Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
525/21.4T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: DEVER DE ESPECIFICAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DE DIREITO E DE FACTO NAS DECISÕES JUDICIAIS
OMISSÃO DA INDICAÇÃO DOS FACTOS NÃO PROVADOS
NULIDADE
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 20.º, 4 E 205.º, 1, DA CRP
ARTIGOS 510.º, 3; 571.º; 573.º; 576.º, 2; 577.º, E); 579.º; 595.º, 1, A) E 3; 607.º, 3 E 4; 608.º, 2; 615, 1, B) E D); 640.º E 665.º, DO CPC
Sumário:
I- Decorre do disposto nos artºs 205, nº1, da Constituição, 154 e 607, nºs 3 e 4 do C.P.C., a imposição de um dever ao Magistrado Judicial de especificar os fundamentos de facto e de direito das decisões que profere, de forma a assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo (cfr. artº 20 da C.R.P.).

II- Em cumprimento deste dever de assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo, exige-se não só a indicação dos factos provados, como dos não provados e ainda, a indicação do processo lógico – racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes (cfr. artº 607º, nº 4, do CPC.).

III-A omissão de indicação dos factos que o tribunal a quo considerou não provados e da respectiva fundamentação, determina os fundamentos de nulidade da sentença previstos no art. 615º, nº 1, al. b), do CPC.

IV- Em relação a esta nulidade não opera a regra de substituição do tribunal recorrido, prevista no artº 665 do C.P.C., sob pena de violação do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.

Decisão Texto Integral:
***

Proc. Nº 525/21.4T8LRA.C1- Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Central Cível de Leiria– J....

Recorrente: A..., Sociedade Unipessoal, Ld.ª

Recorrido: AA

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Teresa Albuquerque

                                                       Falcão de Magalhães

                                                           *


Acordam os Juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra



RELATÓRIO

 AA, intentou ação de condenação, em processo comum de declaração, contra A..., Sociedade Unipessoal, Ld.ª, formulando os seguintes pedidos:

A) Ser declarada válida e eficaz a resolução do contrato de empreitada, por incumprimento culposo da Ré, operada pelo A. em 30/07/2020;

B) Ser a Ré condenada a reconhecer a existência de defeitos na obra por si executada;

C) Ser a Ré condenada a reconhecer que o A. nada lhe deve por conta desta empreitada; e ainda,

D) Ser a Ré condenada a pagar ao A., em virtude do incumprimento contratual, as seguintes quantias:

D.1) 67.348,59€, acrescido dos juros de mora à taxa de 4% ao ano contados desde a data da sua citação, até efetivo e integral pagamento, a título de indemnização pelos danos patrimoniais (dano contratual positivo);

D.2) 2.000,00€, acrescido dos juros de mora à taxa de 4% ao ano contados desde a data da sua citação, até efetivo e integral pagamento, a título de danos não patrimoniais causados ao A.”

Para fundamentar o seu pedido, alega que a R. executou a seu pedido um muro, enfermando este de defeitos, não corrigidos pela R.


*

Citado, o réu contestou, impugnando os factos alegados pelo A. e alegando, por sua vez, que foi o A. que não aceitou a realização dos trabalhos necessários à boa execução do muro, nem as soluções sugeridas para a sua reparação.

Em reconvenção alega que o A. não procedeu ao pagamento de outros trabalhos executados na obra, pelo que formula pedido de condenação do A.:

- (…) a reconhecer o crédito da Ré no montante de 12.891,69 €,

- (…) a pagar o montante de 12.891,69 € à Ré;”


*

Foi apresentada réplica pelo A, no sentido de o pagamento desta quantia não ser devido atento o incumprimento que imputa à R.

*

Designada audiência prévia, foi recebida a reconvenção e proferido despacho saneador, com fixação do objecto do litígio e identificação dos temas da prova.

*

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, findo o qual, foi proferida sentença que julgou “a ação totalmente procedente por provada e, em consequência:

1. Declara válida e eficaz a “resolução” do acordo celebrado por incumprimento culposo da R., operada pelo A. em 30/07/2020;

2. Condena a R. a reconhecer a existência de defeitos na obra por si executada;

3. Operando a compensação de créditos do A. e da R., [ apreciando o pedido reconvencional efetuado ] condena a R. a pagar ao A., a quantia de €67.348,59 [ sessenta e sete mil, trezentos e quarenta e oito euros, e cinquenta e nove cêntimos ], acrescida dos juros de mora à taxa legal desde a data da sua citação, até efetivo e integral pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais;

4. Condena a R. a pagar ao A. a quantia de €2.000,00€, acrescido dos juros de mora à taxa legal desde a data da sua citação, até efetivo e integral pagamento, a título de danos não patrimoniais causados ao A.

5. Custas pela R. [ art. 527.º do CPC ].”


*

Não conformado com esta decisão, impetrou a R., recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“87.º

O presente recurso visa discutir a decisão proferida acerca da matéria de facto (também com recurso ao suporte digital da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento) e de direito que recaiu sobre a questão em mérito nos autos, visando a reapreciação de ambas, a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por decisão que julgue totalmente improcedente o pedido deduzido pelo Autor.

88.º

Entende a Recorrente, salvo melhor entendimento, que os autos contêm elementos documentais, bem como, registos da gravação das declarações de parte e de depoimento testemunhal, dos quais depende a aplicação, à situação vertente, do preceituado no artigo 662º n.º 1 do CPC, ou seja, que está ao alcance desta 2ª Instância a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto julgada provada e não provada.

89.º

Na verdade, atenta a prova produzida nos autos, crê a Recorrente que existem elementos no processo que impunham ao tribunal recorrido decisão de facto diversa da proferida, estando, pois, ao alcance da 2ª Instância a alteração da decisão da matéria de facto proferida em 1ª Instância, nomeadamente, julgando não provados os factos vertidos nos pontos 13, 18 e 24 da sentença, julgando provada a exceção de legitimidade substantiva do Recorrido bem como a nulidade da sentença, e ainda a alteração da redação dos pontos 14 e 19 da sentença.

90.º

Estabelece a alínea d) do nº1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil que: “É nula a sentença quando: O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;” (itálico nosso)

91.º

Em sede de audiência de julgamento (cfr. declarações de parte do Recorrido em audiência de julgamento realizada no dia 04.10.2022, às 10h43, entre os minutos 00:32:20 e 00:33:47), e em momento de alegações finais (realizadas em audiência de julgamento realizada no dia 07.10.2022, às 09h00, entre os minutos 00:00:10 e 00:03:01), a Recorrente invocou uma exceção perentória inominada, mais concretamente, a falta de legitimidade substantiva do Recorrido.

92.º

Salvo melhor entendimento, a exceção de legitimidade substantiva é de conhecimento oficioso, e ainda que a Recorrente não tenha alegado tal exceção nos articulados, tal circunstância não obsta a que o tribunal conheça dela.

93.º

Constam dos factos não provados (2.2 da Sentença) a seguinte conclusão: “Todos os demais constantes dos articulados não mencionados na resposta dada supra.” (itálico nosso)

94.º

A Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo não se pronunciou quanto à invocada exceção de legitimidade substantiva, limitando-se o Meritíssimo Juiz a quo, com o devido respeito, a proferir suspiros na fundamentação dos factos não provados (2.3.2).

95.º

O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, limitou-se a suscitar tal questão enxertando-o na motivação dos factos não provados, não apreciando convenientemente a questão, conduzindo consequentemente à nulidade da sentença.

96.º

Por entender a Recorrente que se dispõe dos elementos documentais necessários, deverá o Douto Tribunal da Relação pronunciar-se sobre tal exceção conforme previsto no artigo 665.º do Código de Processo Civil.

97.º

Para tal, deverá socorrer-se do documento nº12 da petição inicial, e dos documentos nº22, nº25, nº26, nº27 e nº28 juntos pelo Recorrido em requerimento autónomo no dia 10.02.2021 com a referência Citius 7462635.

98.º

É flagrante, por resultar dos autos e da prova junta aos mesmos, que não se gerou qualquer dano na esfera jurídica do Recorrido, mas sim da sociedade B..., Lda., que assegurou todos os pagamentos ao Recorrente, à exceção dos realizados pela sociedade C..., Lda., que até hoje a Recorrente não sabe que acordo existiu entre as partes para a existência de tais pagamentos.

99.º

Aliás, tais pagamentos foram dados como provados nas alíneas a) a h) dos factos dados como provados.

100.º

Não pode o Recorrido requerer a condenação da Recorrente em quantia que ele próprio não despendeu para a realização da construção do muro.

101.º

Se existiu algum dano na esfera jurídica de alguém, esse alguém será a empresa B..., Lda., que realizou os pagamentos à Recorrente.

102.º

Pelo que, tal exceção de falta de legitimidade substantiva do Recorrido deverá proceder, conhecendo o Douto Tribunal da Relação dessa exceção.

Por outro lado,

103.º

Consta da sentença no ponto 2.2. Factos não provados “Todos os demais constantes dos articulados não mencionados na resposta dada supra.” (itálico nosso)

104.º

Tal formulação “Todos os demais constantes dos articulados não mencionados na resposta dada supra” não permite a imediata compreensão dos factos que o Douto Tribunal deu como não provados.

105.º

O que implica que os destinatários desta sentença tenham de indagar, através da análise dos articulados submetidos quais são os demais “factos não mencionados na resposta supra”. (itálico nosso)

106.º

A necessidade imposta pela decisão, no que respeita ao apuramento cristalino do completo elenco dos factos não provados, consubstancia nulidade, nos termos do nº4 do artigo 607º, e alíneas c) e d) do nº1 do artigo 615.º todos do Código de Processo Civil.

