Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
603/22.2T8ACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: EXECUÇÃO PARA ENTREGA DE COISA CERTA COM BASE EM SENTENÇA
EMBARGOS
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA PARA AGUARDAR PELO JULGAMENTO DE OUTRA ACÇÃO JÁ PROPOSTA
OPOSIÇÃO COM FUNDAMENTO NA EXISTÊNCIA DE BENFEITORIAS
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 272.º, 1; 729.º, G); 733.º, 1, A) E 860.º, DO CPC
Sumário:
I - A suspensão da instância com fundamento na circunstância da decisão da causa estar dependente do julgamento de outra já proposta – n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Civil – não se aplica à ação executiva, maxime quando o título executivo é uma sentença.

II - A oposição à execução com fundamento em benfeitorias não é admissível quando, baseando-se a execução em sentença, o executado não fez valer o seu direito a elas na ação onde se formou o título executivo ou em ação diversa, devendo, neste caso, o direito estar já definido à data em que é deduzida a oposição à execução – n.º 3 do artigo 860.º do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,

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Juiz relator………….....Alberto Augusto Vicente Ruço

1.º Juiz adjunto……… José Vítor dos Santos Amaral

2.º Juiz adjunto………. Fernando de Jesus Fonseca Monteiro


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(…)

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Recorrente ………………….AA, executado.

Recorrida…………………….BB, exequente.


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I. Relatório

a) O presente recurso insere-se no processo de embargos deduzidos pelo ora recorrente à execução de coisa certa que a recorrida lhe move.

A execução respeita à entrega de uma casa de habitação, sendo o título executivo constituído por uma sentença que decretou o despejo do ora recorrente dessa mesma habitação.

Nos embargos, o recorrente alega que instaurou ainda no decurso dessa ação de despejo uma outra ação (Processo 2880/19....) contra a mesma parte, na qual ele pede que se declare ser proprietário dessa casa da qual foi despejado, pelo que a decisão dessa ação, sendo-lhe favorável, impede a estrega da casa, constituindo, por isso, uma causa prejudicial que justifica, nos termos do artigo 272.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, a suspensão dos procedimentos executivos em curso.

Por outro lado, o recorrente fez benfeitorias na aludida casa e pediu na mesma ação o respetivo reconhecimento, pedido que, sendo procedente, lhe confere o direito de reter a casa na sua posse, por força do disposto no artigo 754.º do Código Civil, até ser ressarcido do respetivo valor.

 Formulou, por conseguinte, os seguintes pedidos:

«a) Julgar-se procedente, por provada, a presente Oposição à execução, com fundamento na existência de causa prejudicial e no disposto na alínea g) do art. 729.º do CPC, e, em consequência, anular-se a entrega do imóvel à Exequente BB, restituindo-se o Executado AA, à posse do mesmo,

b) E determinando-se a suspensão da execução até que seja proferida decisão definitiva na supra identificada acção de processo comum.

Caso assim não se entenda,

c) Julgar-se procedente, por provada, a presente Oposição à execução, com fundamento na existência de benfeitorias, as quais beneficiam de direito de retenção, sobre o imóvel cuja entrega é pedida na execução,

d) E, em consequência, suspender-se a execução até que seja o Executado AA pago da importância pelo mesmo peticionada em sede da acção declarativa, quanto ao valor das benfeitorias por si realizadas no imóvel.

e) E restituindo-se o mesmo o mesmo de imediato, à posse do imóvel, e ao estabelecimento comercial a ele associado, onde exercia a sua actividade profissional, que constitui a principal fonte de rendimento do seu agregado familiar.»

b) Realizou-se a audiência de julgamento e depois foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

«Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide este Tribunal julgar os presentes embargos de executado totalmente improcedentes e, em consequência, determinar o normal prosseguimento da execução.

Custas pelo executado – artigo 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil. Registe e notifique.

