção dos factos (v.g., da lesão e dos danos).

4. Ou seja, o lesado tem o ónus de agir judicialmente a partir da sua percepção dos pressupostos da responsabilidade civil, devendo presumir-se que a tal conhecimento natural dos factos deles integrantes corresponde, para a generalidade das pessoas normal e medianamente esclarecidas do seu estatuto social, uma simultânea consciencialização do direito respectivo (direito à indemnização) apenas surge quando o Tribunal se decide em tal sentido, até esse momento não passa de uma presunção de um eventual direito.

5. Apresenta-se-nos como dele próxima, por juridicamente mais correcta e praticamente mais operativa, uma enunciação, consonante com o sistema subjectivo alcançada nos Acórdãos do STJ, de 12-09-2019 e 14-10-2021, segundo a qual:

Para efeito de contagem do termo inicial do prazo prescricional estabelecido no artigo 498º, nº 1, do Código Civil, o lesado terá conhecimento «do direito que lhe compete» quando se torne conhecedor da existência dos factos que integram os pressupostos legais do direito de indemnização fundado na responsabilidade civil extracontratual (facto ilícito, culpa, dano e relação de causalidade entre o facto e o dano), sabendo que dispõe do direito à indemnização pelos danos que sofreu.

6. Pelo que questiona-se então, quando é que justamente se deve considerar que o lesado teve conhecimento do seu direito de modo a poder afirmar-se, com certeza e segurança, que nesse momento ele estava em condições de o exercer e que devia tê-lo exercido (artº 306º, nº 1)?

7. Ora, como é do conhecimento dos autos efetivamente os AA, em prazo, apresentaram os respetivos embargos de executado, os quais vieram dar razão à posição dos mesmos no sentido de considerar que o título executivo era assim inexistente, dando origem à absolvição da instância dos executados, o que veio a acontecer apenas em 13-07-2020,

8. Mas faria sentido sem a prolação da decisão dos embargos de executado, iniciar uma ação de responsabilidade civil? Evidentemente que não!

9. A necessidade deste saber não terá escapado ao sempre clarividente e mui autorizado entendimento de Vaz Serra quando, não obstante admitir que o prazo conta-se a partir do conhecimento, pelo titular do respectivo direito, dos pressupostos que condicionam a responsabilidade e não da consciência da possibilidade legal do ressarcimento.

10. Por isso, não chegará estarem reunidos os simples factos, sendo necessária a consciência do direito por eles gerados. Se ele [o lesado] tendo embora conhecimento da verificação dos pressupostos da responsabilidade do lesante, ignora o seu direito de indemnização, seria violento que a lei estabelecesse um prazo curto para exercício desse direito e declarasse este prescrito com o decurso de tal prazo.

11. Parece assim evidente que apenas com o trânsito em julgado da sentença que declarou procedente os embargos de executado se percecionaram todas as consequências legais do inicio do processo executivo, designadamente no seu património, e souberam ter direito à indemnização pelos danos decorrentes desse comportamento.

12. Enfatizando o entendimento vertido no Acórdão do STJ, de 18-04-2002 segundo o qual Quando se determina que tal prazo, se conta do momento em que o lesado teve conhecimento do seu direito, quer significar-se, apenas, que se conta a partir da data em que conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, soube ter direito a indemnização pelos danos que sofreu e não da consciência da possibilidade legal, do ressarcimento.

13. Deve pois reconhecer-se que só com o resultado definitivo dos embargos de executado, os AA tiveram conhecimento efectivo e sustentado do direito que lhes competia, sendo certo que até podiam ter expectativas nesse sentido, mas para efeitos de contagem do prazo de prescrição, a que alude o nº1 do art. 498 do C Civil.

14. E até constitui-se o R. num contrasensu quando defende a legalidade do processo executivo e respetivo título e depois vem dizer que os AA. deveriam ter exercido o seu direito a partir desse momento!

15. Até aí a aparência de licitude estava assegurada no processo executivo. Apesar do alegado, nada era certo nem claro. Só com aquela decisão definitiva, que desfez o acto judicial das penhoras, despindo-o de qualquer efeito, se radicou no seu conhecimento a irregularidade e se consumou na sua esfera jurídica o prejuízo, porque o R. aceitou a decisão e dela não recorreu (mas poderia o ter feito).

16. Em resumo, se a existência do direito, apesar da ocorrência dos factos naturalísticos dele constitutivos, se apresenta como incerta, por a compreensão do significado e relevância destes no seio da ordem jurídica serem de tal modo complexos e controversos que não é de presumir estarem ao alcance da generalidade dos cidadãos medianamente informadas ou por a violação danosa depender de reconhecimento e declaração judicial, então só com a sentença que ponha termo à incerteza sobre a verificação dos respectivos requisitos é que o lesado fica a saber do seu direito. Não pode, antes disso, presumir-se a consciência da existência do direito.