107.º

Por outro lado, a própria motivação quanto aos factos provados e não provados é imprecisa, bastando-se com a simples remissão para documentos constantes dos autos, não permitindo alcançar o entendimento do Douto Tribunal quanto a esses mesmos documentos ou quais as conclusões que extraiu do mesmo.

108.º

Não se verificando os requisitos necessários para a apreensão correta e clara dos factos dados como não provados, bem como da fundamentação dos factos dados como provados e não provados, a sentença enferma de nulidade, devendo a mesma ser anulada, e baixando os autos ao Tribunal a quo para que se proceda à reforma da decisão, o que desde já se requer.

109.º

No que tange à impugnação da matéria de facto julgada como não provada,

110.º

Consta no ponto 2.2. Factos não provados: “Todos os demais constantes dos articulados não mencionados na resposta dada supra.” (itálico nosso)

111.º

E ainda no ponto 2.3.2 Factos não provados o seguinte:

“Quanto a estes assim resultaram à míngua de elementos que afirmassem a sua veracidade e consequentemente que outra fosse a resposta dada.

As asserções vertidas em sede de contestação/reconvenção, porque não foram consistentes e desprovidas de confirmação fáctica, revertem, a final para líquidos estados de alma da R. e por isso, foram naturalmente desconsiderados.

Doutra banda, até a tese peregrina de uma putativa ilegitimidade do A. – não alegada pela R. no articulado [quiçá fruto de longa peregrinação noturna em torno da busca de um “coelho para tirar da cartola”], porque não alegada aparenta o que afinal é, sem o parecer, revertendo em suma para líquidos estados de alma da R.” (itálico nosso)

112.º

Tal fundamentação quanto aos alegados factos dados como não provados (que não se conseguem aferir de forma clara) é de difícil compreensão e alcance.

113.º

A tratar-se apenas da questão da ilegitimidade substantiva do Recorrido (suposição da ora Recorrente) a mesma não se encontra suportada por qualquer entendimento ou explanação, mas por meros desabafos.

114.º

Da prova gravada e da prova documental constante nos autos outra decisão se impunha ao Douto Tribunal a quo.

115.º

Em sede de declarações de parte, o Recorrido refere que os valores da construção do muro foram pagos pela sociedade B..., Lda., da qual é sócio e gerente, referindo ainda que legalmente não tinha outra forma de passar cheques da empresa se não tivesse uma justificação, tratando-se, por isso, de um empréstimo da empresa ao Recorrido (cfr. declarações de parte do Recorrido em audiência de julgamento realizada no dia 04.10.2022, às 10h43, entre os minutos 00:32:20 e 00:33:44).

116.º

Uma vez que o dano se verificou na esfera jurídica da sociedade B..., Lda., (empresa que procedeu ao pagamento da construção do muro do Recorrido), estamos perante uma falta de legitimidade substantiva do Recorrido.

117.º

Da análise quer das declarações de parte do Recorrido (cfr. declarações de parte do Recorrido em audiência de julgamento realizada no dia 04.10.2022, às 10h43, entre os minutos 00:32:20 e 00:33:44) quer dos documentos supra, impunham a verificação da exceção perentória de ilegitimidade substantiva do Recorrido, conduzindo à absolvição do pedido.

118.º

Por outro lado, até a troca de emails entre a Recorrente e a Recorrida era feita através do email da empresa B..., conforme se extrai do documento nº 15 junto com a Petição Inicial.

119.º

Por isso, mal andou o Tribunal a quo ao ter julgado como facto não provado a ilegitimidade substantiva do Recorrido, donde por existir prova gravada e prova documental que sustente a ilegitimidade substantiva do Recorrido (conforme explanado supra), a decisão ora impugnada deve ser revogada e substituída por outra que julgue como provada a ilegitimidade substantiva

do Recorrido, o que se requer.

120.º

Quanto à impugnação da matéria de facto julgada como provada,

121.º

O Tribunal a quo, deu como provado, entre outros factos, os factos nº13, nº14, nº18, nº19 e

nº24.

122.º

A fundamentação para que tais factos fossem dados como provados, baseia-se em meras remissões para documentos constantes dos autos, sendo que a prova gravada (testemunhal e de declarações de parte) permite chegar a conclusões muito díspares das proferidas pelo julgador, pelo que se impõe a sua análise.

123.º

No que tange ao facto dado como provado nº13, resulta que: “Com o desenrolar da construção do muro, a R. entendeu que a obra necessitava de mais metros quadrados de pedra para além do inicialmente orçamentado de 334m2, acrescentando metros de muro sem o devido conhecimento e autorização do A.” (itálico nosso)

124.º

Para fundamentar tal afirmação, o Tribunal recorrido sustentou o seguinte: “Pontos 13 e 14 depoimento prestado pela testemunha BB, engenheiro civil que referiu a este ponto que o muro foi elevado, que “o trabalho estava a pedir metros em altura” corroborado pelo doc.10 [e-mail enviado pela R. ao A. em 11-05-2020 e por este recebido] de onde se retira (sic): “Em condições normais todos os muros têm uma fundação enterrada de 0,5m no entanto decidiu-se fazer 2 metros de fundação para oferecer melhor confiança. Este aumento fez disparar metros quadrados do muro inicialmente estimados, bem como aumento da altura do muro que inicialmente era de 7 m na parte mais alta e 3m na parte mais baixa, justificando desta forma o aumento substancial em relação ao estimado que era de 334m2.”

125.º

Atenta a prova gravada produzida em sede de audiência de julgamento, não se extrai a conclusão de que a Recorrente decidiu sem o devido conhecimento e autorização do Recorrido, proceder ao aumento do muro.

126.º

Nas declarações de parte prestadas pelo Recorrido, o mesmo esclarece que à medida que a obra ia sendo construída a Recorrente dizia-lhe sempre “olha isto está a pedir isto, isto está a pedir aquilo, isto aqui pedia era a gente subir mais 1 metro ou 2, olha isto aqui desde lado o terreno está a pedir para subirmos mais qualquer coisa”, confessando o Recorrido que nunca negou à Recorrente alguma coisa (cfr. declarações de parte do Recorrido em audiência de

Julgamento realizada no dia 04.10.2022, às 10h43, entre os minutos 00:08:41 e 00:09:06) (itálico nosso)

127.º

De tais declarações proferidas pelo Recorrido, é notório que o mesmo teve sempre conhecimento e anuiu em todas as alterações propostas pela Recorrente, aliás, o mesmo confessou que nunca negou nada à Recorrente.

128.º

Resulta patente do que vem dito o erro notório e crasso em que incorreu o julgador ao julgar como provado o facto nº13, posto que, a prova que foi produzida nos autos é clara em relação ao conhecimento que o Recorrido tinha do aumento dos metros de altura do muro, tendo autorizado tais aumentos.

129.º

Por isso, mal andou o Tribunal recorrido ao ter julgado provado que “13. Com o desenrolar da construção do muro, a R. entendeu que a obra necessitava de mais metros quadrados de pedra para além do inicialmente orçamentado de 334m2, acrescentando metros de muro sem o devido conhecimento e autorização do A.” (itálico nosso)

130.º

Donde, por a prova gravada (cfr. declarações de parte do Recorrido em audiência de julgamento realizada no dia 04.10.2022, às 10h43, entre os minutos 00:08:41 e 00:09:06) apontar em sentido oposto ao julgado provado, a decisão ora impugnada deve ser revogada e substituída por outra que julgue não provado o facto nº13 da sentença, o que se requer.

131.º

No que tange ao facto dado como provado nº14 resulta que: “Assim, o muro veio a sofrer um aumento para cerca de 800m2 (665m2 à superfície + 352m2 soterrado), acima do dobro do que tinha sido previsto, atendendo a que a R., decidiu aumentar a profundidade (de 0,5m para 2m) e a altura do muro (de 7m para 9,5m na parte mais alta), ficando o custo final do muro em 48.000,00€ (quarenta e oito mil euros)” (itálico nosso)

132.º

Quanto ao facto nº14 dado como provado, a decisão do aumento da profundidade não foi uma decisão unilateral da Recorrente, mas sim de mútuo acordo entre Recorrente e Recorrido, sendo que tal como mencionado em declarações de parte do Recorrido, o mesmo permitiu que tal aumento fosse realizado (cfr. declarações de parte do Recorrido em audiência de julgamento realizada no dia 04.10.2022, às 10h43, entre os minutos 00:08:41 e 00:09:06).

133.º

Face ao exposto, urge que o facto nº14 dado como provado seja alterado em virtude das declarações de parte do Recorrido ficando a constar: “14. Assim, o muro veio a sofrer um aumento para cerca de 800m2 (665m2 à superfície + 352m2 soterrado), acima do dobro do que tinha sido previsto, atendendo a que a R., por acordo e consentimento do A., decidiram aumentar a profundidade (de 0,5m para 2m) e a altura do muro (de 7m para 9,5m na parte mais alta), ficando o custo final do muro em 48.000,00€ (quarenta e oito mil euros)”, o que desde já se requer. (itálico nosso)

134.º

Atinente ao facto dado como provado nº18 resulta que: “O A. comunicou à R. os defeitos pessoalmente à R., em março de 2020, na pessoa do seu legal representante, CC.”

(itálico nosso)

135.º

Para fundamentar tal afirmação, o Tribunal recorrido sustentou o seguinte: “Pontos 17 a 19 – factos não controvertidos, colocando-se o dissídio entre as partes no porquê da existência dos verificados defeitos. Estes resultam objetivamente também do teor do doc.13 junto a fls. 23 a 28.” (itálico nosso)

136.º

Tal como se encontra explanado no documento nº10 junto com a Petição Inicial, que se reporta a um email enviado pela Recorrente ao Recorrido no dia 02 de maio de 2020 com a seguinte informação: “Boa tarde, Conforme visita nesta data, verificou-se que a fundação do muro com 2 metros de profundidade não está a oferecer a resistência necessária para o muro construído devido à existência de nascentes de água na fundação diminuindo assim a resistência desta.

