Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002941
Parecer: P000842007
Nº do Documento: PPA28022008008400
Descritores: AUTORIDADE DE SEGURANÇA ALIMENTAR E ECONÓMICA
CONTRA-ORDENAÇÃO
SEGREDO DE JUSTIÇA
ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL
ILÍCITO PENAL
PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
Livro: 00
Pedido: 11/14/2007
Data de Distribuição: 12/20/2007
Relator: LEONES DANTAS
Sessões: 01
Data da Votação: 02/28/2008
Tipo de Votação: UNANIMIDADE
Sigla do Departamento 1: PGR
Entidades do Departamento 1: DESPACHO DE S. EXA. PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
Privacidade: [01]
Data do Jornal Oficial: 07-04-2008
Nº do Jornal Oficial: 68
Nº da Página do Jornal Oficial: 15223
Data da Rectificação: 05/06/2008
Indicação 2: ASSESSOR: SUSANA PIRES
Ref. Pareceres:P001211980Parecer: P001211980
Legislação:CONST76 - ART20 N3 ART20; CPP87 - ART38 ART39 ART42 N2 ART55 N1 N2 N3 ART86 N1 N2 N3 N4 N5 N6 A) B)C) N7 N8 A) B) N9 A) B) N10 N11 N13 A) B) ART87 N1 N2 N4 ART88 N1 N2 A) B) N3 ART89 N1 N2 N3 N4 N5 N6; DL 232/79 DE 1979/07/24; DL 433/82 DE 1982/10/27 - ART32 ART33 ART41 ART50 ART55 N1 N2 N3 ART59 ART76 ART77 ART78 ; CPADM91 - ART2 N7; DL201/02 DE 2002/09/26 - ART215 N2; L 18/03 DE 2003/06/11 - ART17 N2; L59/98 DE 1998/08/25; CP82 ART371 N1 N2 A) B); DL 48/2007 DE 2007/08/29
Direito Comunitário:
Direito Internacional:
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:
Documentos Internacionais:DUDH - ART 10
CEDH- ART6 N1
Ref. Complementar:
Conclusões: 1.ª – Os interesses da investigação e a protecção da imagem social do arguido podem justificar a aplicação no processo contra-ordenacional do regime do segredo de justiça, resultante dos n.os 2 e 3 do artigo 86.º do Código de Processo Penal, nos termos do n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que «institui o ilícito de mera ordenação social e o respectivo processo»;

2.ª - Nos termos do n.º 2 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, incumbe à autoridade administrativa que dirige o processo proferir a decisão de sujeição do mesmo ao regime de segredo, oficiosamente, ou a requerimento do arguido;

3.ª – Imposto o regime de segredo, nos termos das conclusões anteriores, a autoridade administrativa pode permitir ou indeferir, conforme o caso, o acesso por parte do arguido ao processo, nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 89.º do Código de Processo Penal, aplicável também por força do disposto no n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro;

4.ª - As decisões administrativas proferidas nos termos das conclusões anteriores que decretem ou indefiram a sujeição a segredo, ou impeçam o acesso ao processo com fundamento no segredo, são susceptíveis de recurso de impugnação, para o tribunal, nos termos do 55.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro;

5.ª – Sujeito o processo ao regime de segredo de justiça, essa situação mantém-se, na sua dimensão externa, até à decisão proferida nos termos do artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, se antes não cessar por se ter esgotado o seu fundamento, a requerimento, ou oficiosamente;

6.ª – As restrições de acesso ao processo em segredo de justiça por parte do arguido, cessam com o cumprimento do disposto no artigo 50.º do referido Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro;

7.ª - O Ministério Público, no quadro actual, não tem qualquer intervenção no processo das contra-ordenações na sua fase administrativa, não lhe cabendo ali quaisquer tarefas de impulso processual ou de fiscalização da acção da autoridade administrativa;

8.ª - Nas situações em que a lei preveja a existência de intervenções judiciais relativamente a actos instrutórios do processo das contra-ordenações é aplicável relativamente a esses actos o disposto no n.º 1 do artigo 53.º do Código de Processo Penal.

Texto Integral:



Senhor Procurador-Geral da República,

Excelência:

I


O Inspector-Geral da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica dirigiu a esta Procuradoria-Geral, em 5 de Novembro de 2007, um ofício([1]) em que solicita «a elaboração de um parecer» sobre a aplicação ao processo das contra-ordenações do regime do segredo de justiça, consagrado no Código de Processo Penal, na sequência das alterações introduzidas através da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.

No cerne das preocupações daquela entidade, conforme resulta do referido ofício, está a sujeição do processo penal ao princípio da publicidade, na sua globalidade, decorrente do artigo 86.º, n.º 1, do Código de Processo Penal revisto, e o reflexo dessa publicidade sobre os arguidos, «nomeadamente tendo em atenção» as «limitações constantes do giro comercial e dos valores a proteger no âmbito da actividade comercial».

Preocupa igualmente aquela entidade o regime de acesso ao processo por parte dos arguidos, pretendendo também uma pronúncia sobre os termos em que «poderá, em processos por contra-ordenação, fornecer ao arguido, a um seu mandatário e a terceiros, na fase inicial do processo (a que antecede a fase do exercício do direito de defesa pelo arguido), elementos ou dar-lhes conhecimento do teor de actos processuais sem que tal implique, para o organismo, violação das regras do segredo de justiça».

Distribuído aquele Ofício ao Gabinete de V. Excelência foi ali elaborada informação em que se concluiu sugerindo a audição deste Conselho, nos termos do artigo 37.º, alínea e), do Estatuto do Ministério Público([2]).

Considerou-se como fundamento dessa sugestão que:
«- As questões colocadas pela ASAE se reconduzem a questões de legalidade no processamento de ilícitos contra-ordenacionais, exigindo interpretação jurídica das normas citadas, de cuja aplicação poderão decorrer consequências importantes e, eventualmente gravosas para direitos de sujeitos processuais;
- Se afigura desejável que, neste âmbito, seja alcançada uma interpretação que permita uniformidade de procedimentos entre as diversas autoridades administrativas competentes para o processamento das contra-ordenações;
- Tal interpretação se reveste de interesse para o processamento das contra-ordenações em geral, e, porventura, de interesse para as áreas de aplicação do direito contra-
-ordenacional em que a questão do segredo de justiça pode até adquirir contornos mais delicados – como sejam, por exemplo, as áreas relacionadas com o mercado de valores mobiliários ou com a concorrência».


Sugere-se na mencionada informação, em conclusão, que este Conselho, para além das questões colocadas pela ASAE, se pronuncie igualmente sobre o seguinte:

«a) – Em processo contra-ordenacional, poderá ser decretada a sujeição dos autos a segredo de justiça, por despacho do juiz e a requerimento do arguido ou de outro eventual sujeito processual, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais – n.º 2 do artigo 86.º;
b) Ou poderá tal sujeição ser decretada, nos termos do n.º 3 do artigo 86.º, sempre que os interesses da investigação ou os sujeitos processuais o justifiquem - n.º 3 do artigo 86.º;
c) Deverá a autoridade administrativa assumir no processo contra-ordenacional, e neste âmbito, as competências que em processo penal cabem ao Ministério Público, reconhecendo-se-
-lhe competências para decretar a sujeição dos autos a segredo de justiça;

d) O Ministério Público deve ou não intermediar a apresentação dos autos ao juiz de instrução quer para este decidir o requerido, no caso a), quer para apreciação em ordem à validação da decisão da sujeição dos autos a segredo de justiça, no caso b) – caso se entenda, que, neste caso, caberá à autoridade administrativa a decisão».

Cumpre emitir parecer, a que foi atribuída urgência.

II


1 - O Direito de Mera Ordenação Social foi introduzido no sistema jurídico português em 1979 através do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho([3]), no contexto da Reforma Penal que se veio a concretizar em 1982, onde aquele diploma foi substituído pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que define o regime geral em vigor daquele ramo do direito([4])([5]).

À introdução daquele direito estão subjacentes preocupações de natureza político-criminal que se centralizam na afirmação de que aquele novo ramo do sistema sancionatório público «estaria vocacionado para dar atenção a certas áreas de intervenção de que, nomeadamente pela sua componente social», o Estado «se não podia alhear, como a tutela do ambiente, aspectos diversos da economia nacional ou uma intervenção preventiva na área dos direitos dos consumidores»([6]).