Ao abrigo do disposto nos artigos 304.º, n.º 1, e 306.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, fixo à causa o valor de € 158.020 (cento e cinquenta e oito mil e vinte euros).»

c) É desta decisão que vem interposto recurso por parte do executado embargante, cujas conclusões são as seguintes:

«(…) IV. A decisão recorrida, julgou improcedentes os pedidos formulados pelo Embargante/e Recorrente, a título principal, por ter concluído, que ao contrário do que vem alegado pelo embargante nestes autos, inexiste qualquer relação de prejudicialidade entre os autos de execução e a acção declarativa de condenação supra identificada e que corre termos nos Juízos Centrais Cíveis do Tribunal da comarca ..., sob o n.º 2880/19.....

V. E julgou, ainda totalmente improcedentes, os pedidos formulados pelo embargante e ora Recorrente, a título subsidiário, por considerar que não assiste ao direito de invocar o direito a benfeitorias em sede dos presentes embargos.

VI. As “questões decidendas” ou “themas decidendum” que constituem o objecto do presente recurso são assim duas: 1) da existência de uma relação de prejudicialidade entre os autos de execução e a acção declarativa que corre termos sob o n.º 2880/19...., no Juiz ..., dos Juízos Centrais ..., ou seja, da existência de causa prejudicial; 2) do direito do Embargante, ora Recorrente, a invocar, em sede dos presentes embargos de executado, o direito a benfeitorias.

VII. Não se conforma o Recorrente com a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, quanto à causa prejudicial invocada, por entender que, e ao contrário do que foi decidido, não só tal relação de prejudicialidade existe, como negar a sua existência, e em consequência não suspender a presente execução até que seja proferida decisão definitiva nos mencionados autos de acção declarativa de condenação, conduzirá a que sejam proferidas decisões contraditórias tendo por objecto o mesmo imóvel.

VIII. Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 272 º do Cód. Proc. Civil “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado” – sublinhado nosso.

IX. “Em termos gerais, podemos afirmar a existência de prejudicialidade quando a decisão de uma causa possa afectar e prejudicar o julgamento de outra, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando “…na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito, quando a decisão de uma acção - a dependente - é atacada ou afectada  pela decisão ou julgamento emitido noutra”[4] ou quando “…numa acção já instaurada se esteja a apreciar uma questão cuja resolução tenha que ser considerada para a decisão da causa em apreço”[5].” – cfr. sublinhado nosso.7

X. “Entende-se assim por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia” (acórdão cit.)

XI. No caso dos autos é um facto indiscutível e que não merece oposição, que o título executivo dado à execução para entrega de coisa certa intentada pela Exequente e ora Recorrida BB é a Sentença condenatória proferida em 21.12.2020 – e não em 10.12.2020, como por manifesto lapso de escrita, se fez constar na decisão recorrida – e já transitada em julgado, na Acção de Despejo proferida no processo que correu termos no Juízo de Competência Genérica ... sob o n.º 10/19....,

7 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.01.2010, supra citado.

XII. Sentença na qual foi declarada a resolução do contrato de arrendamento tendo por objecto o prédio urbano aí identificado e o estabelecimento comercial associado ao mesmo, condenando-se o aí réu e ora executado e Recorrente a entregar o imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens, aos Autores, dos quais a Exequente é a única herdeira.

XIII. Dúvidas também não poderão existir, que este imóvel é o mesmo que constitui objecto da acção declarativa de condenação que corre termos no Juiz ..., dos Juízos Centrais Cíveis de ..., sob o n.º 2880/19...., tendo no âmbito da referida acção – conforme, aliás, foi dado como provado na decisão recorrida – sido peticionado pelo executado e aí Autor o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o mesmo.

XIV. O trânsito em julgado da sentença proferida na acção de despejo, a qual condenou o ora executado/e embargante a entregar o imóvel à exequente, sentença que, acrescente-se, constituiu o título executivo dado á acção executiva, não afasta só por si, nem impossibilita existência de uma relação de prejudicialidade entre as duas acções, a saber, a acção executiva e a mencionada acção declarativa.

XV. Desde logo, porque tal sentença não apreciou, nem conheceu do direito de propriedade do ora Embargante sobre o mesmo imóvel, e cujo reconhecimento o mesmo peticionou na acção declarativa que se encontra pendente no Tribunal Judicial da comarca ....

