Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002598
Parecer: P000102005
Nº do Documento: PPA21042005001000
Descritores: JULGADOS DE PAZ
COMPETÊNCIA CONCORRENTE
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS
REPRESENTAÇÃO DO ESTADO
MINISTÉRIO PÚBLICO
REPRESENTANTE LEGAL
JUIZ DE PAZ
EQUIDADE
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
Livro: 00
Pedido: 01/11/2005
Data de Distribuição: 02/03/2005
Relator: PAULO SÁ
Sessões: 01
Data da Votação: 04/21/2005
Tipo de Votação: UNANIMIDADE
Sigla do Departamento 1: PGR
Entidades do Departamento 1: DESPACHO DE S EXA O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
Privacidade: [01]
Data do Jornal Oficial: 02-09-2005
Nº do Jornal Oficial: 169
Nº da Página do Jornal Oficial: 12840
Indicação 1: PARA PUBLICAÇÃO - DESPACHO DE S. EXA. O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA DE 29-05-2003
Indicação 2: ASSESSOR:MARIA JOSÉ RODRIGUES
Conclusões: 1.ª – No actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz é optativa, relativamente aos tribunais judiciais, com competência territorial concorrente;

2.ª – O Estado-Administração pode ser parte em acções propostas nos julgados de paz, quer na sua veste de titular de direito privado, quer como ente público, quer como demandante, quer como demandado;

3.ª – A competência para o Ministério Público representar o Estado, nos termos do artigo 219.º da Constituição e dos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público reporta-se aos tribunais estaduais, designadamente aos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e fiscais;

4.ª – O Ministério Público não representa o Estado nos julgados de paz.

Texto Integral:
Senhor Conselheiro
Procurador-Geral da República,
Excelência:

I.

Dignou-se Vossa Excelência suscitar a intervenção do Conselho Consultivo para analisar as seguintes questões:

1. Exclusividade ou alternatividade das competências dos julgados de paz;
2. Possibilidade de o Estado ser demandado ou demandante nestes;
3. Representação do Estado pelo Ministério Público nos julgados de paz.

Na origem da solicitação está um parecer elaborado pelo Coordenador do Contencioso de Estado, na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa – visando resolver um conflito entre um Procurador Adjunto no Tribunal Cível de Lisboa e o Procurador da República em funções nesse Tribunal – no qual se sustenta que a competência em razão da matéria prevista no artigo 9.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, é imperativa; que nesses tribunais não está prevista a intervenção do Ministério Público; que neles o Estado, sendo parte, deve comparecer pessoalmente, através de pessoa para o efeito credenciada, podendo ser assistido por advogado, candidato à advocacia ou por solicitador, sendo a representação por advogado apenas obrigatória nos recursos.

Determinou, então, Vossa Excelência a audição do Gabinete, onde se sugeriu o pedido de parecer a este Conselho, com vista a dissipar dúvidas quanto «à competência material dos julgados de paz, à representação do Estado e à intervenção do Ministério Público neste “Meio Alternativo à Justiça Comum”».

Tendo em conta a proposta, Vossa Excelência entendeu por bem ser necessário o parecer deste Conselho sobre as questões supra enunciadas[1].

Delimitado o respectivo objecto, cumpre emitir parecer.

II.
1. «A actividade de composição jurídica de conflitos desenvolve-se entre sujeitos que a concretizam e pressupõe um dado objecto e um iter de desenvolvimento lógica e funcionalmente dirigido à obtenção do resultado compositivo[2].

«Distingue-se, neste domínio, entre instrumentos de autocomposição ou composição autónoma de conflitos, em que são as partes a autodeterminar o resultado compositivo do litígio, e meios de heterocomposição ou composição heterónoma, quando, por acordo das partes ou determinação da lei, um terceiro resolve o conflito mediante decisão que as vincula x.

«No primeiro caso, “os sujeitos das pretensões a compor detêm o poder compositivo das suas próprias pretensões”; no segundo, “o poder compositivo radica já não nos sujeitos das pretensões a compor, mas num terceiro dotado de heteronomia compositiva” (x1).

«Entre os instrumentos de autocomposição, referem-se a desistência, a confissão e a renúncia (autocomposição unilateral), bem como a transacção (autocomposição bilateral).

«No campo da heterocomposição sobressaem dois sistemas.

«Num, o arbitral, o poder compositivo radica numa entidade imparcial designada pelos titulares das pretensões. O paradigma da heterocomposição arbitral é constituído pelos processos arbitrais ou arbitragem; caberá também aqui a figura da conciliação, entendida como a audiência das partes em juízo por forma a compor o litígio (x2).

«No outro, o da heterocomposição neutral, intervém um árbitro impróprio (porque de designação neutra). Aqui destaca-se a heterocomposição estadual judicial, traduzida na actividade de composição concreta da conflitualidade de pretensões ”desenvolvida por magistrados cuja imparcialidade é garantida pela neutralidade judicial da entidade que os designa” (x3).

«A autocomposição e a heterocomposição de conflitos não constituem domínios estanques, pois, em benefício da diminuição da litigiosidade, a própria lei consagra ou admite a utilização, no decurso da heterocomposição estadual judicial de mecanismos de autocomposição, como, por exemplo, a transacção judicial (x4).

O tão propalado desequilíbrio entre a procura de tutela judiciária e a capacidade de resposta dos tribunais tem constituído fonte de preocupação do executivo e estímulo à procura de soluções alternativas de resolução de conflitos.

A propósito, é de citar a Resolução do Conselho de Ministros n.º 175/2001, de 28 de Dezembro, através da qual se «promove, determina e recomenda a resolução de litígios por meios alternativos, como a mediação e a arbitragem», e em cuja parte dispositiva o Conselho de Ministros resolve:

«1. Reafirmar o firme propósito de promover e incentivar a resolução de litígios por meios alternativos, como a mediação ou a arbitragem, enquanto fórmulas céleres, informais, económicas e justas de administração e realização da justiça.
2. Assumir e afirmar que o Estado, nas suas relações com os cidadãos e com as outras pessoas colectivas, pode e deve activamente propor e aceitar a superação dos diferendos em que ele mesmo seja parte com recurso aos meios alternativos de resolução de litígios.
3. (...)
4. (...)
5. Determinar que, no desenvolvimento das suas atribuições, o Estado e outras pessoas colectivas públicas que integram a administração estadual indirecta proponham e adoptem soluções concretas de mediação e de arbitragem como modalidades, preventivas e alternativas, de composição de litígios com os cidadãos, as empresas e outras pessoas colectivas.
6. Fazer novamente saber que, sem prejuízo da escolha de arbitragem ad hoc, os centros de arbitragem legalmente reconhecidos e institucionalizados constituem hoje uma oferta merecedora de especial confiança e indiscutível aceitação para actuarem nos diferendos acima referidos.»

O relevo conferido à composição de litígios por meios alternativos é evidenciado pela existência na orgânica do Ministério da Justiça de uma Direcção-Geral da Administração Extrajudicial [artigos 4.º, alínea g), e 14.º do Decreto-Lei n.º 146/2000, de 18 de Julho [4]], que conta, entre as suas funções, a de promover e apoiar a criação, divulgação e funcionamento dos meios extrajudiciais de composição de litígios, designadamente a mediação, a conciliação e a arbitragem e a de prestar apoio às entidades que intervenham na resolução extrajudicial de litígios [artigo 2.º, alíneas b) e e), do Decreto-Lei n.º 90/2001, de 23 de Março][5].


2. Na composição heterónoma de conflitos assumem papel de destaque os tribunais, definidos como «os órgãos de soberania», independentes e apenas sujeitos à lei, «com competência para administrar a justiça em nome do povo» (artigos 202.º, n.º 1, e 203.º da Constituição).

O conteúdo da função jurisdicional que constitui a epígrafe do artigo 202.º da Constituição é explicitado no n.º 2 do citado normativo: «Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados».

«A função jurisdicional traduz-se, em termos gerais, “na decisão tendente à resolução de questões fáctico-jurídicas concernentes à violação do direito objectivo ou à ofensa de um direito subjectivo em termos de procurar restabelecer a paz jurídica posta em causa pela mencionada acção violadora ou ofensiva” (x5)».

No n.º 4 do mesmo artigo 202.º contempla-se a possibilidade de a lei institucionalizar «instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos»[6]. Os constitucionalistas advertem, porém, para o facto de que tais modalidades de resolução de litígios «têm limites constitucionais, pois, por um lado, a autodeterminação judicial deve terminar onde estejam em causa bens indisponíveis ou direitos, liberdades e garantias, e, por outro lado, o recurso a estruturas extrajudiciais não pode precludir ou prejudicar o recurso à via jurisdicional»; de outro ângulo, as «formas não jurisdicionais de composição de conflitos não têm de ser de natureza privada, podendo ser de iniciativa pública (estadual, regional ou municipal), como sucede entre nós com as comissões de conflitos de consumo»[7].

«Articulando os conceitos de função jurisdicional com o de juiz (cf. artigos 215.º e 216.º da Constituição), GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA definem os tribunais com “os órgãos do Estado (“órgãos de soberania”), dotados de independência (...), em que um ou mais juízes procedem à administração da justiça” (x6)».

«Mais explícita é a definição de MARCELLO CAETANO, segundo o qual o tribunal “é o órgão singular ou colegial que a requerimento de alguém, e procedendo com imparcialidade e independência, segundo fórmulas preestabelecidas, possui autoridade para fixar a versão autêntica dos factos incertos ou controversos de um caso concreto, a fim de determinar o direito aplicável a esse caso em decisão com força obrigatória para os interessados (x7)”».