Tratar-se-ia de áreas «carentes de tutela jurídica de carácter sancionatório e finalidades preventivas nas quais, de acordo com as valorações então dominantes, não se justificava uma resposta penal, já então orientada para uma intervenção de ultima ratio, conforme apontava o disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição de 1976»([7]).

Tal como se referia no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, «A necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções».

Surgia assim um novo ramo do direito sancionatório, autónomo do Direito Penal, como forma de garantir o princípio da subsidiariedade da intervenção penal, permitindo reservar o uso daquele direito para as situações em que estivessem em causa os interesses colectivos mais relevantes.

A autonomia do Direito das Contra-ordenações face ao Direito Penal surge, assim, como uma das justificações da própria existência deste ramo do direito e vai materializar-se na conformação de soluções de natureza substantiva e processual diversas das vigentes naquele.

O Direito das Contra-ordenações mantém, contudo, profundas ligações ao Direito Penal, que se materializam na existência de múltiplas soluções normativas comuns criadas no espaço da dogmática penal e que se fundamentam no facto de, tal como aquele, fazer parte do «direito sancionatório de carácter punitivo» que tem aquele ramo do direito como paradigma([8]).

Não admira, por isso, que o Direito Penal tenha sido definido como direito subsidiário, nos termos do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, e que, coerentemente, o Código de Processo Penal seja direito subsidiário, no que se refere ao regime processual, por força do disposto no artigo 41.º do mesmo Decreto-Lei.

Apesar da evolução que o Direito das Contra-ordenações sofreu ao longo do seu período de vigência e da aproximação que se verificou, em algumas áreas, ao Direito Penal, mantém-se ainda o fundamental das linhas estruturantes deste sector do sistema jurídico([9]).

2 - Por força do disposto no artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que tem por epígrafe «direito subsidiário», sempre que o contrário não resulte deste diploma, «são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal».

Decorre deste dispositivo a afirmação de que o Código de Processo Penal é direito subsidiário relativamente ao processo das contra-ordenações, o que pressupõe o recurso às soluções normativas daquele código sempre que se constate a inexistência de solução própria nos quadros do regime específico das contra-ordenações.

A importação das soluções daquele código não é, contudo, directa, devendo passar sempre que necessário por um processo de adaptação aos princípios e às soluções processuais próprias do Direito das Contra-ordenações, de forma a salvaguardar a harmonia do processo e a afastar disjunções que podem afectar a aplicação do direito.

Nas situações em que se constate a necessidade de recorrer às soluções do direito subsidiário impõe-se, pois, ao intérprete o cuidado de avaliar previamente as soluções do processo penal e a sua articulação com as especificidades do processo das contra-
-ordenações, de forma a respeitar os valores acima referidos, em conformidade com o comando legal «devidamente adaptados», constante daquela norma.


Só através deste processo de adaptação é possível salvaguardar a autonomia do processo das contra-ordenações face ao processo penal e respeitar os princípios e os valores que inspiram as especificidades das soluções processuais que consagra.

3 – A referida norma do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, tem eficácia em todas as fases do processo das contra-ordenações, sendo aplicável quer na fase administrativa, quer na fase do recurso de impugnação.

Na verdade, o processo das contra-ordenações não pode ser considerado como um procedimento administrativo especial para efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 2.º do Código do Procedimento Administrativo, pelo que está excluída a aplicação subsidiária, em primeira linha, deste código à fase administrativa do processo das contra-ordenações.

Embora o procedimento das contra-ordenações integre, na sua fase administrativa, uma actuação materialmente administrativa, esta forma de actuar sempre obedeceu a um procedimento próprio de natureza sancionatória, moldado a partir do processo penal, que é expressamente assumido como direito subsidiário.

Trata-se de uma fase de um processo que tem como direito subsidiário, na sua globalidade, o processo penal, nos termos do referido n.º 1 do artigo 41.º daquele Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

Os procedimentos especiais previstos no n.º 7 do artigo 2.º do Código do Procedimento Administrativo são aqueles que se encontram dispersos pela legislação administrativa, nomeadamente, os licenciamentos, os loteamentos urbanos, os procedimentos concursais e outros.

Não cabem nesse âmbito os procedimentos sancionatórios na medida em que tenham como direito subsidiário o direito processual penal, uma vez que é com este ramo do direito que aqueles procedimentos se articulam, já que foram moldados a partir dele, e é nesse procedimento que sistematicamente se inserem.

O Código do Procedimento Administrativo só seria, deste modo, direito subsidiário do processo das contra-ordenações se se desse como revogado o disposto no n.º 1 do artigo 41.º do regime geral das contra-ordenações, o que dada a especialidade desta norma, não seria possível sem uma referência expressa.

Acresce que sendo o processo das contra-ordenações um todo que se desdobra por várias fases, não pode o mesmo procedimento ter como direito subsidiário numa fase o Código do Procedimento Administrativo e noutra fase o Código de Processo Penal, o que criaria distorções inaceitáveis.

Tal como refere COSTA PINTO, a solução que se defende, «apesar de implicar como que uma metamorfose jurídica dos actos administrativos em actos de um processo de contra-ordenação, parece ser aquela que é ditada não só pelo enquadramento constitucional das garantias em processo de contra-ordenação, mas também pelo facto de o regime geral das contra-ordenações determinar a aplicação subsidiária do processo penal (artigo 41.º do regime geral) e equiparar os poderes instrutórios em processo de contra-ordenação aos poderes de polícia de investigação criminal (artigo 48.º, n.º 2), negando implicitamente qualquer recurso subsidiário ao Direito Administrativo»([10]).

Por outro lado, importa também não perder de perspectiva, tal como refere FIGUEIRDO DIAS, a «dificuldade prática – que em certos casos será mesmo de impossibilidade – de manter uma estrita e completa separação entre processo de contra-ordenação e processo penal. Não raramente sucederá, desde logo, que só no decurso do processo se poderá determinar se a conduta do arguido integra um crime, uma contra-ordenação, ou até uma e outro»([11]), o que justifica o regime de conversão do processo de contra-ordenação em processo penal, previsto no artigo 76.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, ou o regime de conhecimento de contra-ordenações no processo penal, decorrente dos artigos 77.º e 78.º do mesmo diploma.

4 – Um dos segmentos em que a autonomia do direito das contra-ordenações se afirma face ao Direito Penal é o do regime processual que, apesar das ligações que mantém com o processo penal, se distancia do mesmo, quer na estrutura do processo, quer no regime de múltiplos actos processuais.

De facto, concebido o Direito das Contra-ordenações como um instrumento de intervenção administrativa de natureza sancionatória no sentido de dar maior eficácia à acção administrativa, o núcleo fundamental dos poderes sancionatórios, quer ao nível da iniciativa processual, quer ao nível decisório propriamente dito, é atribuído à Administração, relegando a intervenção judiciária para um nível de subsidiariedade.

Incumbe deste modo à Administração o conhecimento das infracções e o respectivo sancionamento, sendo os tribunais chamados apenas a intervir, pela via do recurso de impugnação, em caso de discordância dos condenados relativamente às decisões proferidas, em primeiro nível, pela Administração.

Os tribunais intervêm igualmente em sede de execução das coimas emergentes das decisões condenatórias, quando não sejam pagas voluntariamente, e em caso de discordância de medidas de natureza transitória tomadas pela Administração ao longo do processo (artigo 55.º do regime geral).

Costuma falar-se em fase administrativa do processo para designar a intervenção administrativa no mesmo – que vai da notícia da infracção à decisão propriamente dita, prevista no artigo 58.º do regime geral – e em fase do recurso de impugnação, para designar o conjunto de actos processuais que vão da interposição do recurso à decisão do mesmo nos tribunais (artigos 62.º e ss. daquele regime).

Na fase administrativa do processo relevam três momentos que integram conjuntos de actos cuja compreensão é decisiva no contexto das questões colocadas no âmbito do presente parecer.

Configura-se assim um primeiro momento do processo que vai da notícia da infracção ao cumprimento do artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro; os actos subsequentes à intervenção prevista nesta norma agrupam o segundo momento do processo, seguindo-se a decisão final.