XVI. Não conheceu, nem poderia conhecer, o Tribunal que proferiu tal sentença, da titularidade do direito de propriedade do mesmo prédio, dado que os factos atinentes à aquisição da propriedade do imóvel pelo ora Recorrente, que na mencionada acção de despejo ocupou a posição de Réu, não integraram, nem poderiam integrar, a causa de pedir de tal acção, atenta a natureza da mesma e os pedidos aí formulados.

XVII. Pelo que a decisão que venha a ser proferida na mencionada acção declarativa que se encontra pendente nos Juízos Cíveis de ..., não se encontra abrangida pelo caso julgado formado pela sentença condenatória proferida na acção de despejo,

XVIII. A relação de prejudicialidade entre as duas acções nos termos que se alegaram nestes autos existe, porquanto caso a Sentença que venha a ser proferida naqueles autos reconheça ser o ora Embargante o legitimo proprietário do imóvel, então estaremos em presença de uma situação em que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida nessa acção irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.

XIX. E causa dependente aqui não é a acção de despejo, mas a acção executiva para entrega de coisa certa, embora o título executivo seja constituído pela Sentença condenatória, proferida na referida acção de despejo.

XX. Pelo que, e ao contrário do que decidiu o Tribunal recorrido, está demonstrada a existência de uma relação de dependência e um nexo de prejudicialidade entre duas causas porquanto a resolução da questão que irá ser apreciada na referida acção declarativa revela-se como susceptível de modificar uma situação jurídica consolidada na acção executiva quando com base na sentença proferida na acção de despejo se determinou a entrega do imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens à Exequente, diligência já concretizada pelo Senhor Agente de Execução.

XXI. Acrescente-se, por último, que ao contrário do que refere a decisão recorrida, não poderia o Recorrente ter invocado a prejudicialidade da acção declarativa no âmbito da acção de despejo, na qual foi proferida a sentença dada à execução, dado que a acção de Processo Comum n.º 2880/19.... (Juiz ..., dos Juízos Centrais Cíveis de ...) deu entrada em Tribunal em 13.09.2019 e a fase dos articulados no âmbito da acção de despejo terminou em .../.../2019, tendo o Réu falecido em .../.../2019, o que determinou a suspensão da instância, a qual só cessou com a prolação da Sentença que julgou habilitada como sua única herdeira a Exequente.

XXII. A isto acresce que, a invocação de causa prejudicial não constituiu fundamento legal para a dedução de um articulado superveniente, mas ainda que assim não se entenda, nunca seria possível a sua dedução atento o disposto no n.º3 do art. 588.º do CPC, dado que no âmbito da acção de despejo não teve lugar audiência prévia, nem tão pouco audiência de julgamento, por não ter sido admitida a contestação do aí Réu AA.

XXIII. Julgou ainda o Tribunal “a quo” improcedente o pedido subsidiário deduzido, por considerar que não assiste ao Recorrente o direito de invocar o direito a benfeitorias em sede dos presentes embargos, quando não o fez na acção a que respeita a sentença que constitui o título executivo.

XXIV. Ora, ao contrário do que se mostra expresso na decisão recorrida, a verdade é que o Executado, e ora Recorrente, para além de ter invocado o seu direito a benfeitorias na acção declarativa que propôs em 13.09.2019, também invocou o seu direito às mesmas em sede de pedido reconvencional que deduziu quando contestou a mencionada acção de despejo, contestação que, no entanto, não foi admitida, por ter o Tribunal considerado ser a mesma extemporânea – cfr. despacho proferido em 09.04.2019.

XXV. Ora, apesar da contestação não ter sido admitida e, por isso, não poder produzir efeitos nos referidos autos, não é por isso, que pode a mesma ser desconsiderada, e concluir-se não assistir ao Embargante direito a invocar benfeitorias nesta sede, porque efectivamente, e ao contrário do que se decidiu, o seu direito às benfeitorias foi invocado na acção de despejo em que foi proferida a Sentença que constitui o título executivo dado à presente execução.

