Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002903
Parecer: P000472007
Nº do Documento: PPA13092007004700
Descritores: DEONTOLOGIA MÉDICA
INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
ORDEM DOS MÉDICOS
ADMINISTRAÇÃO AUTÓNOMA
ASSOCIAÇÃO PÚBLICA
ASSOCIAÇÃO PROFISSIONAL
TUTELA ADMINISTRATIVA
AUTONOMIA NORMATIVA
PODER REGULAMENTAR
ESTATUTO DISCIPLINAR
REGULAMENTO ADMINISTRATIVO
REGULAMENTO AUTÓNOMO
REGULAMENTO INTERNO
EFICÁCIA
PUBLICAÇÃO
DIÁRIO DA REPÚBLICA
PUBLICIDADE
LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA
OBJECÇÃO DE CONSCIÊNCIA
EXEQUIBILIDADE DA LEI
DIREITOS FUNDAMENTAIS
RESTRIÇÃO DE DIREITOS
REGULAMENTAÇÃO DE DIREITO FUNDAMENTAL
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
PRINCÍPIO DA PREVALÊNCIA DA LEI
PRINCÍPIO DA PRIMARIEDADE
UNIDADE DO SISTEMA JURÍDICO
FISCALIZAÇÃO DA LEGALIDADE
DECLARAÇÃO DE ILEGALIDADE
DECISÃO COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL
DIREITO ORDINÁRIO ANTERIOR
REPRISTINAÇÃO
DECLARAÇÃO DE ILEGALIDADE POR OMISSÃO
FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE DIRECTA
INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL
INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA
PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA
Livro: 00
Numero Oficio: 4733
Data Oficio: 05/25/2007
Pedido: 05/28/2007
Data de Distribuição: 05/28/2007
Relator: LEONES DANTAS
Sessões: 01
Data da Votação: 09/13/2007
Tipo de Votação: UNANIMIDADE
Sigla do Departamento 1: MS
Entidades do Departamento 1: MIN DA SAÚDE
Posição 1: HOMOLOGADO
Data da Posição 1: 10/16/2007
Privacidade: [01]
Data do Jornal Oficial: 12-11-2007
Nº do Jornal Oficial: 217
Nº da Página do Jornal Oficial: 32743
Data da Rectificação: 12/11/2007
Indicação 1: RECTIFICAÇÃO DO Nº 47/2007 DO PARECER - DR, II S, Nº238
Indicação 2: ASSESSOR:MARIA JOSÉ RODRIGUES
Área Temática:DIR CONST * DIR FUND / DIR ADM * ASSOC PUBL / DIR CRIM
Ref. Pareceres:P000991982Parecer: P000991982
P000111992Parecer: P000111992
P000521999Parecer: P000521999
Legislação:CONST76 ART18 N2 ART41 N1 N6 ART112 N8 ART119 ART165 N1 B D S ART199 N1 D ART266 N2 ART267 N1 N4 ART282 ART283; LC 1/82 DE 1982/09/20 ART115 N6 ART122 N2 F; CP82 ART140 ART141 ART142 ART369; L 6/84 DE 1984/05/11 ART4; L 48/95 DE 1995/03/15 ; L 90/97 DE 1997/07/30; L 16/2007 DE 2007/04/17 ART6; PORT 741-A/2007 DE 2007/06/21 ART12; DL 29171 DE 1938/11/24 ; DL 40651 DE 1956/06/21; DL 282/77 DE 1977/07/05 ART4 N1 N2 N3 ART6 A C E ART8 ART12 N4 ART13 ART17 N1 C N2 N3 ART64 J P ART79 ART80 ART104 ; L 9/94 DE 1994/04/26; DL 217/94 DE 1994/08/20 ART1 ART2 ART11 ART62 ; RESOLUÇÃO DO CONSELHO DA REVOLUÇÃO 11/78 DE 1978/01/26 ; CÓDIGO DEONTOLÓGICO DA ORDEM DOS MÉDICOS PUBLICADO NA REVISTA DA ORDEM DOS MÉDICOS N3 DE MARÇO DE 1985 ART1 ART47 N1 N2 ART48 ART30 ART57 B ART153; CÓDIGO DEONTOLÓGICO DA ORDEM DOS MÉDICOS PUBLICADO NA REVISTA DA ORDEM DOS MÉDICOS N6 DE JUNHO DE 1981 ART50 N7 ART51; L 15/2002 DE 2002/02/22 ART4 ART9 N1 N2 ART46 N2 C D ART72 N1 ART73 N1 N3 ART76 N1 ART77 N1 N2; L 13/2002 DE 2002/02/19 ART4 N1 B
Direito Comunitário:
Direito Internacional:
Direito Estrangeiro:ESPANHA - CÓDIGO DE ÉTICA Y DEONTOLOGIA MÉDICA ART23
ITÁLIA - CÓDIGO DE DEONTOLOGIA MÉDICA DE 2006/12/15 ART41
FRANÇA - CODE DE DEONTOLOGIE MEDICALE ART18 INSERIDO NO ARTR.4127 - 19 DO CODE DE SANTÉ PUBLIQUE
Jurisprudência:AC TC N113/88 DE 1988/06/01 IN DR N202 IIS DE 1988/09/01
AC TC N276/92 DE 1992/07/14
AC TC N452/95 DE 1995/07/06 IN DR IIS DE 1995/11/21
AC TC N117/2006 DE 2006/02/08 IN DR N60 IIS DE 2006/03/24
PARECER N2/78 DA COMISSÃO CONSTITUCIONAL
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões: 1.ª – O Estatuto da Ordem dos Médicos aprovado pelo Decreto-Lei n.º 282/77, de 5 de Julho, configura esta instituição como uma associação pública, integrada na Administração Autónoma e destinada ao enquadramento dos médicos na realização do interesse público inerente ao exercício da sua actividade profissional;
2.ª – Aquele Estatuto, à luz do disposto, entre outros, nos seus artigos 4.º, 6.º, 13.º, 79.º e 80.º, dota aquela instituição de uma ampla autonomia que inclui o poder regulamentar necessário à disciplina da actividade médica, no âmbito do qual cabe a aprovação do Código Deontológico da Ordem dos Médicos;
3.ª – Apesar dessa autonomia, nos termos do disposto no artigo 6.º, alíneas c) e d) daquele Estatuto, a Ordem está sujeita ao estrito cumprimento da Lei, estando igualmente obrigada a colaborar na política de saúde e a concorrer para o aperfeiçoamento do Serviço Nacional de Saúde;
4.ª – O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, por força da sua natureza regulamentar, deve obediência à Lei, não podendo conter disposições que a contrariem, ou invadir áreas que estejam a coberto de reserva de Lei;
5.ª – O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, em vigor, publicado na Revista da Ordem dos Médicos n.º 3/85 – Março de 1985, não indica expressamente as normas que definem a competência subjectiva e objectiva para a respectiva emissão, violando o disposto no artigo 115.º, n.º 6 , da Constituição da República, na versão em vigor na data em que foi publicado – artigo 112.º, n.º 8 da versão actual da Lei Fundamental;
6.ª – Os n.os 2 e 3 do artigo 47.º e o artigo 48.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, referido na conclusão anterior, são contrários ao disposto no artigo 142.º do Código Penal, na redacção emergente da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, e já eram igualmente contrários ao disposto no artigo 140.º do mesmo código, na redacção emergente da Lei n.º 6/84, de 11 de Maio;
7.ª – O artigo 30.º daquele código, no segmento normativo relativo à interrupção voluntária da gravidez, viola o disposto nos artigos 41.º, n.º 6, 165.º, n.º 1, alínea b), e artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República e contraria igualmente o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, e já violava o disposto no artigo 4.º da Lei n.º 6/84, de 11 de Maio;
8.ª – Nos termos dos artigos 72.º, n.º 1, e 73.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cabe ao Ministério Público instaurar acção administrativa especial tendente à declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade das normas dos artigos 30.º, 47.º e 48.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, referidas nas conclusões anteriores, bem como das disposições correspondentes (artigos 50.º, n.os 2 e 3, 51.º e 33.º) do Código Deontológico de 1981.

Texto Integral:

Senhor Ministro da Saúde,
Excelência:

I

Em 17 de Abril de 2007 foi publicada no Diário da República a Lei n.º 16/2007, que alterou o artigo 142.º do Código Penal, introduzindo no sistema jurídico português uma nova causa de isenção de responsabilidade criminal pela prática de aborto, e criou as bases para que aquela actividade possa ser levada a cabo nas condições agora legalmente previstas.

Confrontado com o desfasamento entre a situação jurídica emergente daquela Lei e o Código Deontológico da Ordem dos Médicos em vigor, entendeu Vossa Excelência dirigir a este Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República um pedido de parecer que parcialmente se transcreve([1]):

«Nos termos da alínea a) do artigo 37.° da Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, na redacção dada pela Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto, venho solicitar a emissão de parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República sobre a legalidade do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, designadamente dos n.os 1 e 2 do artigo 47.°, segundo os quais "1. O Médico deve guardar respeito pela vida humana desde o seu início. 2. Constituem falta deontológica grave quer a prática do aborto quer a prática da eutanásia."

A Ordem dos Médicos é uma pessoa colectiva pública, do tipo associação pública, integrada na Administração Pública e, portanto, sujeita a todos os princípios e normas que a esta se aplicam, nomeadamente o princípio da legalidade.

Uma das mais importantes vertentes do princípio da legalidade é o chamado princípio da preferência ou prevalência de lei, segundo o qual nenhum regulamento administrativo pode contrariar a lei, antes devendo todos os regulamentos administrativos conformar-se, plena e absolutamente, com as leis em vigor, sob pena de ficarem inquinados de ilegalidade e da consequente invalidade.

O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, emanado por esta no exercício dos poderes públicos que lhe são conferidos pelo respectivo Estatuto, é uma norma emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo, ou seja, é um regulamento administrativo, por ser proferido pelos órgãos próprios de uma associação pública, para ser aplicado aos respectivos membros. Daí que também este Código esteja, em todos e cada um dos seus preceitos, sujeito ao princípio da legalidade e ao seu corolário, o princípio da preferência ou prevalência da lei.

Não está em causa a objecção de consciência que qualquer médico individualmente poderá suscitar em relação à interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher.

O que releva é a possibilidade de os médicos, não objectores de consciência, poderem ser sancionados por uma associação pública que tem o poder e o dever de os perseguir disciplinarmente por violação do respectivo Código Deontológico.

E a censura disciplinar fundamenta-se, ainda, no Estatuto da Ordem dos Médicos, que prescreve que constituem deveres dos médicos cumprir as normas deontológicas da profissão.

Por outro lado, o Código Penal não pune a interrupção voluntária da gravidez quando, em determinados prazos ou em circunstâncias específicas, seja realizada por um médico ou sob a sua direcção.

A redacção actual do artigo 142° do Código Penal, ao permitir a interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, afasta-se, mais ainda do que a redacção anterior, das situações de interrupção voluntária da gravidez permitidas pelo Código Deontológico da Ordem dos Médicos.

Assim, solicito a Vossa Excelência que o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República emita parecer sobre as seguintes questões colocadas sobre a matéria acima exposta e que assumem enorme relevância prática:

1. Os artigos 47° e 48° do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, na parte referente ao aborto, são ilegais desde a versão de 1984 do artigo 142.° do Código Penal e, agora, de forma mais intensa, na sequência da publicação da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, que ampliou as causas de não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez às situações em que esta é realizada por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas da gravidez?

2. - A não adequação do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, designadamente dos artigos 47.° e 48.°, à nova versão do Código Penal constitui uma não emanação de normas que devem ser emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo, nomeadamente ao abrigo do disposto na alínea e) do artigo 6.° do Estatuto da Ordem dos Médicos ("A Ordem dos Médicos tem por finalidades essenciais: (...) e) Velar pelo exacto cumprimento da lei, do presente Estatuto e respectivos regulamentos (...)") e do próprio princípio da legalidade, que obriga à conformidade plena e absoluta dos regulamentos administrativos com a lei?

3. Em caso de resposta afirmativa às questões referidas nos pontos 1. e 2., deve o Ministério Público propor, junto do tribunal administrativo e fiscal competente, uma acção administrativa especial cumulando os pedidos de declaração de ilegalidade das referidas normas do Código Deontológico da Ordem dos Médicos - enquanto norma regulamentar emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo - de declaração de ilegalidade por omissão, pela não adequação do Código Deontológico à nova versão do Código Penal - enquanto não emanação de uma norma que deve ser emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo, e de fixação de prazo para que a omissão seja suprida, nos termos do disposto no artigo 4°, nas alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 46.° e no n.º 2 do artigo 77.°, todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos?

4. O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, em particular o seu artigo 3°, será inconstitucional, designadamente por violação do direito fundamental à liberdade de consciência dos médicos (artigo 41.°, n.º 1, da Constituição), bem como pela violação do princípio da legalidade (artigo 266.°, n.º 2, da Constituição), na sua modalidade de preferência ou prevalência de lei, que impõe a subordinação absoluta do regulamento à lei?»

Cumpre, pois, emitir o parecer solicitado, com carácter urgente.

II

1 - A Administração do Estado Social faz apelo crescente a diferentes formas de colaboração dos administrados para obter uma maior eficiência ou racionalidade na sua actividade e na realização dos seus objectivos([2]).

A complexidade e a diversidade da acção administrativa e sobretudo a multiplicidade de áreas em que aquela administração é chamada a intervir são factores determinantes da adopção de formas e estruturas de participação dos administrados nas tarefas administrativas que integram a matriz da chamada administração associativa.

Tal como refere JORGE MIRANDA «conhecem-se ainda as vantagens desta Administração associativa: a proximidade das pessoas e dos problemas, o apelo à sua dedicação voluntária e interessada, a adaptabilidade dos recursos disponíveis. Assim como os seus inconvenientes e riscos: fluidez das estruturas jurídicas, a volubilidade das decisões, a burocratização social ou, ao invés, a desagregação estadual([3]).

As associações públicas, que são uma das componentes daquela forma de administração, surgem «quando se constituem pessoas colectivas tendo por objecto a colaboração entre a Administração e os administrados (ou em certos casos, entre entes administrativos para uma obra comum)»([4]) e desempenham um papel de relevo no contexto das várias formas ou modos de administração associativa.

Estas associações ou corporações distinguem-se de outras formas de participação nas tarefas administrativas, «não tanto pelo seu carácter duradouro quanto pelo seu carácter institucionalizado, e pela unificação de interesses e vontades que envolvem: a Administração dá o poder e a forma jurídica, os administrados a participação e a conjugação de esforços»([5]).