O artigo 50.º acima referido consagra o direito à audição e ao contraditório, sendo o espaço processual por excelência para o arguido ser confrontado com a factualidade que lhe é imputada no processo e respectiva qualificação jurídica.

Dispõe aquele artigo:
«Artigo 50.º
Direito de audição e defesa do arguido
Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.»

Na sequência desta audição o arguido pode requerer quaisquer diligências de prova que julgue relevantes a bem da sua defesa, que a autoridade administrativa deverá deferir, salvo impertinência manifesta das mesmas.

Segue-se a decisão do processo, que culmina a intervenção administrativa e através da qual os poderes sancionatórios são assumidos, seja qual for o sentido da decisão de que o processo venha a ser objecto: arquivamento, ou a aplicação de uma sanção.

A intervenção prevista no artigo 50.º surge, assim, como um momento fulcral do processo, situado entre a investigação preliminar e a decisão, assumindo-se como o espaço natural da defesa e do contraditório.

O regime geral das contra-ordenações não especifica uma forma através da qual a audição deva ser efectuada: o que exige é que ao arguido seja dado conhecimento da factualidade que lhe é imputada e da respectiva qualificação jurídica.

Tal conhecimento tanto pode ser levado a cabo numa audição formal, como através da notificação de uma peça processual – uma acusação - que integre aqueles elementos, ou da notificação dos elementos do processo que os contenham.

Alguns regimes especiais de contra-ordenações têm optado pela dedução formal de uma acusação, utilizando o conceito e os requisitos da acusação do Código de Processo Penal, que não a natureza e a respectiva função processual([12]).


5 - Nos termos do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, incumbe às autoridades administrativas «o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias».

As excepções previstas na parte final do mesmo artigo prendem-se com a articulação do ilícito de mera-ordenação social com o ilícito criminal, dando origem a um conjunto de normas que disciplinam o conhecimento daquele ilícito no processo penal, entre outras, as dos artigos 38.º e 39.º do mesmo diploma.

Para a prossecução desta actividade aquele diploma, no seu artigo 41.º, atribui às autoridades administrativas o complexo de direitos que materializam os poderes das autoridades competentes para o procedimento criminal, onerando-as igualmente com o conjunto de deveres que caracterizam a intervenção das autoridades judiciárias naquela forma de procedimento.

Esta transposição dos meios de intervenção do processo penal para o processo das contra-ordenações vai ao ponto de as próprias autoridades policiais terem no âmbito deste procedimento, nos termos do n.º 2 do artigo 48.º daquele regime geral, «direitos e deveres equivalentes aos que têm em matéria criminal».

O processo das contra-ordenação não conhece, contudo, ao nível da sua estrutura, a diferenciação entre impulso processual e decisão que caracteriza o processo penal, nem conhece a divisão entre fases preliminares e fases subsequentes que se verifica naquela forma de procedimento.

Por outro lado, o complexo de direitos afectados pela necessidade de prossecução desta forma processual não tem a dimensão daquela que se verifica no processo penal.

De facto, nos termos do artigo 42.º daquele Decreto-Lei, não é «permitida a prisão preventiva, a intromissão na correspondência ou nos meios de telecomunicações, nem a utilização de provas que impliquem a violação do segredo profissional».

Por outro lado, a lesão de outros direitos fundamentais, como a reserva da vida privada ou a integridade física, só é possível com o consentimento dos visados, insusceptível de qualquer forma de suprimento, por força do disposto no n.º 2 daquele artigo 42.º.

Não ocorrem, pois, nesta forma de procedimento as lesões de direitos fundamentais legitimadas na prossecução do processo que se verificam no processo penal e que são o fundamento da judicialização de um conjunto vasto de actos daquela forma de processo([13]).

São, deste modo, alheias ao processo, tal como ele emerge do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, a divisão de tarefas entre o juiz de instrução e o Ministério Público que se verifica no processo penal.

Por outro lado, as medidas tomadas no processo pelas autoridades administrativas e que podem afectar direitos, quer dos visados, quer de terceiros, são impugnadas através de uma especial forma de recurso, a prevista no artigo 55.º daquele diploma, que dispõe:
«Artigo 55.º
Recurso das medidas das autoridades administrativas
1 - As decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são susceptíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem.
2 - O disposto no número anterior não se aplica às medidas que se destinem apenas a preparar a decisão final de arquivamento ou aplicação da coima, não colidindo com os direitos ou interesses das pessoas.
3 - É competente para decidir do recurso o tribunal previsto no artigo 61.º, que decidirá em última instância.»

Na conformação do processo das contra-ordenações, comum, tal como ele emerge daquele diploma, não há, deste modo, lugar a actos judicializados, quer por intervenção directa do juiz de instrução, quer por autorização prévia, ou ratificação a posteriori.

É certo que se conhecem casos em que no âmbito de específicos regimes de contra-ordenações se prevê a possibilidade da realização de buscas domiciliárias, sujeitando-as a autorização judicial prévia. É o que se passa, por exemplo, com o disposto no 2.º do artigo 215.º do Regime Geral das Instituições de Crédito de Sociedades Financeiras([14]), ou com o disposto no n.º 2 do artigo 17.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, diploma que estabelece o regime jurídico da concorrência.

Trata-se, contudo, de disposições especiais, alheias ao processo das contra-ordenações, tal como se mostra configurado no respectivo regime geral, que não alteram os princípios que enquadram aquela forma de procedimento.

III


1 - A publicidade, entendida como o conhecimento do conteúdo do processo pelos sujeitos e simples participantes processuais e pelo público em geral, assume-se como um dos elementos estruturais do processo penal, no que se refere à determinação da sua forma, sendo uma das componentes do modelo garantístico que lhe está subjacente.

Embora tradicionalmente o princípio da publicidade tenha sido delineado em função da audiência de julgamento ele tem vindo a ter expressão crescente nas fases preliminares do processo.

Este alargamento da publicidade para as fases mais recuadas do processo situa-se no cerne de uma tensão entre a publicidade e o segredo que se verifica presentemente nos debates sobre a conformação do processo, em parte como reflexo da mediatização da sociedade e de a mesma ter determinado que o acompanhamento dos casos em apreciação na Justiça não se satisfaça já apenas com o espaço da audiência de julgamento.

A esse avanço estão igualmente subjacentes novas leituras em termos da conformação das garantias de defesa potenciadas pelo processo e do papel que a publicidade e o acesso ao conteúdo do mesmo podem desempenhar na estruturação dessas garantias.

Tendo, de facto, surgido como um dos corolários do Estado de Direito no que se refere à administração da Justiça, com repercussão directa na conformação das garantias de defesa do arguido, aquele princípio encontra a sua justificação última na necessidade de fiscalização e controlo da actividade dos tribunais pelos cidadãos, e no reforço da legitimidade e do acatamento das decisões destes.

De acordo com FIGUEIREDO DIAS, «Considerando (...) que o processo penal desempenha uma função comunitária, que é assunto da comunidade jurídica, bem se compreende a sua publicidade como forma óptima de dissipar quaisquer desconfianças que se possam suscitar sobre a jurisprudência e a imparcialidade com que é exercida a justiça penal e são formadas as decisões»([15]).

A publicidade da audiência de julgamento está consagrada hoje nos principais instrumentos internacionais sobre os Direitos do Homem, e concretamente no artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que refere:

«O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.»

Por outro lado, a Constituição da República, no seu artigo 206.º, determina que «As audiências dos tribunais são públicas, salvo quando o próprio tribunal decidir o contrário, em despacho fundamentado, para salvaguarda da dignidade das pessoas e da moral pública ou para garantir o seu normal funcionamento».

De acordo com ASSUNÇÃO ESTEVES, «O ideal iluminista da publicidade internaliza-se nas garantias constitucionais de um Processo Penal leal e justo. De proteger as partes de uma Justiça subtraída ao controlo público, a publicidade promove a confiança, a controlabilidade e a aceitabilidade das decisões. E, com isso, responde aos desafios de “estabilidade-estabilização” dos sistema jurídico»([16]).

2 - Tradicionalmente a exigência de publicidade do processo penal tem sido associada à fase de audiência e julgamento, sendo consensual a existência de limitações no acesso ao conteúdo do processo nas suas fases preliminares, quer para os sujeitos processuais, quer para o público em geral. Essas limitações materializam o conteúdo do chamado segredo de justiça.