XXVI. Em face do exposto, deverá ser prolatado acórdão que julgue procedente o recurso interposto pelo Embargante/e Recorrente AA, e em consequência, que revogue o despacho Saneador-Sentença recorrido e que dê, por verificada a existência da causa prejudicial invocada, determinando, ainda, a suspensão dos autos de execução, até que seja proferida decisão definitiva nos autos de Acção de Declarativa que correm termos sob o n.º 2880/19...., nos Juízos Centrais Cíveis de ... (Juiz ...), Tribunal Judicial da comarca ...,

XXVII. Ou caso assim não se entenda, que declare assistir ao Recorrente o direito a invocar benfeitorias nestes autos, devendo, em consequência, serem suspensos os autos de execução até que seja o mesmo pago pela exequente, ora Recorrida, da importância por ele peticionada na referida acção declarativa respeitante ao valor das benfeitorias por ele realizadas no imóvel a que respeitam os autos de execução.

Nestes termos e nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de Vs. Ex.ªs., deve ser dado provimento ao presente Recurso de Apelação, e por via dele, ser proferido douto Acórdão que revogue o Saneador-Sentença proferido, e que dê por verificada a existência da causa prejudicial invocada, determinando, ainda, a suspensão dos autos de execução, até que seja proferida decisão definitiva nos autos de Acção de Declarativa que correm termos sob o n.º 2880/19...., nos Juízos Centrais Cíveis de ... (Juiz ...), Tribunal Judicial da comarca ...;

Ou caso assim não se entenda, Declare assistir ao Recorrente AA o direito a invocar o seu direito a benfeitorias nestes autos, devendo, em consequência, serem suspensos os autos de execução até que seja o mesmo pago pela exequente, ora Recorrida, BB da importância pelo mesmo peticionada na referida acção declarativa respeitante ao valor das benfeitorias por ele realizadas no imóvel a que respeitam os autos de execução. Com o que se fará a tão acostumada…Justiça!»

d) Foram produzidas contra-alegações pelo exequente, neste termos:

«A) O recurso aqui contestado é manifestamente improcedente, não passando de uma manobra dilatória para protelar um inevitável desfecho;

B) Em observância do artigo 272.º, n.º 1, do CPC, não é possível aplicar a suspensão do processo, com fundamento em causa prejudicial, em processos executivos, sendo esta a posição unânime dos tribunais;

C) Não é possível, porque as razões de ser da suspensão por causa prejudicial são a economia e a coerência dos julgamentos entre duas acções pendentes que apresentem entre si uma especial conexão, sendo que essa conexão poderá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia;

D) No processo executivo, o fim não é decidir uma causa, mas dar satisfação a um direito já reconhecido, pelo que não existe a aludida relação de dependência;

E) Por não ser possível aplicar a causa prejudicial ao processo executivo, com efeitos suspensivos, a legislação portuguesa concretizou os termos em que é possível promover a suspensão da instância através artigo 733.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, inaplicável ao caso concreto;

F) Mesmo que fosse possível aplicar a suspensão do processo por existência de causa prejudicial em sede executiva, no caso concreto, tal não poderia vingar;

G) A acção referente ao processo n.º 2880/19.... não contém qualquer elemento ou facto essencial que interferira e influencie a acção de despejo cujo saneador-sentença é o presente título executivo;

H) Mesmo que se considerasse que o reconhecimento de uma aquisição prescritiva do imóvel afectaria a obrigação de entrega do imóvel, até ao seu reconhecimento judicial – porque é o que ocorre neste enquadramento –, essa aquisição não existe;

I) Havendo uma sentença, transitada em julgado, com um direito de propriedade já reconhecido e a existência de um contrato de arrendamento, devidamente resolvido, também reconhecido, não pode ser oponível a essa sentença algo que ainda não existe e que só valerá, sem prejuízo dos seus efeitos retroactivos, assim que o tribunal o decretar;

J) E isto se se reputar tal putativa decisão de não ofensiva do caso julgado, uma vez que o título executivo, neste caso, dá por provado que os pais da Recorrida eram os legítimos proprietários do imóvel e senhorios do Recorrente;

K) De contrário, isso redundaria na hipótese de alguém opor a um direito consolidado, quebrando todos os alicerces de confiabilidade nos princípios da segurança e certeza jurídicas, um direito em potência;