Recomendamos colocação de um tubo dreno e colocação de 1 metro na frente do muro a acrescer aos 2 já subterrados aquando da construção do muro. (…)” (itálico nosso)

137.º

A fundamentação do Tribunal a quo para o facto dado como provado nº18 remete ao documento nº13 junto com a Petição Inicial, que consiste num conjunto de fotografias desprovidas de qualquer texto ou contexto, nunca se extraindo qualquer conclusão no sentido da comunicação dos defeitos.

138.º

Face ao conteúdo de tal documento (documento nº10 junto com a Petição Inicial), que constitui prova documental nos presentes autos, deverá o facto nº18 ser dado como não provado, o que desde já se requer.

139.º

Por referência ao facto dado como provado nº19 resulta que: “CC deslocou-se à obra no dia 2 de maio de 2020, onde constatou a existência dos defeitos reclamados pelo A.”

(itálico nosso)

140.º

Para fundamentar tal afirmação, o Tribunal recorrido sustentou o seguinte: “Pontos 17 a 19 – factos não controvertidos, colocando-se o dissídio entre as partes no porquê da existência dos

verificados defeitos. Estes resultam objetivamente também do teor do doc.13 junto a fls. 23 a

28.” (itálico nosso)

141.º

Conforme explanado supra, a existência dos defeitos foi verificada pelo legal representante da Recorrente e não pelo Recorrido, conforme se extrai do documento nº10 junto com a Petição Inicial.

142.º

Em momento algum é possível aferir através da análise do documento nº13 junto com a Petição Inicial que o legal representante da Recorrente deslocou-se à obra no dia 02 de maio de 2020 e constatou a existência dos defeitos alegados pelo Recorrido.

143.º

Face ao exposto, o facto dado como provado nº19 deverá ser alterado e ficar a constar: “19. CC deslocou-se à obra no dia 2 de maio de 2020 onde constatou a existência de defeitos que comunicou através de email nesse mesmo dia ao Autor.”, o que desde já se requerer. (itálico nosso)

144.º

O Tribunal a quo deu como provado o facto nº24 onde resulta que: “No dia 15 de Maio de 2020, o gerente da R., CC, deslocou-se à obra, sem autorização nem aviso prévio, e demoliu cerca de 256m2 de muro, deixando a pedro do modo que se apresenta nas fotos que aos autos se mostram juntas e aqui dadas por reproduzidas.” (itálico nosso)

145.º

Para fundamentar tal afirmação, o Tribunal recorrido sustentou o seguinte: “Ponto 24 – doc.16” (itálico nosso)

146.º

Mais uma vez, tal documento nº16 junto com a Petição Inicial é um conjunto de fotografias sem a menção de qualquer data sendo ainda feito um parêntesis pelo julgador em nota de rodapé afirmando que “Como uma imagem vale mais do que mil palavras, para tais fotos se remete.” (itálico nosso)

147.º

Pois bem, sempre com o devido respeito, não perfilhamos o entendimento do Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, uma vez que tais fotografias não demonstram o facto provado nº24 nomeadamente que o legal representante da Recorrente se dirigiu à obra sem autorização nem aviso prévio e demoliu cerca de 256m2, deixando as pedras naqueles termos.

148.º

Contudo, e atenta a prova gravada produzida em sede de audiência de julgamento, não se extrai a conclusão de que a Recorrente se deslocou à obra no dia 15 de maio de 2020, mas sim no dia 23 de maio de 2020 (cfr. declarações de parte do Recorrido em audiência de julgamento realizada no dia 04.10.2022, às 10h43, entre os minutos 00:25:50 e 00:26:00).

149.º

Por outro lado, refere-se ainda no facto 24 dado como provado que a Recorrente deslocou-se à obra, sem autorização nem aviso prévio.

150.º

Do documento nº9 junto com a Contestação apresentada pela Recorrente, consta uma mensagem de texto escrita enviada pela testemunha BB ao legal representante da Recorrente no dia 22 de maio de 2020 onde refere: “Boa tarde, Você pode entrar no terreno da moradia do Sr. AA para colocar sinalização ou vedação com fitas e retirar alguma terra solta que está a fazer pressão no muro, evitando-o de colapsar.” (itálico nosso)

151.º

A essa mensagem de texto, constante do documento nº9 da Contestação, o legal representante da Recorrente responde à testemunha BB referindo o seguinte: “O shr. AA da B... tem que ter conhecimento visto eu já lhe ter pedido para tirar a terra solta, na zona

que começou a ceder. Não falei mais com ele, fica você de falar, amanhã para evitar palhaçada de GNR no local. Amanhã vou lá á tarde depois de terminar o serviço no cliente ao lado. Ele ainda pode aproveitar os cantos e a fundação com 2 m de altura. Vou deixar o muro em segurança. Mas terá que ser vigiado uma vez que já trabalhou até á fundação. Faça lhe chegar a mensagem, obrigado, boa noite.” (itálico nosso)

152.º

Do depoimento da testemunha BB, a mesma refere que a própria havia feito um “forcing” para que a Recorrente fosse à obra retirar alguma terra para que muro não caísse e que chegaram à conclusão que a Recorrente iria deslocar-se à obra (cfr. depoimento prestado pela testemunha BB em audiência de julgamento realizada no dia 04.10.2022, às 11h04, entre os minutos 00:10:30 e 00:11:07).

153.º

Tal depoimento é contraditório com as declarações prestadas pelo Recorrido em sede de declarações de parte, onde refere que desconhecia a deslocação da Recorrente à obra e que também o Engenheiro BB não sabia de nada (cfr. declarações de parte do Recorrido em audiência de julgamento realizada no dia 04.10.2022, às 10h43, entre os minutos 00:26:10 e 00:26:55).

154.º

Quer a testemunha BB quer o Recorrido bem sabiam da deslocação do legal representante da Recorrente à obra para proceder à estabilização do muro, que pressupunha diminuir a altura do mesmo.

155.º

Por outro lado, das declarações prestadas pelo legal representante da Recorrente em sede de audiência de julgamento, o mesmo esclareceu que no dia 11 de maio de 2020 contactou por mensagem e via email o Recorrido para se deslocarem ao local para aliviar a pressão do muro e que nunca entrou na obra sem autorização do cliente (cfr. declarações de parte do Recorrente em audiência de julgamento realizada no dia 04.10.2022, às 10h07, entre os minutos 00:43:57 e 00:44:41).

156.º

No mesmo sentido, o legal representante da Recorrente explicou ainda que numa sexta-feira, foi com a testemunha BB à obra e avaliaram o muro, chegando à conclusão que era necessário demolir uma fiada ou duas de pedra para evitar a derrocada, tendo-se deslocado à obra no sábado seguinte, referindo não se recordar se havia sido dia 22 ou 23 de maio (cfr. declarações de parte do Recorrente em audiência de julgamento realizada no dia 04.10.2022, às 10h07, entre os minutos 00:53:38 e 00:57:23).

157.º

Donde, por a prova gravada (quer as declarações de parte do Recorrido e do Recorrente quer da testemunha BB) apontar em sentido oposto ao julgado provado, a decisão ora impugnada deve ser revogada e substituída por outra que julgue não provado o facto nº24 da sentença, o que se requer.

158.º

Tais factos conduzem inexoravelmente à absolvição do pedido formulado pelo Autor contra a

Ré.

159.º

Como tal, a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente do pedido, com as necessárias consequências legais.

Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso se fará a costumada JUSTIÇA!”


*


Foram interpostas contra-alegações pelo A., concluindo da seguinte forma:

“I. O presente recurso de apelação vem interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Leiria que julgou totalmente procedente a ação e condenou a Recorrente A..., Sociedade Unipessoal, Lda. (empreiteira) a pagar ao Recorrido AA (dono de obra), uma indemnização no valor de 67.348,59€ (acrescida de juros civis), pelos danos patrimoniais causados em virtude do incumprimento contratual, calculada em função do pedido do autor (indemnização pelo interesse contratual positivo) e ainda a quantia de €2.000,00€ (acrescida de juros) a título de danos não patrimoniais.

II. A Recorrente interpõe o presente recurso visando a discussão e reapreciação da matéria de facto e de direito e consequentemente a sua substituição por decisão que julgue totalmente improcedente o pedido deduzido pelo Apelado.

III. No que há matéria de direito diz respeito suscita a Recorrente no seu Recurso uma questão de nulidade da sentença, por violação do disposto na alínea d) do n.º1 do artigo 615.º do CPC, alegando que esta padece de nulidade por omissão de pronuncia porque o douto tribunal a quo não se pronunciou quanto à exceção perentória inominada – falta de legitimidade substantiva do Recorrido – que foi alegada por si já em sede de julgamento e em alegações finais.

IV. Não se concorda com a Recorrente, uma vez que o A. tem legitimidade substantiva/material, como também o tribunal não tinha o dever de se pronunciar (mas que até o fez) com uma questão que não foi suscitada em sede de articulados, e que também não é de conhecimento oficioso.

V. Não tendo a Ré alegado em sede de contestação a exceção da ilegitimidade substantiva do A., nem alegou factos integradores da exceção, não tinha o douto tribunal a quo que se pronunciar quanto a ela pelo que ocorreu a preclusão do direito de a invocar após a fase de contestação.

VI. A ilegitimidade substantiva é uma exceção de direito material (e nessa medida uma exceção perentória nos termos do artigo 579.º, n.º3 do CPC) que tem natureza disponível e por isso não é de conhecimento oficioso, devendo a respetiva factualidade ser alegada na contestação, sob pena de preclusão, nos termos do disposto nos artigos 571º, 573º e 579º do CPC.

