Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
505/22.2TXCBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: COMPETÊNCIA
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
NÃO CUMPRIMENTO DA PENA DE MULTA
VOLUNTARIA OU COERCIVAMENTE
CONVERSÃO DA PENA DE MULTA EM PRISÃO SUBSIDIÁRIA
NATUREZA DA PRISÃO SUBSIDIÁRIA
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE EXECUÇÃO DE PENAS
COMPETÊNCIA PARA A DECLARAÇÃO DA EXTINÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 11/06/2023
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
Legislação Nacional: ARTIGO 49.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 34.º, N.º 1, 474.º, 475.º E 477.º, N.º 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
ARTIGO 138.º, N.ºS 2, 3 E 4, ALÍNEA S), DO CÓDIGO DA EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE/CEPMPL
ARTIGO 613.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/C.P.C.
ARTIGOS 81.º E 114.º, N.º 3, ALÍNEA S), DA LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO/LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO/LOSJ
Sumário: I – Compete aos tribunais de execução de penas acompanhar e fiscalizar a execução de pena ou medida privativa da liberdade, aplicadas em sentença transitada em julgado, desde o seu início e até à sua extinção, e acompanhar e fiscalizar a execução da prisão e do internamento preventivos.
II – A prisão subsidiária não é uma pena detentiva, e nem sequer uma pena, porque o seu cumprimento não altera a natureza não detentiva da pena aplicada na sentença condenatória, diferentemente do que acontece com as penas de substituição que, sendo aplicadas em substituição da pena primeiramente considerada, assumem, a natureza de pena principal, e a sua execução pode ser travada a todo o tempo, nomeadamente depois de iniciada a sua execução.
III – Pertence ao tribunal da condenação a competência para declarar a extinção da pena em processo em que foi cumprida a prisão subsidiária porquanto, apesar deste cumprimento, a pena de multa mantém-se como pena principal.
Decisão Texto Integral:

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RELATÓRIO

O arguido … foi condenado na pena de 210 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, à qual foi descontado um dia de detenção, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal.

Dado que não procedeu ao pagamento da multa, voluntária ou coercivamente, foi esta convertida em prisão subsidiária, nos termos do disposto no art. 49.º, n.º 1, do Código Penal, tendo sido determinado o cumprimento de 139 dias de prisão.

O arguido iniciou o cumprimento da prisão subsidiária, tendo o tribunal da condenação procedido à respectiva liquidação, nos termos do art. 477.º, n.º 4, do C.P.P.

Entretanto, o tribunal da condenação determinou a emissão de mandados de libertação do arguido, considerando a data prevista da sua libertação.

Cumprida a pena o TEP solicitou ao tribunal da condenação que declarasse extinta a pena, tendo este declarado a sua incompetência material para o efeito, por a mesma competir àquele tribunal, nos termos dos art. 138.º, n.º 2 e 4, alínea s), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e 613.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi art. 4.º do Código de Processo Penal.

Por seu turno, o TEP veio declarar, do mesmo modo, a respectiva incompetência material para o efeito alegando, em síntese, que a competência deste tribunal em tudo quanto respeita à execução da pena e até à sua extinção se reporta à pena de prisão aplicada na decisão condenatória. Como, no caso, a pena aplicada foi a de multa resulta não ter esse tribunal competência para declarar a sua extinção.


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O sr. P.G.A. pronunciou-se no sentido de o TEP ser incompetente para declarar a extinção da pena, …


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 DECISÃO

Não obstante as regras sobre a matéria, por vezes ocorrem conflitos entre tribunais sobre a qual pertence a competência para conhecer e decidir uma concreta questão levada ao seu conhecimento.

          E quanto assim sucede acontece o conflito.

Nos termos do art. 34º, nº 1, do C.P.P. «há conflito, positivo ou negativo, de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido».

No caso presente ocorre um conflito negativo de competência entre o Tribunal de Execução de Penas de Coimbra e o Juízo Local Criminal de Castelo Branco - Juiz 1, tribunal da condenação do arguido, a propósito da competência para declarar extinta a prisão subsidiária que o arguido cumpriu.


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A jurisdição, enquanto realização do direito, é uma função soberana do Estado, exercida pelos tribunais.

A jurisdição é una, mas divide-se em função do direito substantivo a que respeita e relativamente aos tribunais aos quais compete. No que respeita às questões criminais, a função jurisdicional incumbe ao Tribunal Constitucional, aos tribunais judiciais e aos tribunais militares – art. 202º, 209º, 211º e 213º da Constituição da República Portuguesa.