L) Ademais, a acção de despejo apreciou, essencialmente, se um contrato de arrendamento subsistia entre as partes e se este cessou por meio de resolução contratual, desembocando numa obrigação de entrega do imóvel, sendo que o reconhecimento de um direito de propriedade por usucapião não tem automaticamente de vir acompanhado da entrega do imóvel ao proprietário usucapiente;

M) Assim, uma acção de aquisição do direito de propriedade por usucapião, ainda em fase de articulados, não pode ser considerada um facto impeditivo, extintivo e/ou modificativo da obrigação exequenda, porque não basta a mera alegação de uma suposta aquisição de um imóvel para tal ser reputado de um facto e, muito menos, de um facto cimentado juridicamente e produtor de efeitos extintivos, modificativos e/ou impeditivos;

N) Não se verifica qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração, nos termos do artigo 729.º, alínea g), do CPC;

O) O Recorrente, para poder beneficiar da prejudicialidade entre acções, teria de a haver invocado no âmbito da acção de despejo na qual foi proferida a sentença dada à execução, porque propôs o processo n.º 2880/19.... antes daquele veredicto ser proferido;

P) Atendendo a argumentação do Recorrente no que tange às benfeitorias, infere-se que este concorda com a posição jurídica expressa no saneador-sentença de que a questão das benfeitorias teria de haver sido levantada no processo declarativo que antecedeu esta execução e que lhe deu origem;

Q) A Contestação, acompanhada de Recovenção, apresentada pelo Recorrente foi rejeitada e posteriormente desentranhada, uma vez que entrou nos autos fora de prazo;

R) O Recorrente estava regularmente citado e a violação do prazo, prorrogado por mais 30 (trinta) dias, tão-somente lhe é imputável;

S) Qualquer que seja o fundamento legal para se ordenar determinado desentranhamento de um processo, o certo é que o objectivo do mesmo só pode ser o de que, de um ponto de vista processual e respectivos efeitos, nada fique a constar relativamente à peça ou ao documento cuja presença se considerou por legalmente inaceitável;

T) Havendo desentranhamento, é como se a peça nunca tivesse entrado nos autos, não podendo ser aproveitada de qualquer modo processualmente atendível, logo, o Recorrente não invocou o seu direito a benfeitorias no processo n.º 10/19....;

U) É inequívoco que a oposição à execução para entrega de coisa certa, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 860.º do CPC, quando o título executivo é uma sentença judicial, só pode ocorrer se o direito a benfeitorias tiver sido exercitado no processo declarativo do qual emerge a sentença que opera como título executivo;

V) Esta circunstância não preclude o exercício do direito noutra sede judicial distinta, como está a acontecer no processo n.º 2880/19....;

W) O Recorrente egularmente citado e a violação do prazo prorrogado tão-somente lhe é imputável;

X) Adicionalmente, a oposição à execução para entrega de coisa certa, com fundamento em benfeitorias, só é de aceitar quando estas autorizem a retenção da coisa até ao embolso da sua importância, porque existe uma co-dependência entre esse fundamento de oposição e a possibilidade de se exercer o direito de retenção;

Y) No caso concreto, já não assiste ao Recorrente o direito de invocar o direito a benfeitorias, pelo que, tendo já sido entregue à Recorrida o imóvel em apreço na execução, também já aquele não beneficia do direito de retenção que se extinguiu com a entrega do bem – artigo 761.º do Código Civil.

Destarte, nestes termos e nos mais de Direito, sempre com o douto suprimento de Vossas Venerandas Excelências, requer-se que reputem o recurso impetrado pelo Recorrente de manifestamente improcedente, confirmando o teor dispositivo do saneador-sentença.»

II. Objeto do recurso

As questões colocadas neste recurso são aquelas que o recorrente sintetizou na Conclusão VI:

1 – Verificar se existe uma relação de prejudicialidade entre o pedido formulado nesta execução e o pedido formulado pelo executado embargante na ação declarativa que instaurou e corre termos sob o n.º 2880/19...., no Juiz ..., dos Juízos Centrais ...;

2 – Se o executado embargante pode invocar nos presentes embargos, como fundameno para obter a suspensão da execução, o direito a ser ressarcido das benfeitorias reclamadas naquela ação n.º 2880/19.....