O n.º 1 do artigo 209.º da Constituição destaca, além do Tribunal Constitucional, as seguintes categorias de tribunais:

«a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância;
b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais;
c) O Tribunal de Contas.»

O n.º 2 do mesmo artigo 209.º acrescenta que «[p]odem existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz».

A previsão constitucional dos julgados de paz foi introduzida na revisão constitucional de 1997[8].

Sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais (n.º 1 do artigo 210.º) e o Supremo Tribunal Administrativo o órgão superior da hierarquia dos tribunais administrativos e fiscais (n.º 1 do artigo 212.º).

Por sua vez, o Tribunal de Contas é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas que a lei mandar submeter-lhe (n.º 1 do artigo 214.º).

Por fim, de acordo com o artigo 211.º da Constituição, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (n.º 1); na primeira instância, pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas (n.º 2); nas instâncias superiores, os tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça podem funcionar em secções especializadas (n.º 3).

Ora, das instâncias de resolução de conflitos de existência facultativa, segundo a Constituição – por um lado, tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz (artigo 209.º, n.º 2), por outro, tribunais com competência específica e tribunais especializados (211.º, n.º 2) – os tribunais marítimos, os tribunais com competência específica e os tribunais especializados são verdadeiros tribunais, no sentido de órgãos soberanos do Estado, que, uma vez criados, passam a integrar as categorias e ordens constitucionalmente previstas.

O mesmo sucede, como se verá, com os julgados de paz.

III.
1. Conforme resulta da Constituição da República os julgados de paz são integrados ao lado dos tribunais marítimos e arbitrais como uma categoria de tribunais (artigo 209.º, n.º 2).

Como tribunais constituem um órgão de soberania, são independentes (artigo 203.º da Constituição), têm competência para administrar a justiça em nome do povo (artigo 202.º da Constituição), sendo as suas decisões obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas, prevalecendo sobre as de quaisquer outras autoridades (artigo 205.º, n.º 2).

São, no entanto, tribunais facultativos, como se disse, que não pertencem à estrutura dos tribunais judiciais nem dos demais tribunais previstos no n.º 1 do artigo 209.º da Constituição.

O facto de não pertencerem à estrutura dos tribunais judiciais não implica que das respectivas decisões caiba necessariamente uma instância de recurso autónoma. Pelo contrário, delas cabe recurso para os tribunais judiciais de primeira instância (artigo 62.º). Também não afasta a ideia de tribunal o facto de os julgados de paz poderem recorrer à mediação, forma de composição de conflito não jurisdicional[9].

Toda a doutrina aceita por boa a tese de que os julgados de paz são tribunais.

Assim CARDONA FERREIRA[10], JOEL PEREIRA[11], e MARCOS KEEL PEREIRA, [12] embora este último Autor distinga entre decisão judicial e não judicial do conflito, conforme ocorra uma decisão final sobre o conflito apresentado pelas partes ou o juiz de paz se limite a homologar o acordo obtido por estas na fase de mediação.


2.1. Questão diversa é a de saber se os julgados de paz são detentores de competência exclusiva ou se são apenas uma instância alternativa.

O Decreto-Lei n.º 539/79, de 31 de Dezembro – em cujo preâmbulo se referia que, «[e]m conformidade com o disposto no artigo 217.º, n.º 1, da Constituição, a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro) sancionou a possibilidade de se constituírem nas freguesias tribunais de 1.ª instância denominados «julgados de paz (artigo 12.º, n.º 2), com competência para «exercer a conciliação», «julgar as transgressões e contravenções às posturas da freguesia» e «preparar e julgar acções de natureza cível de valor não superior à alçada dos tribunais de comarca, quando envolvam apenas direitos e interesses dos vizinhos e as partes estejam de acordo em fazê-las seguir no julgado de paz» –, visava expressamente «regular a organização e funcionamento daqueles tribunais e, sobretudo, definir os termos do processo» a que deviam obedecer.

Tal diploma – que consagrava em matéria cível um competência optativa, uma vez que resultava da aceitação das partes – não veio, porém, a produzir efeitos, dada a recusa da sua ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 117/80, de 31 de Maio.

A Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, veio a introduzir no artigo 209.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa a previsão da possibilidade da existência de julgados de paz.


2.2. O Partido Comunista Português (PCP), visando concretizar a previsão constitucional, apresenta, em 20 de Janeiro de 2000, os Projectos de Lei n.os 82/VIII e 83/VIII, com os seguintes elementos essenciais:

a) Em cada freguesia e com competência na respectiva área, haveria, em regra, um julgado de paz, podendo a lei determinar que um julgado tivesse competência sobre duas ou mais freguesias agregadas – Projecto n.º 82/VIII e artigos 2.º e 3.º do Projecto n.º 83/VIII;

b) A competência dos julgados de paz seria exclusiva, quer em matéria cível, quer em matéria criminal e contravencional, afastando a competência concorrente de outros tribunais – artigos 5.º e 6.º do Projecto n.º 83/VIII;

c) O juiz de paz seria eleito, por voto secreto, pela assembleia municipal, por um período de três anos renovável, de entre candidatos considerados aptos pelo Conselho Superior da Magistratura – artigos 7.º e 8.º do Projecto n.º 83/VIII;

d) Nos julgados de paz, a Procuradoria-Geral da República poderia nomear um representante, que não fosse magistrado de carreira, «…para intervenção em processo criminal…» – artigo 11.º do Projecto n.º 83/VIII;

e) A competência material dos julgados de paz abrangeria matéria cível e administrativa (artigo 5.º do Projecto n.º 83/VIII) e matéria criminal (artigo 6.º do mesmo Projecto);

f) O julgado de paz não teria competência para acções executivas e, relativamente a incidentes, apenas a teria para o incidente relativo à sua competência – artigo 5.º, n.os 2 e 3, do Projecto n.º 83/VIII;

g) Nas causas cíveis (abrangendo as da área administrativa), as partes poderiam pleitear por si mesmas ou constituir advogado ou solicitador – artigo 13.º do Projecto n.º 83/VIII;

h) Em processo criminal, o arguido seria obrigatoriamente assistido por defensor, que lhe seria nomeado no caso de o mesmo não constituir advogado – artigo 14.º do Projecto n.º 83/VIII;

i) Os julgados de paz disporiam de serviços de secretaria próprios, cuja dotação seria fixada por portaria do Ministério da Justiça, ouvidos os Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público e o Conselho dos Oficiais de Justiça –artigo 16.º do Projecto n.º 83/VIII;

j) Admitia-se a citação edital do réu nas causas cíveis (embora com dispensa de publicação de anúncios), caso em que haveria lugar obrigatoriamente a audiência de julgamento, sendo o réu ausente ou incerto representado por defensor nomeado pelo juiz de paz, de escala organizada pela Ordem dos Advogados e pela Câmara de Solicitadores ‑ artigos 19.º, n.º 2, e 21.º, n.º 3, do Projecto n.º 83/VIII; o prazo para recurso de sentença proferida à revelia do réu contava-se a partir da notificação na pessoa do defensor – artigo 28.º, n.º 2, do Projecto n.º 83/VIII;

k) Caso fosse requerida prova pericial, nas causas cíveis, cessaria de imediato a competência do julgado de paz – artigo 22.º, n.º 5, do Projecto n.º 83/VIII;

l) Da decisão final caberia recurso para o tribunal de comarca, em matéria cível, com efeito suspensivo, sendo o recurso interposto mediante declaração para a acta, imediatamente após a leitura da sentença – artigos 28.º e 29 do Projecto n.º 83/VIII;

m) Recebidos os autos no tribunal de comarca, a secretaria notificaria as partes que não tivessem advogado constituído para, querendo, constituírem mandatário no prazo de 10 dias; os mandatários constituídos poderiam, no prazo referido, suprir omissões ou deficiências das motivações e conclusões de recurso anteriormente interposto – artigo 30.º do Projecto n.º 83/VIII.

Discutidos na generalidade, os referidos projectos foram aprovados por unanimidade.

Porém, no decurso da discussão, o Deputado do Partido Popular (CDS-PP), Nuno Teixeira de Melo, criticou o Projecto n.º 83/VIII, pelo facto de o mesmo não prever a nomeação de um representante do Ministério Público, magistrado de carreira, para intervenção no processo criminal[13].


2.3. Discutidos os projectos na especialidade, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, foi ali adoptado um texto de substituição que viria a ser aprovado, por unanimidade, em plenário da Assembleia da República, como Lei n.º 78/2001 (doravante LJP).