17. Por tudo o exposto, declina-se o entendimento seguido no despacho saneador recorrido de que não é a partir da data em que os autores foram citados como executados das penhoras que deve contar-se o prazo legal de prescrição (3 anos) previsto no artº 498º, nº 1, do CC, mas apenas desde o trânsito em julgado da respectiva sentença (13-07-2020) e que, portanto, tal prazo não tinha decorrido quando esta foi instaurada nem quando os réus foram para ela citados, pelo que deve o mesmo ser revogado e substituído por outro que decida pela tempestividade do pedido na presente ação.

Sem prejuízo do exposto,

18. Questiona-se se justificava que em sede de despacho saneador tivesse sido conhecido e apreciado a invocada prescrição do direito do Autor ou se na situação concreta atendendo que o julgamento se irá realizar de uma forma ou de outra, deveria o conhecimento da mesma exceção, ser relegado para sentença final, principalmente quando o próprio Tribunal declara que:

Os autos não contêm todos os elementos necessários para que se conheça de imediato da procedência dos demais pedidos formulados, relegando-se para sentença o conhecimento do mérito da ação.

19. É que, com o devido respeito pela decisão proferida, nem faz sentido que assim não se proceda, pois fere o artº 6º do nCPC, no sentido de o Juiz dever dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere sob pena de se estarem a praticar actos e a proferir decisões fora de tempo e de ocasião processual adequada.

20. Pelo que, com o devido e necessário respeito, entende-se que foi prematuro o conhecimento da invocada exceção da prescrição do direito do autor a propor a presente ação, questão esta que melhor e mais apropriadamente será apreciada em sede de decisão final, quando o estado dos autos também permitir a apreciação de tal exceção.

21. Face ao que estendemos dever ser revogada a dita apreciação e decisão, por processualmente inoportuna, relegando-se o seu conhecimento global para a sentença final.

O R. contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».

Assim, a questão a tratar analisa-se na avaliação da prescrição dos direitos de indemnização esgrimidos por cada um dos AA. (no que vai necessariamente envolvida a necessidade de verificar se o processo contém todos os elementos necessários a tal averiguação, questão ainda colocada no recurso).

III. Estão assentes os seguintes factos:

Os AA. foram citados para a acção executiva em 05.07.2018, data em que já tinham sido efectuadas as penhoras.

Deduziram oposição por embargos em 09.09.2018.

Por decisão de 13.07.2020, foi decidido «absolver os Executados/Embargantes da instância executiva e determinar a extinção da Acção Executiva» por se verificar a falta de título executivo.

A presente acção foi instaurada em 23.09.2022.


Estes dados factuais derivam de peças processuais juntas aos autos ou do acordo das partes.

IV.1. A responsabilidade do exequente pelos danos causados ao executado derivados da acção executiva intentada constitui um caso particular de responsabilização civil derivada do exercício do direito de acção, a qual, sendo em geral admitida, é, em particular e para a execução para pagamento de quantia certa (em que não ocorra a prévia citação do executado), especificamente contemplada pelo art. 858º do CPC[1] [com lugar paralelo, embora com diferenças, no art. 866º do CPC para a execução para entrega de coisa certa]. O regime desta norma corresponde ao reconhecimento de que o direito à execução e o favorecimento do credor (este revelado primacialmente na prioridade da penhora face à citação e subsequente direito de defesa do executado) o colocam numa posição privilegiada (que facilita o excesso), surgindo por isso a necessidade de a temperar, por razões de equidade mas também preventivas, com a imputação ao exequente dos efeitos das suas actuações executivas ilegítimas, propiciadas ou potenciados por aquela posição processual favorecida. A responsabilização do exequente pelos danos causados pela execução ilegítima (e por isso expressão de exercício ilegítimo do direito de acção) constitui por isso manifestação externa[2] do modelo legal de protecção do executado, sendo as condições de tal responsabilização do exequente definidas naquele art. 858º.

Segundo tal norma, «se a oposição à execução vier a proceder, o exequente, sem prejuízo da eventual responsabilidade criminal, responde pelos danos culposamente causados ao executado, se não tiver atuado com a prudência normal, e incorre em multa correspondente a 10 % do valor da execução, ou da parte dela que tenha sido objeto de oposição, mas não inferior a 10 UC, nem superior ao dobro do máximo da taxa de justiça».