III. Fundamentação

a) 1. Matéria de facto – Factos provados

1 – Nos autos principais, a exequente pediu a entrega do imóvel sito na Rua ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...98, freguesia ....

2 – A execução referida em 1) foi intentada com base na sentença proferida em 10-12-2020 pelo Juízo de Competência Genérica ... nos autos de despejo n.º 10/19.... (transitada em julgado em 1-02-2022), na qual foi decidido:

“a) Declara a cessação, por resolução, do contrato de arrendamento celebrado entre as partes sobre o imóvel sito em Rua ..., ..., ..., ... e estabelecimento que lhe está associado, com efeitos à data de citação.

b) Condena o Réu a vagar o imóvel sito em Rua ..., ..., ..., ..., entregando-o livre de pessoas e bens aos Autores;

c) Absolve o R. do demais peticionado”.

3 – O imóvel identificado em 1) foi entregue à exequente em 6-05-2022.

4 – Em 13-09-2019, o executado propôs, no Juízo Central Cível ... – Juiz ..., ação declarativa de condenação com o n.º 2880/19.... contra Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD, tendo formulado os seguintes pedidos:

“a) Declarar-se que o Autor AA é o legitimo e exclusivo dono e proprietário do prédio urbano sito na Rua ..., na ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito actualmente sob o art. 2932, da mesma freguesia, e o qual se encontra omisso na Conservatória do Registo Predial e que tem a seguinte composição.

 “casa composta por rés-do-chão destinada a comércio com uma divisão e duas casas de banho, 1.º andar para habitação com quatro divisões, cozinha, casa de banho e logradouro, com o valor patrimonial de € 158.020,00, determinado no ano de2015”;.

b) Serem os Réus, Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC, e, DD, este por si, e na qualidade de Cabeça de Casal da Herança 1.ª Ré, condenados a reconhecer e respeitar o direito de propriedade do Autor sobre o referido prédio urbano.

Caso assim não se entenda,

c) Serem os Réus Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC, e, DD, este por si, e na qualidade de Cabeça de Casal da Herança 1.ª Ré, condenados a restituir ao Autor AA, a quantia com que indevidamente se locupletaram, enriquecendo sem causa justificativa à custa do empobrecimento daquele, nos termos do disposto no art. 473° do Código Civil, no montante de € 11.125,00 (onze mil cento e vinte e cinco euros), importância acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;

d) Serem os Réus Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC, e, DD, este por si, e na qualidade de Cabeça de Casal da Herança 1.ª Ré, condenados a pagar ao Autor AA a quantia de € 55.813,95 (cinquenta e cinco mil oitocentos e treze euros e noventa e cinco cêntimos) a título de benfeitorias úteis e necessárias realizadas no prédio urbano identificado em a), importância acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;

e) Em qualquer dos casos, serem ainda os Réus condenados nas custas do processo”.

2. Matéria de facto – Factos não provados

Não há.

c) Apreciação das questões colocadas pelo recurso

1 – Vejamos então se existe uma relação de prejudicialidade entre o pedido formulado nesta execução e o pedido formulado pelo executado embargante na ação declarativa que instaurou e corre termos sob o n.º 2880/19...., no Juiz ..., dos Juízos Centrais ....

A resposta é negativa, pelas seguintes razões:

(I) Nos termos do n.º 1 do artigo 272.º (Suspensão por determinação do juiz ou por acordo das partes) do Código de processo Civil, «O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta …»
Como referiu o professor Alberto dos Reis, «Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda (art. 289.º, § 1.º). Apontámos alguns exemplos: acção de anulação de casamento prejudicial em relação à acção de divórcio, acção de anulação de arrendamento, prejudicial da acção de despejo» (Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III. Coimbra Editora, 1946, pág. 268-269), referindo ainda o mesmo autor que «…a razão de ser da suspensão por pendência de causa prejudicial é a economia e concorrência dos julgamentos e por isso só se justifica a sua aplicação na fase declaratória (Ob. cit., pág. 272).
Assim, diz o autor, «A primeira parte do artigo 284.º [preceito idêntico ao atual] não pode aplicar-se ao processo de execução, porque o fim deste processo não é decidir uma causa, mas dar satisfação efectiva a um direito já declarado por sentença ou constante de título com força executiva. Não se verifica assim, no tocante à execução, o requisito exigido no começo do artigo: estar a decisão da causa dependente do julgamento doutra já proposta» - Ob. Cit., pág. 274.