No parecer deste Conselho n.º 121/80, de 23 de Julho de 1981([17]), definiu-se o segredo de justiça como «aquele especial dever, de que são investidas determinadas pessoas que intervêm no processo penal, de não revelar factos ou conhecimentos que só em razão dessa qualidade adquiriram».

O regime do segredo de justiça veda, ainda nos termos daquele parecer, o acesso ao conteúdo do processo, «em termos absolutos, a quem a lei não incluir no restrito número de pessoas autorizadas a nele intervir e a tomar conhecimento no todo ou em parte do mesmo».

Este conjunto de limitações no acesso à informação constante do processo e que é objecto do referido segredo tem encontrado na doutrina justificações nem sempre coincidentes.

Assim, no mencionado parecer deste Conselho n.º 121/80, referiu-se:

«O segredo de justiça em processo penal, serve assim variados interesses, alguns em notória tensão dialéctica: o interesse do Estado na realização de uma justiça isenta e independente, poupada a intromissões de terceiros, a especulações sensacionalistas ou a influências que perturbem a serenidade dos investigadores e dos julgadores; o interesse de evitar que o arguido pelo conhecimento antecipado dos factos e das provas, actue de forma a perturbar o processo, dificultando o apuramento daqueles e a reunião destas, senão mesmo subtrair-se à acção da justiça; o interesse do mesmo arguido em não ver publicamente revelados factos que podem não vir a ser provados sem que com isso se evitem graves prejuízos para a sua reputação e dignidade; enfim o interesse de outras partes no processo, designadamente os presumíveis ofendidos, na não revelação de certos factos prejudiciais à sua reputação e consideração social»([18]).

COSTA PINTO, debruçando-se sobre os fundamentos daquele segredo, refere que se trata «por um lado, de um mecanismo destinado a garantir a efectividade social do princípio da presunção de inocência do arguido, durante as fases processuais que estão cronologicamente distantes do julgamento (...); noutro plano, é uma forma de garantir condições de eficácia da investigação e de preservação de possíveis meios de prova, quer a obtida quer a eventual prova a obter; finalmente, como variante específica deste último aspecto, o segredo de justiça pode assumir igualmente uma função de garantia para pessoas que intervêm no processo – em particular as vítimas e as testemunhas»([19]).

Já A. MEDINA DE SEIÇA, põe em dúvida que alguns dos fundamentos tradicionalmente invocados «apresentem suficiente densidade normativa» como suporte das restrições de direitos que o segredo de justiça comporta, afirmando que não é líquido que a presunção de inocência «por si mesma justifique o segredo de justiça», quer na dimensão interna deste, quer na sua componente externa, e igual crítica dirige à presumível «perturbação da liberdade e da tranquilidade de julgar e de investigar»([20]).

Embora este autor aceite que a tutela do segredo de justiça se prende «nalguns aspectos de regime, com a protecção da vida privada e até da honra das pessoas envolvidas», refere que «a verdade é que essa tutela não participa dos fundamentos justificadores da sua existência nem com eles se confunde»([21]).

Conclui o mesmo autor, referindo que «a existência do segredo de justiça decorre primariamente de exigências de funcionalidade da administração da justiça, particularmente perante o risco de perturbação das diligências probatórias e de investigação. É essencialmente o perigo de inquinamento do material probatório susceptível de sofrer prejuízos caso os participantes processuais, sobretudo o arguido, conhecessem na sua plenitude a actividade de investigação»([22]) que justifica o regime do segredo de justiça.

3 - A compreensão do regime do segredo de justiça em vigor, sobretudo a identificação da multiplicidade de justificações que lhe estão subjacentes, não pode alhear-se da menção que a este instituto é feita no artigo 20.º, n.º 3, da Constituição da República, na redacção emergente da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro.

Refere aquele dispositivo, inserto num artigo que tem por epígrafe «acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva», que: «A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça».

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, depois de referirem que «a inserção, em sede do direito ao acesso ao direito e à tutela judicial efectiva, da protecção do segredo de justiça (n.º 3) não é facilmente intelegível», referem que «parece deduzir-se que a Constituição não consagra um direito ao segredo de justiça, mas considera o segredo de justiça, a definir por lei, como uma dimensão importante da tutela jurisdicional»([23]).

Afirmam ainda aqueles autores que «Ao constitucionalizar o segredo de justiça, a Constituição ergue-o à qualidade de bem constitucional, o que poderá justificar o balanceamento com outros bens ou direitos ou, até, a restrição dos mesmos, (...) mas não deve servir para contradizer o exercício dos direitos de defesa».

CUNHA RODRIGUES, por seu turno, refere que «A inclusão da matéria nos princípios gerais relativos a direitos e deveres fundamentais evidencia uma intenção que não tem por motivo a defesa da pretensão punitiva do Estado mas a posição dos cidadãos perante a justiça criminal»([24]).

JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, referem que «O legislador constitucional, ao inserir este preceito num artigo sobre acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva em geral e não no artigo 32.º, revela que a protecção do segredo de justiça não tem apenas em vista o processo penal e, nele, a protecção da eficácia da investigação e da honra do arguido. A questão da protecção do segredo de justiça assume alcance mais vasto, tutelando outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos como a reserva da intimidade da vida privada e familiar»([25]).