No caso, interessa a primeira parte da norma, na qual se definem os fundamentos ou requisitos da responsabilidade civil do exequente, específicos desta forma de imputação, exigindo-se[3] que:

- a citação do executado ocorra depois da penhora - este requisito deriva implicitamente do regime da execução e da sua ratio[4] porquanto: estando em causa uma execução sumária, a penhora precede a citação do executado (art. 855º n.º3 e 856º n.º1 do CPC); e a responsabilização justifica-se apenas quando o executado, porque não foi citado, não pôde evitar a penhora, o acto lesivo por excelência. A asserção confirma-se pelo regime do art. 727º n.º1 e 4 do CPC, que torna extensível este regime de responsabilização aos casos de dispensa judicial da citação prévia na execução sob forma ordinária[5]. Nesta formulação do requisito vai também compreendida a necessidade de se ter efectivado uma penhora (a qual é condição da subsequente citação).

- a oposição à execução seja julgada procedente – o que contém a qualificação da execução como inadmissível ou infundada.

- se verifiquem os pressupostos comuns (ou os demais pressupostos comuns) da responsabilidade civil, derivados do art. 483º n.º1 do CC. Sem embargo, a afirmação não vale em termos literais, quer por a configuração específica do processo executivo e assim do processo danoso se repercutirem na configuração da acção e da ilicitude, quer por o regime legal aludido pretender intervir especificamente na configuração da culpa, atribuindo-lhe contornos específicos (assentes na falta da prudência normal) – o que importa o reconhecimento do carácter subjectivo da responsabilização do exequente e simultaneamente reafirma a suficiência responsabilizadora da negligência comum a que aquela formula se reconduz (mas sem pretender excluir o dolo, por razões evidentes), tendendo o regime neste aspecto sobretudo a revelar que a inobservância do cuidado, e também a censura inerente, são necessárias mas também suficientes, não tendo que se revelar de forma qualificada.

Daqui deriva que se trata de caso particular de responsabilidade civil[6], sujeito assim ao regime prescricional do art. 498º n.º1 do CC e, portanto, ao prazo de prescrição de 3 anos.

A invocação da sentença que julgou os embargos de executado como forma de reconhecimento do direito (para alterar o seu estatuto prescricional, face ao art. 311º n.º1 do CC) não é, realmente, procedente, já que, manifestamente, aquela decisão não reconhece qualquer direito indemnizatório.

Será, pois, perante aquele prazo de 3 anos que se tem que avaliar a situação.

2. Aceita-se que a prescrição resulta da consideração de vários interesses, mas julga-se que se mostram preponderantes o interesse na consolidação das situações (segurança e certeza) e o interesse na reacção contra a inércia (desinteresse ou negligência) do titular do direito (fomentando o seu exercício oportuno), interesses cuja satisfação se alcança através da paralisação do direito (ou pretensão segundo outros) prescrito - art. 304º n.º1 do CC.

Sendo assim, condição primeira do funcionamento do instituto é a existência (a constituição ou completa formação) do direito cujo exercício se atrasou ou protelou, tornando evidente a inércia e fomentando a insegurança jurídica. Asserção esta com reflexos logo no art. 298º n.º1 do CC, quando, ao caracterizar a prescrição, associa o direito ao seu exercício, exercício este só possível se o direito já se formou (ou constituiu).

3. Como se referiu, a existência do direito à indemnização, no caso, depende de a citação do executado ocorrer depois da penhora, e ainda da procedência da oposição à execução [verifica-se alguma tendência jurisprudencial para, aparentemente, exigir à decisão da oposição também uma avaliação da conduta do exequente (reconhecendo a falta de diligência, e/ou a conexão daquela conduta com danos), o que pode suscitar, em termos gerais, algumas reservas, mas a questão não releva nesta sede, em que se não cura da efectiva existência do direito de indemnização mas apenas da sua eventual prescrição - podia era discutir-se se esta prescrição poderia ser conhecida ainda antes de se afirmar a existência do direito cuja prescrição se discute; nesta lógica, a afirmação do direito constituiria condição prévia e necessária de uma subsequente discussão da sua paralisação/extinção por prescrição; mas trata-se de questão não suscitada e cujo conhecimento também não é oficiosamente imposto].