Tem-se entendido, que esta norma não se aplica às ações executivas, principalmente àquelas em que o título executivo é uma sentença, como no caso dos autos, porque a norma ao dizer que o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra, refere-se claramente à suspensão de uma ação que está em curso.

Com efeito, se uma ação não estiver pendente não pode ser suspensa.

Ora, numa ação executiva, que tem como título executivo uma sentença, o que «está em curso» é a execução dessa sentença, onde, portanto, já se dirimiu um conflito de interesses e, sendo assim, não existe um conflito de interesses à espera de decisão, decisão essa suscetível de ser afetada, ou estar dependente, da decisão de um outro conflito, também ele em curso, e que estenderá inelutavelmente os seus efeitos sobre o objeto do processo que se pretende ver suspenso.

Pronunciou-se neste sentido, entre outros, o acórdão do STJ de 27 de janeiro de 2010, proferido no processo n.º 594/09.5YFLSB, com o seguinte sumário:

«I - O processo de execução visa dar realização efectiva e prática ao direito do exequente, definido pelo tribunal em sede de acção declarativa ou consubstanciado em outro título a que a lei atribua força executiva.

II - Mantém-se em vigor a doutrina fixada pelo Assento do STJ de 24-05-1960, no sentido de que o art. 279.º do CPC não se aplica ao processo executivo, uma vez que “a execução não é uma causa por decidir; é a sequência de uma decisão.”»

III - A execução apenas admite uma espécie de prejudicialidade no âmbito da própria ação executiva, através do instituto da oposição e da possibilidade desta dar origem a suspensão da própria execução.» - Sumário, em www.dgsi.pt.

Como refere Rui Pinto, «…a execução não visa a declaração de um direito, antes assenta numa presunção titulada da existência deste. Por isso, a sua eficácia não está, como numa ação declarativa, dependente do julgamento de outra proposta. Não lhe é, assim, aplicável o regime dos artigos 92.º, 269, n.º1, al. c) primeira parte e 272.º n.º 1 primeiro parte.» - A Ação Executiva, AAFDL Editora, Lisboa, 2018, págs. 953.

(II) Por outro lado, no caso dos autos, a prejudicialidade invocada, isto é, a possibilidade do ora executado por vir a ser declarado proprietário da casa de habitação de onde foi despejado, nenhuma influência pode ter sobre o estado da presente execução porque a casa já foi entregue à aqui exequente.

Ou seja, se porventura fosse decretada a suspensão da execução, com base em causa prejudicial pendente, a execução seria suspensa no estado em que se encontra, estando, como se disse, a casa já na posse da exequente.

Ou seja, a suspensão não lograria atingir o efeito pretendido pelo executado embargante.

E não vale argumentar-se que procedendo a oposição a casa seria restituída à posse do executado.

Com efeito, o que se pede na execução é a suspensão da execução com base em causa prejudicial e desta procedência nada mais pode resultar que a suspensão da ação no estado em que se encontrar, já não a anulação dos atos anteriores relativos à entrega da casa.

 (III) Por outro lado ainda, a restituição do imóvel, pedida com fundamento na al. g) do artigo 729.º do Código de Processo Civil, não procede porque a existência de uma causa prejudicial não integra os casos previstos nesta alínea, onde se dispõe que fundando-se a execução em sentença, a oposição pode ter como fundamento «Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio.»

Porém, a existência de uma causa prejudicial é uma realidade que opera ao nível da relação processual e não se inclui no conceito de facto extintivo ou modificativo da obrigação, situações estas que são realidades do domínio do direito material, substantivo.

Concluindo, a restituição do imóvel, pedida com fundamento na al. g) do artigo 729.º do Código de Processo Civil, não procede, porque a existência de uma causa prejudicial não integra o conceito de facto extintivo ou modificativo da obrigação.