Depois, quanto à efectividade desta função jurisdicional, a determinação da competência dos tribunais criminais para o conhecimento e julgamento da causa é sempre feita por referência aos factos, relevando o crime concretamente imputado, a pena aplicável e o local da consumação.

Ainda em matéria penal, para além dos juízos criminais e de instrução criminal há, também, os tribunais de execução de penas, aos quais compete, em síntese, acompanhar e fiscalizar a execução de pena ou medida privativa da liberdade, aplicadas em sentença transitada em julgado, desde o seu início e até à sua extinção, devendo as vicissitudes deste execução ser comunicadas ao tribunal da condenação, competindo-lhe, também, acompanhar e fiscalizar a execução da prisão e do internamento preventivos, devendo as respetivas decisões ser comunicadas ao tribunal à ordem do qual o arguido cumpre a medida de coação – art. 81.º e 114.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto/Lei de Organização do Sistema Judiciário e 138.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro/Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

Nesta decorrência compete-lhe «declarar extinta a pena de prisão efectiva, a pena relativamente indeterminada e a medida de segurança de internamento» – art. 114.º, n.º 3, alínea s), da LOSJ e 138.º, n.º 4, alínea s), do CEPMPL.

A questão está em saber, portanto, qual a natureza da prisão subsidiária.

No título III do Código Penal, referente às consequências jurídicas do facto, o capítulo III respeita às penas de prisão, de multa e de proibição do exercício de profissão, função ou actividade, portanto às penas principais e acessórias aplicáveis aos autores de factos criminalmente puníveis.

A pena de multa está tratada nos art. 47.º a 49.º do modo que, em síntese e para o que aqui releva, se indica:

- art. 47.º, com a epígrafe “pena de multa”: a multa é fixada em dias e a cada dia de multa corresponde uma quantia;

- art. 48.º, com a epígrafe “substituição da multa por trabalho”: a requerimento do condenado a multa pode ser total ou parcialmente substituída por dias de trabalho, quando o tribunal concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição;

- art. 49.º, com a epigrafe “conversão da multa não paga em prisão subsidiária”: se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, mesmo que o crime não seja punível com prisão, não se aplicando, aqui, o limite mínimo dos dias de prisão, de um mês fixado no n.º 1 do artigo 41.º; o condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado, mesmo depois de iniciada a execução. O art. 491.º-A do C.P.P. respeita a este pagamento.

Esta prisão subsidiária é a sucessora da prisão alternativa, que o Código Penal de 1982 tratava nos seus art. 46.º e 47.º.

Estabelecia a primeira norma que a pena de multa era fixada em dias, que a cada dia correspondia uma quantia e que na sentença que aplicasse esta pena era sempre fixada prisão em alternativa, pelo tempo correspondente reduzido a dois terços. E dizia a segunda, a propósito do não pagamento da multa, que quando a multa não fosse paga, voluntaria ou coercivamente, nem substituída por dias de trabalho, era cumprida a pena de prisão aplicada em alternativa na sentença.

Resulta, pois, que a actual prisão subsidiária tem um tratamento substancialmente idêntico à anterior prisão alternativa.

E sobre esta dizia Figueiredo Dias no seu “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 2005, pág. 146 e 147: «A prisão a cumprir em vez da multa não satisfeita não é …, nem sequer em sentido formal, uma pena de substituição … também por outra parte parece não dever identificar-se sem mais … com a pena privativa da liberdade … Parece, nomeadamente, que o pagamento parcial da multa deve conduzir a uma redução proporcional da prisão sucedânea, da mesma forma que o pagamento posterior deve determinar a não execução da prisão que falte cumprir. Estas conclusões são desejáveis do ponto de vista político-criminal, enquanto evitam total ou parcialmente, o cumprimento de prisão efectiva e deixam aparecer na prisão sucedânea, muito exactamente, a sua vertente de sanção (penal) de constrangimento».

Este entendimento continua a ser seguido.

Por exemplo, por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 3ª edição, pág. 303.

Também Nuno Brandão, no artigo “Liberdade Condicional e Prisão (Subsidiária) de Curta Duração”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 4, 2007, pág. 673 e segs., diz que a prisão decorrente do não cumprimento da pena de multa principal é vista, fundamentalmente, como uma medida de constrangimento aplicada ao condenado com o intuito de o persuadir a liquidar a multa determinada pela sentença condenatória, na esteira de Figueiredo Dias; que a reforma de 1995 foi nesta matéria orientada precisamente pela ideia de que a prisão aplicada em virtude do não pagamento da multa visa prima facie dissuadir o condenado de subtrair-se à regularização da multa aplicada, constrangendo-o a pagá-la quer através da ameaça da prisão, quer da própria execução da prisão, dado que a todo o tempo a prisão poderá ser evitada mediante o pagamento da multa em falta; e defende finalmente, que a prisão subsidiária consagrada na legislação nacional assume uma finalidade precípua de constrangimento ao pagamento da multa em que o agente foi condenado, razão pela qual, por exemplo, não se lhe deve aplicar o regime da liberdade condicional, na medida em que se trata de um incidente da execução da pena de prisão.