VII. Ainda que fosse de conhecimento oficioso, o que por mero raciocínio académico se admite, nos autos inexistem factos/elementos integrativos que levem tribunal a conhecer desta exceção.

VIII. Decorre, no entanto, que o tribunal a quo acabou mesmo por se pronunciar e fez alusão a ela no ponto 2.3.2 da sentença. Ainda que o tribunal recorrido não esmiúce a argumentação alegada pela Ré, em sede de julgamento, a verdade é que se pronunciou dizendo “até a tese peregrina de uma putativa ilegitimidade do A. – não alegada pela R. no articulado (…)”, resolvendo assim, negativamente, a exceção invocada.

IX. Assim a Recorrente parece confundir a omissão de pronúncia com uma questão de in/suficiência da fundamentação, que é outra coisa, como é evidente.

X. Cabe, assim, concluir que a sentença recorrida, contrariamente ao invocado pela recorrente, não padece, manifestamente, do aludido vício de nulidade, na estrita medida em que o Tribunal Recorrido (que legalmente não tinha a obrigação de se pronunciar sobre uma exceção que não é de conhecimento oficioso nem foi alegada em sede de contestação) não omitiu a sua pronúncia sobre qualquer um dos pedidos formulados, nem sobre a exceção extemporaneamente invocada pela recorrente.

XI. A legitimidade substantiva/substancial/material tem que ver com a relação material e prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta. A legitimidade substantiva está relacionada com a titularidade do(s) direito(s) invocado(s) na ação.

XII. Havendo um incumprimento contratual por parte da empreiteira, como sucedeu nos presentes autos, logicamente que o lesado é a pessoa com quem a empreiteira celebrou o contrato de empreitada, isto é, o dono da obra.

XIII. É lesado o dono da obra que viu incumprido o contrato de empreitada pela contraparte – que lhe fez uma obra com defeitos – e não quem eventualmente lhe possa ter disponibilizado os fundos de forma que pudesse cumprir a contraprestação a que se vinculou (que é a do pagamento do preço convencionado).

XIV. Ora, sendo o Autor o dono da obra executada pela Ré e tendo existido um incumprimento do contrato por parte desta, é manifesto que foi na esfera jurídica daquele que se gerou o dano. É o Autor quem, em face do incumprimento da Ré, tem de contratar outra entidade para reconstruir o muro e suportar, em primeira mão, todos os custos inerentes.

XV. O A. provou que os danos patrimoniais que teve (e tem) com a empreitada da Ré são elevados; que do muro feito pela Ré não pode aproveitar nada, ficando-lhe inclusive mais caro agora arranjar o muro que fazer um muro novo, para além dos problemas que a remoção das pedras ainda poderá causar na estrutura da casa.

XVI. É também pacífico nos autos de que não foi celebrado qualquer contrato entre a sociedade B..., Unipessoal Lda e a Recorrente, pelo que jamais o dano se verificaria na esfera jurídica desta empresa!

XVII. Conforme resulta dos autos, o Autor apenas se socorreu das economias da sua empresa para conseguir liquidar uma parte do preço da empreitada à Ré, em virtude do imprevisto aumento do custo da obra, que foi totalmente imputável a esta.

XVIII. Nunca existiu a hipótese de o muro ser da empresa B..., Unipessoal Lda.

XIX. Do montante total pago à Apelante, de 44.208,35€, apenas 9.208,35€ adveio da empresa do Recorrido. Todo o valor restante, de 35.000,00€ (5.000,00€ + 30.0000,00€), foi suportado diretamente pelo A.

XX. Mas ainda que todo o valor proviesse da sociedade B..., Unipessoal Lda, também o A. seria o lesado, pois é ele (como já era na altura) o único beneficiário efetivo desta empresa, sendo inevitavelmente de concluir que os recursos financeiros também são seus!

XXI. O A. é o dono da obra, a Ré sabia disso, assim como foi para com o A. que a Ré se vinculou à execução da empreitada.

XXII. De todo o modo, e ainda que assim não fosse, há que atender ao concreto pedido deduzido pelo A. à Ré, isto é, uma indemnização pelo interesse contratual positivo.

XXIII. Ora, se o pedido deduzido pelo A. é que a Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização que lhe permita colocá-lo na situação em que estaria se o contrato fosse cumprido, dúvidas não podem restar de que o A./dono de obra, é o único titular desse direito.

XXIV. Portanto, assistia ao A., o direito que se apresentou a exercer, isto é, o de resolver o contrato celebrado com a Ré, exigindo desta, consequentemente, a indemnização dos danos que o incumprimento contratual lhe acarretou, nos termos do artigo 1223.º do CC.

XXV. Assim, sempre seria de reconhecer ao A. o direito à indemnização tal como o tribunal recorrido fez.

XXVI. Por todo exposto, o A. tem claramente legitimidade substantiva., pelo que, deve improceder a exceção perentória inominada deduzida pela R..

XXVII. Alega a Recorrente que a expressão utilizada pelo Mmo. Juiz no ponto 2.2 dos factos

não provados “Todos os demais contantes dos articulados não mencionados na resposta dada supra” é complexa e obscura, e que não lhe permite de imediato compreender os factos que o tribunal considerou não provados e implica que os destinatários da sentença tenham de indagar, através da análise dos articulados submetidos.

XXVIII. Alega também a Recorrente que a motivação quanto aos factos provados e não provados é imprecisa porque se basta com a simples remissão para documentos, não permitindo alcançar o entendimento/conclusões que extraiu dos mesmos. Por estas razões, pretende a Recorrente que os autos baixem ao Tribunal a quo para reforma da decisão.

XXIX. Não é verdade que a motivação faça uma simples remissão para documentos. Após o Ponto 38, o douto tribunal a quo concretizou a sua motivação, fazendo um resumo da escassa prova testemunhal produzida pela Apelante.

XXX. No que há matéria de facto diz respeito, a Recorrente impugna a matéria de facto julgada como não provada, pretendendo que seja considerado provada a ilegitimidade substantiva do Recorrido por entender que os Docs. n.º 22, 25, 26, 27 e 28 juntos com a PI são prova que o sustente, e, por via disso, ser absolvida do pedido.

XXXI. Ora, se em sede de articulados, a Recorrente não alegou qualquer exceção nem fez alusão a qualquer facto integrador de aludida/ invocada ilegitimidade substantiva do Recorrido, nenhuma obrigação tinha o tribunal a quo de o elencar na sentença, muito menos no rol de factos provados ou não provados. Esta é uma questão de direito material e não factual.

XXXII. De todo o modo, não existe qualquer ilegitimidade substantiva do Recorrido.

XXXIII. Para além de a lei atribuir indiscutivelmente ao dono da obra o direito à indemnização pelo incumprimento contratual, o certo é que, tendo o A. peticionado uma indemnização pelo interesse contratual positivo, dúvidas não podem restar de que, é ele quem tem o direito a ser ressarcido, pois foi ele que contratou com a Ré incumpridora.

XXXIV. Neste sentido, deve improceder o pedido de inclusão no rol de factos provados da putativa ilegitimidade substantiva do Recorrido.

XXXV. Como se vê pelas conclusões das alegações, a Ré suscita outra questão respeitante à decisão da matéria de facto, pois sustenta que, em face da prova gravada, os factos vertidos nos pontos 13, 18 e 24 da sentença deve ser objeto de resposta de “não provado” e que a redação dos pontos 14 e 19 da sentença deve ser alterada.

XXXVI. Quanto ao facto julgado como provado n.º13, insurge-se a Recorrente quanto à parte que diz “acrescentando metros de muro sem o devido conhecimento e autorização do A”. Pretende a Recorrente que seja considerado não provado este facto atendendo a que, em declarações de parte do Recorrido este terá confessado que nunca negou alguma coisa à Recorrente, pelo que o aumento dos metros de altura do muro eram do conhecimento e autorização do Recorrido e foram feitos com a sua autorização.

XXXVII. Sobre esta questão, não se pode reconhecer razão à Recorrente. Isto porque a afirmação do A. ao dizer que nunca negou nada à Ré não é bastante para concluir que teve conhecimento do aumento da metragem para além do orçamentado e que autorizou esse aumento.

XXXVIII. O que o A. sempre pediu à Ré, e desde o início, é que fizesse um muro ao nível da casa, facto provado em declarações do A. e também da testemunha DD, pai do A.

XXXIX. Em instâncias do Mmo. Juiz, o legal representante da Ré proferiu afirmações (com hesitações e conclusões suas) que, sem sombra de dúvida, nos levam a concluir que o A., para além de não ter dado autorização (apenas pediu um muro que fosse ao nível da casa), também não fez qualquer acordo para aumentar a metragem do muro inicialmente orçamentado.

XL. Aliás, se o aumento dos metros de muro tivesse ocorrido com conhecimento e autorização do A., não faria qualquer sentido que entre o legal representante da Ré e o A. tivesse existido o desentendimento que aquele acabou por relatar em tribunal.

XLI. Provou-se que a obra do A. acabou por necessitar de mais metros quadrados de pedra do que o inicialmente orçamentado devido ao erro da Ré a fazer as medições aquando do orçamento.

XLII. Face à prova supramencionada que infirma a conclusão da Recorrente, deve permanecer como julgado provado o facto n.º 13, indeferindo-se assim a pretensão da Recorrente.

XLIII. Quanto ao facto julgado como provado n.º14, insurge-se a Recorrente quanto à parte que diz “atendendo a que a R., decidiu aumentar a profundidade”, pretendendo que seja alterado este facto atendendo a que, em declarações de parte do Recorrido, entende ter resultado provado que o Recorrido sabia e aceitou o aumento da profundidade do muro. Assim, propõe a Recorrente que a redação do facto julgado como provado n.º14 diga: “por acordo e consentimento do A., decidiram aumentar a profundidade”

XLIV. Sobre esta questão, também não se pode reconhecer razão à Recorrente. Quanto às declarações do A. [minutos 00:08:41 a 00:09:06], não se pode retirar a conclusão de que o A. decidiu aumentar a profundidade. O A. apenas diz que nunca negou nada à Ré.

XLV. Conforme declarou o A. em depoimento de parte, era humanamente impossível ter existido um aumento do muro na sua profundidade após o muro estar construído, neste sentido deve permanecer inalterado o facto julgado provado n.º14, indeferindo-se assim a sua pretensão.

XLVI. Quanto ao facto julgado como provado n.º18, insurge-se a Recorrente porque defende que do Doc.13 da PI não se extrai qualquer conclusão no sentido da comunicação dos defeitos. Defende ainda que não houve qualquer denúncia do Recorrido em março e que foi o legal representante da Recorrente que se apercebeu da cedência do muro no final do mês de abril, tendo-se, nessa sequência, deslocado no dia 02/05/2020 à obra. Pretende a Recorrente que este facto seja considerado não provado.

XLVII. Sobre esta questão, também não se pode reconhecer razão à Recorrente, desde logo, porque o Tribunal a quo, não motiva a sua resposta apenas no Doc.13 da PI. Como é referido na sentença, mas também nos factos não controvertidos.

XLVIII. Depois, porque o Doc.n.º14 junto com a PI de que a Recorrente lança mão para sustentar a sua impugnação, não prova que foi o legal representante da Ré que teve a iniciativa de visitar a obra no dia 02 de maio de 2020, nem que a denúncia dos defeitos aconteceram depois de março ou até mesmo que tenha sido, como alega, o próprio legal representante da Ré a detetar os defeitos.

XLIX. No dia 02/05/2020 a Ré foi à obra porque houve uma denúncia dos defeitos anteriormente, conforme se provou com o depoimento de parte da Ré, o depoimento de parte do A., e os depoimentos das testemunhas BB e DD.

L. Ainda que não se conseguisse fazer prova que o A. já tinha denunciado os problemas com a obra no mês de março, o certo é que a denúncia escrita também foi feita na qual fez interpelação admonitória para reparação dos defeitos (conforme comprova o DOC.17 junto com a PI). Portanto, está provado que o A. comunicou os defeitos à Ré.

LI. Face à prova supramencionada que infirma a conclusão da Recorrente, deve permanecer como julgado provado o facto n.º18, indeferindo-se assim a pretensão da Recorrente.

LII. Quanto ao facto julgado como provado n.º19, insurge-se a Recorrente porque defende que do Doc.13 da PI não se extrai qualquer conclusão no sentido de que foi o Recorrido quem verificou os defeitos. Pretende a Recorrente que seja alterado este facto, na medida em que foi o próprio legal representante da Recorrente quem verificou a existência dos defeitos e o comunicou ao Recorrido. Assim, propõe a Recorrente que a redação do facto julgado como provado n.º19 diga: “19. CC deslocou-se à obra no dia 2 de maio de 2020 onde constatou a existência de defeitos que comunicou através de email nesse mesmo dia ao Autor”.

LIII. Sobre esta questão, também já discutida pela Ré quanto à impugnação do facto provado n.º18, reitera-se que não se pode reconhecer razão à Recorrente.

LIV. O Doc.14 (e-mail da Ré para o A. de 02/05/2020) junto com a PI, de que a Recorrente lança mão para sustentar a sua impugnação, não prova que foi o legal representante da Ré quem teve a iniciativa de visitar a obra no dia 02 de maio de 2020, nem que tenha sido o próprio a constatar os defeitos e os comunicou ao A.

LV. O A. já sabia da existência dos defeitos e foi ele que informou a Ré, conforme se provou pelo depoimento de parte do A., e das testemunhas BB e DD.

LVI. Face ao exposto, deve permanecer como julgado provado o facto n.º19, indeferindo-se assim a pretensão da Recorrente.

LVII. Quanto ao facto julgado como provado n.º24, insurge-se a Recorrente porque defende que do Doc.16 da PI não se extrai qualquer conclusão no sentido de que o legal representante da Requerente se dirigiu à obra no dia 15/05/2020 sem autorização nem aviso prévio e demoliu cerca de 256m2, deixando as pedras naqueles termos. Sustenta que, das declarações de parte do Recorrido, extrai-se que a ida do legal representante da Recorreu aconteceu não no dia 15/05/2020 mas no dia 23/05/2020. Mais sustenta que o Doc.9 junto com a contestação e as declarações da testemunha BB provam que o Recorrido e o BB sabiam da deslocação do legal representante da Recorrente à obra para proceder à estabilização do muro, que pressupunha (na sua ótica) diminuir a altura do mesmo. Pretende a Recorrente que este facto seja considerado não provado.

LVIII. Em parte, reconhece-se razão à Ré, quando diz que a Recorrente não se deslocou à obra no dia 15/05/2020, mas sim no dia 23/05/2020.

LIX. Na verdade, e conforme afirmou o A. em sede de depoimento de parte, foi na semana seguinte, dia 23/05/2020, que o gerente da R., CC, se deslocou à obra, e sem autorização nem aviso prévio, demoliu o muro, deixando a pedra do modo que se apresenta nas fotos juntas como Doc.16 da PI.

LX. Quanto ao demais mencionado no facto n.º19, deve manter-se inalterado.

LXI. Embora se concorde que o Doc.16 da PI não demonstre o facto provado n.º24 quando é referido que o legal representante se dirigiu à obra sem autorização nem aviso prévio e demoliu cerca de 256m2, o certo é que existem outros meios de prova que o sustentam, como:

LXII. É precisamente o Doc.9 junto com a contestação que a Recorrente chama como sustentação que demonstra que o legal representante da Ré não tinha autorização do A.: Primeiro porque a mensagem não foi trocada com o A. e por outro lado, porque a pessoa com quem trocou a mensagem (que é o Eng.º da construção da moradia do A.) apenas lhe disse que podia entrar no terreno para “colocar sinalização ou vedação (…) e retirar alguma terra solta que está a fazer pressão no muro, evitando-o de colapsar”.

LXIII. Pela testemunha Eng.º BB foi dito que deu permissão à Ré para ir à obra tirar alguma terra, nunca para demolir.

LXIV. Conforme declarou ao tribunal, nem mesmo o A., que não tinha sequer falado com a Ré, contava com a demolição do muro.

LXV. Na contestação a Ré não contesta o artigo 26.º da Petição Inicial, no qual é referido a área de muro demolida (de cerca de 256m2), nem tampouco no corpo da sua peça faz qualquer afirmação que esteja em oposição com este facto, pelo que é necessariamente matéria não controvertida.

LXVI. Face ao exposto, deve manter-se o facto n.º19 como provado, alterando-se apenas a data de “15 de Maio de 2020” para “23 de Maio de 2020”.

LXVII. O Mmo. Juiz do Tribunal a quo analisou criticamente as provas e especificou (clara e adequadamente) os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, não se mostrando violadas quaisquer normas ou critérios segundo a previsão dos n.ºs 4 e 5 do artigo 607º do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

LXVIII. Cabia ao A. de acordo com o artigo 342.º, n° 1 do Cód. Civil, fazer a prova dos factos constitutivos do direito que alegou, tarefa essa que o A. logrou fazer.

LXIX. O Tribunal “ad quem” só deve alterar a decisão da matéria de facto se a prova produzida impuser uma decisão diversa, o que no caso, não se verifica.

LXX. Sendo soçobrado a pretendida alteração dos factos provados, o que por mera hipótese académica se concebe, a decisão tem de manter-se intacta, uma vez que os factos em questão (cuja alteração foi pedida pela Recorrente) em nada beliscam o acervo fáctico dado como provado, que gerou na esfera jurídica da Apelante o dever de indemnizar o Apelado: é que a obra foi executada com defeitos (prova com prova pericial), a denúncia dos defeitos foi atempada (facto não controvertido) e existiu uma resolução do contrato perfeitamente válida por parte do A. (facto não contestado pela Ré), o que, e consequentemente, determina a que a Ré tenha de indemnizar o A. pelo interesse contratual positivo tal como peticionado na presente ação.

LXXI. Não ocorrendo qualquer contradição entre aqueles factos que inviabilize a decisão jurídica do pleito, tal como foi proferida pelo tribunal a quo, deve improceder o pedido da Recorrente, mantendo-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.

LXXII. Na sentença proferida, o tribunal recorrido não violou qualquer disposição de direito processual ou substantivo, pelo que não merece qualquer censura.

LXXIII. Em face de tudo quanto foi exposto, cabe concluir pela falta manifesta, completa e absoluta de fundamento do presente recurso que, assim, deve ser julgado improcedente, mantendo-se – nos seus precisos termos – a sentença recorrida, que condenou a Recorrente a pagar ao Recorrido uma indemnização no valor de 67.348,59€ (acrescida de juros civis), pelos danos patrimoniais causados em virtude do incumprimento contratual, calculada em função do pedido do autor (indemnização pelo interesse contratual positivo) e ainda a quantia de €2.000,00€ (acrescida de juros) a título de danos não patrimoniais.

Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exa. doutamente suprirá, deverá a presente apelação ser julgada improcedente, por não provada, e, em consequência, ser confirmada a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, com todos os efeitos legais, fazendo-se assim a acostumada JUSTIÇA!”


*

QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar se:

a) Da existência de nulidades da sentença recorrida, ao abrigo do disposto nos artºs 615, nº1 als. b) e d) do C.P.C.
b) Se se verificam os requisitos para a alteração da matéria de facto e se esta deve ser alterada no sentido propugnado pelo recorrente;
c) Se o A. é o titular do direito de indemnização pela existência de defeitos na obra.
d) Se existiu incumprimento do contrato de empreitada pelo próprio A.


*

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

“A. Da ação

 

1. O Autor é dono e legítimo possuidor dos seguintes pR.dios, todos contíguos entre si: o prédio urbano, sito na Rua ..., Campo ..., inscrito na matriz com o artigo ...88 da União de Freguesias ..., ..., ... e ..., e descrito na 2.ª Conservatória ... sob o n.º ...29 da freguesia ..., o prédio rústico, sito na Rua ..., Campo ..., inscrito na matriz com o artigo ...67 da União de Freguesias ..., ..., ... e ..., e descrito na 2.ª Conservatória ... sob o n.º ...86 da freguesia ... e o prédio rústico, sito na Rua ..., Campo ..., inscrito na matriz com o artigo ...50 da União de Freguesias ..., ..., ... e ..., e descrito na 2.ª Conservatória ... sob o n.º ...14 da freguesia ....

2. Em 2016, o A. começou a planear construir uma moradia para sua habitação própria e permanente no prédio urbano, bem como um muro de vedação e suporte de terras neste e nos restantes seus prédios identificados no ponto “1”.

3. O A. solicitou orçamentos a diversas empresas, uma delas a sociedade C..., Unipessoal Ld.ª, outra, a R., mas apenas para a construção do muro necessário para a contenção das terras.

4. A R. é uma sociedade comercial que se dedica à construção civil.

5. Em 08/07/2018, a R. apresentou ao A. o seu orçamento para o muro, prevendo um custo de 20.040,00€, para a área que ela própria estimou, de 334m2.

6. Conforme esse orçamento, o trabalho a realizar era a execução de muro em blocos de pedra de grandes dimensões, em dois socalcos ou num só muro, ao valor de 60,00€ o metro quadrado, não se prevendo a necessidade de compactação de terras.

7. Em 30/04/2019, o A. celebrou com a C..., Unipessoal Lda., o acordo para a construção da moradia tida em vista pelo Autor que incluía a construção do muro para contenção das terras.

8. Em acordo com a sociedade C..., Unipessoal Ldª. foram retirados os trabalhos respeitantes ao muro, ficando o A. de procurar outra empresa que o fizesse.

9. Mais acordaram que a C..., Unipessoal Lda (conhecida por Construções Mais) pagaria o valor referente muro, de 30.000,00€, diretamente à empresa a quem o A. adjudicasse aquele serviço.

10. A construção do muro foi adjudicada à R. em 06/06/2019, data em que foi entregue pelo A. a quantia de 5.000,00€ a título de sinal e princípio de pagamento.

11. As condições inerentes à construção do muro da empreitada acordadas com a R. eram as que já constavam do orçamento apresentado em julho de 2018 não sendo outorgado qualquer outro documento entre A e R..

12. Por volta de junho/julho de 2019, a R. deu início à construção do muro, que se estendeu pelos três prédios identificados no artigo 1.º desta P.I.

13. Com o desenrolar da construção do muro, a R. entendeu que a obra necessitava de mais metros quadrados de pedra para além do inicialmente orçamentado de 334m2, acrescentando metros de muro sem o devido conhecimento e autorização do A.

14. Assim, o muro veio a sofrer um aumento para cerca de 800m2 (665m2 à superfície + 352m2 soterrado), acima do dobro do que tinha sido previsto, atendendo a que a R., decidiu aumentar a profundidade (de 0,5m para 2m) e a altura do muro (de 7m para 9,5m na parte mais alta), ficando o custo final do muro em 48.000,00€ (quarenta e oito mil euros).

15. Para além da construção do muro, em dezembro de 2019, o A. e a R. acordaram verbalmente na execução de outras obras, para as quais a R. solicitou o pagamento de 9.100,00€ (nove mil e cem euros), constituindo estes em:

- Caixa de esgotos e respetiva ligação, no valor de 700,00€;

Compactação e enchimento com terra grossa, no valor de 3.000,00€;

- Cilindro, no valor de 700,00€;

- Rampa contra casa, enchimento e compactação com placa vibradora, no valor de 1.000,00€;

- Espalhar terra vegetal existente numa camada de 20 cm, no valor de 900,00€;

- Decapar terra vegetal no vizinho, encher com terra grossa e voltar a encher, no valor de 1.000,00€;

16. Custo que, por exceder os 30.000,00€ entregues à empresa que levava a cabo a construção da moradia, se revelaram insuficientes e obrigaram o A., fora dos seus planos, a ter que despender, o excedente (22.100,00€), que por não os ter de imediato, socorreu-se da empresa da qual é único sóciogerente, a B..., Unipessoal Lda. tendo esta suportado o custo referido.

17. Após a conclusão da obra, o muro começou a padecer de diversos defeitos, ameaçando ruir.

18. O A. comunicou à R. os defeitos pessoalmente à R., em março de 2020, na pessoa do seu legal representante, CC.

19. CC deslocou-se à obra no dia 2 de maio de 2020, onde constatou a existência dos defeitos reclamados pelo A.

20. Para a R., os defeitos apresentados no muro, deviam-se à existência de nascentes de água na fundação, recomendando naquele momento a colocação de um tubo dreno e de 1 (um) metro de terra na frente do muro (metro de terra esse colocado em cima do terreno do vizinho).

21. No mesmo dia, a R. elaborou e remeteu ao A. um relatório no qual previa um custo de reparação do muro entre 1.500,00€ a 2.000,00€, a suportar pelo A., dado entender serem trabalhos a mais, descartando desta forma qualquer responsabilidade sua pelos defeitos da obra.

22. O A. por entender que os defeitos são imputáveis à R., que a solução apresentada incluía mexer no terreno do vizinho, que já ali tinha gasto muito para além do que lhe tinha sido orçamentado, e que esse acréscimo não tinha sido objeto de acordo entre as partes, não aceitou custear esta reparação.

23. O A. alertou a R. para o degradar da construção e o perigo que esta representava.

24. No dia 15 de Maio de 2020, o gerente da R., CC, deslocou-se à obra, sem autorização nem aviso prévio, e demoliu cerca de 256 m2 de muro, deixando a pedra do modo que se apresenta nas fotos que aos autos se mostram juntas e aqui dadas por reproduzidas5.

25. No dia 06/07/2020, através de envio de carta registada, rececionada em 10/07/2020, pela pessoa de EE, o A. interpelou a R., mais uma vez, para reparar os defeitos, concedendo-lhe prazo de 8 (oito) dias para iniciar a reparação do muro, missiva à qual a R. nada respondeu.

26. Nessa sequência e a fim de resolver extrajudicialmente o litígio, no dia 21/07/2020 a mandatária do Autor contactou telefonicamente o gerente da R., ao que este respondeu que não efetuaria a correção dos defeitos.

27. A 22/07/2020 o A. remeteu email à R. reiterando a urgência na reparação dos defeitos.

28. Em 28/07/2020, o A. enviou à R. carta registada com aviso de receção, que foi rececionada em 30/07/2020, na pessoa de EE, através da qual extinguiu o acordo inicialmente celebrado entre ambos.

29. O A. intentou incidente de produção antecipada de prova, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Cível, juiz ..., processo n.º 2423/20...., na qual foi realizada perícia ao muro pelo Eng.º Civil FF – constante de fls. 38 a 53 que aqui se dá por integralmente reproduzida – da qual consta que, citamos e transcrevemos: “1) Na resposta ao quesito n.º1 “…pode-se depreender que os muros terão sido construídos, em geral, com a mesma espessura, situação que no muro de suporte por gravidade não é muito expectável que tal aconteça. Quanto maior é a altura de terras a suportar, maior terá de ser a largura da base do muro e a sua espessura”. 2) Na resposta ao quesito n.º2 “Para a zona de construção de alguns dos muros em causa, na “Planta de Condicionantes - Reserva Ecológica Nacional” emitida no âmbito do Plano Diretor Municipal de Leiria, está identificada uma área classificada como tendo risco de erosão .” 3) Na resposta ao quesito n.º8 “…muro do perfil D-D´…a drenagem da água do seu tardoz apresenta grandes deficiências que podem provocar algum problema de instabilidade no futuro…” 4) Na resposta ao quesito n.º12, alínea b) “…a qualidade do acabamento é variável com blocos não fraturados, mas outros a apresentarem fraturas provenientes do desmonte ou do seu manuseamento e, por consequência, de possível, e mais fácil, fratura e menor resistência”. 5) Na resposta ao quesito n.º12, alínea c) “…é desejável que as pedras de maiores dimensões fiquem alternadas e em direções opostas(…)Obviamente que, após a construção do muro essa situação só é visível em relação às pedras que estão no topo do muro e há situações em que isso foi, sensivelmente, atendido e outras em que isso não acontece ”. 6) Na resposta ao quesito n.º12, alínea d) “As pedras de cascalho não apresentam qualquer resistência para estas solicitações estruturais.” 7) Na resposta ao quesito n.º12, alínea g) “O solo aplicado no aterro a tardoz do muro é um material argiloso, pouco adequado a estas funções. É um solo que pode expandir com a presença de água e provocar a instabilidade do muro (…) deveria ser aplicado um material granular, que facilite a drenagem da água que alcança essa estrutura.” 8) Na resposta ao quesito n.º15 “As zonas onde estão fundados os muros dos perfis A-A´, B-B´ e C-C´, apresentam, como se pode observar, solos de características aluvionares, ou seja, de menores características resistentes, evidenciado pela presença de água e pelo tipo de vegetação existente.” 9) Na resposta ao quesito n.º17 “Em qualquer muro de contenção de terras ter-se-á de construir uma solução de drenagem (…) No topo do muro deverá ainda existir um sistema de recolha de águas pluviais(…)” 10) Na resposta ao quesito n.º23 “…teria sido muito útil a aplicação de uma manta geotêxtil. (…)” 11) Na resposta ao quesito n.º25 “A reconstrução do muro em socalcos permitiria que se evitasse uma altura de muro tão elevada, com redução da pressão das terras sobre cada troço do muro. Para a situação em apreço, e pelo que foi possível observar, essa solução seria/será a tecnicamente mais aconselhável.” (…) “Para muros de contenção de terras destas grandezas de alturas (com valores consideráveis entre 8,30 m e 6,00 m, por exemplo), obriga, em primeiro lugar, a um conhecimento rigoroso da geologia do solo de fundação, estimando as suas características resistentes através de ensaios geológicos e geotécnicos, quer para o material de fundação ou outros solos existentes, quer para o solo que será usado como material (terras) de aterro.”

30. A R. não realizou qualquer estudo sobre o solo, e decidiu construir sobre ele.

31. O muro construído pela R. não tem aproveitamento possível, estando totalmente inapto à função a que se destina, sendo necessário que o mesmo seja reconstruído na sua totalidade.

32. Para a reparação dos defeitos o A. terá que remover os escombros e solos a mais; reconstruir os muros; adquirir terras provenientes “de manchas de empréstimo, compactado, isenta de inertes maiores de 8 cm, raízes, entulho, matéria orgânica, detritos ou qualquer outro material desaconselhável”; construir um sistema de drenagem dos muros e outros trabalhos de correção.

33. Importa na quantia de €67.116,00, ao que acrescerá o correspondente IVA, obtendo-se um custo final de €80.240,28 o custo para os trabalhos de reconstrução dos muros.

34. Pela construção do muro e demais trabalhos contratados, do preço global de €57.100,00€ solicitados pela R., o A. já liquidou a quantia 44.208,35€ (quarenta e quatro mil, duzentos e oito euros e trinta e cinco cêntimos), o que fez da seguinte forma e por referência às infra descritas parcelas:

a) - €5.000,00 € em 06/06/2019, através de numerário;

b) - €1.841,67€ por cheque nº ...82, datado de 22/01/2020, sacado sobre o banco ..., do qual a empresa do A. é titular;

c) - 20.000,00€ em 06/02/2020, através de transferência bancária efetuada pela C... Lda.

d) 1.841,67€ por cheque nº...79, datado de 19/02/2020, sacado sobre o banco ..., do qual a empresa do A. é titular;

e) 10.000,00€ em 24/03/2020, através de transferência bancária efetuada pela C... Lda;

f) 1.841,67€ por cheque nº ...76, datado de 12/03/2020, sacado sobre o banco ..., do qual a empresa do A. é titular;

g) 1.841,67€ por cheque nº ...73, datado de 16/04/2020, sacado sobre o banco ..., do qual a empresa do A. é titular;

h) 1.841,67€ por cheque nº ...70, datado de 26/05/2020, sacado sobre o banco ..., do qual a empresa do A. é titular

35. Das quantias pagas diretamente pelo A., a R. apenas emitiu recibo dos valores pagos através dos cheques identificados nas alíneas b), d), f), g) e h) do ponto 35.

36. Em julho de 2020, o A. suspendeu os pagamentos das prestações em falta, no valor total de 12.891,69€ (doze mil, oitocentos e noventa e um euros e sessenta e nove cêntimos), até efetiva eliminação dos defeitos do muro.

37. Em virtude de todo o circunstancialismo fático descrito, o A. sofreu transtorno, perturbação, angústia, tristeza e frustração.


*

Da Reconvenção:

1. Em julho de 2020, o A. suspendeu os pagamentos das prestações em falta, no valor total de 12.891,69€ (doze mil, oitocentos e noventa e um euros e sessenta e nove cêntimos), até efetiva eliminação dos defeitos do muro, montante esse, em face do acordado entre A. e R. não se mostra pago.

2.2. Factos não provados

Todos os demais constantes dos articulados não mencionados na resposta dada supra.”


***

DAS NULIDADES DA SENTENÇA


Invoca a apelante no seu recurso, nulidades da sentença proferida nos autos, alegando que esta não se pronunciou sobre a excepção de ilegitimidade substantiva do A. invocada em sede de alegações finda a instrução da causa, incorrendo assim, em omissão de pronúncia e, ainda por falta de indicação dos factos que considerou não provados e por falta de fundamentação destes factos.

Ordenada a descida do processo a fim de que o Sr. Juiz a quo, emitisse pronúncia sobre as aludidas nulidades, veio este proferir o seguinte despacho:

Nota prévia: O signatário “apenas” procedeu à realização da audiência de discussão e julgamento nestes autos, pelo que atento o princípio do dispositivo, da preclusão de atos processuais e estabilização da instância ao julgamento, em tais premissas estribado julgou e sentenciou a causa.

Em lado algum, que não em sede de alegações, como se deu nota, com habilidades serôdias, típicas de possidónios, veio o R pugnar por uma qualquer exceção, aliás, nem se sabe qual, porque não alegada em sede própria, seja os articulados.

Donde, não foram a alusão levada à sentença à tentativa de “retirada de coelho da cartola” e nem sequer os autos registariam qualquer matéria de exceção, ao menos alegada em sede própria e, já agora também em sede própria escrutinada em sede de exercício de contraditório.

Nulidade alguma ocorre.

No que à fundamentação dos fatos tidos por não provados deixámos expresso e transcrevemos “Quanto a estes assim resultaram à míngua de elementos que afirmassem a sua veracidade e consequentemente que outra fosse a resposta dada.

As asserções vertidas em sede de contestação/ reconvenção, porque não foram consistentes e desprovidas de confirmação fáctica, revertem, a final, para líquidos estados de alma da R. e por isso, foram naturalmente desconsideradas.

Doutra banda, até a tese peregrina de uma putativa ilegitimidade do A. – não alegada pela R. no articulado [ quiçá fruto de longa peregrinação noturna em torno da busca de um “coelho para tirar da cartola” ], porque não alegada aparenta o que afinal é, sem o parecer, revertendo em suma para líquidos estados de alma da R.

Pode não se concordar com a fundamentação, mas ela existe e como tal não existe omissão de pronúncia, indeferindo-se in totum a arguição de nulidades.”

Decidindo

Se a decisão recorrida enferma de nulidade, por omissão de pronúncia sobre a ilegitimidade substantiva do A.

Resulta do disposto no artº 615 nº1 d) do C.P.C., que a sentença é nula quando o “juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

Trata-se este de um vício formal que respeita aos limites da sentença e cuja verificação afecta a sua validade. A nulidade prevista neste preceito legal está directamente relacionada com o artigo 608º, nº2, do Código de Processo Civil, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

Neste conspecto, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Com efeito, a omissão de pronúncia como causa de nulidade da sentença, circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade esta distinta da invocação de um facto ou argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado e que sejam absolutamente inócuos à pretensão e à boa decisão dos pedidos formulados e das excepções deduzidas pelas partes.

Com efeito, como é jurisprudência assente e melhor explicada no Ac. do STJ de 29/11/05[3], “o julgador não tem que analisar e apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as razões jurídicas invocadas pelas partes em abono das suas posições. Por isso, como se disse no acórdão desta secção de 23.6.2004 (6) não pode falar-se em omissão de pronúncia quando o tribunal, ao apreciar a questão que lhe foi colocada, não toma em consideração um qualquer argumento alegado pelas partes no sentido de procedência ou improcedência da acção. O que importa é que o julgador conheça de todas as questões que lhe foram colocadas, excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras.”

Prossegue este acórdão referindo que “A dificuldade está em saber o que deve entender-se por questões, para efeitos do disposto nos artigos 660, n.º 2 e 668, n.º 1, d), do CPC. A resposta tem de ser procurada na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido e as excepções invocadas pelo réu, o que vale por dizer que questões serão apenas, como se disse no já citado acórdão de 21.9.2005, "as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter." Não serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções (…).

A arguição de ilegitimidade substantiva de uma das partes, constitui excepção peremptória. Só a ilegitimidade processual constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que implica a absolvição da parte da instância ( arts.577, al. e) e 576 nº2 do C.P.C.). Em relação a estas excepções, o Tribunal pode delas conhecer enquanto não as apreciar em concreto e ainda que tenha declarado as partes, partes legítimas no saneador. Com efeito, a declaração genérica no saneador, sobre a legitimidade das partes não faz caso julgado, como se extrai do disposto no artº 595, nº1 a) e 3, 1ª parte, sendo certo que o caso julgado apenas abrange as questões concretamente enunciadas, devendo ter-se por caducada (tal como já ocorria no âmbito do anterior código de processo civil, face ao disposto no artº 510 nº3 daquele código), a doutrina do Assento do STJ de 1/2/63.

Em relação às excepções peremptórias, vigora o princípio da preclusão dos meios de defesa. É na contestação que a parte deve deduzir todos os seus meios de defesa, sob pena de lhe ser vedado a sua posterior arguição, conforme resulta do disposto nos artigos 571º, 573º e 579º do CPC. É o que expressamente decorre do teor do artº 573, nº2 do C.P.C.: “da contestação só podem ser deduzidas as excepções (…) que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.”

Sendo o princípio regra o do conhecimento oficioso das excepções dilatórias, o tribunal deve conhecer também oficiosamente das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado (cfr. resulta do artº 579 do C.P.C.), como as excepções de prescrição, de não cumprimento do contrato, entre outras.

A ilegitimidade substantiva de qualquer das partes por não ser o verdadeiro titular da relação material controvertida tal como ela foi apurada pelo tribunal é, no entanto, de conhecimento oficioso e impõe que o tribunal de primeira instância conheça oficiosamente dessa excepção e que, conhecendo, se a entender por verificada, profira uma decisão de absolvição do pedido.

Ocorre que apesar de o tribunal recorrido a ela se não ter referido expressamente, a sua argumentação conduz à conclusão de que o A. é o titular da relação contratual de empreitada outorgada com a R., é o dono da obra, incidindo a condenação desta R. nos custos da reparação do muro, propriedade do A., abatidos os valores que o A. devia à R.

Pronunciou-se, pois, e concretamente, o tribunal recorrido, sobre a titularidade da relação material controvertida e as obrigações que dela resultavam para ambas as partes.

Não existe, assim, a apontada nulidade.

Se a decisão recorrida enferma de nulidade, por falta de fundamentação.


Em relação a este fundamento de nulidade, prevista na alínea b) do artº 615 do C.P.C., esta apenas se verifica quando exista absoluta falta de fundamentação, seja de facto ou de direito e não apenas fundamentação medíocre, deficiente, quiçá errada.
Com efeito, ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão que profere, nos termos do disposto no artº 607 nº3 e 4, a fim de que esta decisão seja perceptível para os seus destinatários e que estes, face à fundamentação exposta na sentença, possam impugná-la quer de facto (através do recurso previsto no artº 640 do C.P.C.) quer de direito.

Não cumpre esta norma, existindo falta absoluta de motivação, quando exista ausência total de fundamentos de direito e de facto.[4]

Já Teixeira de Sousa[5] referia que: “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”, pelo que, conforme refere Tomé Gomes[6], “a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.»

Este dever geral de fundamentação dos despachos e decisões (sentenças) proferidos no processo, está de acordo com o princípio constitucional contido no artº 205, nº1, da C.R.P., que exige que as decisões do tribunal, que não sejam de mero expediente, sejam fundamentadas na forma prevista na lei, de molde a assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo, conforme decorre do disposto no artº 20, nº4, da C.R.P.

Em cumprimento deste dever de assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo, exige-se não só a indicação dos factos provados, como dos não provados e ainda, a indicação do processo lógico – racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes, conforme o disposto no artº 607º, nº 4 do CPC.

Sendo imprescindível a um processo equitativo, por só através do seu escrupuloso cumprimento se salvaguardar as garantias das partes possibilitando a sua cabal reacção, em caso de discordância (mormente através do recurso ao disposto no artº 640 do C.P.C.), a sua não observância, pela total falta de indicação dos factos provados ou dos não provados, constitui fundamento de nulidade da decisão.

Com efeito, decorre do disposto no artº 607, nº4 do C.P.C. que o juiz deve declarar quer os factos que julga provados, quer os que julga não provados. Esta indicação não se basta com meras remissões para os articulados, nem com a indicação de que os não provados são todos os que não resultarem provados. Tal afirmação equivale a nada dizer.

Cumpre ao magistrado judicial, em cumprimento do disposto no nº 4, do artº 607 do C.P.C., indicar de forma concreta os factos relevantes e controvertidos que julgou não provados, fundamentando a sua decisão, em conformidade com o disposto nos nºs 4 e 5 deste preceito.
A este respeito, conforme referem Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, em anotação ao artº 607 do C.P.C.[7], impõe-se ainda que a factualidade apurada pelo tribunal deva “ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, técnica bem diversa de uma que continue a apostar na mera transcrição de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados, como os que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória (e do anterior questionário). Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, se inscreveram nos temas de prova factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos, a qual deve ser convertida num relato natural da realidade apurada… […]. O importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção.”
Especificados os factos provados e não provados, prossegue ainda Abrantes Geraldes[8], que “o dever de fundamentação introduzido pela reforma de 1961, reforçado em 1995 e agora transferido para a própria sentença que simultaneamente deve conter a enunciação dos factos provados e não provados e as respectivas implicações jurídicas” exige que “se estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respectiva apreciação crítica nos seus aspectos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (…), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos. É na motivação que agora devem ser inequivocamente integradas as presunções judiciais e correspondentes factos instrumentais (…). Se a decisão proferida sobre algum facto essencial não estiver devidamente fundamentada a Relação deve determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, a fim de preencher essa falha com base nas gravações efectuadas ou através de repetição da produção da prova, para efeitos de inserção da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.[9]
Ora a decisão em apreço não contém a descrição dos factos não provados, adoptando uma formulação genérica e obscura referindo-se aos “demais constantes dos articulados não mencionados na resposta dada supra”, sem que se possa extrair desta formulação a que factos concretos se refere o Sr. Juiz a quo, o que desde logo inviabiliza que possa o recorrente, nesta parte, lançar mão do disposto no artº 640 do C.P.C., óbice que igualmente se verifica em relação ao tribunal ad quem, pelo desconhecimento da realidade fáctica que o Sr. Juiz recorrido, considerou não provada.
Esta omissão determina a nulidade da sentença recorrida, por se integrar nos fundamentos de nulidade previstos no art. 615º, nº 1, al. b) do CPC.
Ora, ao contrário daquelas nulidades que podem e devem ser sanadas pelo tribunal ad quem, ao abrigo da regra de substituição do tribunal recorrido, prevista no artº 665 do C.P.C., esta nulidade só pode ser sanada pelo tribunal e magistrado que proferiu a sentença, sob pena de violação do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.[10]
Por outro lado, não indica igualmente o tribunal recorrido a fundamentação para os desconhecidos factos que deu como não provados, não bastando a menção de que “Quanto a estes assim resultaram à mingua de elementos que afirmassem a sua veracidade e consequentemente que outra fosse a resposta dada. As asserções vertidas em sede de contestação/ reconvenção, porque não foram consistentes e desprovidas de confirmação fáctica, revertem, a final, para líquidos estados de alma da R. e por isso, foram naturalmente desconsideradas.
Doutra banda, até a tese peregrina de uma putativa ilegitimidade do A. – não alegada pela R. no articulado [ quiçá fruto de longa peregrinação noturna em torno da busca de um “coelho para tirar da cartola” ], porque não alegada aparenta o que afinal é, sem o parecer, revertendo em suma para líquidos estados de alma da R..
Trata-se igualmente de uma formulação genérica e obscura que, em bom rigor, nada quer dizer e que impede que a parte que pretenda recorrer da decisão possa impugnar esta (inexistente) matéria de facto, por igualmente desconhecer as concretas razões pelas quais o tribunal recorrido considerou “todos os demais factos” como não provados.
Como se refere no citado Ac. do STJ de 26/07/19, “Na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjectivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível, habilitando ao cumprimento dos ónus impostos ao recorrente impugnante da matéria de facto, mormente, quanto à concreta indicação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e os concretos meios de prova, nos termos das als. a) e b) do nº1 do art. 640º do Código de Processo Civil.

Recorde-se que em relação aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, versa o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados como tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

Acresce que, conforme refere Teixeira de Sousa[11], “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”, sendo assim relevante que este raciocínio esteja devida e concretamente explicitado, de forma a que, quer o recorrente, quer o tribunal de recurso, saiba com exactidão em que meios de prova se baseou o tribunal recorrido para dar como adquiridos aqueles factos e não dar como adquiridos outros.

Não bastam, pois, meras formulações genéricas, para se considerar cumprido este ónus e assegurado o direito a um processo equitativo e justo.

Assim se conclui que o tribunal recorrido incorreu em nulidade da sentença, pela não especificação concreta dos factos não provados e sua concreta motivação, por reporte aos artºs 154, 607 nº4, e 615, nº1, b) e c) do C.P.C. e se determina a devolução dos autos à primeira instância, a fim de que profira nova decisão, elencando os factos não provados e a sua concreta fundamentação, com observância do disposto no artº 607 nº4 do C.P.C.

Prejudicadas ficam, em consequência da declaração de nulidade, as demais questões suscitadas pelo recorrente.

 

***

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta relação em anular a decisão recorrida, ordenando a baixa dos autos à primeira instância, a fim de esta suprir as causas de nulidade acima apontadas.

*
Custas pela parte vencida a final.
                                              

                                                           Coimbra 10 de Outubro de 2023

 



[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Proferido no processo nº 05S2137, de que foi relator Sousa Peixoto, disponível para consulta in www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido vidé LEBRE DE FREITAS e OUTROS, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2001, p. 669, Ac. do T.R.Lisboa desta 6ª secção, de 19/10/06, Proc. nº 6814/2006-6, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.4.95, Raul Mateus, CJ 1995 – II, p. 58, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.6.2016, Fernanda Isabel Pereira, 781/11., Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.5.2012, Gilberto Jorge, 91/09, Ac. do T.R.P. de 29/09/2014, Proc. nº 2494/14.8TBVNG.P1
[5] SOUSA, Miguel Teixeira, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 221.

[6] GOMES, Tomé, Da Sentença Cível”, in O novo processo civil, caderno V, ebook publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jan. 2014, pág. 370, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[7] ABRANTES GERALDES, António SANTOS  et all, Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, pág. 17[7].
[8] ABRANTES GERALDES, António SANTOS, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª edição, 2017, págs. 296, 297.
[9] No mesmo sentido vide Ac. do S.T.J. de 02-10-2008, relator Lázaro Faria, Proc. nº 07B1829; Ac. do T.R.Porto de 05-03-2015, relator Aristides Rodrigues de Almeida, Proc. nº 1644/11.0TMPRT-A.P1 e Ac. do T.R.Guimarães de 29/06/17, Proc. nº 13/15.8T8VCT.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt .
[10] Neste sentido vide Ac. do STJ de 26/02/2019, relator Fonseca Ramos, proferido no proc. nº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2; Ac. do T.R.L. de 07/12/2021, relator Ana Rodrigues da Silva, proferido no proc. nº 8513/09.2YYLSB-B.L2-7
[11] Ob. cit., págs. 347.