Trata-se, em ambos os casos, de requisitos processuais mas de natureza substantiva, significando que se trata de condições que se verificam em termos formais e no próprio processo, mas que constituem simultaneamente elementos integrantes do direito à indemnização e por isso integram o substrato constitutivo daquele direito à indemnização. Isto é particularmente notório para a procedência da oposição, pois esta constitui «condição da ilegitimidade da acção executiva» e importa «o reconhecimento judicial da ausência de fundamento do exequente para ter movido uma concreta acção executiva». Ele corresponde assim à consagração de uma «singular configuração da ilicitude», que não decorre precisamente da violação de um direito absoluto ou de uma norma de protecção (art. 483º n.º1 do CC), mas da conduta processual judicialmente declarada ilegítima: a actuação infundada, com a dedução de uma pretensão executiva ilegal (ou abusiva do direito de acção) é que conforma a ilicitude que sustenta o direito à reparação concedido[7] [por isso que se exija a verificação dos pressupostos da execução ilegítima à data da sua propositura].

Também por isso, o papel do regime do art. 858º do CPC, mais que complementar do regime civil comum, é adaptador desse regime à realidade processual executiva (dadas as suas especificidades).

Deste modo, torna-se claro que a procedência da oposição constitui um pressuposto material, embora processualmente declarado, do direito de indemnização: este supõe uma execução injusta (ilícita), e esta só se pode ajustar pela procedência judicial da oposição. Assim, e em termos liminares, se ainda não existe tal condição, não existe também (ainda) direito à indemnização.

Ora, se é assim, não pode então começar a correr o prazo de prescrição antes daquela decisão de procedência, e assim antes de aquele direito estar constituído. A isso se opõe a lógica funcional e teleológica do regime: se o direito ainda não existe, além de não ser exercitável em princípio, também não existe inércia quanto ao seu exercício (ainda não existe o «não exercício» que o citado art. 298º n.º1 CC reclama), nem insegurança quanto à sua subsistência (ao seu exercício ou não), e por isso não há ainda razão para correr o prazo que penaliza aquela inércia e procura repor a certeza da situação jurídica (prazo cujo decurso «legitima as expectativas de que o direito não será mais exercido», expectativas assim ainda não existentes).

E como o direito só existe a partir do momento da procedência da oposição (dos embargos), só a partir desse momento pode começar a correr o prazo de prescrição. O que corresponde, no caso, à data da sentença que julgou a oposição por embargos (e ao menos na medida em que dela não foi interposto recurso)[8], data esta que revela não estar ainda decorrido o prazo de prescrição.

4. É certo que se tende a admitir que o executado pode deduzir o pedido de indemnização logo na oposição à execução (por embargos)[9]. Mas tal não equivale à antecipação da existência do direito (ou à antecipação do momento inicial do prazo de prescrição). De um lado e atendendo aos fundamentos desta antecipação, vê-se que a solução é justificada por razões de economia, dada a conexão existente entre os embargos e a responsabilização civil (e considerando que se trata primacialmente de avaliar danos derivados da penhora, já realizada[10]), e assim por razões estritamente processuais, não materiais (i é., não atinentes ao direito): aquela economia autoriza que se inicie a discussão dos elementos integradores da pretensão ainda antes de o respectivo direito se consolidar (e já que esta consolidação, ou não, do direito vai ocorrer necessariamente no meio processual onde aquele se procura exercer). De outro lado e atendendo ao objecto desta solução, também se vê que a antecipação que ocorre se refere à tutela, à utilização de meios processuais, não ao direito: este não é antecipado, a sua existência continua a depender da procedência dos embargos. Neste sentido, o direito invocado está sujeito à condição da existência do direito no momento da decisão (mesmo em termos lógicos, a decisão terá que concluir primeiro pela procedência dos embargos e só depois poderá admitir discutir a indemnização). É exercício antecipado e incerto, não manifestação de direito já consolidado.

Por fim, mas em termos determinantes, também se verifica que esta opção processual constitui mera faculdade do lesado (e não imposição legal), podendo o lesado optar antes por exercer autonomamente o seu direito (em acção própria), como ocorreu no caso, hipótese esta em que nem aquela antecipação da discussão ocorre nem haveria assim qualquer razão para, em tese, pretender antecipar a existência do direito ou o início do prazo de prescrição.

Significa isto que daquela (eventual) antecipação da tutela nada se retira que altere a conclusão exposta: tal antecipação não contende com o nascimento do direito, sempre dependente da verificação das aludidas condições processuais/materiais, e por isso não serve para antecipar o início da contagem do prazo de prescrição.