E neste sentido vai, também, Joaquim Boavida, no seu artigo publicado na Revista Julgar, n.º 33, de 2017.

Quanto à jurisprudência, a Relação de Évora decidiu, no acórdão proferido no processo n.º 65/03.3PBBJA.E1 em 20-10-2009, que «a prisão subsidiária da pena de multa, a que se refere o artigo 49.º do Código Penal, não configura uma pena de substituição, visando antes conferir consistência e eficácia à pena de multa e, nessa precisa medida, evitar a prisão». No mesmo sentido foi a Relação do Porto no acórdão proferido no processo n.º 191/08.2GNPRT-B.P1 em 9-4-2014, que decidiu que «a prisão subsidiária configura um meio coercivo de cumprimento da pena de multa em que o arguido foi condenado». E, ainda, a Relação de Guimarães, no acórdão proferido no processo n.º 369/17.8PBGMR-C.G1, de 12-4-2021, ao decidir que o propósito da prisão subsidiária é o de assegurar a efectividade da pena de multa, sendo nessa medida encarada como uma sanção penal de constrangimento ao seu pagamento.

Já do S.T.J. temos as seguintes decisões:

- acórdão de 2-3-2011, proferido no processo n.º 732/03.1PBSCR-A.S1, que decidiu que o art.49.º, n.º 2, do Código Penal admite o pagamento a todo o tempo, portanto também depois do início do cumprimento, da prisão subsidiária, ou seja, da prisão que é cumprida subsidiariamente no caso de não pagamento da multa, enquanto pena principal;

- acórdão de 10-1-2013, proferido no processo 218/06.2PEPDL.L3.S1, que decidiu que a pena de multa convertida em pena de prisão subsidiária reduzida a 2/3 conserva a sua natureza originária de pena de multa, ainda que tenha sido executada;

- acórdão de 20-4-2017, proferido no processo n.º 176/10.9IDBRG.S1, que decidiu que a prisão subsidiária, resultante da conversão da pena de multa não paga  voluntariamente nem substituída por trabalho, tem uma natureza diferente da pena de prisão, não só por resultar da conversão de uma pena de multa, mas, ainda, por o condenado poder, a todo o tempo, evitar total ou parcialmente a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa em que foi condenado e pela possibilidade de a execução da prisão subsidiária ser suspensa, em determinadas condições, hipótese estas que implicam a conveniência de a prisão subsidiária manter a sua singular autonomia.

Portanto, se o cumprimento da prisão subsidiária não altera a natureza não detentiva da pena aplicada na sentença condenatória, diferentemente do que acontece com as penas de substituição, que sendo aplicadas em substituição da pena primeiramente considerada, assumem, a final, a natureza de pena principal, se a execução da pena subsidiária pode ser travada a todo o tempo, nomeadamente depois de iniciada a sua execução, mediante o cumprimento da pena, ou seja, o pagamento da multa, então a prisão subsidiária não é uma pena detentiva e nem sequer é uma pena.

E não o sendo, então a competência para decidir sobre ela pertence ao tribunal da condenação: a este compete a determinação do seu cumprimento, a emissão de mandados de detenção, a emissão de mandados de libertação, bem como a decisão de extinção da pena que, realço, é a pena de multa, que se mantém como pena principal não obstante a execução da pena subsidiária, tudo nos termos dos art. 474.º e 475.º do C.P.P.


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DISPOSITIVO

Pelo exposto, decidindo o presente conflito negativo, atribuo a competência para declarar a extinção da pena aplicada ao arguido … no processo n.º 201/21.... ao Juízo Local Criminal de Castelo Branco - Juiz 1, da comarca de Castelo Branco, por ser o tribunal que proferiu a condenação.

Sem tributação.

Cumpra o nº 3 do art. 36º do C.P.P.

Dê conhecimento ao senhor juiz presidente da Comarca de Castelo Branco.

Despacho elaborado pela presidente da 4ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, processado em computador, revisto e assinado electronicamente – art. 94º, nº 2 e 3, do C.P.P.

                                             

                                               Coimbra, 6-11-2023