IV


1 – A Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto([26]), introduziu alterações significativas nos artigos 86.º, 87.º, 88.º e 89.º do Código do Processo Penal que estabelecem o regime do acesso ao processo e da divulgação do seu conteúdo, ficando esses dispositivos, na parte com interesse para o presente parecer, com o seguinte teor:
«Artigo 86.º
Publicidade do processo e segredo de justiça
1 - O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei.
2 - O juiz de instrução pode, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e ouvido o Ministério Público, determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais.
3 - Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas.
4 - No caso de o processo ter sido sujeito, nos termos do número anterior, a segredo de justiça, o Ministério Público, oficiosamente ou mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido, pode determinar o seu levantamento em qualquer momento do inquérito.
5 - No caso de o arguido, o assistente ou o ofendido requererem o levantamento do segredo de justiça, mas o Ministério Público não o determinar, os autos são remetidos ao juiz de instrução para decisão, por despacho irrecorrível.
6 - A publicidade do processo implica, nos termos definidos pela lei e, em especial, pelos artigos seguintes, os direitos de:
a) Assistência, pelo público em geral, à realização dos actos processuais;
b) Narração dos actos processuais, ou reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social;
c) Consulta do auto e obtenção de cópias, extractos e certidões de quaisquer partes dele.
7 - A publicidade não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova. A autoridade judiciária especifica, por despacho, oficiosamente ou a requerimento, os elementos relativamente aos quais se mantém o segredo de justiça, ordenando, se for caso disso, a sua destruição ou que sejam entregues à pessoa a quem disserem respeito.
8 - O segredo de justiça vincula todos os sujeitos e participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes, e implica as proibições de:
a) Assistência à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de acto processual a que não tenham o direito ou o dever de assistir;
b) Divulgação da ocorrência de acto processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação.
9 - A autoridade judiciária pode, fundamentadamente, dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, se tal não puser em causa a investigação e se afigurar:
a) Conveniente ao esclarecimento da verdade; ou
b) Indispensável ao exercício de direitos pelos interessados.
10 - As pessoas referidas no número anterior ficam, em todo o caso, vinculadas pelo segredo de justiça.
11 - A autoridade judiciária pode autorizar a passagem de certidão em que seja dado conhecimento do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, desde que necessária a processo de natureza criminal ou à instrução de processo disciplinar de natureza pública, bem como à dedução do pedido de indemnização civil.
12 – (...).
13 - O segredo de justiça não impede a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade judiciária, quando forem necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação:
a) A pedido de pessoas publicamente postas em causa; ou
b) Para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública.»
«Artigo 87.º
Assistência do público a actos processuais
1 - Aos actos processuais declarados públicos pela lei, nomeadamente às audiências, pode assistir qualquer pessoa. Oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, do arguido ou do assistente pode, porém, o juiz decidir, por despacho, restringir a livre assistência do público ou que o acto, ou parte dele, decorra com exclusão da publicidade.
2 - O despacho referido na segunda parte do número anterior deve fundar-se em factos ou circunstâncias concretas que façam presumir que a publicidade causaria grave dano à dignidade das pessoas, à moral pública ou ao normal decurso do acto e deve ser revogado logo que cessarem os motivos que lhe deram causa.
3 – (...).
4 - Decorrendo o acto com exclusão da publicidade, apenas podem assistir as pessoas que nele tiverem de intervir, bem como outras que o juiz admitir por razões atendíveis, nomeadamente de ordem profissional ou científica.
5 – (...).
6 – (...).»
«Artigo 88.º
Meios de comunicação social
1 - É permitida aos órgãos de comunicação social, dentro dos limites da lei, a narração circunstanciada do teor de actos processuais que se não encontrem cobertos por segredo de justiça ou a cujo decurso for permitida a assistência do público em geral.
2 - Não é, porém, autorizada, sob pena de desobediência simples:
a) A reprodução de peças processuais ou de documentos incorporados no processo, até à sentença de 1.ª instância, salvo se tiverem sido obtidos mediante certidão solicitada com menção do fim a que se destina, ou se para tal tiver havido autorização expressa da autoridade judiciária que presidir à fase do processo no momento da publicação;
b) A transmissão ou registo de imagens ou de tomadas de som relativas à prática de qualquer acto processual, nomeadamente da audiência, salvo se a autoridade judiciária referida na alínea anterior, por despacho, a autorizar; não pode, porém, ser autorizada a transmissão ou registo de imagens ou tomada de som relativas a pessoa que a tal se opuser;
c) (...).
3 - Até à decisão sobre a publicidade da audiência não é ainda autorizada, sob pena de desobediência simples, a narração de actos processuais anteriores àquela quando o juiz, oficiosamente ou a requerimento, a tiver proibido com fundamento nos factos ou circunstâncias referidos no n.º 2 do artigo anterior.
4 – (...).»
«Artigo 89.º
Consulta de auto e obtenção de certidão e informação por sujeitos processuais
1 - Durante o inquérito, o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil podem consultar, mediante requerimento, o processo ou elementos dele constantes, bem como obter os correspondentes extractos, cópias ou certidões, salvo quando, tratando-se de processo que se encontre em segredo de justiça, o Ministério Público a isso se opuser por considerar, fundamentadamente, que pode prejudicar a investigação ou os direitos dos participantes processuais ou das vítimas.
2 - Se o Ministério Público se opuser à consulta ou à obtenção dos elementos previstos no número anterior, o requerimento é presente ao juiz, que decide por despacho irrecorrível.
3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os autos ou as partes dos autos a que o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil devam ter acesso são depositados na secretaria, por fotocópia e em avulso, sem prejuízo do andamento do processo, e persistindo para todos o dever de guardar segredo de justiça.
4 - Quando, nos termos dos n.os 1, 4 e 5 do artigo 86.º, o processo se tornar público, as pessoas mencionadas no n.º 1 podem requerer à autoridade judiciária competente o exame gratuito dos autos fora da secretaria, devendo o despacho que o autorizar fixar o prazo para o efeito.
5 - São correspondentemente aplicáveis à hipótese prevista no número anterior as disposições da lei do processo civil respeitantes à falta de restituição do processo dentro do prazo; sendo a falta da responsabilidade do Ministério Público, a ocorrência é comunicada ao superior hierárquico.
6 - Findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1.º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação.»

2 - Uma análise comparativa da versão em vigor com a versão alterada permite encontrar o caminho para a resposta às questões que constituem o objecto do presente parecer.

Por força das alterações introduzidas no n.º 1 do artigo 86.º, o processo passa a ser dominado pelo princípio da publicidade desde o seu início, encontrando-se agora também o inquérito sujeito àquele princípio, sendo esta uma das inovações mais importantes da reforma.

O alargamento do princípio da publicidade para o inquérito levou à perda da autonomia do regime do segredo de justiça na instrução que vigorava na versão anterior do código desde as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.

A sujeição do inquérito ao princípio da publicidade e o inerente recuo do espaço do regime de segredo de justiça revelam um novo equilíbrio na dialéctica entre o segredo e a publicidade que está inerente ao processo penal.

O segredo de justiça, de regra passa a excepção, e assume na sua fundamentação equilíbrios diversos relativamente à anterior versão do código: o relevo das exigências de investigação face à tutela da imagem do arguido e dos interesses com ela conexos é claramente reduzido.

Deste modo, os sujeitos processuais arguido e o assistente e o simples ofendido, por força da nova redacção do n.º 2 deste artigo, passam a ter o direito ao segredo de justiça durante o inquérito, «sempre que a publicidade» possa «prejudicar» os respectivos direitos.

Este novo direito à sujeição do processo ao regime do segredo de justiça, a relevar na sua dimensão externa, efectiva-se a requerimento daqueles interessados e é concedido por despacho do juiz de instrução, que antes de decidir deve ouvir o Ministério Público.

Não especifica a lei nenhum pressuposto concreto para este direito, limitando-se à referência genérica ao «prejuízo dos direitos» de qualquer um deles que possa derivar da publicidade do processo.

Como os interesses dos participantes e sujeitos processuais podem ser contraditórios, era de esperar que a lei indicasse um critério relevante para a solução de eventuais conflitos.

Na verdade, o assistente, para além da protecção da sua imagem da divulgação dos factos que constituem o objecto do processo, como sujeito processual que é, auxiliar do Ministério Público, tem interesse na protecção dos interesses da investigação e no conjunto de elementos que daí derivam.

Por outro lado, o arguido independentemente da protecção da sua imagem, pode abdicar da mesma e ter interesse na publicidade do processo como instrumento da sua defesa.

No silêncio da lei, fica nas mãos do juiz de instrução ponderar o conflito, quando exista, e dar prevalência aos interesses que julgue mais relevantes, não podendo olvidar os elementos do segredo que servem objectivamente os interesses comuns.

3 - Os interesses da investigação que tradicionalmente foram uma das causas justificativas do segredo de justiça, motivam o regime decorrente do n.º 3 daquele artigo 86.º, na sua nova redacção.

Assim, quando o Ministério Público entender «que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem» pode determinar a sujeição do inquérito ao segredo de justiça. Esta determinação do Ministério Público está «sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas».

A validação desta decisão do Ministério Público pelo juiz de instrução pode colidir com função processual do segredo de justiça e com o equilíbrio desenhado no código nas relações entre as duas autoridades judiciárias.

Acresce que, tal como refere PEDRO PATTO, embora noutro contexto, não parece «que seja facilmente configurável (fora das situações em que estão em causa direitos do arguido de reacção a medidas de coacção) uma situação em que o juiz legitimamente sobreponha o seu critério a respeito da justificação do segredo de justiça ao do Ministério Público, ou porque não será sua função específica ajuizar dos reais interesses da investigação, ou porque não serão frequentes as situações em que os direitos de defesa do arguido se sobrepõem aos interesses da investigação já na fase do inquérito (...), tendo em conta que há fases processuais ulteriores onde vigora em pleno o princípio do contraditório»([27]).

O segredo determinado nos termos do n.º 3 do artigo 86.º pode ser levantado a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento dos sujeitos processuais, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, havendo intervenção do juiz de instrução em caso de conflito.

4 – A Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não alterou o conteúdo da noção de publicidade que resultava no n.º 2 do artigo 86.º na sua versão anterior, nem o regime de protecção da reserva da vida privada que resultava do n.º 3 desse artigo e que agora integram os n.os 6 e 7 da versão em vigor.

A publicidade do processo, por força do disposto no n.º 6 do mesmo artigo, «implica, nos termos definidos pela lei, e, em especial pelos artigos seguintes», os direitos de «assistência, pelo público em geral, à realização dos actos processuais», à «narração dos actos processuais, ou reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social» e «à consulta e obtenção de cópias, extractos e certidões de qualquer parte deles».

O conceito de publicidade que se encontra consagrado na alínea a) do no n.º 6 deste artigo 86.º foi moldado a partir da audiência de julgamento e da conformação desta como o espaço normal da prática de actos processuais abertos ao público.

A própria arquitectura dos tribunais e a estrutura das salas de audiência obedecem a esta preocupação, ou seja executar o acto num espaço onde o mesmo pode ser, em regra, acompanhado pelo público.

É a dimensão da audiência como espaço colectivo de sindicância da administração da Justiça que esse modelo consagra.