Apreciemos agora as traves essenciais deste diploma:

a) A actuação dos julgados de paz é vocacionada para permitir a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes – artigo 2.º, n.º 1;

b) Os julgados de paz são criados por diploma do Governo, ouvidos o Conselho Superior da Magistratura, a Ordem dos Advogados, a Associação Nacional dos Municípios Portugueses e a Associação Nacional de Freguesias – artigo 3.º;

c) A sua competência material é exclusiva a acções declarativas, limitada, em termos de valor, pela alçada do tribunal de 1.ª instância – artigos 6.º, n.º 1, 8.º e 9.º;

d) A regra geral, em sede de competência territorial, é a de que é competente o julgado de paz do domicílio do demandado; se este não tiver residência habitual, for incerto ou ausente é demandado no domicílio do demandante; se o demandado tiver domicílio e residência em país estrangeiro, é demandado no domicílio do demandante e, quando este domicílio for no estrangeiro, é competente para a causa qualquer julgado de paz em Lisboa – artigo 13.º;

e) Os julgados de paz não têm quadro de pessoal – artigo 19.º;

f) Os juízes de paz são seleccionados por concurso público e nomeados, pelo período de 3 anos, por um conselho de acompanhamento, constituído na dependência da Assembleia da República e percebem remuneração correspondente ao escalão mais elevado da categoria de assessor principal da carreira técnica do regime geral da função pública – artigos 24.º, 25.º, 28.º e 65.º;

g) O juiz de paz decide de acordo com a lei ou de acordo com a equidade, se, neste caso, as partes nisso concordarem e o valor da causa não exceder metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância – artigo 26.º;

h) Podem ser partes em processos instaurados em julgados de paz pessoas singulares, com capacidade judiciária, ou colectivas, sem prejuízo do disposto, quanto a estas, na alínea a), do n.º 1, do artigo 9.º – artigo 37.º;

i) Nos julgados de paz, as partes têm de comparecer pessoalmente, podendo fazer-se acompanhar por advogado, advogado estagiário ou solicitador, sendo, no entanto, obrigatória esta assistência quando a parte seja cega, surda, muda, analfabeta, desconhecedora da língua portuguesa ou, se por qualquer outro motivo, se encontrar numa posição de manifesta inferioridade e ainda na fase de recurso, se a ela houver lugar – artigo 38.º;

j) Suscitando as partes um incidente processual, o juiz de paz remete o processo para o tribunal judicial competente, para que siga os seus termos, sendo aproveitados os actos processuais já praticados – artigo 41.º;

l) As citações podem ser efectuadas por via postal, podendo, em alternativa, ser feitas pessoalmente, pelo funcionário; as notificações podem ser efectuadas pessoalmente, por telefone, telecópia ou via postal e poderão ser dirigidas para o domicílio ou, se for do conhecimento da secretaria, para o local de trabalho do demandado – artigo 46.º, n.os 1 e 3;

m) Não se admite a citação edital e não há lugar à expedição de cartas rogatórias e precatórias ‑ artigo 46.º, n.os 2 e 4;

n) A contestação pode ser apresentada por escrito ou verbalmente, caso em que será reduzida a escrito pelo funcionário, no prazo de 10 dias a contar da citação, não havendo lugar à prorrogação do prazo para a sua apresentação – artigo 47.º, n.os 1 e 2;

o) Na fase de mediação (de natureza facultativa, como decorre do artigo 49.º, n.º 1), as pessoas colectivas devem fazer-se representar por mandatários com poderes especiais para desistir, confessar ou transigir, podendo as partes ser assistidas por advogados, peritos, técnicos ou outras pessoas nomeadas – artigo 53.º, n.os 4 e 5;

p) Quando o demandante, tendo sido regularmente notificado, não comparecer no dia da audiência de julgamento nem apresentar justificação no prazo de três dias, considera-se tal falta como desistência do pedido; quando o demandado, tendo sido regularmente citado, não comparecer, não apresentar contestação escrita nem justificar a falta no prazo de três dias, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor – artigo 58.º, n.os 1 e 2;

q) Até ao dia da audiência de julgamento devem as partes apresentar as provas que reputem necessárias ou úteis, não podendo cada uma oferecer mais de cinco testemunhas, as quais não são notificadas, incumbindo às partes apresentá-las na audiência de julgamento – artigo 59.º;

r) Cabe recurso, com efeito meramente devolutivo e regime de agravo, das sentenças proferidas nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância – artigo 62.º;

s) É subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com o disposto na Lei n.º 78/2001, o Código de Processo Civil, com excepção dos artigos 290.º e 501.º a 512.º-A – artigo n.º 63.º;

t) O Conselho de Acompanhamento da criação e instalação dos julgados de paz, que funciona na dependência da Assembleia da República, é constituído por uma personalidade designada pelo Presidente da Assembleia da República, que preside, por um representante de cada Grupo Parlamentar representado na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, e por tal Comissão indicado, por um representante do Ministério da Justiça, por um representante do Conselho Superior da Magistratura e por um representante da Associação Nacional de Municípios Portugueses – artigo 65.º;

u) As acções pendentes à data da criação e instalação dos julgados de paz seguem os seus termos nos tribunais onde foram propostas – artigo 67.º


2.4. O projecto legislativo a que se fez referência impõe, ainda, outros destaques, pelo seu carácter distintivo face à lei que veio a ser aprovada.

O primeiro relativo à previsão do estatuto do juiz, do Ministério Público e dos mandatários judiciais nestes tribunais. O segundo respeitante à possibilidade de os tribunais de competência específica preexistentes à implantação dos julgados de paz poderem perder parte da sua competência que passaria a ser exclusiva destes,[14] não havendo competências alternativas, porquanto o julgado de paz apenas teria a competência que não fosse detida pelos tribunais de competência específica territorialmente competentes. Ficava ressalvado que os processos pendentes nos tribunais de competência específica referidos aí se manteriam, apesar das alterações de competência[15].

Em contraposição, na Lei n.º 78/2001 não se encontra qualquer referência ao Ministério Público e nela apenas é dado realce ao estatuto do juiz e dos mediadores.

A Lei n.º 78/2001 também não contempla qualquer regra que consagre inequivocamente a competência exclusiva ou alternativa dos julgados de paz. Quanto à subsistência da actual norma do artigo 67.º, similar às dos artigos 5.º, n.º 6 e 6.º, n.º 4, do Projecto, dela não decorrem consequências relevantes a favor da tese da exclusividade, como veremos adiante.


2.5. CARDONA FERREIRA considera os julgados de paz como «uma via alternativa de equidade (em sentido lato) que pode, e deve, constituir um meio pessoalizado de Justiça, que procure a conciliação, que tenda a evitar e eliminar conflitos»[16].

Para JOEL PEREIRA os julgados de paz são «estruturas de mediação e conciliação, em alternativa aos tribunais comuns[17].

A doutrina e alguma jurisprudência[18] tem, no entanto, vindo a sustentar, embora de forma não categórica, a competência exclusiva dos julgados de paz.

CARDONA FERREIRA não é explícito quando afirma, em anotação ao artigo 9.º da Lei n.º 78/2001[19], que «[e]ste normativo é fundamental e tipifica, em exclusividade, adentro das acções declarativas, aquelas que os julgados de paz têm competência material para apreciar e decidir».

E é ainda dubitativamente que se pronuncia, em trabalho publicado no Boletim da Ordem de Advogados[20], ao escrever que, em sua opinião, a competência dos julgados de paz «não é optativa, mas, sim, vinculativa, ou seja, onde houver julgados de paz e na medida das suas competências, as respectivas acções devem ser propostas nos Julgados de Paz e não nos Tribunais comuns».

Também ANA SOARES DA COSTA e MARTA PIMPÃO SAMÚDIO LIMA[21] consideram que «[a] Lei dos Julgados de Paz estabelece que os Julgados de Paz têm competência exclusiva relativamente às matérias referidas no artigo 9.º da LJP». É idêntica a posição perfilhada por JOÃO MIGUEL COELHO[22].

E, no mesmo sentido se pronunciou a Relação do Porto, no acórdão de 21 de Fevereiro de 2005[23].

Finalmente JOEL PEREIRA[24] fala em competência «semi- ‑exclusiva», com base nos artigos 211.º da Constituição da República Portuguesa e 66.º do Código de Processo Civil, nos seguintes termos:

«A competência dos julgados de paz nas matérias estatuídas no art.º 9.º da LJP, cujo valor não exceda a alçada do Tribunal de Primeira Instância é exclusiva aquando da instauração da acção, sendo obrigatória a interposição da providência nos julgados de paz, não tendo a parte a faculdade de escolher entre a instauração no julgado de paz e no Tribunal Judicial, na medida em que a competência deste é apenas quando a competência não pertença a outra ordem de jurisdição.

«Ainda que a competência seja exclusiva, de início, deixa de o ser a partir do momento em que seja alterado o valor da causa para valor superior à alçada do Tribunal Judicial de Primeira Instância, ou seja suscitado um incidente da instância (art.º 41.º LJP) que implique a remessa do processo ao Tribunal Judicial».

As dúvidas sobre o entendimento em questão tem levado a orientações divergentes da jurisprudência de que dá nota um recente artigo de opinião, publicado no jornal «O Primeiro de Janeiro»[25]. Também o Conselho de Acompanhamento dos Julgados de Paz, no seu relatório de Junho/Julho de 2003, manifesta a necessidade de clarificação da competência dos julgados de paz, por forma a evitar que as suas acções sejam propostas nos tribunais judiciais.

De facto, o Conselho considera o julgado de paz como «Meio Alternativo à Justiça Comum” e refere, como um dos «grandes problemas que não têm viabilizado uma maior procura dos Julgados de Paz», a falta de «clarificação da competência exclusiva e não meramente optativa», reconhecendo que «a não suficiente explicitação desse pormenor e a inexistência de despacho liminar na generalidade de processos dos Tribunais Judiciais concorrem para a possibilidade de serem propostas acções, em tribunais judiciais, que competiriam aos Julgados de Paz»[26].


2.6. Parece bem frágil a base de sustentação do entendimento que se apresenta como prevalecente.

Os argumentos tirados dos trabalhos preparatórios revestem-se de valor irrelevante.

O grupo parlamentar do PCP, visava, com os projectos que apresentou, a instituição e instalação dos julgados de paz[27]. De tal modo, pretendia-se descongestionar os tribunais judiciais e proporcionar aos cidadãos uma justiça mais célere, próxima e menos onerosa.

Sem que isso fosse assumido como essencial, o projecto refere-se aos julgados de paz como tribunais de 1.ª instância[28] e atribui-lhes uma competência exclusiva e residual[29].

Porém, esta questão da competência exclusiva nunca foi erigida em elemento nuclear da nova organização, não foi especificamente discutida, nem se adoptaram alterações ao Código de Processo Civil ou à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais[30] (decorrentes do Projecto n.º 82/VIII ou outras) que possam ser tidas como contributo interpretativo.

Também o texto final adoptado, que se afastou, sem justificação, do regime de competência exclusiva e residual que constava do projecto, não fornece qualquer apoio hermenêutico sobre a intenção legislativa.

Apenas se nos oferece dizer que, na declaração de voto final, um deputado do Partido Social Democrata (PSD) alertou para o facto de «ser necessário proceder rapidamente a alterações ao Código de Processo Civil e à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais», o que deixa a ideia da existência de um conflito ou da necessidade de clarificação.

Outro deputado, este do Partido Popular (CDS-PP), em idêntica declaração de voto, parece favorecer a tese da alternatividade dos julgados de paz, ao referir que «os julgados de paz representam, nesta sua nova feição, uma inovação na forma de administração judicial, se bem que esta não seja a palavra exacta porque eles não são tribunais judiciais (…) estão fora dos tribunais judiciais mas vão ser um modo de realização da justiça» e que «este modo de realização da justiça (…) apela mais à responsabilidade das partes do que propriamente ao poder soberano que o Estado tem para decidir as causas»; e acrescenta que «competirá às partes dizer se querem rapidamente pôr termo ao litígio ou se querem arrastá-lo através das formas tradicionais da justiça dos tribunais»[31].

Nem sequer nas alterações entretanto introduzidas na Lei de Organização e de Funcionamento dos Tribunais Judiciais (doravante LOFTJ) ou no Código de Processo Civil se introduziu qualquer norma de onde se possa inferir a ideia da competência exclusiva.


2.7. Será sobretudo a análise da lei que nos permitirá concluir num ou noutro sentido.

Em primeiro lugar, não é pelo facto de os artigos 8.º a 14.º da Lei n.º 78/2001 estabelecerem a competência dos julgados de paz que se pode, sem mais, sustentar a exclusividade dessa competência.

Tão-pouco o artigo 67.º da Lei n.º 78/2001 implica tal competência exclusiva. A especificidade da tramitação processual nos julgados de paz justifica que não se opere a transferência de processos que já corriam termos nos tribunais judiciais. De resto, esta regra é normal na generalidade dos casos em que ocorrem alterações de competência material ou territorial, e não admira que a mesma seja adoptada, se houver, como hipótese a ponderar no caso presente, mais de uma instância de composição de conflitos competente.

A ideia da exclusividade está igualmente arredada em duas normas do diploma que temos vindo a analisar.

São elas as dos artigos 41.º e 59.º, n.º 3.

Dispõe o primeiro:
«Artigo 41.º
Incidentes
Suscitando as partes um incidente processual, o juiz de paz remete o processo para o tribunal judicial competente, para que siga os seus termos, sendo aproveitados os actos processuais já praticados.»

E reza o segundo:
«Artigo 59.º
Meios probatórios
1 – (…).
2 – (…).
3 - Requerida a prova pericial, cessa a competência do julgado de paz, remetendo-se os autos ao tribunal competente para aí prosseguirem os seus termos, com aproveitamento dos actos já praticados.»

Estas disposições favorecem – segundo julgamos ‑ a tese de que a competência dos julgados de paz é alternativa dos tribunais judiciais, pelo que os processos devem transitar para estes sempre que sejam suscitados incidentes processuais que o processo próprio daqueles não comporte ou seja requerida prova pericial. Não faz sentido que os tribunais judiciais, inicialmente incompetentes, adquiram competência, apenas quando sejam suscitados incidentes não admissíveis no processo dos julgados de paz ou seja requerida prova pericial.

Também não favorece a tese da exclusividade a regra do artigo 66.º do Código de Processo Civil, uma vez que a aplicação dessa norma deriva da falta de uma norma atributiva de competência a outro tribunal. Pelo contrário, no caso vertente, o que se discute é a existência de uma norma atributiva de competência a um tribunal judicial e outra atributiva de competência aos julgados de paz.

O reconhecimento de que dois tribunais (um julgado de paz e um tribunal judicial) têm idêntica competência material, não implica qualquer entorse aos princípios gerais, uma vez que pertencem a estruturas jurisdicionais diferentes[32].

A actual Lei tem carácter experimental, como resulta claramente dos seus artigos 64.º a 66.º. A não consagração nela, de forma expressa, da competência exclusiva dos julgados de paz e a inércia legislativa, apesar das tomadas de posição do Conselho de Acompanhamento, no sentido de isso ser posto em letra de lei, apontam também, em nosso entender, no sentido oposto.

A exclusividade não se mostra isenta de dificuldades, como se refere no artigo de opinião atrás citado[33] (particularmente em sede de acidentes de viação, cumprimento de obrigações pecuniárias, indemnização por dano, entrega de móveis, acções possessórias, usucapião e acessão), não sendo de somenos a questão da falta de previsão da representação do Estado.

Daí que se nos afigure mais defensável a tese da competência optativa dos julgados de paz, à luz do actual quadro jurídico.

IV.
Outra questão prende-se com a possibilidade de o Estado poder ser demandante ou demandado.

Sobre as partes dispõe o artigo 37.º da Lei n.º 78/2001:

«Nos processos instaurados nos julgados de paz, podem ser partes pessoas singulares, com capacidade judiciária, ou colectivas, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º»[34]

Não suscita, pois, qualquer dúvida, a afirmação de que, nos julgados de paz, podem ser partes, quer as pessoas singulares (desde que dotadas de capacidade judiciária), quer as pessoas colectivas. A estas, contudo, está vedado a obtenção do cumprimento de obrigações, cujo objecto seja uma prestação pecuniária, desde que delas sejam ainda, ou tenham sido originalmente, credoras. Com esta restrição relativa às pessoas colectivas visa-se evitar o bloqueio dos julgados de paz, por parte de pessoas jurídicas que, sem dificuldades, logram satisfazer as suas pretensões através dos tribunais judiciais e, principalmente, do regime de injunção[35].

Ora, «o Estado é uma pessoa colectiva de direito público, sendo, aliás, “a primeira das pessoas colectivas”(x8[36].

Assim, apesar de inexistir na lei qualquer expressa referência à possibilidade de o Estado ser parte nos processos a correr termos nos julgados de paz, tal possibilidade decorre, naturalmente, da sua natureza de pessoa colectiva.

«Diferente entendimento significaria que o legislador teria querido privilegiar o Estado Português, distinguindo-o das pessoas singulares (cidadãos portugueses, estrangeiros ou apátridas) e das pessoas colectivas privadas. Pretendendo o Estado aproximar a justiça dos cidadãos, deve ser o primeiro a dar o exemplo e aceitar ser demandante ou demandado na mesma jurisdição em que reconduz obrigatoriamente os cidadãos e demais pessoas colectivas, em caso de litígio no âmbito das matérias e do valor fixado para os julgados de paz.»[37].

Aliás, nada estando estabelecido na LJP, aplica-se subsidiariamente o Código de Processo Civil, nos termos do artigo 63.º da LJP e a possibilidade de o Estado ser parte activa ou passiva, à luz deste diploma, não sofre contestação.

«Na polissemia do conceito Estado destacam-se três acepções: na acepção internacional, está em causa o “Estado soberano, titular de direitos e obrigações na esfera internacional”; na acepção constitucional, o Estado surge como ”comunidade de cidadãos que, nos termos do poder constituinte que a si próprio atribui, assume uma determinada forma política para prosseguir os seus fins nacionais”; na acepção administrativa, o Estado é “a pessoa colectiva que, no seio da comunidade nacional, desempenha, sob a direcção do Governo, a actividade administrativa” (x9)[38]».

É nesta acepção de «Estado-Administração» que entendemos que o Estado pode ser parte nos julgados de paz, quer na sua veste de titular de direito privado, quer como ente público.

V.
1. É chegado o momento de abordar a questão da natureza, competências e regime de intervenção do Ministério Público[39].

A Constituição dedica ao Ministério Público os artigos 219.º e 220.º, que constituem o capítulo IV do título V, consagrado aos Tribunais.

O artigo 219.º, com a epígrafe funções e estatuto, estabelece:

«1. Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
2. O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei.
3. (...)
4. (...)
5. (...)»

Ao Ministério Público compete, pois, segundo a Constituição, entre o mais, a representação do Estado e a defesa dos interesses que a lei determinar. A função referida em segundo lugar consiste em «defender os interesses de determinadas pessoas mais carecidas de protecção, designadamente, verificados certos requisitos, os menores, os ausentes, os trabalhadores, etc.»[40].

Na «constituição judiciária» – na impressiva expressão de GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA – o Ministério Público «surge como um órgão do poder judicial ao qual estão cometidas as funções de representação do Estado, do exercício da acção penal, da defesa da legalidade democrática e dos demais interesses determinados por lei»; a Constituição «não configurou o Ministério Público como órgão de natureza administrativa, dependente do Governo, mas sim como órgão independente, integrado na organização judicial, com estatuto próprio e autonomia institucional» e dotado de governo próprio através da Procuradoria-Geral da República [41].

CUNHA RODRIGUES[42] considera o conceito de órgão de justiça como «aquele que melhor exprime a posição do Ministério Público no processo penal e também a sua natureza»; reconhece, todavia, a necessidade de equacionar problemas de qualificação resultantes de outras atribuições que, não obstante a sua variedade e amplitude, acabam por se reconduzir «à realização da justiça ou à promoção e defesa da legalidade e, em qualquer caso, de uma forma vinculada e sujeita a regras estritas de estatuto».

«O que é decisivo na actividade do tribunal e na actividade do Ministério Público – afirma o mesmo autor[43] – é o plano de actuação e os fins a que uma e outra estão pré-ordenadas e se dirigem.

«Ora, tanto o plano como os fins de uma e outra actividade são intrinsecamente judiciais, porque, estando sujeitos a um estatuto definido para o poder judicial, operam (melhor, cooperam), numa relação de necessidade, com a realização última das atribuições dos tribunais.

«Concluiremos, assim, no sentido de que o Ministério Público é um órgão judicial, integrado, com autonomia, no poder judicial, embora dotado de atribuições que não são materialmente jurisdicionais nem se confinam às exercidas pelos tribunais.»

O Ministério Público tem sido também classificado como órgão autónomo da Administração da Justiça e órgão do Estado de administração da Justiça, a que cabe colaborar com o poder judicial na realização do Direito[44].

Mais neutra é a qualificação do Ministério Público como órgão do Estado, designação utilizada nos primeiros diplomas orgânicos do Ministério Público[45].


2. O estatuto do Ministério Público, as suas competências e o regime de intervenção são concretizados na lei ordinária.

O Estatuto do Ministério Público (EMP)[46] dispõe nos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, alínea a), que o Ministério Público representa o Estado e os incapazes, tendo então intervenção principal nos processos [artigo 5.º, n.º 1, alíneas a) e c)][47].

Passemos à análise do regime de intervenção do Ministério Público, constante dos artigos 4.º a 6.º do Estatuto:
«Artigo 4.º
Representação do Ministério Público

1 – O Ministério Público é representado junto dos tribunais:
a) No Supremo Tribunal de Justiça, no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal Administrativo, no Supremo Tribunal Militar e no Tribunal de Contas, pelo Procurador-Geral da República;
b) Nos tribunais de relação e no Tribunal Central Administrativo, por procuradores-gerais-adjuntos;
c) Nos tribunais de 1.ª instância, por procuradores da República e por procuradores-adjuntos.
2 – O Ministério Público é representado nos demais tribunais nos termos da lei.
3 – (...)
«Artigo 5.º
Intervenção principal e acessória

1 – O Ministério Público tem intervenção principal nos processos:
a) Quando representa o Estado;
b) Quando representa as regiões autónomas e as autarquias locais;
c) Quando representa incapazes, incertos ou ausentes em parte incerta;
d) Quando exerce o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de carácter social;
e) Quando representa interesses colectivos ou difusos;
f) Nos inventários exigidos por lei;
g) Nos demais casos em que a lei lhe atribua competência para intervir nessa qualidade.
2 – Em caso de representação de região autónoma ou de autarquia local, a intervenção principal cessa quando for constituído mandatário próprio.
3 – Em caso de representação de incapazes ou de ausentes em parte incerta, a intervenção principal cessa se os respectivos representantes legais a ela se opuserem por requerimento no processo.
4 – O Ministério Público intervém nos processos acessoriamente:
a) Quando, não se verificando nenhum dos casos do n.º 1, sejam interessados na causa as regiões autónomas, as autarquias locais, outras pessoas colectivas públicas, pessoas colectivas de utilidade pública, incapazes ou ausentes, ou a acção vise a realização de interesses colectivos ou difusos;
b) Nos demais casos previstos na lei.
«Artigo 6.º
Intervenção acessória

1 – Quando intervém acessoriamente, o Ministério Público zela pelos interesses que lhe estão confiados, promovendo o que tiver por conveniente.
2 – Os termos da intervenção são os previstos na lei de processo.»

No artigo 5.º da LOFTJ, estabelece-se que o Ministério Público «é o órgão encarregado de, nos tribunais judiciais, representar o Estado, exercer a acção penal e defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar».

O Código de Processo Civil, ao tratar da personalidade e capacidade judiciária (Secção I, do Capítulo II, do Título I, do Livro I), contém disposições específicas sobre a representação dos incapazes e do Estado pelo Ministério Público:
«Artigo 15.º
Defesa do ausente e do incapaz pelo Ministério Público
1 – Se o ausente ou o incapaz, ou os seus representantes, não deduzirem oposição, ou se o ausente não comparecer a tempo de a deduzir, incumbe ao Ministério Público a defesa deles, para o que será citado, correndo novamente o prazo para a contestação.
2 – Quando o Ministério Público represente o autor, será nomeado um defensor oficioso.
3 – Cessa a representação do Ministério Público ou do defensor oficioso, logo que o ausente ou o seu procurador compareça, ou logo que seja constituído mandatário judicial do ausente ou do incapaz.»
«Artigo 17.º
Representação de incapazes e ausentes pelo Ministério Público

1 – Incumbe ao Ministério Público, em representação de incapazes e ausentes, intentar em juízo quaisquer acções que se mostrem necessárias à tutela dos seus direitos e interesses.
2 – A representação cessa logo que seja constituído mandatário judicial do incapaz ou ausente, ou quando, deduzindo o respectivo representante legal oposição à intervenção principal do Ministério Público, o juiz, ponderado o interesse do representado, a considere procedente.»

Este último dispositivo vem – como afirma LOPES DO REGO –, «em complemento do preceituado no art. 15.º, projectar explicitamente no domínio do processo civil as amplas competências atribuídas pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, ao M. P., enquanto representante de incapazes e ausentes – estando perfeitamente assente a possibilidade de, com base no preceituado no art. 5.º, n.º 1, alínea c), os respectivos magistrados proporem quaisquer acções em representação (“intervenção principal”) de incapazes e ausentes»[48].

O artigo 20.º reporta-se à representação do Estado:

«1 – O Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que este esteja constituído.
2 – Se a causa tiver por objecto bens ou direitos do Estado, mas que estejam na administração ou fruição de entidades autónomas, podem estas constituir advogado que intervenha no processo juntamente com o Ministério Público, para o que serão citadas quando o Estado seja réu; havendo divergência entre o Ministério Público e o advogado, prevalece a orientação daquele.»

A possibilidade, prevista no n.º 1 do artigo anterior[49], de o Estado-Administração ser representado – nas acções que tenham por objecto direitos de natureza privada – por mandatário judicial constituído (implicando, consequentemente, a cessação da intervenção principal do Ministério Público, que passará a intervenção acessória, nos termos da alínea a) do n.º 4 do art. 5.º do EMP), veio a ser consagrada na sequência da orientação doutrinal definida pela Comissão Constitucional em 1982[50], do seguinte teor:

«A representação do Estado em juízo pelo Ministério Público apenas se justifica por razões de pragmatismo, não se descobrindo fundamento material para uma reserva de tal competência. Ao invés, o que a autonomia do Ministério Público poderia reclamar seria que lhe não cometessem essas funções de representação;
O art. 224.º, n.º 1[51], da Constituição, ao cometer ao Ministério público a função de representar o Estado em juízo pretende significar, tão só, que junto dos órgãos passivos e independentes que formam a Justiça, têm de estar presentes órgãos activos dos interesses a cargo da Administração;
O Ministério Público é, assim, neste domínio, “um corpo de advogados do Estado”;
O que aqui está em causa é, tão-somente, a previsão de um representante permanente do Estado, de alguém que, sempre que necessário, assegure a defesa dos seus direitos em juízo;
Essa representação não foi, contudo, pensada em termos de monopólio;
Em matéria de reserva de competência, o máximo que se poderá afirmar é que o legislador não pode privar, totalmente, o Ministério Público das funções de representação do Estado em juízo, cometendo-as, por inteiro, a outras entidades;
A representação do Estado pelo Ministério Público terá que constituir sempre a regra;
Pode, por isso, muito bem aceitar-se que, em certos domínios, essa função de representação do Estado seja atribuída, em exclusivo, a entidades diferentes do Ministério Público»[52].

O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)[53] dedica ao Ministério Público o capítulo VII (artigos 51.º e 52.º) do título I, epigrafado de Tribunais administrativos e fiscais.

O artigo 51.º (Funções) comete ao Ministério Público a representação do Estado e o artigo 52.º define o regime da representação do Ministério Público em termos idênticos aos constantes do EMP e que já conhecemos[54]-[55].

VI.

Ao Ministério Público compete, portanto, nos termos da lei, representar o Estado[56].

«Actua em representação de outrem (representado) aquele (representante) que realiza um ou mais actos jurídicos em nome do representado.

«A representação pode ser legal (quando resulta da lei) ou voluntária (se surge no exercício de um mandato voluntariamente deferido ao representante).

«Ademais, fala-se em representação orgânica para qualificar situações em que a representação é assumida por um órgão do representado.

«Na “representação orgânica – ao contrário do que se verifica na representação voluntária e na legal – não existe uma relação entre sujeitos: representante e representado. Há só um sujeito: o representado” (x10)».

«É na acepção de Estado-Administração, a que já atrás nos referimos, que o termo Estado é utilizado nas disposições anteriormente citadas, que atribuem ao Ministério Público a representação do Estado, designadamente, nos artigos 219.º, n.º 1, da Constituição, 1.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do EMP, 5.º da LOFTJ, 20.º do Código de Processo Civil, e 51.º do ETAF (x11).»

O Ministério Público é, pois, um órgão do Estado a quem compete a sua representação em juízo, nos tribunais portugueses [57], «sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio» (n.º 1 do artigo 20.º do Código de Processo Civil).




VII.

1. Por fim interessa determinar se a representação do Estado cabe ao Ministério Público em qualquer tribunal e também especificamente nos julgados de paz.

Tal representação ocorre nos tribunais elencados no artigo 4.º do EMP, ou seja os tribunais judiciais e também os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, o Tribunal de Contas e o Tribunal Constitucional.

Todavia, entre estes tribunais e os julgados de paz existem, obviamente, significativas diferenças. E o que verdadeiramente releva, quanto à questão que nos ocupa, é, por um lado, a natureza destes tribunais e, por outro, o quadro legal de competências atribuídas ao Ministério Público.


2. Na perspectiva da Constituição, como vimos, os julgados de paz têm existência facultativa. Esta característica não possui, porém, particular relevo, merecendo maior destaque a natureza e o concreto perfil que os julgados de paz assumem no âmbito da administração da justiça[58].

Os julgados de paz constituem, como vimos, um meio de resolução de conflitos jurídicos através de acordo das partes, homologado pelo juiz de paz ou por decisão proferida por este, em qualquer caso com valor de sentença, e que, por isso, se impõe às partes.

São tribunais, com carácter permanente, mas a sua actuação visa promover a participação cívica dos interessados e estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes, sendo os respectivos procedimentos concebidos e orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual (artigo 2.º da LJP).

Aos juízes de paz, cuja admissão depende da reunião de um conjunto de requisitos cumulativos e da submissão a um processo de recrutamento e selecção, não lhes são, contudo, exigidas características e qualificações de nível igual ao que se pede na selecção dos juízes dos tribunais judiciais, nem lhes é atribuído o estatuto destes, mas apenas um estatuto de funcionário público, com algumas marcas distintivas decorrentes da natureza da função[59].

Por outro lado, resulta do artigo 2.º, n.º 1, da LJP que a actuação dos julgados de paz é vocacionada para permitir a participação cívica dos interessados, pelo que os cidadãos são convocados a intervir pessoalmente na resolução do litígio, acompanhados por um serviço de mediação, que permita a obtenção do acordo das partes[60].

Noutro ponto se distingue a actuação do juiz de paz dos juízes dos tribunais judiciais. Em primeiro lugar, este tem a obrigação de, previamente a proferir decisão, procurar obter a conciliação das partes, ainda que não tenham resultado os serviços de pré-mediação e de mediação. Em segundo lugar, decidirá segundo a lei ou segundo a equidade, se neste caso as partes assim acordarem e o valor da acção não exceder metade do valor da alçada do tribunal de primeira instância (artigo 26.º, n. os 1 e 2 da LJP).

Com estas características, e não obstante serem estruturalmente diversos dos tribunais de existência obrigatória, os julgados de paz são considerados verdadeiros e próprios tribunais e participam do exercício da função jurisdicional, tal como atrás foi definida.

Todavia, sendo verdadeiros tribunais, são, em outros aspectos além dos estruturais, tribunais diferentes dos demais.

Constituem, de acordo com a sua natureza e a sua génese, um meio alternativo de resolução de litígios, estando especialmente vocacionados para dirimir conflitos relativos a interesses disponíveis, com base em fórmulas simples, céleres e informais e em parâmetros de decisão não estritamente legais.

Nessa medida, não se coaduna, porventura, com a sua natureza (ou não é imprescindível, tal como se prescindiu da necessidade de juízes togados) a inserção nos julgados de paz de um órgão de justiça como o Ministério Público para representar o Estado.

Isto sem embargo de, como deixámos dito supra, o Estado poder ser demandado e demandante nos julgados de paz.

Apesar de, por regra, competir ao Ministério Público a representação judiciária do Estado, a Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, não contém, como se realçou, qualquer referência ao Ministério Público.

A omissão pode não ser, em si mesma, decisiva.

Refira-se, todavia, que no direito comparado os diplomas sobre julgados de paz quase não mencionam o Ministério Público [61]-[62].

E, entre nós, a não previsão de intervenção do Ministério Público na Lei dos Julgados de Paz deriva antes de mais da alteração do projecto de lei que lhe deu origem, porquanto neste era prevista a intervenção do Ministério Público (representante, que não seja magistrado de carreira) em processo penal (competência igualmente não mantida)[63].

Cremos, em suma, que a própria natureza dos julgados de paz, enquanto meio alternativo (ao processo judicial) de resolução de conflitos, não deixa de oferecer uma compreensível resistência à participação do Ministério Público nesses tribunais.


3. Por uma outra via – a da competência – poderemos, de igual modo, acabar por concluir que não compete ao Ministério Público a representação do Estado nos julgados de paz[64].

«As pessoas colectivas públicas (como o Estado) prosseguem determinados fins (atribuições) mediante a utilização de poderes funcionais (competência).

«Por atribuições, entende-se «os fins ou interesses que a lei incumbe as pessoas colectivas públicas de prosseguir».

«Competência é «o conjunto de poderes funcionais que a lei confere para a prossecução das atribuições das pessoas colectivas públicas».

«Por regra, nas pessoas colectivas públicas as atribuições referem-se à pessoa colectiva em si mesma, enquanto a competência se reporta aos órgãos. A lei especificará, portanto, as atribuições de cada pessoa colectiva e, noutro plano, a competência de cada órgão[65].

«A delimitação da competência obedece ao princípio da legalidade da competência, princípio de que decorrem importantes corolários, designadamente o de que a competência não se presume (x12): ”isto quer dizer que só há competência quando a lei inequivocamente a confere a um dado órgão” (x13)».

A organização e competência do Ministério Público constituem matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, devendo, por isso constar de lei ou de decreto-lei autorizado [artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição].

A atribuição da competência ao Ministério Público para representar organicamente o Estado em juízo radica em razões de ordem prática e financeira[66], como este Conselho Consultivo já sustentou em anteriores pareceres.

Nos tribunais estaduais, integrados na organização judiciária do Estado, o Ministério Público é representado pelo Procurador-Geral da República, que pode fazer-se substituir por procuradores-gerais-‑adjuntos (no Supremo Tribunal de Justiça, no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal de Contas), por procuradores-gerais-adjuntos (nos tribunais da Relação e nos Tribunais Centrais Administrativos), por procuradores da República nos tribunais administrativos de círculo e nos tribunais tributários) e por procuradores da República e procuradores-adjuntos (nos tribunais judiciais de 1.ª instância) (artigos 4.º, n.º 1, do EMP e 52.º do ETAF).

A esses magistrados, que exercem funções nesses tribunais, compete, quando for caso disso, assumir aí a representação do Estado.

O n.º 2 do artigo 4.º do EMP acrescenta que o Ministério Público «é representado nos demais tribunais nos termos da lei».

A estatuição da representação do Ministério Público «nos restantes tribunais» sugere a ideia de que a mesma abrange todos os tribunais, também, portanto os julgados de paz; porém, logo se acrescenta «nos termos da lei», quer dizer, nos específicos termos consagrados na lei para as diversas categorias ou espécies de tribunais.

Sucede que a lei não prevê que junto dos julgados de paz exerçam funções magistrados do Ministério Público, tal como não prevê que o Ministério Público tenha representação, ainda que pontual, nesses tribunais[67].

Ora, a representação do Estado pelo Ministério Público nos julgados de paz, pressuporia a existência de lei que lhe atribuísse essa competência.

Como essa lei, aparentemente, não existe, somos levados a concluir, de imediato, que o Ministério Público não representa o Estado junto dos julgados de paz.
4. Este entendimento é, indiscutivelmente, o de Cardona ferreira[68].

Porém, não se pode perder de vista o que dispõe o artigo 63.º da LJP, cujo teor é o seguinte:

«É subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com o disposto na presente lei, o Código de Processo Civil, com excepção dos artigos 290.º e 501.º a 512.º-A.»

O que naturalmente nos levaria à aplicabilidade no processo dos julgados de paz das normas dos artigos 15.º, 16.º, 17.º e 20.º do Código de Processo Civil[69].

É certo que no que concerne à «parte» que «seja cega, surda, muda, analfabeta, desconhecedora da língua portuguesa» ou, que, «por qualquer outro motivo, se encontrar em situação de manifesta inferioridade» o artigo 38.º da LJP, cuja epígrafe é «Representação» exige a assistência por advogado. Poderia pensar-se que estava encontrada uma fórmula que prescindiria, expressa ou implicitamente, do Ministério Público.

Porém, sempre subsistiriam as situações não cobertas por aqueles normativos, designadamente se o demandado é ausente ou incerto[70], se os representantes legais dos incapazes ou o representante processual, designado nos termos do citado artigo 38.º, se mantêm passivos, ou se o ausente não comparecer a tempo de deduzir oposição[71].

Defende CARDONA FERREIRA, coerentemente com o seu entendimento de que nos julgados de paz não há Ministério Público, que o artigo 15.º (n.º 2) do Código de Processo Civil deve aplicar-se analogicamente, pelo que, quando não for possível proceder-se à citação pessoal da parte, se deverá nomear defensor oficioso.

A aplicação das normas dos artigos 17.º[72] e 20.º do Código de Processo Civil neste tipo de processos é defendida, tal como a do artigo 15.º, por JOEL PEREIRA[73].

Este Autor sustenta ainda a intervenção do Ministério Público, como fiscal da legalidade, nos termos do citado Código por aplicação subsidiária do artigo 258.º do Código de Processo Civil.

Parece, porém, mais compatível com a coerência do sistema ter-se por justificada uma interpretação restritiva do artigo 63.º da LJP.

De facto, nos termos do citado normativo a remissão para o Código de Processo Civil, é feita com ressalva de aplicação das normas expressamente excepcionadas e do mais que «seja incompatível com o disposto na presente lei».

Haverá para este entendimento suficiente fundamentação?

Cremos que sim.

A remissão que constava no projecto era mais ampla que a que veio a ser acolhida na lei[74]. Nesta expressamente se excluiu a aplicação de várias normas do Código de Processo Civil. Porém, já o texto do projecto comportava um segmento de exclusão da aplicação subsidiária das normas que colidissem com as especialidades dos processos respectivos.

A não inclusão no texto da lei de qualquer referência ao Ministério Público tem toda a relevância, uma vez que no projecto apenas se previa um representante do Ministério Público, não magistrado[75], para efeitos do processo penal, competência que não se manteve.

Significativa é, também, a não participação de um representante do Ministério Público ou do respectivo Conselho Superior, no Conselho de Acompanhamento e a sua não audição para efeitos de criação de novos julgados de paz[76], em paridade com o Conselho Superior da Magistratura, embora possa encontrar-se algum sinal distintivo no facto de a lei atribuir funções a este Conselho na nomeação dos juízes de paz e ainda, porque, os julgados sempre são tribunais.

Aceita-se, pois, que a génese dos julgados de paz em Portugal, e mesmo a sua fisionomia no direito comparado, aponta para a intenção legislativa de não inserir o Ministério Público na organização e funcionamento dos julgados de paz.

Nesta perspectiva, teremos que concluir pela incompatibilidade da norma do artigo 20.º do Código de Processo Civil com a regulamentação dos julgados de paz. Logo, pela ausência de lei a definir em quem recai a representação do Estado nesses tribunais.

VIII.
Brevemente, uma vez que se reconheceu que o Estado pode ser parte nos julgados de paz, importa abordar a questão de saber quem o representa.

Vimos já que, na acepção restrita de Estado-Administração, o Estado é a pessoa colectiva que, no seio da comunidade nacional, desempenha, sob a direcção do Governo, a actividade administrativa.

O Governo é, nos termos do artigo 182.º da Constituição, «o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da Administração Pública».

O Governo é constituído pelo Primeiro-Ministro, pelos Ministros e pelos Secretários e Subsecretários de Estado (artigo 183.º, n.º 1).

A Constituição distribui a competência do Governo pelas áreas política, legislativa e administrativa (artigo 197.º, 198.º e 199.º).

No exercício de funções administrativas, compete, ao Governo, designadamente, dirigir os serviços e a actividade da administração directa do Estado, civil e militar, superintender na administração indirecta e exercer a tutela sobre esta e sobre a administração autónoma [artigo 199.º, alínea d)].

O exercício desta competência cabe ao Governo, ao Conselho de Ministros ou aos membros do Governo (artigos 199.º a 201.º).

A actuação relativa à defesa dos interesses do Estado em acções por ele ou contra ele intentadas nos tribunais integra-se na actividade administrativa do Governo.

A concreta questão de saber quem – ao nível governamental – assume a representação do Estado nos julgados de paz apenas caso a caso poderá ser respondida.

Em tese geral, reafirmando doutrina deste Conselho – parecer n.º 114/03 –, apenas se poderá dizer que, não se tratando de competência do Conselho de Ministros (cf. o artigo 200.º da Constituição, a contrario), ela não deixará de ser deferida – face à orgânica do Governo e dos diversos Ministérios – ou ao Primeiro-Ministro, ou ao Ministro da pasta ou, no caso de matérias relacionadas com vários ministérios, ao Ministro que o próprio Primeiro-Ministro designar.

IX.

Em conclusão:

1.ª – No actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz é optativa, relativamente aos tribunais judiciais, com competência territorial concorrente;

2.ª – O Estado-Administração pode ser parte em acções propostas nos julgados de paz, quer na sua veste de titular de direito privado, quer como ente público, quer como demandante, quer como demandado;

3.ª – A competência para o Ministério Público representar o Estado, nos termos do artigo 219.º da Constituição e dos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público reporta-se aos tribunais estaduais, designadamente aos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e fiscais;

4.ª – O Ministério Público não representa o Estado nos julgados de paz.





[1] Despacho de 11 de Janeiro de 2005.
[2] Ao longo deste parecer seguiremos de perto o parecer n.º 114/2003, e, nesta parte, textualmente.
x Para mais desenvolvimentos, v. ALFREDO SOVERAL MARTINS, Direito Processual Civil, 1.º volume, Fora do Texto, 1995, p. 31 e ss.; ALEJANDRO HUERGO LORA, La Resolución Extrajudicial de Conflictos en el Derecho Administrativo, Publicaciones del Real Colégio de España, Bolonia, 2000, pp. 17-19.
x1 SOVERAL MARTINS, ob. cit., p. 35
x2 São também figuras de heterocomposição a mediação e os bons ofícios (utilizados no direito internacional público, pelos quais um Estado terceiro procura evitar ou fazer cessar um conflito entre Estados) [cf. CLOTILDE CRISTINA VIGIL CURO, “Las Conciliaciones”, Revista de Derecho y Ciência Política, vol. 56 (N.º 1 – N.º 2), 1999, p. 106].
x3 SOVERAL MARTINS, ob. cit., pp. 49-50.
x4 Estivemos a seguir, muito de perto, o Parecer do Conselho Consultivo n.º 13/2003, de 15 de Maio de 2003, ponto VII (Diário da República, II Série, n.º 164, de 18 de Julho de 2003).

[4] Aprova a Lei Orgânica do Ministério da Justiça. Foi rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 7-P/2000 (Diário da República, I Série-A, n.º 201, 2.º Suplem., de 31 de Agosto).
[5] Aprova a orgânica da Direcção-Geral da Administração Extrajudicial. Foi objecto da Declaração de Rectificação n.º 9-G/2001 (Diário da República, I Série-A, n.º 77, Suplem., de 31 de Março).
x5 Parecer do Conselho Consultivo n.º 74/91, que neste ponto remete para AFONSO QUEIRÓ, Lições de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, p. 51.
[6] Esta disposição foi introduzida na revisão de 1989 (Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho).
[7] J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, p. 793.
x6 Ob. cit., p. 791.
x7 MARCELLO CAETANO, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, Coimbra, Coimbra, 1967, pp. 600-601.
[8] Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro.
[9] JOEL TIMÓTEO RAMOS PEREIRA, Julgados de Paz, Quid Juris, Lisboa, 2002, p. 35.
[10] CARDONA FERREIRA, Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 11.
[11] JOEL PEREIRA, ob. e loc. cit.
[12] MARCOS KEEL PEREIRA, A mediação nos Julgados de Paz no contexto da «Crise da Justiça», Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Working Paper n.º 7/02, p. 5.
[13] Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 77, de 9 de Junho de 2000, p. 3030.
[14] Cf. artigos 5.º, n.º 5, e 6.º, n.º 3, do Projecto.
[15] Cf. artigos 5.º, n.º 6, e 6.º, n.º 4, do Projecto.
[16] Ob. cit., p. 6.
[17] Ob. cit., p. 35.
[18] Nas bases de dados apenas se teve acesso ao acórdão da Relação do Porto a que adiante se faz expressa referência. Através de telecópia recebida do Conselho de Acompanhamento dos Julgados de Paz (de 22 de Abril de 2005) foi-nos referido que o Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto tem vindo a decidir pela competência exclusiva dos julgados de paz e, de igual modo, o Tribunal da Comarca de Vila Nova de Gaia, embora com menos regularidade. Em anexo, foram-nos remetidas três decisões (despacho do juiz de direito do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro, de 30 de Setembro de 2003, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Março de 2003, proferido no processo n.º 2054/02 e o já citado acórdão da Relação do Porto). Porém, a primeira decisão não aborda a questão da competência dos julgados de paz e a segunda só marginalmente o aflora, decidindo ser inadmissível o recurso, atento o valor da causa.
[19] Ob. cit., p. 29.
[20] CARDONA FERREIRA “Julgados de Paz – Cidadania e Justiça – Do passado, pelo presente, para o futuro”, Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 23, Novembro – Dezembro, p. 42-46.
[21] ANA SOARES DA COSTA e MARTA PIMPÃO SAMÚDIO LIMA, Julgados de Paz e Mediação – Um novo conceito de Justiça, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 2002, p. 159.
[22] JOÃO MIGUEL GALHARDO COELHO, Julgados de Paz e Mediação de Conflitos, Âncora Editora, p. 27.
[23] Proferido no processo n.º 0457289, inserto no respectivo sítio, na base de dados do ITIJ.
[24] Ob. cit., p. 56.
[25] Intitulado “Julgados de Paz… Uma ideia boa… Uma oportunidade perdida”, da autoria do advogado Amadeu Morais, publicado em 15 de Novembro de 2004, onde se discutem efeitos perversos da opção pela tese da competência exclusiva, desvirtuadora do aparente propósito legislativo de sentido contrário e se conclui pela necessidade de ser «elaborada legislação que esclareça de uma vez por todas se a competência em razão da matéria atribuída aos julgados de paz é exclusiva ou se deve ter-se como simples alternativa, não excludente da competência dos tribunais comuns».
[26] Publicado no sítio da Ordem dos Advogados (http://www.oa.pt).
[27] Cf. Preâmbulo do Projecto n.º 83/VIII.
[28] Ibidem.
[29] Cf. artigos 5.º, n.os 5 e 6, e 6.º, n.os 3 e 4.
[30] Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 7/99, de 16 de Fevereiro, e alterada pela Lei n.º 101/99, de 26 de Julho, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, e pela Lei n.º 105/2003, de 10 de Dezembro.
[31] Cf. DAR, I Série, n.º 89, de 1 de Junho de 2001, p. 3510.
[32] O artigo 12.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1977 (Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro) previa a possibilidade, desaparecida na Lei que a substituiu, de se constituírem, nas freguesias, tribunais de 1.ª instância, denominados julgados de paz, com competências idênticas às previstas no Decreto-Lei n.º 539/79.
[33] Cfr. nota n.º 23.
[34] A excepção refere-se a acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, cujo objecto seja uma prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva.
[35] Vide Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, Decreto-Lei n.º 383/99, de 23 de Setembro, e Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto.
x8 NEVES RIBEIRO, O Estado nos Tribunais, 1994, p. 34.
[36] JOEL PEREIRA, ob. cit., p. 131.
[37] Idem, pp. 131-132.
x9 DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 2.ª edição (5.ª Reimpressão), Almedina, pp. 211-212.
[38] Referência transcrita do parecer n.º 114/2003.
[39] Voltamos a acompanhar o parecer n.º 114/2003.
[40] GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., p. 830.
[41] J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora, 1991, p. 224.
[42] Entrada «Ministério Público», Dicionário Jurídico da Administração Pública, volume V, Lisboa, 1993, p. 541.
[43] Loc. cit., p. 542.
[44] Cf., com referências doutrinais, os Pareceres do Conselho Consultivo n.º 160/2001, de 26 de Setembro de 2003 (ponto II, 3.2.), e 131/2001, de 4 de Janeiro de 2002 (ponto 4.1.).
[45] Tanto na Lei n.º 39/78, de 5 de Julho, como na Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, antes da redacção da Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto.
[46] Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, alterada pelas Leis n.os 2/90, de 20 de Janeiro, 23/92, de 20 de Agosto, 10/94, de 5 de Maio, 33-A/96, de 26 de Agosto, 60/98, de 27 de Agosto (que passou a adoptar a designação de Estatuto do Ministério Público), e 143/99, de 21 de Agosto.
[47] No mesmo sentido, dispunham os artigo 1.º, 3.º, n.º 1, alínea a), e 5.º, n.º 1, alíneas a) e e), da Lei n.º 39/78, de 5 de Julho (primeira Lei Orgânica do Ministério Público) e, antes dela, os artigos 184.º, n.º 1, alínea a), e 185.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Estatuto Judiciário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44 278, de 14 de Abril de 1962.
[48] Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, p. 40.
[49] Redacção do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro.
[50] Parecer da Comissão Constitucional de 9 de Março de 1982 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 315, p. 107), ratificado pela Resolução do Conselho de Revolução n.º 57/82, Diário da República, 1.ª Série, de 5 de Abril de 1982.
[51] Actual artigo 219.º
[52] Cf. LOPES DO REGO (Comentários..., cit., p. 41), que adverte para a necessidade de a norma atributiva de funções de representação do Estado a entidade diversa do Ministério Público dever constar de lei ou decreto-lei autorizado, já que se trata de matéria – competência e atribuições do Ministério Público – abrangida pela reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição].
[53] Aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e alterado pelas Leis n.os 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, e 107-D/2003, de 31 de Dezembro; a Lei n.º 13/2002 foi objecto das Declarações de Rectificação n.os 14/2002 (Diário da República, I Série-A, n.º 67, de 20 de Março de 2002) e 18/2002 (Diário da República, I Série-A, n.º 86, de 12 de Abril de 2002).
[54] Acrescente-se tão-só que nos tribunais administrativos de círculo e nos tribunais tributários o Ministério Público é representado por procuradores da República [artigo 52.º, n.º 2, alínea c), do ETAF].
[55] Sobre o Ministério Público na jurisdição administrativa, v. WLADIMIR BRITO, Direito Processual Administrativo (Lições), Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho, 2004, pp. 110-115; e J. M. SÉRVULO CORREIA, “A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”, em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Volume I, Coimbra Editora, 2001, pp. 295 e ss.
[56] Acompanhamos de novo, parcialmente de forma textual, o parecer n.º 114/2003.
x10 Cf. ANTÓNIO DA COSTA NEVES RIBEIRO, O Estado nos Tribunais – Intervenção cível do Min. Público em 1.ª Instância, 2.ª edição (Texto revisto e actualizado), Coimbra Editora, 1994, pp. 28-30.
x11 Neste sentido, o Parecer do Conselho Consultivo n.º 74/91, ponto V, 2.2., e, por último e com maiores desenvolvimentos, os já referidos Pareceres n.os 131/2001 (5.2. a 5.4.) e 160/2001 (II, 3.2.). Sobre a representação do Estado pelo Ministério Público, v. também CARLOS LOPES DO REGO, “A intervenção do Ministério Público na área cível e o respeito pelo princípio da igualdade de armas”, em O Ministério Público, a Democracia e a Igualdade dos Cidadãos, Cadernos da Revista do Ministério Público, Edições Cosmos/Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, 2000, pp. 81 e ss.; e BEÇA PACHECO/SIMAS SANTOS, “Representação do Estado pelo Ministério Público”, Revista do Ministério Público, Ano 1, vol. 2, Junho/80, pp. 180 e ss.
[57] Já não compete ao Ministério Público a representação do Estado junto de tribunais estrangeiros (assim, o Parecer do Conselho Consultivo n.º 119/82, de 14 de Outubro de 1982, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 327, p. 343).
[58] Na verdade, também, por exemplo, os tribunais marítimos têm carácter facultativo, mas o certo é que constituem uma espécie de tribunais de competência especializada, estando, como tais, integrados no conjunto dos tribunais judiciais [cf. artigos 78.º, alínea f), e 90.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais].
[59] Cf. artigos 27.º, 28.º e 29.º da LJP.
[60] JOEL PEREIRA, ob. cit., p. 25.
[61] No Brasil, a Lei Federal dos Juizados Especiais – Lei Federal n.º 9.099 de 26 de Setembro de 1995 apenas contém o artigo 11.º com o seguinte texto. «O Ministério Público intervirá nos casos previstos em lei»; em Espanha, a Ley de Demarcación y Planta Judicial – Lei 38/1988, de 28 de Dezembro, não faz qualquer referência ao Ministério Público nos diversos artigos relativos aos “Juzgados de Paz”.
[62] MARIA MADALENA MARQUES DOS SANTOS, Os Julgados de Paz, comunicação de 8 de Janeiro de 2003, inserta in www.oa.pt, analisa os julgados de paz no direito comparado (França, Espanha, Brasil, Reino Unido e Itália) e apenas relativamente à instituição congénere francesa (com a designação de «Maison de la Justice et du Droit» e competências na área penal) é referida uma participação significativa do Ministério Público: «O funcionamento desta instituição pressupõe a constituição de uma equipe de trabalho composta por: chefes de jurisdição (presidente do tribunal e procurador da República) responsáveis pela estrutura, pela organização e seu funcionamento, pela ligação aos eleitos e a outras organizações sociais; magistrados que podem assumir várias tarefas, nomeadamente informar sobre as leis, tomar medidas de reparação do dano, informação jurídica; um escrivão que assegura o acolhimento, o secretariado e o andamento dos processos; trabalhadores sociais que realizam os inquéritos rápidos, as mediações e asseguram o controle judiciário da demanda à autoridade judiciária; um educador da protecção judiciária da juventude, que assegura o aspecto educativo dos menores e as medidas de reparação; um agente de prova que assegura o cumprimento das penas e ajuda os ex-reclusos na sua integração na sociedade; um conciliador que julga certo tipo de litígios cíveis; um representante duma associação de ajuda às vítimas que assegura o aspecto do acolhimento; e, finalmente, advogados que aconselham e orientam num quadro de consultas jurídicas gratuitas.»
[63] Artigos 11.º e 12.º.
[64] Seguimos, neste passo, de perto o Parecer do Conselho Consultivo n.º 74/91, ponto V, 2.5., apud parecer n.º 114/2003.
[65] FREITAS DO AMARAL, ob. cit., p. 604.
x12 Além disso, a competência é imodificável e é irrenunciável e inalienável. Cf. também sobre a matéria, JOÃO CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, Âncora Editora, pp. 117-118.
x13 FREITAS DO AMARAL, ob. cit., p. 608; a regra de que a competência não se presume tem – acrescenta este autor – a excepção da figura da competência implícita: é implícita a competência que apenas é deduzida de outras determinações legais ou de princípios gerais do Direito público, como por ex., «quem pode o mais pode o menos»; «toda a lei que impõe a prossecução obrigatória de um fim permite o exercício dos poderes minimamente necessários para esse objectivo» (p. 610).
[66] Cf. o Parecer n.º 119/82 e ALBERTO DOS REIS, Organização Judicial, Coimbra, 1905, p. 276.
[67] Não se deixará de referir que existem vozes a defender a alteração deste estado de coisas, de que são exemplo as recomendações apresentadas, em 20 de Fevereiro de 2004, por ocasião do 1º Colóquio, organizado pelo Instituto de Advogados em Prática Isolada (IAPI), sobre os Julgados de Paz, em que se defende que deverá «ser legislada a competência do MP da comarca na representação de incapazes, ausentes e controlo da inconstitucionalidade e representação do próprio Estado», e «regulamentada a actuação do MP nos Julgados de Paz». Cf. respectivo texto no sítio da Ordem dos Advogados, www.oa.pt.
[68] Ob. cit., p. 64.
[69] As referências às normas processuais civis relativas à representação pelo Ministério Público de incapazes e ausentes justificam-se apenas pela maior facilidade argumentativa.
[70] O artigo 13.º, n.º 2, fixa uma regra de competência territorial para esta situação.
[71] Está implícito que, sendo obrigatória a comparência pessoal das partes (artigo 38.º, n.º 1, da LJP), não é viável a apresentação de uma demanda pelo M.º P.º, em representação de incertos, nem o prosseguimento do processo, mantendo-se o demandado ausente ou como incerto.
[72] Quanto ao primeiro normativo, insiste-se que o mesmo sempre seria parcialmente inaplicável neste tipo de processos, como se assinalou na nota anterior.
[73] Ob. cit., p.133.
[74] Rezava assim:
Artigo 51.º
(Disposições finais)
Aos processos regulados no presente diploma, e em tudo o que não colida com as especialidades dele constantes, aplicam-se subsidiariamente, consoante a natureza do processo, as disposições do processo civil, do processo penal ou do processo administrativo.
[75] O que também não deixaria de ser fonte de problemas, por caber ao Ministério Público o exercício da acção penal, orientada pelo princípio da legalidade (artigo 219.º da Constituição).
[76] V. artigo 3.º, n.º 1, da LJP.