FREITAS DO AMARAL define associações públicas como sendo «as pessoas colectivas públicas de tipo associativo, destinadas a assegurar autonomamente a prossecução de determinados interesses públicos, pertencentes a um grupo de pessoas que se organizam para esse fim»([6]).

As associações públicas integram a administração autónoma do Estado que é definida por VITAL MOREIRA nos seguintes termos: «a administração autónoma consiste na administração de interesses públicos, próprios de certas colectividades ou agrupamentos infra-es-taduais (de natureza territorial, profissional ou outra), por meio de corporações de direito público ou outras formas de organização representativa, dotadas de poderes administrativos, que exercem sob responsabilidade própria, sem sujeição a um poder de direcção ou de superintendência do Estado nem a formas de tutela de mérito”([7]).

Segundo o mesmo autor, os elementos integrantes desta definição são «(a) uma colectividade territorial ou outra dotada de especificidade dentro da colectividade nacional global; (b) a prossecução de interesses específicos dessa colectividade infra-es-tadual; (c) o auto governo mediante órgãos próprios emanados dessa colectividade, (d) a auto responsabilização na gestão dos seus interesses específicos, (e) a utilização de meios e instrumentos próprios da administração pública»([8]).

2 - Na sequência da revisão constitucional de 1982 as associações públicas assumiram estatuto constitucional, tendo-se superado por esta forma as dúvidas que rodearam a adaptação ao sistema jurídico emergente da Constituição de 1976 de figuras que o integram e que vinham ainda do ordenamento corporativo.

Assim, o artigo 267.º, n.º 1, impõe que a administração pública seja estruturada «de modo a evitar a burocratização, a aproximar os serviços das populações e a assegurar a participação dos interessados na sua gestão efectiva, designadamente por intermédio de associações públicas, organizações de moradores e outras formas de representação democrática».

Depois, no n.º 4 do mesmo artigo, referem-se os princípios fundamentais relativos àquelas associações, determinando que as mesmas apenas podem ser constituídas para a «satisfação de necessidades específicas» (princípios da excepcionalidade e da especialidade), referindo que não podem desempenhar funções sindicais (princípio da não concorrência com os sindicatos) e determinando que as mesmas tenham uma organização «baseada no respeito do direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos» (princípio da democracia interna).

Por força do disposto no artigo 165.º n.º 1, alínea s), da Constituição da República, cabe à Assembleia da República a competência para legislar sobre associações públicas, em regime de exclusividade, embora com a faculdade de autorizar o Governo a legislar sobre esta matéria.

As associações públicas são, deste modo, constitucionalmente consideradas como formas de participação dos interessados na Administração Pública. Através delas o Estado confere aos interessados certos poderes públicos que passam a exercer com grande autonomia, mas sujeita-os a um regime de direito público que se vai manifestar na criação das associações, na definição da sua estrutura orgânica e no controlo da legalidade dos seus actos.

As Ordens profissionais, por força das funções que desempenham e da forma como se encontram estruturadas, têm o estatuto de associações públicas e constituem uma das componentes mais relevantes desta forma de administração.

Na verdade, na sequência do Parecer n.º 2/78, da Comissão Constitucional([9]), e, tal como se referiu no Parecer n.º 111/92, de 25 de Fevereiro de 1993, deste Conselho:

«Há, com efeito (...), profissões que apresentam como traços distintivos um elevado grau de formação científica e técnica, regras de exercício ou de prática de actos extremamente relevantes e exigentes, necessidade de confiança pública ou social tão marcada, que se torna indispensável uma disciplina capaz de abranger todos os profissionais, traduzida não apenas em normas técnicas e deontológicas, mas também em verdadeiras normas jurídicas. É do interesse dos próprios profissionais que a disciplina jurídica do exercício da profissão seja definida e cumprida, mas é isso também (ou sobretudo) do interesse dos que recebem os serviços desses profissionais (que podem ser quaisquer cidadãos) e do interesse da sociedade no seu conjunto.
Para regular e disciplinar o exercício de uma profissão de interesse público, o Estado poderia eventualmente, em alternativa, utilizar vários modos ou modelos de actuação e intervenção.
Poderia organizar um serviço administrativo integrado na administração directa, ao qual competisse reconhecer a qualificação profissional e fiscalizar o cumprimento das normas fundamentais relativas ao exercício da profissão; poderia aceitar uma (ou mais) organização dos profissionais interessados como entidade privada, delegando nela o exercício de certos poderes públicos, mas sem a considerar como entidade pública; ou reconhecer a organização profissional como entidade, associação pública, devolvendo-lhe os poderes públicos necessários à regulamentação e disciplina de exercício da profissão (...).
Uma tendência não estatista e favorável ao pluralismo social, que a Constituição acolhe, privilegiará este último modo de actuação do Estado. Aqui se integram as "ordens profissionais", já com a estrutura com que passaram ao regime instituído em 1974 e agora expressamente constitucionalizadas, com a introdução da figura das associações públicas nas formas de descentralização da actividade administrativa».

A articulação entre o interesse público relativamente à forma como determinadas actividades devem ser exercidas e os interesses dos profissionais nelas envolvidos constitui a base em que o Estado associou aqueles profissionais à conformação do exercício daquelas actividades, atribuindo-lhes a autodisciplina das mesmas, mas enquadrando-as por um regime de direito público, garante em última instância da salvaguarda do interesse público.

Tal associação tem por base a especificidade das actividades em causa e a complexidade da definição de parâmetros de exercício das mesmas, o que exige o concurso dos profissionais nelas envolvidos, mas tem também como fundamento uma tradição de autodisciplina que faz parte dos referentes culturais e da imagem pública de rigor associado ao exercício dessas actividades que é a base da confiança colectiva que nelas é depositada.

As Ordens são, deste modo, o instrumento no contexto do qual, no âmbito do nosso sistema jurídico, se dá realização, de forma dialéctica, àquela duplicidade de vectores e de interesses.


III


1 - A Ordem dos Médicos foi criada pelo Decreto-Lei n.º 29 171, de 24 de Novembro de 1938, abrangendo fundamentalmente os médicos que exerciam a medicina como profissão liberal e foi integrada no sistema jurídico do Estado Corporativo pelo Decreto-Lei n.º 40 651, de 21 de Junho de 1956([10]), que a dotou de um novo estatuto, motivado por factores de vária ordem, nomeadamente «a necessidade de separar a acção disciplinar da acção directiva ou administrativa e a ainda a necessidade de dar a um conjunto de importantes princípios de carácter deontológico adequada expressão jurídica».

Aquele estatuto veio a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 282/77, de 5 de Julho, que aprovou o estatuto que se encontra em vigor, tendo sido objecto das alterações decorrentes do Decreto-Lei n.º 217/94, de 20 de Agosto, que aprovou o Estatuto Disciplinar dos Médicos, e da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de algumas das suas normas, decorrente da Resolução n.º 11/78, de 26 de Janeiro de 1978, do Conselho da Revolução([11]).

Tal como resulta do respectivo preâmbulo, o novo estatuto «mostra feição marcadamente descentralizadora e respeito pelas liberdades democráticas» e exige que a Ordem «exerça a sua actividade com total independência em relação ao Estado, formações políticas ou outras organizações».

Apontando desde logo para as linhas que viriam a marcar os elementos estruturantes das associações públicas, reafirma-se no preâmbulo daquele diploma que «Não pode deixar de caber ao Governo, no uso dos poderes legislativos que lhe são próprios, a aprovação do Estatuto da Ordem dos Médicos, dados os importantes fins públicos que esta prossegue, a necessidade de ser conferida à inscrição na Ordem carácter obrigatório, atribuição de funções deontológicas e de poder disciplinar.»


2 – No artigo 4.º daquele Estatuto, depois de se afirmar no n.º 1, como princípio fundamental, que «A Ordem dos Médicos reconhece que a defesa dos legítimos interesses dos médicos pressupõe o exercício de uma medicina humanizada que respeite a saúde de todos os cidadãos», prevê-se no n.º 2, que «A Ordem exerce a sua acção com total independência em relação ao Estado, formações políticas, religiosas ou outras organizações», e no n.º 3 do impõe-se o princípio democrático no seu funcionamento interno, referindo que «O sistema democrático regula a orgânica, a vida interna da Ordem dos Médicos, constituindo-se o seu controle um dever e um direito de todos os seus associados (...)».

As finalidades da Ordem têm a sua disciplina no artigo 6.º que refere:

«Art. 6.º A Ordem dos Médicos tem por finalidades essenciais:

a) Defender a ética, a deontologia e a qualificação profissional médicas, a fim de assegurar e fazer respeitar o direito dos utentes a uma medicina qualificada;
b) Fomentar e defender os interesses da profissão médica a todos os níveis, nomeadamente no respeitante à promoção sócio-profissional, à segurança social e às relações de trabalho;
c) Promover o desenvolvimento da cultura médica e concorrer para o estabelecimento e aperfeiçoamento constante do Serviço Nacional de Saúde, colaborando na política nacional de saúde em todos os aspectos, nomeadamente no ensino médico e carreiras médicas;
d) Dar parecer sobre todos os assuntos relacionados com o ensino, com o exercício da medicina e com a organização dos serviços que se ocupem da saúde, sempre que julgue conveniente fazê-lo, junto das entidades oficiais competentes ou quando por estas for consultada;
e) Velar pelo exacto cumprimento da lei, do presente Estatuto e respectivos regulamentos, nomeadamente no que se refere ao título e à profissão de médico, promovendo procedimento judicial contra quem o use ou a exerça ilegalmente;
f) Emitir a cédula profissional e promover a qualificação profissional dos médicos pela concessão de títulos de diferenciação e pela participação activa no ensino pós-graduado.»

Com interesse para a matéria do presente parecer, destacam-se as alíneas a), relativa à defesa da ética e da deontologia profissional, ali assumidas como uma das formas de assegurar e fazer respeitar «o direito dos doentes a uma medicina qualificada», a alínea c) que, para além do mais, impõe à Ordem que concorra «para o estabelecimento e aperfeiçoamento constante do Serviço Nacional de Saúde» e que colabore «na política nacional de saúde em todos os seus aspectos» e a alínea e), que impõe à Ordem o «exacto cumprimento da lei, presente estatuto e dos respectivos regulamentos, nomeadamente no que se refere ao título e à profissão de médico».

Tal como se referiu no Parecer da Comissão Constitucional acima citado, «Esta ligação entre a Ordem e o serviço nacional de saúde dá-lhe uma nova feição. Historicamente nascida de uma «profissão liberal», a Ordem corta, por aí, as últimas amarras com a defesa dos interesses da medicina privada, doravante, não pode deixar de ser compreendida também como um instrumento da política da saúde ao serviço de todos os Portugueses».

Apesar da «independência» que lhe atribui o Estatuto impõe à Ordem o «exacto cumprimento da lei» e não prescinde da sua colaboração na política nacional de saúde, «em todos os seus aspectos», sendo esta competência também um dos fundamentos da inserção da Ordem no contexto da administração pública autónoma, com o estatuto que lhe está atribuído.


3 – O Estatuto disciplina igualmente a estrutura orgânica da Ordem, definindo os diferentes níveis de intervenção e os órgãos que suportam a sua acção em cada um desses níveis.

Assim, no artigo 17.º, n.º 1, alínea c), definem-se como órgãos de nível nacional e com competência genérica, o Presidente, o Plenário dos Conselhos Regionais, o Conselho Nacional Executivo e o Conselho Fiscal, cujas competências são depois concretizadas nos artigos 48.º e seguintes.

No n.º 2 deste artigo identificam-se os órgãos de competência disciplinar e no seu n.º 3 referem-se os diferentes órgãos consultivos de competência específica.

Entre estes órgãos e para a matéria do parecer tem destaque o Conselho Nacional de Deontologia Médica, a que o Estatuto dedica os seus artigos 79.º e 80.º que prevêem:

«Art. 79.º Compete ao Conselho Nacional de Deontologia Médica velar pela perfeita observância das normas deontológicas que regem tradicionalmente a ética médica, no que se refere aos deveres para com os doentes, a comunidade e aos médicos entre si.
Art. 80.º É atribuição do Conselho elaborar, em conformidade com o Estatuto, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos.»


O Conselho Nacional de Deontologia Médica centraliza as competências da Ordem em matéria de deontologia, cabendo-lhe não apenas elaborar o «Código Deontológico», mas também velar pela sua execução ou seja «pela perfeita observância» do mesmo no que se refere aos deveres para «com os doentes, a comunidade e os médicos entre si».


4 - A importância da actividade médica no contexto da salvaguarda da saúde pública e o relevo da credibilidade que é exigida aos seus profissionais, como base da confiança colectiva na forma como exercem a sua actividade, são a base da disciplina que enquadra o exercício da actividade médica que se mostra consagrada no Estatuto e que é assumida como uma das tarefas da Ordem.

É neste contexto que se deve entender a norma do artigo 8.º do Estatuto que impõe que o «exercício da medicina depende da inscrição na Ordem dos Médicos», vedando deste modo o exercício daquela actividade a quem não esteja disposto a submeter-se às exigências estatutárias daí derivadas e a acatar o complexo de deveres que se encontram consagrados no artigo 13.º do mesmo Estatuto, que dispõe:
«Art. 13.º
São deveres dos médicos:
a) Cumprir o presente Estatuto e respectivos regulamentos;
b) Cumprir as normas deontológicas que regem o exercício da profissão médica;
c) Guardar segredo profissional;
d) (...);
e) (...);
f) Cumprir e fazer cumprir as deliberações e decisões dos órgãos da Ordem, tomadas de acordo com o Estatuto;
g) Defender o bom nome e o prestígio da Ordem dos Médicos;
h) Agir solidariamente em todas as circunstâncias na defesa dos interesses colectivos;
i) (...);
j) Pagar as quotas e demais débitos regulamentares.»

O exercício da actividade médica depende deste modo da inscrição na Ordem e da sua conformação ao enquadramento das directrizes, nomeadamente de cariz deontológico, que aquela venha a assumir.

Mas a Ordem tem igualmente poderes para fazer cessar a inscrição e impedir, por este modo, o exercício da actividade a quem seja objecto dessa medida.

Contudo, por força do disposto no n.º 4 do artigo 12.º do Estatuto, da deliberação do Conselho Nacional Executivo que confirme a recusa de inscrição na Ordem, ou da deliberação daquele Conselho que determine o impedimento de exercício da actividade médica a quem se encontre inabilitado física ou mentalmente para o seu exercício, cabe recurso para os tribunais administrativos.