Esta realidade não é facilmente transponível para a conjunto de actos processuais levados a cabo nas fases preliminares do processo, pelo que a nova dimensão da publicidade pode dar origem a dúvidas sobre a possibilidade de o público, em geral, assistir à pratica de actos de inquérito ou de instrução, questão que é alheia ao objecto do presente parecer.

5 - Na pendência do segredo de justiça, o regime da «narração de actos processuais, ou a reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social» não sofreu alterações com incidência directa na matéria objecto do presente parecer, uma vez que as alterações introduzidas no artigo 88.º do Código de Processo Penal se dirigem a matérias que não têm incidência no processo das contra-ordenações e se manteve o teor da alínea b) do n.º 6 do referido artigo 86.º daquele código.

Já o regime de acesso ao conteúdo do processo previsto na alínea c) daquele n.º 6, por parte dos sujeitos e outros participantes processuais, sobretudo do processo em segredo de justiça, sofreu alterações significativas decorrentes em parte da sujeição do inquérito ao regime da publicidade e da nova configuração que o segredo de justiça ali adquiriu.

Assim, nos termos do n.º 1 artigo 89.º daquele código, «durante o inquérito, o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil» podem, mediante requerimento, consultar o processo e obter elementos dele constantes, nomeadamente, cópias extractos ou certidões, salvo se o processo se encontrar sujeito a segredo de justiça.

No caso de vigorar o regime de segredo de justiça, nos termos da parte final da mesma disposição, o Ministério Público pode opor-se a tal acesso se considerar «fundadamente, que pode prejudicar a investigação ou os direitos dos participantes processuais ou das vítimas». Em caso de divergência entre os requerentes e o Ministério Público, decide o juiz de instrução, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

A parte final daquele número deve ser lida de forma a abranger não apenas os direitos dos participantes processuais e das vítimas, mas também os direitos dos sujeitos processuais, para além do mais para ser harmonizada com o n.º 3 do artigo 86.º, na parte em que prevê que os interesses dos sujeitos processuais podem legitimar a sujeição do processo a segredo de justiça, determinado pelo Ministério Público.

Inovando profundamente relativamente ao direito anterior, o n.º 6 do artigo 89.º vem permitir ao arguido, ao assistente e ao ofendido o acesso a «todos os elementos do processo» quando estejam esgotados os prazos normais de duração do inquérito ou os prolongamentos dos mesmos que para este efeito foram introduzidos.

Esta norma tem como objectivo acelerar o andamento da investigação e antecipar por essa via o acesso ao conteúdo da mesma pela defesa.

Sugerindo a introdução de uma solução deste tipo, referia COSTA PINTO:

«Uma forma simples de fomentar o cumprimento dos prazos seria criar um efeito automático ex lege do decurso integral do prazo do inquérito, sem que houvesse acusação ou arquivamento, sobre o âmbito do regime e segredo de justiça: decorrido o prazo legal, seria quebrado o segredo interno, mantendo-se o segredo externo, podendo em conformidade o arguido, o assistente e o lesado ter acesso pleno aos autos para poderem decidir o que fazer a seguir em função dos elementos contidos no processo»([28]).

Os interesses da investigação que legitimaram a sujeição do processo ao regime do segredo cedem agora, prioritariamente, aos interesses da defesa que por esta via antecipa o acesso ao processo em situações onde se mantinha ainda a investigação sujeita a sigilo.

Conforme refere ANDRÉ LAMAS LEITE, pronunciando-se ainda sobre o projecto de revisão, subjacente a este norma, «Trata-se de um modo de não prejudicar os sujeitos processuais em virtude de atrasos que lhes não são, em geral imputáveis e, ao mesmo tempo, de um mecanismo de pressão sobre o MP e os órgãos de polícia criminal no sentido de uma utilização mais racional do tempo que o legislador entendeu razoável conceder-lhe para encerrar o inquérito»([29]).

Mau grado a lei preveja a prorrogação dos prazos do inquérito por «um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação», o facto de ter atribuído ao juiz de instrução a definição desse prazo, apesar de a direcção da investigação lhe não pertencer, surge objectivamente como um factor perturbador das rotinas tradicionais da investigação e dá um novo conteúdo aos prazos de duração do inquérito, que apesar da alteração continuam a ter uma natureza meramente ordenativa, não afastando a sua preclusão a validade e eficácia dos actos processuais.

6 – A Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, retocou o conteúdo da noção de segredo de justiça que resultava do n.º 4 do artigo 86.º na sua versão anterior.

Assim, de acordo com o n.º 8 daquele artigo, na versão resultante da referida lei, «o segredo de justiça vincula todos os sujeitos e participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes».

Nos termos desta disposição, são oneradas com o segredo de justiça as «pessoas que por qualquer título tenham tomado contacto com o processo» mas também aquelas que por qualquer título tenham tomado conhecimento «de elementos a ele pertencentes».

As dúvidas que se suscitaram sobre a dimensão subjectiva dos onerados com a obrigação de segredo, sobretudo por força da responsabilização criminal da violação dessa obrigação, não será alheia a esta alteração([30]).

Por força do disposto naquele n.º 8, o segredo de justiça implica as proibições de «assistência à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de acto processual a que não tenham o direito ou o dever de assistir» e a «divulgação da ocorrência de acto processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação».

Nos termos do n.º 13 deste artigo, a vigência do segredo de justiça «não impede a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade judiciária, quando forem necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação», a pedido de pessoas «publicamente postas em causa», ou «para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública».

7 – A violação do segredo de justiça integra a prática do crime previsto no artigo 371.º do Código Penal do seguinte teor:
«Artigo 371.º
Violação de segredo de justiça
1 - Quem, independentemente de ter tomado contacto com o processo, ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei de processo.
2 - Se o facto descrito no número anterior respeitar:
a) A processo por contra-ordenação, até à decisão da autoridade administrativa; ou
b) A processo disciplinar, enquanto se mantiver legalmente o segredo;
o agente é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias.»

O artigo pune a divulgação ilícita (quem der conhecimento), «no todo ou em parte», do «teor de acto do processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça», ou a «cujo decurso não for permitida a assistência do público».

Onerado com a obrigação de segredo, cuja violação é sancionada, é quem, tendo informação sobre o «teor de acto», «der conhecimento» do mesmo, independentemente da forma através da qual obteve esse conhecimento e de ter mantido ou não qualquer contacto com o processo.

A norma prevê igualmente a violação do segredo de justiça em processo de contra-ordenação, na alínea a) do seu n.º 2, fazendo coincidir o limite temporal do segredo, para este efeito, com a decisão da autoridade administrativa.

A decisão da autoridade administrativa prevista nesta norma é a decisão final do processo, prevista no artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro([31]).

V


1 - Encontramo-nos agora em condições de ensaiar a resposta às questões suscitadas e que constituem o objecto do presente parecer.

Pode afirmar-se que ocorrem no procedimento das contra-ordenações as razões justificativas do segredo de justiça que o fundamentam no processo penal.

De facto, também nesta forma de procedimento as necessidades da investigação, quer ao nível da individualização dos meios de prova, quer ao nível da protecção da prova já recolhida são fundamento bastante para que o processo seja sujeito ao regime de segredo.

Embora existam inúmeras contra-ordenações em que a investigação dos factos se esgota no respectivo auto de notícia, o Direito das Contra-ordenações foi implementado em áreas da actividade onde a investigação das infracções passa forçosamente por complexas peritagens e outras diligências que só podem ser levadas a cabo com a serenidade e a tranquilidade que só o regime de segredo potencia.

Com efeito, na fundamentação do segredo de justiça não pode deixar de se fazer apelo à serenidade e à independência de quem investiga, valores estes que não se compatibilizam com a discussão na comunicação social de actos processuais, com o confronto de testemunhas com depoimentos prestados, reais ou hipotéticos, e com a indução de depoimentos que o debate na comunicação social potencia.

A investigação de factos exige serenidade ao nível do seu planeamento e é incompatível com o debate público sobre o conteúdo dos elementos de prova já recolhidos no processo.

Mas ao lado dos interesses da investigação e da realização da justiça confluem no procedimento das contra-ordenações os interesses da protecção da imagem social do próprio arguido, a que hoje o processo penal atribuiu um relevo de primeiro plano e que já estava no núcleo do princípio da presunção de inocência e da própria justificação das fases preliminares do processo.