5. Aliás, a referida circunstância de o exercício do direito na oposição à execução constituir mera faculdade e não imposição também significa que, não sendo o direito exercido em tal modo e momento processual (como é legítimo ocorrer), ficava impedido o seu exercício até à procedência da oposição pois, sem esta, não estão reunidos os requisitos necessários à existência do direito (em rigor, a acção que fosse intentada estaria impedida de prosseguir por faltar um dos elementos constitutivos do direito invocado, que ainda não existia[11]). Deste modo, estaríamos perante uma situação em que o direito não podia ser exercido, situação ainda passível de ser compreendida no âmbito do art. 306º n.º1, no início, do CC (a norma supõe que existe obstáculo impeditivo do exercício do direito já constituído, v.g. inexigibilidade; aqui, valeria, ao menos por igualdade de razão, no sentido de que o direito não podia ser exigido/exercido por ainda não constituído). Logo, também por esta via se confirma a aludida conclusão: o prazo prescricional só se iniciaria após a procedência da oposição.

6. Esta solução reafirma-se ainda por outra via, agora do ponto de vista do regime específico da responsabilidade civil. Com efeito, deriva do citado art. 498º n.º1 do CC, que o prazo de prescrição se conta a partir da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete. Ora, o lesado apenas pode ter conhecimento do direito a partir do momento da procedência da oposição pois só a partir daí existe o objecto do conhecimento. Antes disso pode ter uma expectativa válida, e até razoavelmente fundada, quanto ao direito, mas isto é apenas conhecimento da possibilidade do direito, que só se transmuta em efectivo conhecimento quando se verifica o evento processual de que depende o nascimento (a perfectibilização) do direito. Também por aqui se verifica ser inviável iniciar a contagem do prazo de prescrição antes da decisão de procedência da oposição.

7. Assim, atendendo à data da decisão (13.07.2020), ao aludido prazo de 3 anos, à data da instauração da acção (em 23.09.2022) e ao teor do art. 323º n.º2 do CC, é seguro que a prescrição ainda não ocorreu (mesmo sem atender ao regime especial derivado das medidas de contingência associadas ao Covid) – solução esta unitária, válida para o direito de indemnização próprio de cada executado.

Tem, assim, que proceder o recurso.

 

8. As custas correm pelo R., dada a sua decadência (art. 527º n.º1 do CPC).

V. Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se não verificada a prescrição dos direitos de indemnização invocados.

Custas pelo recorrente.

Notifique-se.

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

(…).

Datado e assinado electronicamente

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico.



[1] Não se trata de regime exclusivo da execução sumária, como se revela infra.
[2] Manifestação interna encontra-se nos meios de reacção contra a penhora ou contra a execução.
[3] Embora variem as formulações, os requisitos em causa são tendencialmente reconduzidos aos expostos.
[4] Estava descrito de forma expressa no art. 819º do anterior CPC; a sua eliminação não encerra, segundo se julga, nenhuma mudança de paradigma mas apenas o reconhecimento da sua inerência ao regime (dispensando assim a previsão expressa).
[5] A situação é diversa na execução para entrega de coisa certa, nos termos do citado art. 866º do CPC, mas por razões que não interferem com esta avaliação.
[6] Em princípio numa situação de culpa in agendo, embora também se assinale alguma proximidade ao abuso do direito de acção e, na verdade, a especial configuração da ilicitude cria, a final, alguma miscigenação dos recortes normativos da responsabilização.
[7] Assim, Maria Olinda Garcia, A responsabilidade do exequente e de outros intervenientes processuais, Breves considerações, Coimbra Editora 2004, pág. 72/73, para o revogado art. 819º do anterior CPC mas em termos inteiramente válidos para o actual regime; também assim Ac. do TRP, proc. 1616/11.5TBMTS-A.P1, in 3w.dgsi.pt.
[8] Também se discute se a condição se verifica com a decisão ou com a sua definitividade; os efeitos normais do recurso (e assim a «produção imediata dos efeitos extintivos») e o sentido literal da norma parecem apontar no primeiro sentido. Mas a opção revela-se, no caso, indiferente para a resolução da questão pois a data da decisão é o momento que mais antecipa o início do prazo de prescrição.
[9] Assim, J. de Castro Mendes e M. Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL 2022, pág. 461, L. Freitas, R. Mendes e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 3º, Almedina 2022, pág. 878 (e jurisprudência ali citada), ou Catarina Pires Monteiro, CDP n.º 10, 2005, pág. 23/24 (esta para o pregresso art. 819º mas em termos válidos para o actual regime).
[10] Embora a asserção, comummente adiantada, peque por alguma excessiva simplificação do âmbito dos danos possíveis.
[11] Em termos gerais, poderia discutir-se a possibilidade de invocar uma relação de dependência entre tal acção e a oposição (por embargos) pendentes, para justificar a suspensão da acção; mas seguro é que a acção nunca poderia prosseguir sem o acertamento da oposição.