Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1093/23.8T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
CARÁTER INSTRUMENTAL
ENTREGA DEFINITIVA DE IMÓVEL
PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 362.º, N.ºS 1 E 2, 364.º E 376.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:
I – A instrumentalidade das providências cautelares implica, ao demais, que o tribunal não possa decretar uma providência cautelar cujos efeitos sejam irreversíveis ao ponto de esvaziarem de conteúdo a ação principal.

II – Não é possível no âmbito de um procedimento cautelar comum obter os efeitos do despejo:

i)       por a lei ter criado um mecanismo especial, igualmente célere e simplificado, que assegura a efetividade do direito ameaçado – o procedimento especial de despejo;

ii)      por desrespeito do caráter instrumental do procedimento cautelar, constituindo o despejo, no caso, não uma providência destinada a assegurar o direito, antes objeto último da ação a intentar.

III – Pretendendo o requerente a entrega definitiva dos imóveis para proceder à sua demolição, uma vez entregues por via cautelar e concretizada a demolição, estaria criada, com apoio numa prova meramente perfunctória, uma situação irreversível de destruição da relação de arrendamento que eventualmente ainda subsista em termos válidos.

IV – Por outro lado, obtido o despejo, mesmo que não viesse a intentar qualquer ação, o requerente teria já logrado obter o resultado pretendido, tornando essa propositura totalmente dispensável.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 1093/23.8T8GRD.C1

Juízo Central Cível e Criminal da Guarda – Juiz ...

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Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

A..., Lda., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Avenida ..., ..., ... ...,

intentou contra

B..., Lda., contribuinte fiscal n.º ..., com sede na Rua ..., ..., ... ...,

“providência cautelar não especificada”, pedindo, com os fundamentos que enunciou, “ser ordenada a entrega à requerente dos locados ora em apreço (e melhor identificados nos arts. 3º a 6º deste requerimento), livres de pessoas e bens, mais devendo a Requerida ser condenada, a título de sanção pecuniária compulsória, no pagamento do valor de € 300,00 por cada dia de atraso na entrega do locado, montante este contabilizado desde 15/06/2023, ou, quando      assim se não entender, contabilizado desde a data da notificação para os termos do presente expediente processual ou, em alternativa, a partir da data da prolação da decisão judicial que se pede seja tomada”.


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A Requerida deduziu oposição onde invocou, entre o demais, que “o procedimento cautelar de que se serviu a requerente não é o meio próprio, nem reúne os requisitos para poder ser admitido”.

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Em 25.08.2023 foi proferida decisão contendo o seguinte dispositivo “Em face do exposto, indefere-se a providência cautelar apresentada pela A..., Lda.”.

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A Requerente interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:“

9.1)- A recorrente interpôs a presente providência cautelar pedindo que «(…) deve a deve a presente providência ser decretada, e, em consequência, ser ordenada a entrega à requerente dos locados ora em apreço   (e melhor identificados nos arts. 3º a 6º deste requerimento), livres de pessoas e bens (…)».

9.2)- A recorrente não pediu fosse declarada a caducidade dos contratos de arrendamento existentes; não pediu fosse decretada a resolução dos contratos de arrendamento existentes; não pediu fosse decretada a denúncia dos contratos de arrendamento existentes; não pediu que fosse judicialmente reconhecida as ditas caducidade, resolução ou denúncia dos contratos de arrendamento existentes.

9.3)- A requerente pediu expressamente fosse judicialmente ordenada a entrega dos locados, livres de pessoas e bens, em ordem a possibilitar a execução das obras (já licenciadas pela Câmara Municipal ..., e com data estipulada para a mesma execução )de demolição dos imóveis em que se situam os ditos locados, e consequente construção de edifício com maior área de implantação e construção; com maior altura de fachada e volume das edificações ali atualmente existentes; com uma diferente estrutura resistente, número de fogos, divisões interiores, natureza e cor dos materiais de revestimento exterior - o que, obviamente não é possível efetivar enquanto a Requerida ocupar os locados ora em apreço.

9.4)- Assim, ao instaurar o presente procedimento cautelar comum a requerente pediu a desocupação dos locados, com a sua entrega judicial, livre de pessoas e bens, mas sem que seja possível concluir que do decretamento da providência ora requerida resulte uma qualquer situação irreversível para a requerida.

9.5)- Ou seja, o que se pretende com a presente providência cautelar é impedir que a ocupação dos locados (pela requerida) crie uma situação grave e dificilmente reparável, qual seja a de a requerente não efetivar a demolição dos edifícios existentes e consequente reconstrução, no prazo administrativamente consentido e com as expectativas de preços (seja de material, seja de mão- de- obra) existentes.

9.6)- Visa-se obter uma medida judicial que tutele provisoriamente o direito que se entende assistir à requerente, mais se acreditando que a presente Providência Cautelar é o único meio apto a antecipar, com brevidade, a efetividade do direito a que se arroga a requerente, a qual não se coaduna com as demoras inevitáveis de um processo judicial não urgente - artigo 362°, nº 1, Cód. Proc. Civil.

9.7)- Tendo em conta a alegação da recorrente, acredita-se que os factos alegados (que obviamente dependem de prova, ainda que perfunctória) preenchem os requisitos e os desideratos do procedimento cautelar interposto, e, por isso, deve o mesmo procedimento prosseguir os seus termos, designadamente com a efetivação de julgamento.

9.8)- E, efetuada que seja a produção de prova, entre o deferimento total da providência e a sua rejeição podem existir outras soluções adequadas ao caso concreto, devendo o tribunal, se for o caso, inscrever a medida num círculo mais restrito ou decretar outra providência que, em concreto, seja mais apropriada às circunstâncias do caso.

9.9)- Solução esta, característica do processo comum, onde, de acordo com o disposto no artigo 661.°, n.º 1, o tribunal está impedido de “condenar em quantidade superior do que se pedir”, mas nada obsta a que a decisão fique aquém daquilo que é pedido pelo interessado, desde que a matéria de facto, conjugada com o direito aplicável, conduza a outra solução de efeitos menos gravosos para o requerido.

9.10)- E, se a par desse preceito se considerar o que está previsto no art. 392.º, n.º 3, segundo o qual o “tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida”, facilmente se encontra no regime jurídico-processual substrato suficiente para uma medida de efeitos restritivos, mas que se mostre bastante para assegurar o direito ou prevenir os riscos de lesão.

9.11)- A Sentença revidenda violou, entre outras, as normas dos arts. 2º e 362º, e seguintes do Cód. Proc. Civil”.
*                                        

Respondeu a Requerida defendendo, pelas razões que invocou, a improcedência do recurso.

                                                                                   *

Dispensados os vistos, foi realizada a conferência, com prévia obtenção dos votos, contributos e sugestões dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.

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II-Objeto do recurso

Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).

No caso, perante as conclusões apresentadas, a única questão a apreciar e decidir é de saber se a pretensão de entrega dos imóveis, com os fundamentos invocados, é admissível no âmbito cautelar.

                                                                                  *

III-Fundamentação

A requerente, com vista a obter, por via cautelar, a entrega dos imóveis que identificou e a condenação da Requerida em sanção pecuniária compulsória durante o período de incumprimento da obrigação de entrega, alegou, em síntese,

- foram celebrados contratos de arrendamento relativamente aos imóveis em que a Requerida figura como arrendatária e a Requerente, após a aquisição dos prédios, como senhorio;

- a Requerente, por comunicação escrita de 12.12.2022, denunciou os contratos de arrendamento, para efeitos de demolição dos imóveis e posterior construção de um outro edifício e solicitou a entrega dos imóveis, comunicação essa a que a Requerida não respondeu;

- Por nova comunicação escrita de 14.02.2023 a Requerente confirmou a denúncia anteriormente comunicada e remeteu à Requerida cheque no valor de € 4.594,68 correspondente a metade da indemnização devida a título da denúncia, sendo que a Requerida nada disse;

- Por carta de 07.07.2023 a Requerente solicitou novamente a entrega dos imóveis e remeteu à Requerida outro cheque no valor de € 4.594,68 para pagamento do remanescente da indemnização devida;

- Até ao presente a Requerida não procedeu à entrega dos imóveis, sendo que essa falta de entrega está a determinar atraso na execução das projetadas obras a realizar no imóvel, tendo a licença termo a 21.01.2025;

- A Requerente já iniciou as obras no espaço não ocupado pelos imóveis ocupados pela Requerida, tornando-se absolutamente necessário proceder à demolição dos prédios locados;

- A não entrega dos locados está a determinar atraso considerável na execução das obras, daí decorrendo prejuízos da dificuldade em cumprir o prazo para as obras licenciadas.

Assim, tendo como pressuposto que a denúncia se efetivou e que a restituição dos prédios pela Requerida devia ter ocorrido até 15.06.2023, pediu a entrega respetiva, livres de pessoas e bens e bem assim a condenação da Requerida, a título de sanção pecuniária compulsória, no pagamento da quantia de € 300 por cada dia de atraso na entrega, contabilizado desde 15.06.2023 ou, quando assim se não entender, contabilizado desde a data da notificação para os termos do presente procedimento ou, em alternativa, a partir da data da prolação da decisão judicial a proferir.

No despacho recorrido invocaram-se os seguintes fundamentos para indeferir o procedimento cautelar:
i. Os procedimentos cautelares carecem de autonomia, dependendo sempre de uma ação, já pendente ou que deve ser seguidamente proposta pelo requerente.
ii. A Requerente em momento algum alude (direta ou indiretamente) ou concretiza qual seja a ação principal (no sentido do seu objeto e pedidos) de que o presente procedimento cautelar é instrumental.
iii. O pretendido pela requerente mais não é que um típico pedido de despejo, que a ser deferido na prática esgota o litígio relacionado com os contratos de arrendamento vertidos nos autos, retirando qualquer utilidade pragmática à ação principal de que qualquer procedimento cautelar comum deve ser acessório.
iv. A requerente esquece que existem procedimentos processuais céleres especificamente concebidos para garantir ao senhorio o exercício do despejo, designadamente o Procedimento Especial de Despejo (PED) previsto no artigo 15.º, n.º 1, da NLAU, processo urgente que se destina a efetivar a cessação de um contrato de arrendamento quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes
v. Não se pode obter uma medida tão radical como o despejo com base numa prova meramente indiciária que pode ser revertida na ação principal caracterizada por uma maior solenidade e por maiores garantias.
vi. A admitir-se o prosseguimento destes autos, estar-se-ia não só a violar o caráter instrumental do procedimento cautelar comum (cfr. art.º 362º, n.º2 e 364º do CPC), como a proceder ao arrepio do disposto no art.º 362º, n.º 3 do CPC, entendendo-se este caráter residual como extensível a procedimentos que acautelem de forma célere os direitos em causa.
vii. O requerido não permite ter por preenchidos, em abstrato ou em concreto, os requisitos processuais da tutela cautelar pretendida, o que impõe o indeferimento do presente procedimento cautelar.

Começaremos a análise por evidenciar o óbvio; nos termos conjugados dos arts. 1079.º, 1101.º, n.º 1, alínea b) e 1103.º, n.º 1, 2, 3 do Código Civil, é legítima a denúncia do contrato de arrendamento de duração indeterminada por parte do senhorio, efetuada extrajudicialmente, para efeitos de demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundo que obriguem à desocupação do locado, desde que verificadas as condições e procedimentos legalmente estatuídos.

Ou seja, a denúncia do contrato de arrendamento não depende de declaração judicial, podendo ser efetuada por comunicação do senhorio ao arrendatário nos termos legalmente definidos.

Questão diferente, e no pressuposto da validade e eficácia da denúncia, é a da sua execução, ou seja, a entrega subsequente do imóvel por parte do inquilino feita coercivamente (o designado despejo) e o sancionamento por eventual incumprimento da obrigação de entrega.

Para a obtenção dessa entrega, quando o inquilino não desocupe o imóvel na data prevista, a lei estabeleceu no NRAU (Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na sua redação atualizada), o procedimento especial de despejo, regulado nos seus arts. 15.º e segs., aplicável à denúncia em apreço – n.º 2, alín. d) –, cuja tramitação é assegurada, pelo menos na fase inicial, pelo Balcão do Arrendatário e do Senhorio (BAS).

Trata-se de um mecanismo de agilização do despejo, com uma tramitação simples (requerimento, notificação da contraparte – desocupação ou oposição – saneamento e audiência), com relevantes limitações de prova face ao processo comum e com prazos encurtados (15 dias para a oposição e realização da audiência de julgamento no prazo de 20 a contar da distribuição ou da conclusão, sentença oral proferida imediatamente no final da audiência).

Claro está que, não podendo socorrer-se deste procedimento, designadamente por não ter sido pago o imposto de selo relativo ao contrato ou declaradas as rendas para efeitos de IRS ou IRC (art. 15.º, n.º 5 do diploma citado), o senhorio pode recorrer à ação comum para assegurar a efetividade do seu direito

A questão que se coloca - e que se apresenta como nuclear no caso presente - é então a de saber se, através de procedimento cautelar comum, o senhorio que efetuou a denúncia do contrato de arrendamento pode obter (antecipadamente à decisão a proferir nesses autos – PED ou ação comum) a entrega do imóvel e bem assim a condenação do inquilino pelo pagamento de sanção pecuniária compulsória pelo “atraso” na restituição do locado.
Diga-se que a circunstância que foi valorizada em primeiro lugar pela instância recorrida para negar procedência ao procedimento “Em momento algum do requerimento inicial ou da pronúncia que antecede se alude (direta ou indiretamente) ou se concretiza qual seja a ação principal (no sentido do seu objeto e pedidos) de que o presente procedimento cautelar é instrumental” não seduz especialmente, porquanto não incumbe ao requerente do procedimento explicitar com rigor qual a ação específica que pretende intentar para assegurar em definitivo o seu direito, sendo certo que resulta inequívoco do seu articulado qual o direito a que se arroga - à restituição do imóvel após a cessação do contrato de arrendamento e o sancionamento em indemnização pela falta de entrega no momento em que devia ter ocorrido ou venha a ocorrer.
O direito ameaçado no requerimento inicial é precisamente esse (o direito de detenção coevo à propriedade após a cessação do contrato de arrendamento), não sendo de sindicar e exigir nesta sede mais do que aquilo que foi claramente afirmado.
O que novamente nos remete para o cerne da questão; o de saber se é admissível obter o despejo em sede cautelar, com antecipação à “ação de despejo”.
Estabelece-se no art. 362.º, n.º 1 do CPC “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”.
O pretendido pela Requerente apresenta notórias características “antecipatórias”.
Nas palavras de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre “Por providência antecipatória entende-se aquela que antecipa a decisão ou uma providência executiva futura, sem prejuízo de, no primeiro caso, poder também antecipar, de outro modo, a realização do direito acautelado” (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 10).
Quando decreta a providência, o tribunal emite uma decisão que corresponde à antecipação outra decisão a proferir mais tarde, isto é, toma provisoriamente determinadas medidas no pressuposto de que a decisão definitiva venha a confirmar o juízo provisório que a suportava.
Ainda assim, no procedimento cautelar, atento o periculum in mora, do que se trata é de adotar uma providência que assegure a efetividade do direito ameaçado e não o esgotar da definição do direito correspondente, apresentando sempre carácter instrumental relativamente à ação a propor, defendendo o presumido titular do direito contra os danos e prejuízos que lhe pode causar a demora própria da tomada da decisão definitiva.
Citando Marco Carvalho Fernandes “a instrumentalidade das providências cautelares traduz-se na idoneidade de se transformarem numa tutela definitiva (…) Exatamente por isso, as providências cautelares estão sujeitas a dois limites de fundo: por um lado, o requerente não pode obter por essa via mais do que aquilo que poderia obter através da sentença definitiva, por outro lado, o tribunal não pode decretar uma providência cautelar cujos efeitos sejam irreversíveis ao ponto de esvaziarem de conteúdo a ação principal” (Providências Cautelares, Almedina, 2015, págs. 124 e 125).
 Exatamente por isso a nossa jurisprudência e doutrina maioritárias têm vindo a defender não ser possível no âmbito de um procedimento cautelar obter os efeitos do despejo[2].
É também esse o nosso entendimento com apoio em distintas razões:
- uma, de caráter processual, por a lei ter criado um mecanismo especial, igualmente célere e simplificado, que assegura a efetividade do direito ameaçado – o procedimento especial de despejo;
- outra, de natureza mais substancial, por desrespeito do caráter instrumental do procedimento cautelar comum (cfr. art.º 362º, n.º2 e 364º do CPC), constituindo o despejo, no caso, não uma providência destinada a assegurar o direito, antes objeto último da ação a intentar.
Veja-se que, na situação presente, pretendendo a Requerente a entrega definitiva dos imóveis para proceder à sua demolição, uma vez entregues e concretizada a demolição, ir-se-ia criar, com apoio numa prova meramente perfunctória, uma situação irreversível de destruição da relação de arrendamento que eventualmente ainda subsista em termos válidos (a circunstância de o senhorio ter denunciado o contrato não implica qualquer reconhecimento da sua validade, podendo o inquilino assegurar a defesa dos seus direitos na oposição ao despejo).
Por outro lado, obtido o despejo, mesmo que não viesse a intentar qualquer ação, a Requerente teria já logrado obter o resultado pretendido, tornando essa propositura totalmente dispensável, assim se afrontando a natureza instrumental das providências cautelares.
Finalmente não se diga, como afirma a recorrente nas alegações do recurso, que “entre o deferimento total da providência e a sua rejeição podem existir outras soluções adequadas ao caso concreto, devendo o tribunal, se for o caso, inscrever a medida num círculo mais restrito ou decretar outra providência que, em concreto, seja mais apropriada às circunstâncias do caso”, não se apresentando, face à causa de pedir e pedido apresentados, como configuráveis outras soluções que permitam ao tribunal fazer intervir os princípios da adequação e modelação constantes do art. 376.º, n.º 3 do CPC.
Acresce que a viabilidade da providência deve ser aferida em função do que é pretendido e não com base numa hipotética “solução alternativa” que nem a Requerente indicou, nem o tribunal consegue perspetivar.
Improcede, como tal, o recurso interposto.                    

                                                                                   *  
Sumário[3]:

(…).

          

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar improcedente o recurso, e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

                                                                                    *

Custas pela apelante (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

                                                                                      *

Coimbra, 24 de outubro de 2023


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(Paulo Correia)

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(Catarina Gonçalves)


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(Helena Maria Carvalho Gomes Melo )




[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Catarina Gonçalves e Helena Maria Carvalho Gomes Melo
[2]  Como exemplos,
- da jurisprudência:
a providência cautelar não especificada não pode ser decretada se com ela se pretende cumprir a efectivação de um despejo ou produção de efeito equivalente” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-1998).
Não se pode obter uma medida tão radical como o despejo com base numa prova meramente indiciária que pode ser revertida na acção principal caracterizada por uma maior solenidade e por maiores garantias” (cfr. acórdão do TRL de 14.03.2013, proferido no processo 933/11.9TVLSB-A.L1-2 e disponível em www.dgsi.pt).
na doutrina –
Teixeira de Sousa (A Acção de Despejo, 2.ª ed., pág. 49) “na acção de resolução do contrato de arrendamento não é possível adoptar uma medida determinativa da entrega antecipada do locado ao senhorio, mas tão só a adopção de providências cautelares”.
[3] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).