A protecção da imagem e consideração social do arguido, a que acresceram a de outros sujeitos ou meros participantes processuais, assume agora a natureza de um direito processual, nos termos do n.º 2 do artigo 86.º do Código de Processo Penal.

A necessidade de protecção daqueles interesses ocorre igualmente no âmbito do processo das contra-ordenações, agravada aqui com a dimensão dos interesses de natureza económica que podem ser injustamente afectados pela divulgação pública de um processo mal fundamentado.

Estes interesses, quer da investigação, quer da protecção da imagem do arguido são fundamento bastante para legitimar o segredo de justiça no processo de contra-ordenação, devendo ceder nessa medida o princípio da publicidade que é igualmente aplicável àquela forma de processo.

2 - A adaptação exigida pelo artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, deverá processar-se no respeito pela estrutura do processo contra-ordenacional.

Deste modo, por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 86.º do Código de Processo Penal, os arguidos e os visados com qualquer medida instrutória tomada no processo podem requerer à autoridade administrativa a sujeição do processo a segredo de justiça([32]).

Esta deverá ponderar na fundamentação da decisão a proferir a lesividade da pendência do processo para a imagem social do arguido e para os interesses económicos conexos com a mesma.

Deverá igualmente tomar em consideração que o interesse público no conhecimento dos factos tem outras fases do processo para ser integralmente realizado.

Não há no processo das contra-ordenações, tal como emerge daquele Decreto-Lei, outros sujeitos ou participantes processuais cujos interesses legitimem a sujeição do processo a segredo([33]).

Por outro lado, por aplicação do disposto nos n.os 3 e 4 do mesmo artigo, a autoridade administrativa pode, por sua iniciativa, sujeitar o processo ao segredo, sempre que entenda que as exigências da investigação, ou os interesses do arguido, o justificam.

Os conceitos de segredo decorrentes dos artigos 86.º, n.º 8, do Código de Processo Penal e os conceitos de publicidade decorrentes das alíneas b) e c) do n.º 6 daquele artigo, com as especificações decorrentes dos artigos 88.º e 89.º do mesmo código, no que se refere à divulgação pelos meios de comunicação social do conteúdo de actos e à consulta do auto e obtenção de cópias, extractos e certidões não têm especificidades no processo das contra-ordenações, sendo aplicáveis directamente.

Não é, contudo, aplicável no processo de contra-ordenações, na sua fase administrativa, a dimensão da publicidade referida na alínea a) do n.º 6 daquele artigo 86.º, se se entender que a mesma se verifica nas fases preliminares do processo penal, uma vez que não ocorrem naquele processo as razões que legitimam a presença do público nos actos processuais.

Na verdade, conforme acima se referiu, o fundamento da presença do público em actos processuais decorre da sindicância colectiva sobre a Administração da Justiça, no caso penal legitimada no relevo que a repressão do crime tem para o conjunto de cidadãos, valores estes que estão ausentes do processo das contra-ordenações.

Por outro lado, apesar de enquadrado subsidiariamente pelo processo penal, o procedimento das contra-ordenações materializa uma actuação administrativa, onde o direito à informação, disciplinado nos artigos 61.º e seguintes do Código de Procedimento Administrativo está presente e que não integra a presença dos cidadãos, em geral, na prática dos actos, como forma de acesso ao processo.

São também aplicáveis no âmbito do processo das contra-
-ordenações as quebras ao regime do segredo, decorrentes dos n.os 9 e 13 do artigo 86.º do Código de Processo Penal, o primeiro motivado em exigências da própria investigação e o último na necessidade de esclarecimentos públicos sobre factos.


3 – Uma vez sujeito o processo ao regime de segredo, se o mesmo não for afastado, por outros motivos, a requerimento do arguido ou por iniciativa da autoridade administrativa, ele mantém-se, na sua dimensão externa, até à decisão prevista no artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

É irrelevante para a subsistência do segredo que a decisão estabilize ou que seja impugnada, cessando sempre o regime do segredo com a mesma.

A manutenção do segredo nesta dimensão, e importa destacar que quando requerido apenas pelo arguido só vigora nessa dimensão, não obsta à aplicação no processo das contra-ordenações do regime de acesso ao processo previsto no artigo 89.º do Código de Processo Penal.

De facto, se não vigorar o regime de segredo, o arguido e os terceiros visados com as medidas nele decretadas têm acesso ao processo e à obtenção dos elementos que constam da referida disposição legal.

Se o processo se mantiver em segredo de justiça decretado pela autoridade administrativa com fundamento na preservação dos interesses da investigação, aquela autoridade pode vedar ao arguido o acesso ao processo, nos termos da parte final daquele número 1 do artigo 89.º, ou seja, sempre que entenda, fundadamente, que tal acesso pode prejudicar a investigação.

É esta dimensão interna do segredo que é oponível ao arguido que vai cessar no momento em que a investigação inicial estiver esgotada e em que a autoridade administrativa der cumprimento ao disposto no artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

A passagem do processo para a fase da audição e da defesa implica a cessação do regime de segredo de justiça na sua dimensão interna e o acesso do arguido ao conteúdo do processo na sua plenitude.

Antes da chegada a esse momento, durante a pendência da investigação preliminar, decretado o segredo de justiça, o arguido pode requerer à autoridade administrativa o acesso ao processo, invocando a necessidade desse acesso para preparar desde logo a sua defesa e atento o disposto no n.º 1 do artigo 89.º do Código de Processo Penal.

Se tal requerimento for indeferido pela autoridade administrativa, nos termos acima referidos, com o fundamento de que o mesmo pode perturbar a investigação, a decisão proferida é susceptível de ser impugnada perante o tribunal competente, nos termos do artigo 55.º do regime geral das contra-ordenações.

4 – As razões que estão subjacentes ao n.º 6 do artigo 89.º do Código de Processo Penal acima referidas podem igualmente verificar-se no processo das contra-ordenações, nos específicos casos em que a lei tenha sujeitado a tramitação do processo a determinados prazos([34]).

Não é o que sucede no regime geral das contra-ordenações onde a gestão do processo, nomeadamente a sua duração, foi deixada na discricionaridade da autoridade administrativa.

Onde tais prazos existam o esgotamento dos mesmos implica a cessação do segredo, na sua dimensão interna e o acesso ao processo por parte do arguido ou de terceiros visados com quaisquer medidas.

Também aqui o acesso ao processo pode desempenhar uma função de aceleração da tramitação do mesmo e do respeito pelos prazos estabelecidos.

5 – As considerações acima tecidas têm implícita já a resposta a algumas das questões suscitadas na informação elaborada no Gabinete de Vossa Excelência.

As três primeiras questões eram as seguintes:

«a) – Em processo contra-ordenacional, poderá ser decretada a sujeição dos autos a segredo de justiça, por despacho do juiz e a requerimento do arguido ou de outro eventual sujeito processual, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais – n.º 2 do artigo 86.º;
b) Ou poderá tal sujeição ser decretada, nos termos do n.º 3 do artigo 86.º, sempre que os interesses da investigação ou os sujeitos processuais o justifiquem - n.º 3 do artigo 86.º;
c) Deverá a autoridade administrativa assumir no processo contra-ordenacional, e neste âmbito, as competências que em processo penal cabem ao Ministério Público, reconhecendo-se-
-lhe competências para decretar a sujeição dos autos a segredo de justiça;


Tal como acima se referiu, o processo das contra-ordenações emergente do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, não conhece a existência de actos judicializados, nem a divisão de tarefas entre juiz de instrução e o Ministério Público. A autoridade administrativa assume ali, na sua plenitude, os poderes que o processo penal atribui às autoridades judiciárias, quer de iniciativa, quer de impulso processual, ou decisórios.

Deste modo é afirmativa a resposta às três primeiras questões colocadas, sendo certo que incumbe às autoridades administrativas a decisão relativa à sujeição do processo a segredo, a requerimento, ou oficiosamente, sendo a decisão impugnável, nos termos do artigo 55.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

A última questão era a seguinte:

d) O Ministério Público deve ou não intermediar a apresentação dos autos ao juiz de instrução quer para este decidir o requerido, no caso a), quer para apreciação em ordem à validação da decisão da sujeição dos autos a segredo de justiça, no caso b) – caso se entenda, que, neste caso, caberá à autoridade administrativa a decisão».