 (IV) Por fim, se o tribunal ordenasse a suspensão da execução com fundamento na existência duma causa prejudicial, o executado obteria a suspensão da execução sem necessidade de prestar caução, porque esta seria uma causa de suspensão fora dos casos previstos em sede de oposição à execução, previstos no artigo 733.º do Código de Processo Civil, onde, na generalidade dos casos, o legislador faz depender a suspensão da prestação de caução (cfr.  al. a), do n.º 1, do artigo 733.º do Código de Processo Civil: «1 - O recebimento dos embargos suspende o prosseguimento da execução se: a) O embargante prestar caução;).

Esta disparidade de previsões quanto à necessidade de prestar caução para obter a suspensão da execução, que existiria caso se admitisse a suspensão da execução em sede executiva, com base na pendência de causa prejudicial, maxime quando se executa uma sentença, mostra uma dualidade de regimes que não logra obter justificação.

As normas processuais constituem um sistema coerente. Esta desarmonia que existiria caso de admitisse a suspensão da execução, mostra que tal solução não pode estar certa.

2 – Vejamos agora se o embargante pode invocar nos presentes embargos, como fundamento para a suspensão da execução, o direito a ser ressarcido das benfeitorias reclamadas naquela ação n.º 2880/19.....

A resposta também é negativa, pelas seguintes razões:

A norma processual onde o executado procura tutela consta do artigo 860.º do Código de Processo Civil, cuja redação é a seguinte:

«1. O executado pode deduzir oposição à execução pelos motivos especificados nos artigos 729.º a 731.º, na parte aplicável, e com fundamento em benfeitorias a que tenha direito.

2 - Se o exequente caucionar a quantia pedida a título de benfeitorias, o recebimento da oposição não suspende o prosseguimento da execução.

3 - A oposição com fundamento em benfeitorias não é admitida quando, baseando-se a execução em sentença condenatória, o executado não haja oportunamente feito valer o seu direito a elas.

Verifica-se que o n.º 3 deste artigo exclui a oposição com fundamento em benfeitorias quando o título executivo seja uma sentença e o «… executado não haja oportunamente feito valer o seu direito a elas.»

A qual processo se refere este n.º 3, onde o executado não fez valer o direito às benfeitorias?

Em regra, será o próprio processo onde se formou o título executivo, mas admite-se que possam existir outros casos em que possa ser deduzido tal tipo de pedido, mas a definição do direito há de estar concluída no momento em que são deduzidos os embargos.

É que, a suspensão da execução baseada em sentença implica um bloqueia do direito do exequente que é certo, pois está definido por sentença quando se procede à execução, o que contrastaria com a situação do direito invocado pelo executado nos embargos, com base em benfeitorias, que é um direito incerto, podendo ou não vir a ser reconhecido.

Por conseguinte, a certeza que preside ao direito do exequente, no confronto com a incerteza do direito do executado, não justifica a suspensão da execução.

Portanto, se o executado não fez valer o seu direito a benfeitorias no processo onde se formou o título executivo, ou porventura noutro que haja instaurado para esse fim, não pode obter a suspensão da execução com base na invocação do direito a ser ressarcido pelas benfeitorias.

O direito emergente de benfeitorias deve estar já definido no confronto com o exequente em outra sentença existente à data em que é deduzida a oposição à execução.

Com efeito, quando o n.º 3 do artigo 860.º do CPC diz, referindo-se ao executado, «haja oportunamente feito valer o seu direito» refere-se a um direito já «feito valer», já definido, portanto, pressupõe-se que tenha sido obtida uma decisão favorável.

Por conseguinte, se o executado não fez valer o seu alegado direito, com base em benfeitorias, no processo onde se formou o título executivo, ou noutro, não se justifica que venha exercer mais tarde esse direito na execução, pois obteria a paralisação do título executivo através da dedução de embargos com tal fundamento, quando é certo que podia ter deduzido anteriormente tal pedido.

Razões de celeridade e economia processual justificam, nestes casos, que a norma do n.º 3 do artigo 860.º do CPC impeça a suspensão da execução com tal fundamento.

Improcede, pelo exposto, o recurso.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.


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Coimbra, …