5 - O incumprimento das directrizes inerentes ao exercício da actividade médica integra ilícito disciplinar, sendo a acção disciplinar uma das importantes tarefas atribuídas à Ordem e uma das formas de garantir a adequação da mesma aos parâmetros de qualidade exigidos.

A acção disciplinar da actividade médica tem hoje fundamento no Decreto-Lei n.º 217/94, de 20 de Agosto, que aprovou, conforme se referiu, o Estatuto Disciplinar dos Médicos.

O Estatuto da Ordem dos Médicos previa a existência de um regulamento disciplinar, a ser aprovado pelo Conselho Nacional Executivo, nos termos da alínea j) do seu artigo 64.º, abordando, contudo, tal como se refere no relatório do referido Decreto-Lei n.º 217/94, «a competência dos órgãos disciplinares, o elenco das sanções e a possibilidade de recurso contencioso das decisões finais do Conselho Nacional de Disciplina».

O Governo aprovou aquele Decreto-Lei no uso da autorização legislativa que lhe foi concedida pela Lei n.º 9/94, de 26 de Abril, atento o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República, invocando como fundamento a natureza daquela instituição, «pelos fins que prossegue» e o relevo do estatuto disciplinar do médico «para o cabal desempenho dos seus direitos, deveres e obrigações estatutárias».

Tal como resulta do preâmbulo daquele diploma, «Relevam especialmente neste estatuto as normas que respeitam ao âmbito e exercício da competência disciplinar, à matéria de prescrição do procedimento disciplinar, tipificação dos factos a que são aplicáveis as diferentes penas, agravação especial das infracções disciplinares, designadamente pela definição do conceito de reincidência e de garantias de defesa, admitindo-se, genericamente, a possibilidade de representação do arguido».

No artigo 1.º daquele Estatuto, sujeitam-se à jurisdição disciplinar da Ordem todos os médicos que se encontrem inscritos no momento da prática da infracção e define infracção disciplinar no seu artigo 2.º nos seguintes termos:
«Artigo 2.º
Infracção disciplinar
Comete infracção disciplinar o médico que, por acção ou omissão, violar dolosa ou negligentemente algum ou alguns dos deveres decorrentes do Estatuto da Ordem dos Médicos, do Código Deontológico, do presente Estatuto, dos regulamentos internos ou das demais disposições aplicáveis.»

O artigo 11.º do mesmo Estatuto Disciplinar manda aplicar, subsidiariamente, à jurisdição disciplinar da Ordem dos Médicos, o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local e as normas gerais de direito penal e de processo penal.

Por outro lado, no seu artigo 62.º, reafirma o regime de impugnação contenciosa para os tribunais administrativos das decisões finais do Conselho Nacional de Disciplina.


6 - Globalmente ponderado, o Estatuto da Ordem dos Médicos conforma esta instituição como uma associação de natureza pública que prossegue tarefas de interesse, claramente, colectivo e revestida de poderes de autoridade pública.

De facto, tal como se referiu no parecer da Comissão Constitucional acima mencionado, «A Ordem não tem apenas em vista a defesa dos direitos e interesses dos médicos, tem também em vista a garantia de interesses dos utentes dos serviços médicos e da comunidade em geral; e procura conjugar uns e outros sob tutela do Estado que aprova o Estatuto e a cujos tribunais administrativos, e não judiciais, compete decidir sobre a legalidade dos actos dos seus órgãos».

Apesar de ser parte integrante da administração pública autónoma com o estatuto de associação pública e de o artigo 199.º, n.º 1, alínea d), da Constituição prever que cabe ao Governo exercer a tutela sobre aquela parte da administração pública, a Ordem dos Médicos, tal como as demais ordens profissionais, tem beneficiado de um regime de autonomia completa, não se encontrando sujeita «a nenhumas medidas de tutela administrativa, nem sequer de índole inspectiva»([12]).

A Ordem dos Médicos não está, assim, sujeita a qualquer forma de tutela administrativa, sendo o controlo da sua actividade exclusivamente judicial.

Citando VITAL MOREIRA «resta saber se a total isenção de tutela é congruente com a noção e o sentido da administração autónoma».

De facto, tal como prossegue aquele autor, «deve entender-se que a tutela (Staatsaufsicht) é uma «exigência do Estado de direito (...). Tal resulta da necessária responsabilidade pública (accountability) de toda a administração pública perante a colectividade em geral num Estado de direito democrático»([13]).

IV


1 - O Estatuto da Ordem dos Médicos é a base em que assenta a auto-regulação da actividade médica.

Através daquele Estatuto, o Estado delega na classe médica, organizada na Ordem, a definição das linhas de orientação da acção médica, materializada no poder de definir uma disciplina de natureza jurídica relativamente ao exercício daquela actividade.

Além disso, aquele organismo é dotado de um conjunto de meios que lhe permitem a execução daquela disciplina jurídica e de uma forma de responsabilização pelo incumprimento da mesma, materializada na actividade de natureza disciplinar propriamente dita.

Encontramos, deste modo, no Estatuto da Ordem os traços marcantes da auto-regulação profissional, tal como os define VITAL MOREIRA. Na opinião deste autor, a auto-regulação inclui «as seguintes três dimensões: (a) estabelecimento de normas (regulamentos, códigos de conduta, etc) – autonomia normativa, auto-regulamentação; (b) implementação, aplicação e execução das normas próprias ou estaduais – auto-execução; (c) adjudicação de conflitos e punições das infracções às normas pertinentes – a autodisciplina»([14]).

No âmbito do presente parecer tem particular relevo a auto-regulamentação uma vez que é do exercício dessa faculdade que decorre a elaboração dos códigos de conduta.

A criação de normas de conduta «é a mais nobre das dimensões da auto-regulamentação» exprimindo «o sentido do termo autonomia, ou seja, a capacidade de auto definição das normas de conduta»([15]).

O âmbito da auto-regulamentação depende da lei que confere a autonomia à organização reguladora.

Segundo VITAL MOREIRA, «A lei estadual tanto pode devolver integralmente para a instância auto-regulatória toda a formulação de normas reguladoras como definir desde logo em maior ou menor medida o regime regulador, deixando para a instância de auto-regulação apenas uma competência de desenvolvimento secundário»([16]).

No contexto da auto-regulação assume um particular relevo a faculdade de elaboração dos códigos de conduta que acabam por se assumir como «compêndios mais ou menos densos de regras de conduta emitidos por organizações profissionais para os seus membros»([17]).

A auto-regulação médica, para além da elaboração dos códigos de conduta, exprime-se em muitas outras áreas, nomeadamente na definição do regime de inscrição na Ordem, no regime dos laudos e honorários, no regime da publicidade e no regime das relações entre médicos.

Conforme acima se referiu, o Estatuto da Ordem confere-lhe poderes para elaboração de um Código Deontológico, através do Conselho Nacional de Deontologia Médica, nos termos dos artigos 79.º e 80.º e confere-lhe, igualmente, poderes para elaboração de regulamentos, nos termos do artigo 64, alínea j), através do Conselho Nacional Executivo.

Aqueles instrumentos são vinculativos para os médicos inscritos e o respectivo incumprimento acarreta responsabilidade disciplinar que incumbe à Ordem efectivar, nos termos do Estatuto e do referido Decreto-Lei n.º 217/94, de 20 de Agosto.

2 - O Código Deontológico da Ordem dos Médicos em vigor foi publicado na Revista da Ordem dos Médicos, n.º 3, de Março de 1985, «o órgão oficial de informação» daquela instituição([18]), tendo substituído um outro código publicado na mesma Revista, no seu n.º 6, de Junho de 1981.

Nos termos do seu artigo 153.º, o código entrava em vigor «em 30 dias a contar da data da sua aprovação no Plenário dos Conselhos Regionais da Ordem dos Médicos, devendo ser publicado em data oportuna no Órgão de Informação Social da Ordem dos Médicos».

Nos termos do artigo 57.º, alínea b), do Estatuto, incumbe ao plenário dos Conselhos Regionais «discutir e aprovar os regulamentos que lhe forem submetidos pelo Conselho Nacional Executivo».

Da sua versão inicial já se não encontram em vigor os artigos 14.º a 17.º, e os n.os 2, 3 e 4 do artigo 18.º, os artigos 140.º a 149.º, 150.º e 151.º, revogados pelo “Regulamento da Publicidade em Actividade Médica” e os artigos 105.º a 122.º, revogados pelo “Regulamento de Conduta nas Relações entre Médicos”.

O Código define deontologia médica no seu artigo 1.º, referindo que «A Deontologia Médica é o conjunto de regras de natureza ética que, com carácter de permanência e a necessária adequação histórica na sua formulação, o Médico deve observar e em que se deve inspirar no exercício da sua actividade profissional» e divide-se em seis títulos, tendo o primeiro a denominação de «disposições gerais», o segundo, a denominação de «o médico ao serviço do doente», o terceiro, a denominação de «o médico ao serviço da comunidade», o quarto, a de «relações entre médicos»; o quinto título é dedicado às «relações dos médicos com terceiros» e o sexto às «disposições finais e transitórias».

O Código é adoptado pela Ordem no âmbito dos poderes de regulação da actividade médica que lhe são conferidos pelo Estado, com base em norma expressa, e integra um conjunto vasto de normas de conduta, enquadradas pela expressão «o médico deve» que abrangem as múltiplas situações por que se desdobra a actividade médica.

Tais normas de conduta vinculam directamente os seus destinatários - o conjunto dos médicos inscritos na Ordem - e fazem-no de forma geral e abstracta, não derivando das mesmas deveres para terceiros situados fora daquele universo. Este facto não retira àquele instrumento a sua natureza jurídica, embora não seja revestido da estadualidade que caracteriza o universo da lei como fonte de direito.

Aquele instrumento normativo insere-se, pois, numa componente infra-estadual do sistema jurídico, embora seja parte integrante do mesmo, quando globalmente considerado.

Tal como já se referiu, o incumprimento destas normas de conduta integra ilícito disciplinar, accionado igualmente pela Ordem no uso de poderes que lhe foram atribuídos pelo Estado e que pode levar à expulsão e subsequente impossibilidade de exercício da actividade médica.


3 - Pronunciando-se sobre a natureza jurídica deste instrumento, GUILHERME DE OLIVEIRA referiu que «como o código foi publicado apenas no órgão noticioso da Ordem e não no Diário da República ele não pode ter o valor de uma lei formal. Isto não quer dizer, porém, que não assuma um valor prático-jurídico grande; de facto as normas têm plena eficácia interna, dentro dos órgãos profissionais, constituindo a sua infracção motivo para responsabilidade disciplinar» e conclui: «mesmo que não sejam consideradas normas jurídicas vulgares, as normas deontológicas serão aplicadas directamente em processos disciplinares dentro dos órgãos da ordem e serão aplicadas indirectamente, nos processos de responsabilidade civil ou penal»([19]).

Debruçando-se sobre o Código Deontológico publicado na Revista da Ordem dos Médicos, n.º 6, de Junho de 1981, este Conselho, no parecer n.º 99/82, de 14 de Junho de 1982, concluiu que «O “Código Deontológico” a que se refere o artigo 80.º do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Decreto-lei n.º 282/77, de 5 de Julho, como conjunto de normas regulamentares, necessita de aprovação pelo Governo, e de publicação no Diário da República para que tenha existência jurídica – artigo 122.º da Constituição».

Esta conclusão fundamentou-se na consideração de que o código em causa tinha natureza regulamentar, atribuindo-se-lhe a natureza de um regulamento de execução, e que cabia ao Governo a regulamentação das leis, na falta de indicação em contrário, expressa na lei.

Destacava-se ainda na fundamentação daquele parecer, como fundamento daquela conclusão, que o Estatuto da Ordem dos Médicos distinguia entre «elaboração» do Código, no seu artigo 80.º e a aprovação do mesmo, referida no artigo 104.º daquele Estatuto.

Ao Governo competiria a aprovação do Código em causa, que como tal teria de ser publicado no Diário da República, nos termos do artigo 122.º, n.º 2, alínea f), da Constituição da República.

Uma vez que não teriam sido preenchidos estes elementos do processo de formação do Código Deontológico, ele não «teria sequer existência jurídica».

A verdade é que as normas do Estatuto da Ordem dos Médicos relativas à aprovação do Código Deontológico e outra regulamentação interna devem ser entendidas como fundamento da atribuição àquela instituição de poderes para elaboração dos instrumentos normativos necessários à auto-regulação da actividade médica.

Ao atribuir à Ordem tais competências o legislador só foi coerente com os propósitos descentralizadores que inspiram a administração autónoma e com a preocupação de envolver os destinatários na normativização da sua actividade.

Coerentemente com a conformação deste segmento da administração pública e com os objectivos que a justificam tem de se lhe reconhecer competência para produção de instrumentos normativos que terão de ser reconhecidos como suporte da auto-regulação levada a cabo.

A Ordem tem, pois, competência regulamentar no seu espaço de intervenção, competência esta que, situando-se no âmbito da administração autónoma, não se confunde com a competência regulamentar do Governo, onde o parecer deste Conselho acima referido pretendeu englobar a competência para aprovação do Código Deontológico em causa.

Não se tratando de uma competência regulamentar do Governo e tendo a mesma um universo de destinatários concreto, os instrumentos que dela derivam não carecem de publicação no Diário da República para adquirem por inteiro eficácia normativa, sendo, contudo, necessário que sejam divulgados aos seus destinatários, por qualquer forma válida([20]).


4 – MARCELLO CAETANO classificava os regulamentos «quanto à sua dependência relativamente a certa lei» entre independentes ou autónomos e complementares e referia que se chamavam regulamentos complementares «os que são elaborados e publicados em seguimento de uma lei e para assegurar a respectiva execução pelo desenvolvimento dos seus preceitos basilares»([21]).

Por seu turno, «os regulamentos independentes ou autónomos não se propõem assegurar a execução de certa lei anterior; são elaborados no exercício de competência própria e para o desenvolvimento das atribuições normais e permanentes da autoridade administrativa». Não quer isto dizer que esses regulamentos não se subordinem à letra e ao espírito das leis existentes: mas o seu objectivo é o de facilitar a acção administrativa em si mesma considerada e a lei que directamente executam é a que, sobre a matéria neles contida, atribui competência à autoridade que os elabora.»([22])

Como refere VITAL MOREIRA, «os regulamentos autónomos serão normalmente regulamentos independentes no sentido constitucional (CRP, art. 112.º -8) em que a lei se limita a definir a competência subjectiva ou objectiva, sem necessidade de definição dos conteúdos normativos a emitir pelo regulamento (liberdade de definição do conteúdo do regulamento)([23]).

FREITAS DO AMARAL define regulamentos complementares ou de execução como «aqueles que desenvolvem e aprofundam a disciplina jurídica constante de uma lei. E, nessa medida, completam-na, viabilizando a sua aplicação aos casos concretos» e define regulamentos independentes ou autónomos nos seguintes termos: «Independentes ou autónomos são, diferentemente, aqueles regulamentos que os órgãos administrativos elaboram no exercício da sua competência, para assegurar a realização das suas atribuições específicas, sem cuidar de desenvolver ou completar nenhuma lei em especial. Quer dizer, são regulamentos em que a lei se limita a definir a competência subjectiva e objectiva, sem necessidade de definição do conteúdo dos comandos normativos a emitir pelo regulamento (...)»([24]).

Ponderado o Estatuto da Ordem dos Médicos, o que dele emerge é a atribuição a esta entidade de uma competência, para a qual se mostra especialmente vocacionada – a definição da deontologia médica, concretizada através da aprovação do Código respectivo.

Por outro lado, aquele estatuto é omisso sobre quaisquer princípios em matéria de deontologia cuja execução dependa da sua concretização e desenvolvimento no referido código.

O Código Deontológico da Ordem dos Médicos surge, assim, como um regulamento autónomo, na definição que dos mesmos é dada pela Doutrina.

Também se nos afigura não ser de manter a contraposição estabelecida por este Conselho no parecer n.º 99/82, entre o artigo 80.º do Estatuto que atribuía ao Conselho Nacional de Deontologia a competência para elaborar o Código Deontológico, o que deveria levar a cabo em «conformidade como o Estatuto», e o artigo 104.º que determinava que «enquanto não fossem aprovados os regulamentos e o Código de Deontologia Médica se mantivessem em vigor «as disposições legais que regulam a matéria».

A manutenção da disciplina anterior visava apenas evitar rupturas no sistema, não decorrendo do conceito de aprovação ali previsto elementos que permitam concluir no sentido de que a nova disciplina normativa dependeria da intervenção do Governo. Aliás a autonomização atribuída à Ordem (fala-se mesmo de independência face ao Governo) induz a solução contrária.


5 – Já vimos que o Estatuto da Ordem lhe atribui competência em matéria regulamentar onde se inclui a disciplina sobre deontologia médica.

Esta autonomia de regulamentação é um dos vectores da administração autónoma em que as ordens profissionais se incluem. Através dela se concretiza a delegação de tarefas que o Estado lhes faz, tendo em conta a especificidade das áreas da sua intervenção e o relevo do interesse público na sua disciplina.

Desta autonomia de regulamentação emerge a faculdade de disciplinar as actividades em causa, de as acompanhar e de avaliar a forma como são levadas a cabo, tarefas estas que o sistema entendeu que seriam melhor salvaguardas se levadas a cabo pelos respectivos profissionais, no espaço das suas organizações próprias.

De facto, tendo estes o conhecimento profundo das actividades prosseguidas estão em melhor posição do que os serviços do Estado, por muito bem apoiados que estes estejam, para definir procedimentos relativamente à forma de agir próprias daquelas actividades.

Refere VITAL MOREIRA que «o poder regulamentar autónomo permite responder às especificidades locais e materiais, às quais nem o legislador nem os regulamentos governamentais estariam em condições de responder. Nas palavras do Bundesverfassungsgericht, na decisão sobre a Ordem dos Médicos (BVerfGE,33: 125), a autonomia regulamentar permite «activar as forças sociais, confiar à responsabilidade própria dos grupos sociais a regulação dos assuntos que lhes dizem respeito, e que elas estão em condições de avaliar melhor do que ninguém, com o que se reduz também a distância entre o criador das normas e os destinatários delas»([25]).

Os regulamentos autónomos são uma das mais importantes formas de auto-disciplina no espaço destas corporações, sendo o mais relevante dos instrumentos de natureza normativa ali usado.

A autonomia normativa emerge da lei e tem nesta o seu primeiro limite. Não há, de facto, competência regulamentar autónoma sem expressa atribuição da lei, pois que esta competência «tem o seu fundamento exclusivamente na lei»([26]).

Os regulamentos autónomos só são, pois, possíveis nos casos em que a lei expressamente os permita e estão sujeitos a todas as regras que regem o exercício do poder regulamentar, sejam elas de nível constitucional ou outro.

Como fonte de direito de nível inferior, o regulamento está subordinado à lei que o condiciona e a que deve obediência. A superioridade hierárquica das leis em relação aos regulamentos «decorre directamente do princípio da legalidade, designadamente da sua dimensão de preferência de lei»([27]).

Na síntese de MARCELLO CAETANO, «o direito criado pelo regulamento não possui o mesmo valor que o estatuído na lei. E assim:
a) o regulamento só pode estatuir na medida em que a lei lho consinta: - dentro dos limites por ela marcados, ou para execução das suas normas, ou sobre as matérias por ela abandonadas;
b) os regulamentos existentes ficam revogados pelo aparecimento de uma lei que estatua contrariamente às suas disposições;
c) o regulamento não vale em tudo aquilo que contrariar o disposto na lei que executa, ou a cuja sombra nasce.»([28])

V

1 – Na primeira questão que dirige a este Conselho, o Ministério da Saúde pretende saber se «os artigos 47° e 48° do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, na parte referente ao aborto, são ilegais desde a versão de 1984 do artigo 142.° do Código Penal e, agora, de forma mais intensa, na sequência da publicação da Lei n.° 16/2007, de 17 de Abril, que ampliou as causas de não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez às situações em que esta é realizada por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas da gravidez».

Os artigos 47.º e 48.º do Código Deontológico em vigor têm o seguinte teor:
«Artigo 47.º
(Princípio Geral)
1. O Médico deve guardar respeito pela vida humana desde o seu início.
2. Constituem falta deontológica grave quer a prática do aborto quer a prática da eutanásia.
3. Não é considerado Aborto, para efeitos do presente artigo, uma terapêutica imposta pela situação clínica da doente como único meio capaz de salvaguardar a sua vida e que possa ter como consequência a interrupção da gravidez, devendo sujeitar-se ao disposto no artigo seguinte.
4. Não é também considerada Eutanásia, para efeitos do presente artigo, a abstenção de qualquer terapêutica não iniciada, quando tal resulte de opção livre e consciente do doente ou do seu representante legal, salvo o disposto no artigo 37.º, n.º 1.»

«Artigo 48.º
(Terapêutica que implique risco de interrupção da gravidez)
1. Quando a única forma de preservar a vida da doente implique o risco de interrupção da gravidez nos termos do n.º 3 do Artigo antecedente, deve o Médico assistente, salvo em caso de inadiável urgência, convocar para uma conferência dois Médicos da especialidade, sem prejuízo da consulta a outros colegas cujo Parecer se possa considerar necessário.
2. A conferência referida no número anterior deve traduzir-se em protocolo circunstanciado, em quatro exemplares, do qual constem o diagnóstico, o prognóstico e as razões cientificas que os determinam.
3. Cada um dos participantes conserva em seu poder um exemplar do protocolo, devendo o quarto ser comunicado ao doente, eventualmente expugnado do diagnóstico e do prognóstico, de acordo com o disposto no Art.º 40.º
4. A doente, ou em caso de impossibilidade o seu representante legal, ou um seu familiar ou acompanhante na falta ou ausência daqueles, devem dar o seu consentimento por escrito, mediante declaração que fica em poder do Médico assistente.
5. O direito do doente ou de quem por ele se pronuncie, e do Médico, a recusar a terapêutica, deve ser respeitado, devendo este, no caso de recusa própria, tomar as medidas necessárias para que seja assegurada à doente assistência clínica conveniente.
6. Concluída a terapêutica, deve ser remetido ao Conselho Nacional de Deontologia Médica da Ordem dos Médicos, cópia do protocolo referido no n.º 2, com a descrição da terapêutica realizada e omissão dos elementos de identificação do doente.»

Estas normas seguem de perto, embora com algumas diferenças, o tratamento que era dado à mesma matéria nos artigos 50.º e 51.º do Código Deontológico de 1981 que foi o primeiro publicado na vigência do actual Estatuto da Ordem dos Médicos.

Aqueles dispositivos proíbem directamente aos médicos a prática de aborto, que consideram falta deontológica grave e admitem, depois, o chamado aborto indirecto ou terapêutico, nos casos em que a intervenção clínica de que o mesmo resulte constitua «uma terapêutica imposta pela situação clínica da doente como único meio capaz de salvaguardar a sua vida», estabelecendo uma disciplina específica para tal intervenção clínica.

O código considera que tal intervenção não constitui aborto, não sendo, portanto, abrangida pela proibição genericamente proclamada.

Contudo, enquanto no código de 1981, no n.º 7 do artigo 51.º, esta desqualificação do aborto era permitida «nos casos graves e comprovados de lesão congénita não susceptível de terapêutica e que pelas suas características, seja incompatível com a sobrevivência pós-natal», tal desqualificação não passou para o código em vigor.

As normas do Código Deontológico em vigor consagram a teoria do «voluntário indirecto» sustentadas pela doutrina oficial da Igreja Católica sobre o aborto terapêutico([29]).


2 - Na altura em que este Código foi aprovado e entrou em vigor, o que terá ocorrido durante o ano de 1985, já tinha entrado em vigor a Lei n.º 6/84, de 11 de Maio, que introduziu no sistema jurídico português um conjunto de causas de isenção da responsabilidade criminal pela prática do aborto.

Aquela Lei deu nova redacção aos artigos do Código Penal que puniam o crime de aborto, introduzindo causas específicas de exclusão da ilicitude da prática de aborto nos artigos 140.º e 141.º daquele código, do seguinte teor:
«Artigo 140.º
(Exclusão da ilicitude do aborto)
1 - Não é punível o aborto efectuado por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
a) Constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez;
c) Haja seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e seja realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez;
d) Haja sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez.
2 - A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto deve ser certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.
3 - A verificação da circunstância referida na alínea d) do n.º 1 depende ainda da existência de participação criminal da violação.
«Artigo 141.º
(Consentimento)
1 - O consentimento da mulher grávida para a prática do aborto deve ser prestado, de modo inequívoco, em documento por ela assinado ou assinado a seu rogo, nos termos da lei, com a antecedência mínima de 3 dias relativamente à data da intervenção.
2 - Quando a efectivação do aborto se revista de urgência, designadamente nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior, é dispensada a observância do prazo previsto no número anterior, podendo igualmente dispensar-se o consentimento da mulher grávida se ela não estiver em condições de o prestar e for razoavelmente de presumir que em condições normais o prestaria, devendo, em qualquer dos casos, a menção de tais circunstâncias constar de atestado médico.
3 - No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos, ou inimputável, o consentimento, conforme os casos, deve ser prestado respectiva e sucessivamente pelo marido capaz não separado, pelo representante legal, por ascendente ou descendente capaz e, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral.
4 - Na falta das pessoas referidas no número anterior e quando a efectivação do aborto se revista de urgência, deve o médico decidir em consciência em face da situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos, devendo, em qualquer dos casos, a menção de tais circunstâncias constar de atestado médico.»

Resulta destes dispositivos que o aborto deixa de ser ilícito e portanto deixa igualmente de ser criminalmente punível, quando levado a cabo por médico em instituição de saúde e nas circunstâncias descritas nas várias alíneas do artigo 140.º.

Para além dos casos em que seja a única forma de remover perigo de morte da mulher grávida, passa, nos termos da aliena a) do n.º 1 daquele artigo 140.º, igualmente a ser lícito quando se destine a remover perigo de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher.

O aborto deixa igualmente de ser ilícito nos casos previstos na alínea b) daquele n.º 1, ou seja, quando se «mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez».

Do mesmo modo, não será criminalmente punível nas restantes duas alíneas daquele artigo, ou seja, quando «Haja seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e seja realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez» e quando «Haja sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez».


3 – As normas do Código Penal relativas ao aborto sofreram alterações pontuais, com a revisão daquele código operada pela Lei n.º 48/95, de 15 de Março, e com a Lei n.º 90/97, de 30 de Julho([30]).

A «interrupção da gravidez não punível» passou a integrar o artigo 142.º que manteve, no essencial, o regime que resultava da Lei n.º 6/84, de 11 de Maio, não tendo interesse no âmbito do presente parecer as alterações consagradas.

Em 17 de Abril de 2007, foi publicada no Diário da República a Lei n.º 16/2007, que introduziu alterações significativas no referido artigo 142.º do Código Penal, que tem agora a seguinte redacção:
«Artigo 142.º
Interrupção da gravidez não punível

1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando:
a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas.
e) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.
2 - A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 - Na situação prevista na alínea e) do n.º 1, a certificação referida no número anterior circunscreve-se à comprovação de que a gravidez não excede as 10 semanas.
4 - O consentimento é prestado:
a) Nos casos referidos nas alíneas a) a d) do n.º 1, em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência mínima de três dias relativamente à data da intervenção;
b) No caso referido na alínea e) do n.º 1, em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao momento da intervenção e sempre após um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização da primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável.
5 - No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz, respectiva e sucessivamente, conforme os casos, o consentimento é prestado pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral.
6 - Se não for possível obter o consentimento nos termos dos números anteriores e a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de urgência, o médico decide em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos.
7 - Para efeitos do disposto no presente artigo, o número de semanas de gravidez é comprovado ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges artis.»

Mantendo no essencial as causas de não punibilidade que já vinham da Lei n.º 6/84, de 11 de Maio, a Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, consagrou agora como não punível a interrupção da gravidez que «For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez».

A análise do regime de «exclusão da ilicitude do aborto» consagrada na Lei n.º 6/84, de 11 de Maio, e a sua evolução até ao regime de «não punibilidade» que se encontra em vigor, evidenciam um manifesto desfasamento do Código Deontológico face à evolução do sistema normativo.

O Código Penal consagra hoje situações de aborto lícito e não punível, cuja concretização exige o concurso dos médicos, não podendo a sua intervenção na execução desses actos médicos ser considerada como violadora dos deveres éticos inerentes ao exercício da actividade médica, e, muito menos, ser passível de qualquer procedimento de natureza disciplinar.

Pode mesmo afirmar-se que a instauração de um procedimento disciplinar que visasse o hipotético sancionamento daqueles médicos, no pressuposto de que a sua intervenção teria respeitado o quadro de intervenção legalmente definido, poderia mesmo integrar responsabilidade criminal pelos responsáveis pela instauração de tal procedimento.

De facto, é manifesto que se trata de uma conduta conforme ao direito e, portanto, lícita, não portadora de qualquer ilícito disciplinar, pelo que a instauração de um processo disciplinar nestas circunstâncias seria subsumível à previsão do artigo do artigo 369.º do Código Penal (denegação de justiça e prevaricação).

As disposições daqueles artigos do Código Deontológico, no que se refere ao aborto, são manifestamente ilegais, havendo que extrair daí as necessárias consequências, que adiante serão abordadas, deste modo se respondendo à questão formulada pelo Ministério da Saúde([31]).


VI


Na segunda questão que formula a este Conselho, o Ministério da Saúde pretende saber se «A não adequação do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, designadamente dos artigos 47.° e 48.°, à nova versão do Código Penal constitui uma não emanação de normas que devem ser emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo, nomeadamente ao abrigo do disposto na alínea e) do artigo 6.° do Estatuto da Ordem dos Médicos ("A Ordem dos Médicos tem por finalidades essenciais: (...) e) Velar pelo exacto cumprimento da lei, do presente Estatuto e respectivos regulamentos (...)") e do próprio princípio da legalidade, que obriga à conformidade plena e absoluta dos regulamentos administrativos com a lei».

Da abordagem que se fez ao Estatuto da Ordem dos Médicos e da sua inserção sistemática no âmbito da administração autónoma resultam consequências importantes relativamente ao posicionamento da Ordem face ao Estado e aos deveres que oneram esta instituição.

O Estado dotou a Ordem de autonomia porque entendeu ser essa a melhor forma de envolver a classe médica na gestão da sua actividade e dada a especificidade e o relevo que aquela actividade tem para o conjunto dos cidadãos.

O Estatuto da Ordem impõe a subordinação daquela instituição à Lei, não sendo toleráveis num Estado de direito democrático poderes autocráticos que, desindexados do referente à legalidade, facilmente esquecem os interesses dos cidadãos que são o fundamento último dos poderes e da autonomia concedida.

O Estado confiou na auto-conformação da Ordem à legalidade democrática não estabelecendo quaisquer mecanismos de tutela e de intervenção na sua gestão, embora o pudesse ter feito.

É neste contexto que tem de ser lida a norma da alínea e) do artigo 6.º do Estatuto, na parte em de define como finalidade essencial da Ordem «velar pelo exacto cumprimento da lei, do presente estatuto e dos respectivos regulamentos, nomeadamente no que se refere ao título e à profissão de médico».

Mas também se insere nesta linha de subordinação à legalidade, a afirmação do princípio da independência que resulta do n.º 2 do artigo 4.º e que exige à Ordem que exerça a sua acção «com total independência do Estado, as formações políticas, religiosas e outras organizações».

De facto, a subordinação à Lei é o principal garante da autonomia, se não mesmo da independência, que caracteriza o Estatuto da Ordem.

A afirmação da independência não permite, contudo, olvidar que por força do disposto na alínea c) do referido artigo 6.º, a Ordem tem o dever de «concorrer para o estabelecimento e aperfeiçoamento do Serviço Nacional de Saúde, em todos os aspectos».

A Ordem é, assim, parte activa na formulação e na execução da política de saúde, não podendo, enquanto estrutura da administração pública, formular resistências às políticas que sejam definidas pelos órgãos de soberania, no uso dos poderes que legalmente lhe estão atribuídos.

A Ordem é, para todos os efeitos, uma estrutura da administração pública, desempenha uma actividade de interesse público que se insere no âmbito da administração e é esse facto um dos fundamentos do estatuto de autonomia e dos poderes que lhe foram atribuídos.

É o facto de ser parte da administração pública que lhe permite a formulação de regulamentos, onde se deve inserir o Código Deontológico, regulamentos esses que fazem parte do sistema jurídico globalmente considerado e devem forçosamente obediência à lei.

A Ordem deve, pois, conformar a sua acção ao espaço de legalidade democrática em que a mesma se insere e tem o dever de adaptar o Código Deontológico aos parâmetros de carácter geral decorrentes do sistema jurídico, de forma a salvaguardar a unidade e a harmonia dos vários componentes do sistema.

Este dever não implica, contudo, que se possa afirmar que essa adaptação do Código Deontológico caiba no âmbito da «não emanação de normas que devem ser emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo», referida na questão que é formulada pelo Ministério da Saúde e com a intencionalidade que está subjacente à terceira questão que é formulada e sobre a qual adiante nos debruçaremos.

O dever de adaptação do Código que onera a Ordem dos Médicos não obsta a que outras soluções, em termos de forma jurídica do Código Deontológico Médico, possam ser ensaiadas e equacionadas.

De facto, conforme refere VITAL MOREIRA «no caso das ordens profissionais, que em geral organizam e regulam as profissões liberais, sujeitas a regras deontológicas particularmente exigentes, não é senão natural que a elaboração do competente código deontológico caiba à própria profissão organizada, sem prejuízo de prévia definição legal de um quadro básico»([32]).

Na aprovação dos códigos deontológicos são possíveis, contudo, situações de delegação total para as ordens, que implicam sempre a subordinação ao sistema jurídico globalmente considerado, ao lado de soluções de definição por via legal dos princípios, incumbindo apenas à ordem uma «mera regulamentação» desses princípios, como a assunção por via legal pura e simples desses códigos.

Existem, de facto, códigos deontológicos aprovados por via legislativa, ainda que com a participação da ordem profissional correspondente.

No caso português, a transferência do Estatuto Disciplinar do Médico para o espaço da legalidade estadual, através da forma de Decreto-Lei e a relação profunda que existe entre o Código Deontológico e aquele Estatuto, justifica, pelo menos, que se possa equacionar a questão de saber se aquele código deve continuar na forma de um regulamento da Ordem, ou se o seu relevo no contexto do sistema jurídico, nomeadamente, na apreciação, por forma indirecta, da responsabilidade médica, não justifica o recurso a outro suporte normativo.

Trata-se de matéria que escapa à competência deste Conselho e se situa fora do âmbito do pedido de parecer formulado.

Este Conselho no parecer n.º 99/82, de 14 de Junho de 1982, acima referido, já deu conta dos problemas que a forma jurídica que rodeou o Código Deontológico de 1981 suscitou, sobretudo se ponderado à luz do artigo 104.º do Estatuto da Ordem dos Médicos em vigor.

Só o entendimento de que aquele estatuto atribui à Ordem uma competência de natureza regulamentar que abrange a aprovação do código em causa, legitima a juridicidade daquele código e fundamenta a caducidade das normas sobre deontologia médica que estavam consagradas no anterior estatuto daquela instituição([33]).

De facto, aquela norma do artigo 104.º do Estatuto, ao manter a vigência das normas sobre deontologia constantes do anterior estatuto até à aprovação daquele código, implica a cessação da vigência das mesmas, no momento em que o Código foi legitimamente (de acordo com o Estatuto) aprovado.

VII


1 - Pergunta seguidamente o Ministério da Saúde se «Em caso de resposta afirmativa às questões referidas nos pontos 1. e 2., deve o Ministério Público propor, junto do tribunal administrativo e fiscal competente, uma acção administrativa especial cumulando os pedidos de declaração de ilegalidade das referidas normas do Código Deontológico da Ordem dos Médicos - enquanto norma regulamentar emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo - de declaração de ilegalidade por omissão, pela não adequação do Código Deontológico à nova versão do Código Penal - enquanto não emanação de uma norma que deve ser emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo , e de fixação de prazo para que a omissão seja suprida, nos termos do disposto no artigo 4°, nas alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 46.° e no n.º 2 do artigo 77.°, todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos».

Por força do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro([34]), compete àqueles tribunais a apreciação de litígios que tenham por objecto a «Fiscalização da legalidade de normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo das disposições de direito administrativo ou fiscal (...)».

O artigo 4.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro([35]), disciplina, por sua vez, a cumulação de pedidos nas acções administrativas, enquanto as alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 46.º prevêem a possibilidade de cumulação do pedido da «Declaração de ilegalidade de uma norma emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo» e de pedidos relativos à «Declaração da ilegalidade da não emanação de uma norma que devesse ter sido emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo», nas acções que tenham por objecto pretensões emergentes de «normas que tenham ou devessem ter sido emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo».

O n.º 2 do artigo 77.º do mesmo código prevê a possibilidade de, nas acções relativas à declaração de ilegalidade por omissão, o tribunal fixar um prazo, não inferior a 6 meses, para que a autoridade demandada supra a omissão constatada.


2 – O Código de Processo nos Tribunais Administrativos estabelece no seu artigo 72.º, n.º 1, que «a impugnação de normas no contencioso administrativo tem por objecto a declaração de ilegalidade de normas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo, por vícios próprios ou derivados da invalidade de actos praticados no âmbito do respectivo procedimento de aprovação»([36]).

A impugnação de normas prevista neste artigo visa apenas, tal como referem MARIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS A. FERNANDES CADILHA, «as normas administrativas, ou seja aquelas que sejam emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo. É o que resulta da primeira parte do n.º 1 deste artigo 72.º, assim como do artigo 4.º, n.º 1, alíneas b) e d) do ETAF. Trata-se assim de normas editadas pela Administração (estadual directa ou indirecta, regional, autárquica), no exercício da função administrativa (...)»([37]).

Cabem no âmbito desta norma quaisquer normas jurídicas de natureza administrativa, mesmo as emitidas por sujeitos de direito privado quando exercem poderes administrativos, sendo decisivo para a inclusão de uma norma neste âmbito, «não o conteúdo de uma norma, mas a sua natureza ou como diz a lei, o facto de se tratar de uma norma emitida no exercício da função administrativa»([38]).

Decisivo é igualmente que se trate de normas externas, ou seja, com eficácia jurídica fora da estrutura orgânica da própria entidade que as emite, uma vez que, «O contencioso administrativo não abrange, por conseguinte, os regulamentos internos, que se dirigem para o interior da própria organização administrativa, sem repercussão nas relações entre esta e os particulares»([39]).

Entre os regulamentos de natureza interna incluem-se os regulamentos de organização que visam a estrutura interna dos órgãos e o funcionamento dos serviços e os regulamentos de direcção que visam conformar a acção dos funcionários e agentes no âmbito do mesmo serviço definindo formas de procedimento e actuação dos mesmos.

Estes regulamentos decorrem do poder de auto-organização dos serviços, não carecem de habilitação legal expressa, e escapam à sindicância do contencioso administrativo.

À luz da caracterização que acima se fez do Código Deontológico da Ordem dos Médicos e por força da natureza regulamentar que se lhe atribuiu, é forçoso concluir que a legalidade das suas normas pode ser sindicada através dos meios próprios do contencioso administrativo.

Tal como resulta da norma do n.º 1 do artigo 72.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, a impugnação de normas no contencioso administrativo visa a «declaração da ilegalidade das normas», resulte essa ilegalidade de vícios das próprias normas, ou derivados «da invalidade de actos praticados no âmbito do respectivo procedimento de aprovação».

Não resultam do processo quaisquer elementos que visem o processo de aprovação daquele instrumento normativo, pelo que haverá que atentar nas ilegalidades já constatadas nas normas dos referidos artigos 47.º e 48.º daquele Código.

Da análise feita, constatou-se que aqueles artigos contrariam frontalmente as normas do Código Penal, relativas à interrupção voluntária da gravidez, nomeadamente as decorrentes do artigo 142.º daquele código, a que deviam obediência, dado o princípio da supremacia da lei em relação a fontes de direito de nível hierárquico inferior.

De facto, tal como se referiu, quando aquele Código Deontológico foi aprovado já se encontrava em vigor a redacção dos artigos 140.º e 141.º do Código Penal, emergente da Lei n.º 6/84, de 11 de Maio, dispositivos que ao tempo enquadravam as formas lícitas de interrupção da gravidez.

Aquelas normas de Código Deontológico mostram-se deste modo afectadas de um vício de invalidade próprio([40]), o que legitima a declaração da sua ilegalidade por via judicial.


3 – Os pressupostos para a formulação do pedido de declaração de ilegalidade das normas de natureza administrativa resultam do artigo 73.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que estabelece:
«Artigo 73.º
Pressupostos
1 - A declaração de ilegalidade com força obrigatória geral pode ser pedida por quem seja prejudicado pela aplicação da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo, desde que a aplicação da norma tenha sido recusada por qualquer tribunal, em três casos concretos, com fundamento na sua ilegalidade.
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, quando os efeitos de uma norma se produzam imediatamente, sem dependência de um acto administrativo ou jurisdicional de aplicação, o lesado ou qualquer das entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º pode obter a desaplicação da norma pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto.
3 - O Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º, com a faculdade de estas se constituírem como assistentes, pode pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, sem necessidade da verificação da recusa de aplicação em três casos concretos a que se refere o n.º 1.
4 – (...).
5 – (...).»


Por força do disposto no n.º 3 deste artigo, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento das entidades previstas no n.º 2 do artigo 9.º, pode «pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral», não ficando tal pedido dependente da prévia recusa de aplicação da mesma norma em três casos, exigência esta que é feita aos «interessados» em geral.

Por força do disposto no n.º 1 deste artigo, são interessados na declaração de ilegalidade aqueles que sejam efectivamente «prejudicados pela aplicação da norma, ou que «possam previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo».

A legitimidade é assim atribuída ao Ministério Público e a quem seja efectivamente lesado pela norma ou se encontre numa situação de em prazo razoável vir a ser afectado pela mesma.

Tal como referem MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, é «a circunstância de o MP actuar na defesa do interesse geral da legalidade que justifica que a dedução do pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral não fique dependente, no caso de o impulso processual pertencer ao MP, da necessidade de verificação da recusa de aplicação em três casos concretos»([41]), inserindo-se a intervenção desta magistratura no âmbito da acção pública.

4 – A declaração de ilegalidade por omissão tem o seu assento no artigo 77.º daquele código, que estabelece:
«Artigo 77.º
Declaração de ilegalidade por omissão
1 - O Ministério Público, as demais pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos no n.º 2 do artigo 9.º e quem alegue um prejuízo directamente resultante da situação de omissão podem pedir ao tribunal administrativo competente que aprecie e verifique a existência de situações de ilegalidade por omissão das normas cuja adopção, ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação.
2 - Quando o tribunal verifique a existência de uma situação de ilegalidade por omissão, nos termos do número anterior, disso dará conhecimento à entidade competente, fixando prazo, não inferior a seis meses, para que a omissão seja suprida.»

Por força do disposto no n.º 1 deste artigo, o pressuposto deste meio processual de fiscalização da legalidade administrativa consiste na existência de uma situação em que uma autoridade administrativa se encontre onerada, ao abrigo do direito administrativo, com o dever de emitir normas cuja adopção «seja necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação» e omite o cumprimento desse dever.

É esta omissão de cumprimento de uma imposição de regulamentação, quer a mesma resulte directamente e de forma expressa da “lei” a regulamentar, quer derive do facto de aquela lei não poder ser executada sem os desenvolvimentos da respectiva regulamentação, que constitui o fundamento desta providência.


5 - Tal como acima se referiu, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos insere-se no âmbito da auto-regulação da actividade médica prosseguida através da Ordem e esta auto-regulação implica a faculdade de adopção de regulamentos.

Considerou-se igualmente que se tratava de um regulamento autónomo adoptado pela Ordem ao abrigo de normas legais do Estatuto que lhe conferiam os poderes para o efeito, mas que na sua elaboração a Ordem tinha total autonomia, não estando a concretizar linhas de orientação fixadas no Estatuto ou em qualquer outro diploma legal.

Na sua essência o código exprime a autonomia da Ordem na definição dos parâmetros deontológicos a que deve ser submetido o exercício da actividade médica, tendo o legislador delegado inteiramente naquela instituição a elaboração desse instrumento normativo, o que a especificidade da matéria e o conhecimento da mesma que é inerente à classe médica justificavam.

Neste sentido, o código não dá execução a quaisquer disposições consagradas noutros instrumentos, nomeadamente de natureza legal, assumindo com inteira autonomia um espaço definido pela lei, não sendo claramente um regulamento de execução de uma disciplina normativa pré-existente.

Ou seja, o Estatuto da Ordem dos Médicos é inteiramente exequível independentemente da adopção ou não do Código Deontológico, existindo uma total autonomia entre a eficácia daquele Estatuto e a do referido código.

Não se trata, efectivamente, de um regulamento de execução daquele Estatuto, conforme se referiu, tendo inteira autonomia, no seu conteúdo, em relação ao mesmo.

O Estatuto da Ordem dos Médicos é, assim, uma lei auto-exequível e não perde essa natureza pelo facto de prever a atribuição à Ordem da competência para elaboração do referido Código.

De facto, conforme refere ANDRÉ SALGADO DE MATOS, «o simples facto de uma lei conter uma norma remissiva da disciplina de determinados aspectos do seu objecto para regulamentos a emitir posteriormente, eventualmente estabelecendo um expresso dever de regulamentar, não significa que essa lei deixe de ser auto-exequível. O carácter de não auto-exequibilidade só pode derivar de uma afirmação expressa (...) ou então da circunstância de a densidade normativa de determinadas disposições nela contidas ser de tal maneira baixa que, na ausência de uma concretização regulamentar, expressa ou implicitamente exigida, a sua aplicação se torna inviável»([42]).


6 – No caso da pergunta formulada pelo Ministério da Saúde está em causa a «não adequação do Código Deontológico à nova versão do Código Penal - enquanto não emanação de uma norma que deve ser emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo», essencialmente, os referidos artigos 47.º e 48.º daquele código.

A adequação do Código Deontológico ao regime em vigor da interrupção voluntária da gravidez implica a substituição das normas ilegais pela afirmação da vigência, nesta sede, dos comandos legais.

Em síntese, poder-se-ia afirmar que “a interrupção voluntária da gravidez fora dos casos legalmente previstos, constituiria falta deontológica”.

É, aliás, a solução de outros sistemas jurídicos em que o Código Deontológico tomou posição expressa sobre esta matéria.

Assim, em Espanha, no artigo 23.º do «Código de Ética y Deontologia Médica» estabelece-se que «O médico é um servidor da vida humana. Não obstante, quando a conduta do médico relativamente ao aborto seja levada a cabo nos casos legalmente descriminalizados, não será sancionada estatutariamente»([43]).

Na Itália, o Código de Deontologia Médica, aprovado em 15 de Dezembro de 2006, estabelece, no seu artigo 41.º, que tem por epígrafe «A interrupção voluntária da gravidez», que «A interrupção da gravidez fora dos casos previstos na lei constitui grave infracção deontológica tanto mais se cometida com intenção lucrativa»([44]).

Por seu lado, em França, no artigo 18.º do «Code de Deontologie Medicale» - artigo R. 4127- 19 do «Code de Santé Publique»[45] determina que «um médico não pode praticar uma interrupção voluntária da gravidez fora dos casos e das condições previstas na lei»[46].

A inexistência de uma norma com este conteúdo ou análogo no Código Deontológico da Ordem dos Médicos, não afecta a eficácia do mesmo nos restantes domínios e não impede que a aplicação directa do regime geral em vigor conduza aos mesmos resultados, em sede de deontologia médica.

De facto, a interrupção voluntária de gravidez por parte de médico, fora das condições legais, integra a prática de um crime previsto no artigo 140.º do Código Penal.

Tal crime tutela a vida intra uterina, «como decorrência da dignidade da pessoa em formação e ainda da igualdade entre os cidadãos»([47]).

Esta conduta, para além da responsabilidade criminal do seu autor, viola também o n.º 1 do artigo 47.º do Código Deontológico que não contraria o sistema jurídico em vigor.

A não adequação do Código Deontológico ao artigo 142.º do Código Penal, traduzida na integração no mesmo de uma ressalva à proibição genérica do aborto, decorrente do n.º 2 do referido artigo 47.º, não afecta a eficácia jurídica e a instrumentalidade do mesmo código relativamente ao condicionamento da actividade médica.

Seria assim discutível que existisse qualquer interesse em agir numa acção administrativa especial que visasse a coação por via judicial da Ordem dos Médicos à pretendida adaptação, quando o sistema jurídico já produz o mesmo resultado na ausência dessa norma.

Pode, assim, concluir-se que não é possível instaurar uma acção contra a Ordem do Médicos, com fundamento na omissão de regulamentar prevista no artigo 77.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, por não ter adequado o Código Deontológico às exigências decorrentes do regime em vigor da interrupção voluntária da gravidez.

Daqui não decorre que não deva ser declarada a ilegalidade dos n.os 2 e 3 daquele artigo 47.º, na parte relativa ao aborto, e do artigo 48.º, por serem manifestamente contrários à lei.

De facto, o Código Deontológico, pela sua própria natureza é um instrumento orientador da actividade médica.

Não é admissível que, contra lei expressa, aquele código continue a afirmar a existência de faltas deontológicas, onde o sistema jurídico afirma hoje a licitude de condutas.

Ao afirmar tal falta deontológica sem qualquer fundamento legal, em revelia ao sistema jurídico globalmente considerado, aquele Código é susceptível de induzir em erro os seus destinatários, condicionando a sua actividade.

A reafirmação da legalidade como expressão da vontade colectiva e a harmonia do sistema jurídico no seu todo impõem, pois, que aquelas normas sejam retiradas do Código em causa, e, uma vez que não o foram voluntariamente pelos responsáveis daquela instituição, desde 1984, deverá o Ministério Público instaurar a competente acção administrativa para o efeito.


7 – A declaração de ilegalidade com força obrigatória geral daquelas normas do Código Deontológico em vigor, vai exigir que seja igualmente equacionada a declaração de ilegalidade das normas dos artigos 50.º e 51.º do Código de 1981, acima referidas, que padecem dos mesmos vícios que justificam a declaração de ilegalidade das normas do Código de 1985.

Na verdade, a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, nos termos do n.º 1 do artigo 76.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, determina, em regra, a repristinação das normas que ela haja revogado.

Dispõe aquele do artigo 76.º do referido código:
«Artigo 76.º
Efeitos da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral
1 - A declaração com força obrigatória geral da ilegalidade de uma norma, nos termos previstos neste Código, produz efeitos desde a data da emissão da norma e determina a repristinação das normas que ela haja revogado.
2 – O tribunal pode, no entanto, determinar que os efeitos da decisão se produzam apenas a partir da data do trânsito em julgado da sentença quando razões de segurança jurídica, de equidade ou de interesse público de excepcional relevo, devidamente fundamentadas, o justifiquem.
3 – (...).»


Decorre do disposto neste artigo que a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de uma norma administrativa determina a invalidação da mesma, produz efeitos desde a data de emissão dessa norma, e dá origem, também, à repristinação automática das normas que tenham sido revogadas por ela.

Tal como acima se referiu, as normas do Código Deontológico da Ordem dos Médicos de 1981 relativas à interrupção voluntária da gravidez mostram-se afectadas do mesmo vício que justifica a declaração de ilegalidade, das normas dos n.º 2 e 3 do artigo 47.º e do artigo 48.º do código em vigor.

A declaração de ilegalidade com força obrigatória geral prevista naquele artigo 76.º consagra um regime similar ao da declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral, previsto no artigo 282.º da Constituição da República.

Debruçando-se sobre o regime de repristinação previsto no n.º 4 daquele artigo 282.º, referiu GOMES CANOTILHO:

«Embora não se estabeleçam restrições aos efeitos repristinatórios, estes não devem aceitar-se incondicionalmente. Tendo em conta a sua razão de ser, é lógico que: (i) existam esses efeitos quando entre nenhuma norma e a norma repristinada, seja esta a solução mais razoável; (ii) não existam quando a norma declarada inconstitucional não tiver revogado qualquer norma anterior. No caso de a norma repristinada ser inconstitucional, não está vedado ao TC a possibilidade de conhecer dessa inconstitucionalidade para fundamentar nela a recusa de efeitos repristinatórios (cfr. Ac. TC 56/84). Mais duvidoso por violar o princípio do pedido) é a possibilidade de o TC conhecer e declarar a inconstitucionalidade das normas repristinadas (Ac. 452/95, DR, II, 21-11)»([48]).

No processo que deu origem ao Acórdão n.º 452/95, de 6 de Julho de 1995, do Tribunal Constitucional, foi requerida subsidiariamente a declaração de inconstitucionalidade das normas que seriam repristinadas na sequência da declaração de inconstitucionalidade, tendo aquele Tribunal considerado que a ponderação da inconstitucionalidade das normas em causa nesse contexto não implicava a violação do princípio do pedido.

Referiu-se naquele acórdão que: «em situações destas, nas quais é o próprio requerente a solicitar, a título subsidiário e cumulativo, a apreciação e a declaração de inconstitucionalidade das normas revogadas pelas normas cuja declaração de inconstitucionalidade é pedida, a título principal, com o objectivo de evitar a sua repristinação, nenhum obstáculo processual existe ao conhecimento da eventual inconstitucionalidade de tais normas.»

Dada similitude dos institutos e as preocupações que os inspiram, nada impede que a Doutrina e a Jurisprudência acima referidas sejam transpostas para o domínio da defesa da legalidade administrativa, podendo, deste modo, o tribunal conhecer no processo em que é pedida a declaração da ilegalidade, com força obrigatória geral, da ilegalidade das normas que seriam repristinadas, face à procedência da declaração de ilegalidade, afastando, desse modo, tal repristinação([49]).

Acresce que, tal como acima se referiu, o Código Deontológico de 1981 não revogou qualquer instrumento normativo de natureza administrativa, uma vez que a sua entrada em vigor determinou a caducidade das normas consagradas no anterior estatuto da Ordem dos Médicos dobre deontologia que ainda se mantinham em vigor.


VIII


1 – O Ministério da Saúde pretende ainda que este Conselho se pronuncie sobre uma última questão, que vem formulada nos seguintes termos: «O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, em particular o seu artigo 30°, será inconstitucional, designadamente por violação do direito fundamental à liberdade de consciência dos médicos (artigo 41.°, n.º 1, da Constituição), bem como pela violação do princípio da legalidade (artigo 266.°, n.º 2, da Constituição), na sua modalidade de preferência ou prevalência de lei, que impõe a subordinação absoluta do regulamento à lei?»

Não resultam do ofício dirigido a esta Procuradoria-Geral quaisquer elementos que sirvam de fundamento à primeira parte desta última questão, nomeadamente as razões pelas quais se questiona o Código Deontológico, no seu todo, designadamente por violação do «direito fundamental à liberdade de consciência dos médicos» e ao princípio da legalidade.

À luz da análise que se fez daquele Código pode concluir-se que o mesmo é um instrumento da natureza jurídica com inteiro suporte na autonomia reguladora da actividade médica que incumbe à Ordem prosseguir.

Afigura-se-nos ser esse o espaço de recondução daquele Código ao sistema jurídico globalmente considerado, afastando-se a linha de orientação que esteve subjacente ao parecer deste Conselho de n.º 99/82, de 14 de Junho de 1982.

O facto de o sistema jurídico aceitar que a disciplina normativa da actividade médica seja prosseguida por um instrumento desta natureza não afasta, antes impõe, a conformidade das disposições do mesmo com aquele sistema, por aí se fazendo a afirmação do princípio da preferência da lei.

As desconformidades com a lei que aquele Código apresente devem ser corrigidas pela via dos instrumentos de natureza processual previstos no Código de Processo nos Tribunais Administrativos que foram igualmente referidos.

Do mesmo modo, se alguma norma daquele código se mostrar afectada de inconstitucionalidade, este vício, por determinação expressa do n.º 2 do artigo 72.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, fica excluído da impugnação de normas prevista naquele código, sendo matéria da competência do Tribunal Constitucional.

Concentra-se, deste modo, a abordagem da questão formulada no artigo 30.º do Código Deontológico, pretendendo dar-lhe resposta, primeiramente no sentido de saber se o mesmo artigo viola o princípio da legalidade (artigo 266.º, n.º 2 - na sua modalidade de preferência ou prevalência de lei, que impõe a subordinação absoluta do regulamento à lei, e depois no sentido de saber se o mesmo artigo se mostra afectado de inconstitucionalidade, por violação do direito fundamental à liberdade de consciência dos médicos (artigo 41.º, n.º 1, da Constituição).


2 - A natureza regulamentar do Código Deontológico, origina para além disso, uma específica questão de constitucionalidade de natureza formal que o afecta no seu todo e que se situa no âmbito da consulta formulada pelo Ministério da Saúde.

Tal como se referiu, aquele Código tem a natureza de um regulamento, estando por tal motivo sujeito à disciplina própria desta forma de actividade administrativa.

Na data em que aquele Código foi publicado – Março de 1985 – encontrava-se já em vigor o artigo 115, n.º 6.º, da Constituição da República([50]), que corresponde ao artigo 112.º, n.º 8, da versão em vigor da Lei Fundamental([51]), que impõe que «os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão».

Esta norma afirma o princípio da precedência de lei e o dever de indicação da lei habilitante, a que estão sujeitos todos os regulamentos.

«Esta dupla exigência torna ilegítimos não só os regulamentos carecidos de habilitação legal mas também os regulamentos que, embora com provável fundamento legal, não individualizam, expressamente este fundamento»([52]).

A exigência de indicação expressa da lei habilitante destina-se «não apenas a disciplinar o uso do poder regulamentar (obrigando o Governo e a Administração a controlarem em cada caso, a habilitação legal de cada regulamento) mas também em garantir a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevante à luz da principiologia do Estado de direito democrático»([53]).

O Código Deontológico da Ordem dos Médicos não indica de forma expressa, nem implícita, as normas do Estatuto daquela Ordem que são a sua lei habilitante.

Além disso, aquele Código não contém qualquer relatório ou preâmbulo que identifique aquela lei habilitante e não foi publicada juntamente com o mesmo a deliberação do órgão competente de que resultou a sua aprovação.

Consta-se, assim, que aquele Código não cumpre o disposto no mencionado n.º 6 do artigo 115.º da Constituição da República, na versão que se encontrava em vigor na data em que o mesmo foi publicado, ou seja o n.º 8 do artigo 112.º da versão hoje em vigor.

Tal omissão representa a preterição de um «requisito objectivo formal do regulamento»([54]) e acarreta a inconstitucionalidade formal do mesmo, materializada na «ausência de um elemento formal constitucionalmente necessário»([55]).

Conforme se considerou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 117/2006, de 8 de Fevereiro de 2006, «a indicação expressa do diploma legislativo que se visa executar ou das normas que definem a competência subjectiva e objectiva para a emissão do regulamento independente não pode ser dispensada mesmo que, eventualmente, sejam identificáveis com forte probabilidade, aquele diploma ou normas»([56])([57]).

Pode, assim, concluir-se que o Código Deontológico da Ordem dos Médicos padece de inconstitucionalidade formal, por violação do disposto no artigo 112.º, n.º 8, da Constituição da República.


3 – O Ministério da Saúde pergunta se o artigo 30.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade «decorrente do artigo 266.º, n.º 2 – da Constituição da República, na sua modalidade de preferência ou prevalência de lei, que impõe a subordinação absoluta do regulamento à lei».

Aquele artigo 30.º tem o seguinte teor:
«Artigo 30.º
(Objecção de consciência)
O Médico tem o direito de recusar a prática de acto da sua profissão quando tal prática entre em conflito com a sua consciência moral, religiosa ou humanitária, ou contradiga o disposto neste código.»


Resulta do artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República que «os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade».

A subordinação à Constituição traduz o princípio da constitucionalidade da administração que «não é outra coisa senão a aplicação no âmbito administrativo, do princípio geral da constitucionalidade dos actos do Estado (cfr. art. 2.º -2 e 3): todos os poderes e órgãos do Estado (em sentido amplo) estão submetidos às normas e princípios hierarquicamente superiores da Constituição»([58]).

Por sua vez, a subordinação da Administração à lei dá conteúdo ao princípio da legalidade que se analisa em «duas dimensões fundamentais: (a) princípio da legalidade negativa da administração, expresso através do princípio da prevalência da lei; (b) princípio da legalidade positiva da administração traduzida no princípio da precedência da lei»([59]).

De acordo com o primeiro destes princípios, os actos da administração, inclusive os normativos, devem conformar-se com as leis, sob pena de ilegalidade. Decorre do segundo princípio que a Administração «só pode actuar com base na lei ou mediante autorização» da mesma.

«O princípio da prevalência da lei significa que a lei deliberada e aprovada pelo Parlamento tem superioridade e preferência relativamente a actos da administração (regulamentos, actos administrativos (...). O princípio da prevalência de lei vincula a administração, proibindo-lhe quer a prática de actos contrários à lei (proibição de desrespeito da lei) quer impondo-lhe a adopção de medidas necessárias e adequadas ao cumprimento da lei (exigência de aplicação da lei)»([60]).

O princípio da legalidade «aponta para um princípio de âmbito mais abrangente: o princípio da juridicidade da administração, pois todo o direito – todas as regras e princípios da ordem jurídico-constitucional portuguesa – serve de fundamento e pressuposto da actividade da Administração»([61]).

Segundo FREITAS DO AMARAL, «no âmbito do Estado social de Direito, o conteúdo do princípio da legalidade abrange não apenas o respeito pela lei, em sentido formal ou em sentido material, mas a subordinação da Administração pública a todo o bloco legal (Hauriou), a saber: a Constituição; a lei ordinária; o regulamento (...) e tem por objecto «todos os tipos de comportamento da Administração pública, a saber: o regulamento; o acto administrativo; o contrato administrativo, os simples factos jurídicos» e comporta duas modalidades: a preferência de lei e a reserva de lei»([62]).

De acordo com aquele autor, «A preferência de lei (ou legalidade limite) consiste em que nenhum acto de categoria inferior à lei pode contrariar o bloco de legalidade, sob pena de ilegalidade» e «A reserva de lei (ou legalidade-fundamento) consiste em que nenhum acto de categoria inferior à lei pode ser praticado sem fundamento no bloco de legalidade»([63]).


4 – A norma do artigo 30.º do Código Deontológico atribui aos médicos o direito à objecção de consciência de forma geral e abstracta sempre que lhes seja solicitada a prática de acto médico cuja execução entre em «conflito com a sua consciência moral, religiosa ou humanitária, ou contradiga o disposto neste código».

A objecção de consciência é um direito que não opera directamente carecendo da mediação da lei, por força do disposto no próprio artigo 41.º, n.º 6, da Constituição da República.

Tal como se referiu no parecer n.º 52/99, de 31 de Maio de 2001, deste Conselho([64]):

«Dito de outro modo, com a fórmula «nos termos da lei» logo se indicia que se inscreve no grupo das normas constitucionais não exequíveis por si mesmas”([65]), tratando-se, pois que a sua exequibilidade “depende apenas de factores jurídicos e de decisões políticas”, de norma preceptiva não exequível por si mesma([66]) .

Poderemos, concluir, portanto, que o n.º 6 do artigo 41.º da Constituição da República, ao proclamar que “É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei” exige, pelo menos para a sua plena funcionalidade, a interpositio legislatoris.

As áreas em que a mediação terá de operar dependem daquilo que o fluir da vida jurídica vá revelando ser necessário tratar; não há um numerus clausus de situações de objecção de consciência; como o caso presente demonstra, a questão só se suscita em virtude de alteração da lei ordinária; enquanto se punia toda e qualquer forma de aborto voluntário o problema da objecção de consciência perante actos abortivos não tinha objecto (...).

Não se julgue, sublinhe-se, que aquele direito não possa ser invocado na ausência de concretização pelo legislador. Pode, do mesmo modo que pode ser invocado contra concretização inconstitucional, mas a actividade concretizadora do legislador, cuja omissão pode levar à respectiva verificação pelo Tribunal Constitucional (artigo 283.º), é necessária à sua plena operatividade prática».

O direito à objecção de consciência só opera, assim, nos casos expressamente consagrados na lei e nos termos nesta concretamente referidos.

Independentemente das questões de natureza formal que suscita, ao afirmar um direito à objecção de consciência, directamente, fora da mediação legal e sem o enquadramento necessário ao exercício daquele direito, o artigo 30.º do Código Deontológico, viola as normas legais que disciplinam o direito à objecção de consciência e nesse sentido padece de ilegalidade.


5 - A disciplina legal do direito à objecção de consciência em matéria de interrupção voluntária da gravidez tem hoje assento no artigo 6.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, que estabelece:
«Artigo 6.º
Objecção de consciência
1 - É assegurado aos médicos e demais profissionais de saúde o direito à objecção de consciência relativamente a quaisquer actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez.
2 - Os médicos ou demais profissionais de saúde que invoquem a objecção de consciência relativamente a qualquer dos actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez não podem participar na consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal ou no acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar durante o período de reflexão.
3 - Uma vez invocada a objecção de consciência, a mesma produz necessariamente efeitos independentemente da natureza dos estabelecimentos de saúde em que o objector preste serviço.
4 - A objecção de consciência é manifestada em documento assinado pelo objector, o qual deve ser apresentado, conforme os casos, ao director clínico ou ao director de enfermagem de todos os estabelecimentos de saúde onde o objector preste serviço e em que se pratique interrupção voluntária da gravidez.»

A Lei n.º 16/2007, veio a ser regulamentada pela Portaria n.º 741 – A/2007, de 21 de Junho, que dedica ao regime da objecção de consciência o seu artigo 12.º, que prevê:
«Artigo 12.º
Objecção de consciência
1 - A objecção de consciência prevista no artigo 6.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, é manifestada em documento assinado pelo objector, cujo modelo indicativo consta do anexo III a esta portaria, que dela faz parte integrante.
2 - O documento referido no número anterior deve:
a) Ser apresentado, conforme os casos, ao director clínico, ao director de enfermagem ou ao responsável clínico do estabelecimento de saúde oficial, hospitalar ou de cuidados de saúde primários, ou oficialmente reconhecido, conforme o caso, onde o objector preste serviço;
b) Conter a indicação das alíneas do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal a que concretamente se refere a objecção.
3 - Os profissionais de saúde objectores de consciência devem assegurar o encaminhamento das mulheres grávidas que solicitem a interrupção da gravidez para os serviços competentes, dentro dos prazos legais.
4 - Os estabelecimentos de saúde oficiais em que a existência de objectores de consciência impossibilite a realização da interrupção da gravidez nos termos e prazos legais devem garantir a sua realização, adoptando, sob coordenação da administração regional de saúde territorialmente competente, as adequadas formas de colaboração com outros estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente \reconhecidos e assumindo os encargos daí resultantes.»


Resulta destes dispositivos a disciplina da objecção de consciência em matéria de interrupção voluntária da gravidez, no que se refere às condições de exercício deste direito e à organização dos serviços hospitalares, de forma a que o exercício do mesmo não afecte a salvaguarda dos «bens comunitários fundamentais».

Tal como acima se referiu, a norma do Código Deontológico afirma o direito à objecção de consciência, sem qualquer enquadramento do exercício do mesmo, deixando-o na discricionaridade do médico e sem qualquer preocupação pelas consequências do exercício daquele direito relativamente à salvaguarda de outros interesses comunitários, nomeadamente o normal funcionamento dos serviços a quem cabe a intervenção em matéria de interrupção de gravidez.

Aquela norma contraria, assim, de forma directa, os artigos 6.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, e 12.º da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho, a que devia obediência.

Aquele artigo 30.º do Código Deontológico, face ao acima exposto sobre a natureza regulamentar do mesmo, pode igualmente ser impugnado, nos termos do artigo 72.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, de forma a ser declarada a sua ilegalidade.

Pode, por outro lado, concluir-se que o artigo 30.º do Código Deontológico, no segmento normativo relativo à interrupção voluntária da gravidez, contraria o princípio da preferência ou prevalência de lei, referido no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República.

Tal afronta, contudo, não integra uma violação directa daquela norma constitucional, já que o vício que a afecta atinge, numa primeira abordagem, outras normas, quer constitucionais quer legais, nomeadamente as já referidas do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, relativas à reserva de lei e de competência da Assembleia da República para legislar sobre direitos fundamentais e do artigo 41.º, n.º 6, daquele diploma, sobre objecção de consciência.

É em função destas normas que são atingidas directamente que pode ser formulado um juízo de inconstitucionalidade daquela norma do Código Deontológico e não directamente sobre a norma do mencionado artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República.

De facto, esta é uma norma que estabelece os princípios gerais de enquadramento da actuação dos órgãos e agentes administrativos, sendo, claramente, uma norma sobre hierarquia ou de referência de normas.

A actuação daqueles órgãos e agentes obedece, em primeira linha, a outros dispositivos de natureza constitucional e legal e é sobre estas normas eventualmente violadas pelos agentes administrativos nas suas actuações que pode incidir um juízo de inconstitucionalidade.

Não pode, deste modo, deslocar-se a «questão da constitucionalidade, do terreno da inconstitucionalidade das normas, ou de dimensões normativas (normas entendidas num determinado sentido), para apreciação da actividade desenvolvida por»([67]) aqueles órgãos e agentes administrativos, situando o juízo de inconstitucionalidade na violação daquela norma de enquadramento do artigo 266.º, n.º 2, da Constituição.

O desrespeito pelos regulamentos do princípio da preferência ou da prevalência da lei, consagrado naquele artigo, constitui uma forma de inconstitucionalidade indirecta([68]) e tal como se referiu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 113/88, de Junho de 1988([69]), «só a inconstitucionalidade directa está sujeita ao específico sistema de garantia da Constituição previsto nos artigos 277.º e seguintes»([70]).

A desconformidade do mencionado artigo 30.º do Código Deontológico com o princípio da preferência ou prevalência de lei, consagrado no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República, não permite, pois, fundamentar um juízo autónomo de inconstitucionalidade daquela norma relevante em termos de fiscalização da constitucionalidade da mesma.


6 – Pretende igualmente o Ministério da Saúde saber se aquele artigo é inconstitucional, «designadamente por violação do direito fundamental à liberdade de consciência dos médicos (artigo 41.°, n.º 1, da Constituição».

O artigo 41.º, n.º 1 da Constituição da República, afirma que «A Liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável».

Tal como referem J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA «A liberdade de consciência consiste essencialmente na liberdade de opção, de convicções e de valores ou seja, a faculdade de escolher os próprios padrões de valoração ética ou moral da conduta própria ou alheia»([71]).

É nesta liberdade de escolha das referências – das matrizes - de natureza ética ou moral que são assumidas pelo indivíduo como linha de orientação na condução da sua vida que assenta o cerne deste direito fundamental.

Por sua vez, de acordo com aqueles autores, a liberdade de religião «é a liberdade de adoptar ou não uma religião, de escolher uma determinada religião de fazer proselitismo num sentido ou noutro, de não ser prejudicado por qualquer posição ou atitude religiosa ou anti-religiosa»([72]) que tem como suporte a não ingerência do Estado, quer pela via da proibição de religiões, quer pela não imposição da prática de qualquer religião.

A liberdade de culto é uma das componentes do direito à liberdade religiosa e incide sobre a prática colectiva ou individual, privada ou pública, de actos de cariz religioso expressivos da forma de respeito e de diálogo com o sobrenatural de uma concreta religião.

Na síntese de CRISTINA QUEIROZ, a liberdade de consciência, religião e culto, prevista no artigo 41.º da Constituição da República, compreende:
«a) a profissão de uma determinada religião ou crença, no sentido da determinação integral desse direito, incluindo o direito a professar uma concepção a-religiosa;
b) a liberdade de exercício dessa religião (exercitium religionis), podendo esta ser reclamada tanto pelas Igrejas como por quaisquer outras comunidades e instituições, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 12.º da Constituição;
c) a própria auto-determinação ou direito à existência dessas comunidades ou instituições religiosas;
d) a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respectiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas actividades;
e) e o direito geral à objecção de consciência»([73]).

O artigo 30.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos consagra o direito à objecção de consciência, fazendo-o em termos muito amplos, permitindo o incumprimento do dever médico quando a prática dos actos médicos derivados desse dever colida «com a consciência moral, religiosa ou humanitária, ou contradiga o disposto neste código».

O direito à objecção de consciência tem assento no n.º 6 do artigo 41.º da Constituição, que afirma: «É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei».

Como referem J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA o «direito à objecção de consciência (n.º 6) consiste no direito das pessoas de não cumprir obrigações ou não praticar actos que conflituem com os ditames da consciência de cada um»([74]), podendo ter como fundamento preocupações de natureza religiosa, morais filosóficas ou outras.

É nesta faculdade de recusa de cumprimento de actos devidos, quando a prática dos mesmos colida com os fundamentos que orientam o indivíduo nas suas opções de vida, que se materializa o direito à objecção de consciência.

Trata-se, contudo, de um direito que «está sob reserva de lei («nos termos da lei»), competindo-lhe delimitar o seu âmbito e concretizar o seu modo de exercício, sem poder desconhecer os seus aspectos mais relevantes»([75]).

Assim, este direito não pode ser exercido «senão nos termos da lei (n.º 6 in fine), à qual cabe estabelecer procedimentos equitativos destinados à verificação da seriedade dos motivos e à salvaguarda dos bens comunitários fundamentais»([76]).

A afirmação do direito à objecção de consciência, nos termos em que se mostra feita no artigo 30.º do Código Deontológico, não colide com o n.º 1 do artigo 41.º da Constituição, ou seja com a afirmação do direito à liberdade de consciência, de religião e de culto.

De facto, aquele artigo não introduz quaisquer restrições nesses direitos, uma vez que o seu âmbito é outro – o do direito à objecção - que é efectivamente um direito autónomo, embora derivado do direito de liberdade de consciência. O que o artigo faz é reconhecer esse direito à objecção, concretizando de facto o respeito pelas convicções individuais do objector.

Mesmo no segmento em que afirma o direito à objecção de consciência perante actos médicos que contrariem o Código Deontológico (a interrupção voluntária da gravidez, por exemplo) o artigo não está a limitar o direito à liberdade de consciência, está no fundo a afirmar esse direito.

Aquele artigo suscita, contudo, questões de constitucionalidade que se situam a outro nível.


7 – O direito à objecção da consciência tem o estatuto de direito fundamental decorrendo, conforme referimos, do artigo 41.º, n.º 6, da Constituição da República.

Por força deste estatuto, a definição do respectivo regime encontra-se sujeito a reserva relativa de competência da Assembleia da República, nos termos do artigo 165, n.º 1, alínea b), da Constituição da República, sendo certo que as restrições deste direito sempre estariam sujeitas ao princípio da reserva de lei, decorrente do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República.

De facto, a reserva de lei abrange não apenas as restrições deste direito, mas, mais do que isso, a sua própria regulação.

Conforme referem J. J GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, «A reserva de lei tem aqui um duplo sentido: (a) reserva de lei material, que significa que os direitos, liberdades e garantias não podem ser restringidos (ou regulados) senão por via de lei e nunca por regulamento, não podendo a lei delegar em regulamento ou diferir para ele qualquer aspecto desse regime; (b) reserva de lei formal, o que significa que os direitos, liberdades e garantias só podem ser regulados por lei da AR ou, nos termos do artigo 165.º, por decreto-lei governamental devidamente autorizado, havendo casos (os previstos no art. 164.º) em que não existe sequer essa possibilidade de delegação»([77]).

Por força deste princípio, não é possível disciplinar pela via do regulamento, qualquer que seja a sua natureza, matérias que incidam ou disciplinem direitos fundamentais.

Os regulamentos têm de respeitar a lei e não podem incidir «sobre matérias reservadas à competência da AR ou à competência da lei em geral. Esta interpretação não pode ser superada pela própria lei, mediante uma autorização de intervenção regulamentar em vez da lei»([78]).

Tendo em conta a natureza regulamentar do Código Deontológico, e, na medida em que o seu artigo 30.º estabelece uma disciplina de fundo sobre um direito fundamental, é forçoso concluir que aquele artigo, na dimensão normativa relativa à objecção de consciência, em matéria de interrupção voluntária da gravidez, padece da inconstitucionalidade formal e orgânica, por violação das normas dos artigos 165.º, n.º 1, alínea b), e 41.º, n.º 6, da Constituição da República.

IX

Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1.ª – O Estatuto da Ordem dos Médicos aprovado pelo Decreto-Lei n.º 282/77, de 5 de Julho, configura esta instituição como uma associação pública, integrada na Administração Autónoma e destinada ao enquadramento dos médicos na realização do interesse público inerente ao exercício da sua actividade profissional;

2.ª – Aquele Estatuto, à luz do disposto, entre outros, nos seus artigos 4.º, 6.º, 13.º, 79.º e 80.º, dota aquela instituição de uma ampla autonomia que inclui o poder regulamentar necessário à disciplina da actividade médica, no âmbito do qual cabe a aprovação do Código Deontológico da Ordem dos Médicos;

3.ª – Apesar dessa autonomia, nos termos do disposto no artigo 6.º, alíneas c) e d) daquele Estatuto, a Ordem está sujeita ao estrito cumprimento da Lei, estando igualmente obrigada a colaborar na política de saúde e a concorrer para o aperfeiçoamento do Serviço Nacional de Saúde;

4.ª – O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, por força da sua natureza regulamentar, deve obediência à Lei, não podendo conter disposições que a contrariem, ou invadir áreas que estejam a coberto de reserva de Lei;

5.ª – O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, em vigor, publicado na Revista da Ordem dos Médicos n.º 3/85 – Março de 1985, não indica expressamente as normas que definem a competência subjectiva e objectiva para a respectiva emissão, violando o disposto no artigo 115.º, n.º 6 , da Constituição da República, na versão em vigor na data em que foi publicado – artigo 112.º, n.º 8 da versão actual da Lei Fundamental;

6.ª – Os n.os 2 e 3 do artigo 47.º e o artigo 48.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, referido na conclusão anterior, são contrários ao disposto no artigo 142.º do Código Penal, na redacção emergente da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, e já eram igualmente contrários ao disposto no artigo 140.º do mesmo código, na redacção emergente da Lei n.º 6/84, de 11 de Maio;

7.ª – O artigo 30.º daquele código, no segmento normativo relativo à interrupção voluntária da gravidez, viola o disposto nos artigos 41.º, n.º 6, 165.º, n.º 1, alínea b), e artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República e contraria igualmente o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, e já violava o disposto no artigo 4.º da Lei n.º 6/84, de 11 de Maio;

8.ª – Nos termos dos artigos 72.º, n.º 1, e 73.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cabe ao Ministério Público instaurar acção administrativa especial tendente à declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade das normas dos artigos 30.º, 47.º e 48.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, referidas nas conclusões anteriores, bem como das disposições correspondentes (artigos 50.º, n.os 2 e 3, 51.º e 33.º) do Código Deontológico de 1981.








[1] Ofício n.º 4733, de 25-05-2007, registado na Procuradoria-Geral da República em 28/05/07.
[2] Segue-se de perto o parecer n.º 111/92, deste Conselho, de 25 de Fevereiro de 1993, inédito.
[3] “As Associações Públicas no Direito Português”, Estudos de Direito Público, n.º 10, Cognitio, 1985, p. 11.
[4] JORGE MIRANDA, “A Ordem dos Farmacêuticos como Associação Pública”, Estado & Direito, n.º 11, 1.º Semestre de 1993, p. 21.
[5] JORGE MIRANDA, “A Ordem dos Farmacêuticos como Associação Pública”, p. 21
[6] Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2007, pp. 423 e 424.
[7] Administração Autónoma e Associações Públicas, Reimpressão, Coimbra Editora, 2003, p. 79
[8] Idem, 79.
[9] Pareceres da Comissão Constitucional, 4.º volume, Imprensa Nacional, 1979, pp. 152 e ss.
[10] Alterado depois pontualmente pelos Decretos Leis n.ºs 48 587, de 23 de Setembro de 1968, 48 879, de 22 de Fevereiro de 1969 e 333/70, de 14 de Julho.
[11] Que dispõe na parte respectiva:
«Resolução n.º 11/78
Ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 146.º e no n.º 1 do artigo 281.º da Constituição, o Conselho da Revolução, a solicitação do Presidente da Assembleia da República e precedendo parecer da Comissão Constitucional, resolveu:
1.º (...).
2.º Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos seguintes artigos do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 282/77:
a) Artigo 6.º, alínea b), na parte que se refere a «relações de trabalho»;
b) Artigo 11.º, alínea c);
c) Artigo 70.º, na parte em que exclui o recurso para os tribunais judiciais das decisões que apliquem penas de suspensão e de expulsão;
d) Artigo 93.º, alínea c).»
[12] VITAL MOREIRA, Administração Autónoma e Associações Públicas, p. 493.
[13] Obra citada, pp. 216 e 217.
[14] Auto-Regulação Profissional e Administração Pública, Almedina, 1997, p. 69.
[15] VITAL MOREIRA, Auto Regulação Profissional e Administração Pública, 1997, pp. 69 e 70.
[16] Idem, p. 70.
[17] VITAL MOREIRA, Auto Regulação Profissional e Administração Pública, 1997, p.70.
[18] Artigo 64.º, alínea p), do Estatuto.
[19] “A Auto-regulação profissional dos médicos”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 134, Junho de 2001, p. 3923.
[20] Sobre a publicação dos regulamentos, cfr. RODRIGUES QUEIRÓ, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976, p. 476 e ss.
[21] Manual de Direito Administrativo, I Volume, 10.ª Edição, pp. 99.
[22] Ibidem.
[23] Administração Autónoma e Associações Públicas, p. 186
[24] Curso de Direito Administrativo, Vol II, Almedina, 2006, pp. 159 e 160.
[25] VITAL MOREIRA, Administração Autónoma e Associações Públicas, p. 183.
[26] RODRIGUES QUEIRÓ, Obra citada, p. 454.
[27] MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral, tomo I, p. 66.
[28] Obra citada, p. 96
[29] JORGE FIGUEIREDO DIAS e JORGE SINDE MONTEIRO, Responsabilidade Médica em Portugal, Lisboa, 1984, p. 60, em especial nota 149.
[30] Sobre os fundamentos da isenção de responsabilidade na interrupção da gravidez, cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pp. 166 e ss. e TERESA QUINTELA DE BRITO, Direito Penal – Parte Especial, Coimbra Editora, 2007, pp. 441 e ss.
[31] Segundo uma dada interpretação, poderão existir espaços da previsão dos artigos 47.º e 48.º do Código Deontológico que não contrariam o disposto no artigo 142.º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril.
Todavia, tendo em conta a conclusão a que se chegou, afigura-se não se justificar essa abordagem.
Sobre revogação de regulamentos, cfr. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 6.ª Reimpressão, pp. 200 e 201.
[32] Administração Autónoma e Associações Públicas, p. 185
[33] Artigos 65.º a 113.º do Decreto-Lei n.º 40 651, de 21 de Junho de 1956.
[34] Alterada pelas Leis n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro e n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro.
[35] Alterada pela Lei n.º 4 – A/2003, de 19 de Fevereiro.
[36] Sobre o anterior regime do contencioso dos regulamentos, cfr. JOÃO RAPOSO, “Sobre o contencioso dos regulamentos administrativos” Revista de Direito Público, Ano IV, Jan/Junho de 1990, n.º 7, pp. 27 e ss. e WLADIMIR BRITO, “A impugnação contenciosa dos Regulamentos”, Revista do Ministério Público, Ano 9.º, Janeiro – Junho de 1988, n.os 33 e 34, pp. 49 e ss.
[37] Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2.ª Edição, 2007, Almedina, p. 434.
[38] MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, volume I, Almedina, 2006, p. 437.
[39] MÁRIO AROSO e CARLOS A. F. CADILHA, Obra citada, p. 437.
[40] Artigo 72.º, n.º 1 do C.P.T.A.
[41] Obra citada, p. 444.
[42] ANDRÉ SALGADO DE MATOS, “Princípio da Legalidade e Omissão de Regulamentar”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Volume I, 199.
[43] Tradução livre.
[44] Tradução livre.
[45] O Código de Deontologia Médica em França está integrado no Código da Saúde Pública.
[46] Tradução livre.
[47] TERESA QUINTELA DE BRITO, Obra citada, p. 425.
[48] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7.ª Edição, (2.ª reimpressão) 2003, p. 1017.
[49] MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Obra citada, p. 451.
[50] Redacção emergente da Lei Constitucional n.º 1/82, de 20 de Setembro.
[51] Redacção emergente da Lei Constitucional n.º 1/2001, de 12 de Setembro.
[52] J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 1993, p. 514
[53] J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Obra citada, p. 516.
[54] MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral, tomo III, Dom Quixote, 2007, p. 253.
[55] J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Idem e Ibidem.
[56] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt.
[57] Uma síntese da evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria pode ver-se em MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral, tomo III, Dom Quixote, 2007, p. 255.
[58] J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 1993, p. 922.
[59] J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Idem, p. 923.
[60] J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ª Edição, Almedina, 2002, p. 256.
[61] Idem, p. 923
[62] Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2006, p. 50.
[63] Idem, p. 50.
[64] Inédito.
[65] JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, pág. 316.
[66] JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, pág. 251
[67] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 465/05, Proc. n.º 514/04, da 2.ª secção, de 21 de Setembro de 2005, in http://www.tribunalconstitucional.pt.
[68] JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo VI, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2005, p. 31.
[69] Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º volume, 1988, pp. 877 e ss.
[70] No mesmo sentido, cfr. Acórdão n.º 276/92, de 14 de Julho de 1992, in http://www.tribunalconstitucional.pt/
[71] Constituição da República Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 2007, p. 609.
[72] Idem, ibidem.
[73] “Autonomia e direito fundamental à liberdade de consciência, religião e culto. Os limites da intervenção do Poder Público”, Estudos em Comemoração dos cinco anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra Editora, 2001, pp. 315 e 316.
[74] Obra citada, p. 616.
[75] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Obra citada, p. 616.
[76] JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 451.
[77] Obra citada, pp. 396 e 397.
[78] VITAL MOREIRA, Administração Autónoma e Associações Públicas, pp. 188 e 189.