A resposta a esta questão está em parte prejudicada pelas respostas dadas às primeiras e sobretudo pela não divisão de tarefas instrutórias do processo contra-ordenacional entre o Ministério Público e o juiz de instrução, uma vez que aquelas autoridades judiciárias são alheias a este procedimento.

Nos casos pontuais em que a lei preveja a possibilidade de realização no processo das contra-ordenações de diligências que se mostram judicializadas no processo penal, o juiz, antes de autorizar a realização das mesmas, pode ouvir o Ministério Público, mas não ocorrem aqui as razões que impõem essa audição no processo penal.

De facto, o Ministério Público não tem funções de impulso processual no processo das contra-ordenações na sua fase administrativa, só tendo intervenção no processo, em caso de recurso de impugnação, nos termos do n.º 1 do artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

Contudo, é aplicável relativamente a essas intervenções processuais, quando ocorrerem, o disposto no n.º 1 do artigo 53.º do Código de Processo Penal, o que fundamenta o dever do Ministério Público se pronunciar sobre as pretensões das autoridades administrativas, quando ouvido para o efeito pelo juiz.

VI


Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:


1.ª – Os interesses da investigação e a protecção da imagem social do arguido podem justificar a aplicação no processo contra-ordenacional do regime do segredo de justiça, resultante dos n.os 2 e 3 do artigo 86.º do Código de Processo Penal, nos termos do n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que «institui o ilícito de mera ordenação social e o respectivo processo»;

2.ª - Nos termos do n.º 2 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, incumbe à autoridade administrativa que dirige o processo proferir a decisão de sujeição do mesmo ao regime de segredo, oficiosamente, ou a requerimento do arguido;

3.ª – Imposto o regime de segredo, nos termos das conclusões anteriores, a autoridade administrativa pode permitir ou indeferir, conforme o caso, o acesso por parte do arguido ao processo, nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 89.º do Código de Processo Penal, aplicável também por força do disposto no n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro;

4.ª - As decisões administrativas proferidas nos termos das conclusões anteriores que decretem ou indefiram a sujeição a segredo, ou impeçam o acesso ao processo com fundamento no segredo, são susceptíveis de recurso de impugnação, para o tribunal, nos termos do 55.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro;

5.ª – Sujeito o processo ao regime de segredo de justiça, essa situação mantém-se, na sua dimensão externa, até à decisão proferida nos termos do artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, se antes não cessar por se ter esgotado o seu fundamento, a requerimento, ou oficiosamente;

6.ª – As restrições de acesso ao processo em segredo de justiça por parte do arguido, cessam com o cumprimento do disposto no artigo 50.º do referido Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro;

7.ª - O Ministério Público, no quadro actual, não tem qualquer intervenção no processo das contra-ordenações na sua fase administrativa, não lhe cabendo ali quaisquer tarefas de impulso processual ou de fiscalização da acção da autoridade administrativa;

8.ª - Nas situações em que a lei preveja a existência de intervenções judiciais relativamente a actos instrutórios do processo das contra-ordenações é aplicável relativamente a esses actos o disposto no n.º 1 do artigo 53.º do Código de Processo Penal.



[1] Ofício n.º GAJ S/7829/07/SC de 6-11-2007, registado na Procuradoria Geral da República em 14 de Novembro de 2007.
[2] Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, alterada pelas Leis n.os 2/90, de 20 de Janeiro, 23/92, de 20 de Agosto, 10/94, de 5 de Maio, 33-A/96, de 26 de Agosto, 60/98, de 27 de Agosto, (que passou a adoptar a designação de Estatuto do Ministério Público), 143/99, de 21 de Agosto, 42/2005, de 29 de Agosto, e 67/2007, de 31 de Dezembro. A Declaração de Rectificação n.º 20/98 (Diário da República, I Série-A, n.º 253/98, de 2 de Novembro) rectifica o texto publicado em anexo à Lei n.º 60/98.
[3] Sobre os fundamentos doutrinários deste diploma e do Direito das Contra-ordenações, cfr. o preâmbulo daquele Decreto-Lei e EDUARDO CORREIA, “Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social”, Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários - Volume I Coimbra Editora, 1998, pp. 3 e ss.
[4] Com as alterações decorrentes do Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro e Lei n.º 109/2001, de 24 de Setembro.
[5] Sobre o Direito das Contra-ordenações e a sua relação com o Direito Penal, cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pp. 144 e ss. e AMÉRICO A TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal, Parte Geral, Publicações Universidade Católica, 2003, pp. 147 e ss.
[6] COSTA PINTO, “O Ilícito de Mera Ordenação Social e a Erosão do Princípio da Subsidiariedade da Intervenção Penal”, Direito Penal Económico e Europeu – Textos Doutrinários, Volume I, Coimbra Editora, 1998, p. 212.
[7] COSTA PINTO, Ibidem.
[8] Sobre as relações entre o Direito Penal e o Direito de Mera Ordenação Social, cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “O Movimento de Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social”, Direito Penal Económico e Europeu – Textos Doutrinários, Volume I, Coimbra Editora, 1998, pp. 19 e ss.
[9] Sobre a evolução do Direito das Contra-ordenações, cfr. COSTA PINTO, Obra citada, pp. 215 e ss.
[10] Obra citada, p. 261.
[11] Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 153.
[12] Cfr. artigo 221.º do Decreto-Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 251/2003, de 14 de Outubro, que estabelece o regime jurídico do acesso e exercício da actividade seguradora, e artigo 219.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedade Financeiras, na versão resultante do Decreto-Lei n.º 201/2002, de 26 de Setembro.
[13] Artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal.
[14] Na redacção resultante do Decreto-Lei n.º 201/2002, de 26 de Setembro.
[15] Direito Processual Penal, 1º vol., Coimbra Editora, 1974, pp. 222 e ss.
[16] “A Jurisprudência do Tribunal Constitucional Relativa ao Segredo de Justiça”, O Processo Penal em Revisão, U.A.L., 1998, p. 124.
[17] Publicado in Pareceres, Procuradoria-Geral da República, Volume VII, pp. 47 e ss.
[18] Ibidem, p. 62.
[19] “Segredo de Justiça e Acesso ao Processo”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, p. 71.
[20] Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo III, 2001, pp. 645 e ss.
[21] Ibidem.
[22] Ibidem.
[23] Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, Volume I, Coimbra Editora, 2007, pp. 413 e 414.
[24] Em Nome do Povo, Coimbra Editora, 1999, p. 120.
[25] Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 204.
[26] Objecto da Declaração de Rectificação n.º 105/2007, publicada no Diário da República, 1.ª Série, de 9 de Novembro.
[27] “O Regime do Segredo de Justiça no Código de Processo Penal Revisto”, Formação Permanente – Jornadas sobre a Revisão do Código de Processo Penal, in http//www.cej.mj.pt.
[28] “Segredo de Justiça e Acesso ao Processo” Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, pp. 97 e 98.
[29] “Segredo de Justiça Interno, Inquérito, Arguido e Seus Direitos de Defesa”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16, n.º 4 – Outubro-Dezembro de 2006, pp. 570 e 571.
[30] Sobre este debate, cfr. COSTA PINTO, “Segredo de Justiça e Acesso ao Processo”, pp. 75 e ss.
[31] A. MEDINA DE SEIÇA, Obra citada, p. 652.
[32] Nos termos da alínea z) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, de 30 de Julho, cabe à ASAE «proceder à investigação e instrução de processos por contra-ordenação cuja competência lhe esteja legalmente atribuída, bem como arquivá-los sempre que verificar que os factos que constam dos autos não constituem infracção ou não existem elementos de prova susceptíveis de imputar a prática da infracção a um determinado agente» do que decorre um estatuto de autoridade administrativa, no âmbito do procedimento contra-ordenacional.
[33] As disposições avulsas existentes em específicos regimes contra-ordenacionais que permitem a intervenção de terceiros como assistentes no processo das contra-ordenações (artigo 640.º do Código do Trabalho), ou lhes atribuem poderes paralelos aos dos assistentes no processo penal (artigo 18.º, n.º 3, alínea m), da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho), não legitimam o alargamento a estes “assistentes” do direito à sujeição do processo ao segredo de justiça que se verifica no processo penal.
[34] Artigo 639.º, n.os 2 e 3, do Código do Trabalho e artigo 48.º, n.os 2 e 3, da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto.