Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002619
Parecer: P000302005
Nº do Documento: PPA02062005003000
Descritores: INSTITUTO DE MEDICINA LEGAL
EXAME MÉDICO LEGAL
PERÍCIA MÉDICO LEGAL
RELATÓRIO
ACESSO
TERCEIRO
CERTIDÃO
PROCESSO PENAL
PROCESSO CIVIL
PROCESSO DE TRABALHO
SERVIÇOS MÉDICO LEGAIS
AUTORIDADE JUDICIÁRIA
INQUÉRITO
INSTRUÇÃO
JULGAMENTO
SEGREDO DE JUSTIÇA
PUBLICIDADE DO PROCESSO
CADÁVER
RELATÓRIO DE AUTÓPSIA
AUTÓPSIA CLÍNICA
AUTÓPSIA MÉDICO-LEGAL
MEIOS DE PROVA
PROTECÇÃO DE DADOS
DADOS PESSOAIS
DADOS SENSÍVEIS
INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA
CONFLITO DE DIREITOS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
DIREITOS DE PERSONALIDADE
Livro: 00
Numero Oficio: 676
Data Oficio: 02/22/2005
Pedido: 02/25/2005
Data de Distribuição: 03/03/2005
Relator: MÁRIO SERRANO
Sessões: 01
Data da Votação: 06/02/2005
Tipo de Votação: UNANIMIDADE
Sigla do Departamento 1: PGR
Entidades do Departamento 1: DESPACHO DE S EXA O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
Privacidade: [01]
Data do Jornal Oficial: 01-09-2005
Nº do Jornal Oficial: 168
Nº da Página do Jornal Oficial: 12786
Indicação 1: PARA PUBLICAÇÃO - DESPACHO DE S. EXA. O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA DE 29-05-2003
Indicação 2: ASSESSOR:MARTA PATRÍCIO
Área Temática:CONST * DIR FUND/ DIR CIV * DIR PERSON / DIR INFORMAT / DIR PROC CIV / DIR PROC PENAL / DIR PROC TRAB / DIR REG NOT
Ref. Pareceres:P001291983
P000571988Parecer: P000571988
P000291995Parecer: P000291995
P000301995Parecer: P000301995
P000291998Parecer: P000291998
P001822001Parecer: P001822001
Legislação:CONST76-ART1 ART18 ART26 N1 ART35 N3; DL 387-C/87 DE 1987/12/29 - ART1 N1 N2 ART12 N2 N3 ART33 ART35 ART36 ART37 ART38 ART41; CPC67 - ART568 N3 ART 167 N1 N2 N3 N4 ART168 N1 N2 A) B) ; CPP87- ART86 N1 N2 A) B) C) N3 N4 A) B) N5 N6 N7 N8 A) B) N9 A) B) ART90 N1 N2 ART159 N1 N2 ART167 N1 N2 N3 N4 ART168N1 N2 A) B) ART262 N1 ART263 ART268 ART269 ART270 ART286 N1 N2 ART288N N1 ART289 N1 ART290 N1 N2 ART311 ART322 ART323 ART340 ART417; CPT81 - ART1 N1 ART100 ART101 ART102 ART105 ART155; DL11/98 DE 1998/01/24 - ART4 ART5 A) ART40 ART50 ART54 ART55 ART77 ART78 ART82 ART90 ; DL146/00 de 2000/07/18 - ART5 N1 B) D) ART20 N1 B) ART31 N8 ART33 N2 F) G) H) I); DL96/01 DE 2001/03/26 - ART1 N1 ART2 N1 B) ART3 ART6 ART7 ART24 ART25 ART26 ART27 ART28 ART29 ART30 ART31 ART35 ART41; L45/2004 DE 2004/08/19 - ART1 N1 ART2 N1 B) N2 ART3 N1 ART33 N2 A) B) ; L65/93 DE 1993/08/26 - ART4 N1 A) N2 B); L67/98 DE 1998/10/26 - ART3 A) ART7 N1 ; CP82 - ART185 ART253 ART254; CCIVV66 - ART68 ART70 ART71 ART73 ART74 N1 ART76 N2 ART77 ART79; CRC95 - ART201 ART214 N1 ART217 N2; DL54/90 DE 1990/02/13
Direito Comunitário:
Direito Internacional:
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:AC DO TC 130/98 IN DR II S DE 1998/09/05
SENT DE 31/08/1874
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões: 1ª) Os relatórios de perícias médico-legais encontram-se numa situação de dependência processual relativamente aos procedimentos judiciais para que foram produzidos, estando o acesso de terceiros a essas peças processuais subordinado aos poderes de direcção intraprocessual das autoridades judiciárias competentes;
2ª) Consequentemente, cabe aos magistrados (juízes e magistrados do Ministério Público) titulares dos respectivos processos o poder de decidir dos pedidos de acesso de terceiros aos relatórios de perícias médico-legais, em conformidade com as concretas normas processuais relativas à consulta de autos e obtenção de cópias ou certidões aplicáveis ao tipo de procedimento judicial em causa;
3ª) Os elementos recolhidos nos exames médico-legais de pessoas vivas, e vertidos nos respectivos relatórios, constituem dados pessoais sensíveis, que beneficiam da protecção conferida à reserva da vida privada pelo artigo 26º, nº 1, da Constituição;
4ª) Os elementos recolhidos nos exames médico-legais de cadáveres, e vertidos nos respectivos relatórios, merecem igualmente protecção, com fundamento no princípio da dignidade humana (artigo 1º da Constituição), precipitado num direito geral de personalidade, que é acolhido no artigo 26º, nº 1, da Constituição e que se projecta nos falecidos quanto ao segmento respeitante à reserva da vida privada;
5ª) Em virtude do que se refere nas duas conclusões anteriores, as autoridades judiciárias competentes, ao proceder à aplicação casuística das regras processuais que possibilitem o acesso de terceiros ao processo (consulta e obtenção de cópias ou certidões), devem, na decisão sobre o concreto pedido de acesso a relatórios de perícias médico-legais, interpretar os critérios legais aplicáveis com apelo a um juízo de ponderação que atenda ao regime de restrições aos direitos, liberdades e garantias previsto no artigo 18º da Constituição.

Texto Integral:
Senhor Conselheiro
Procurador-Geral da República,
Excelência:


I


1. O Presidente do Conselho Directivo do Instituto Nacional de Medicina Legal (doravante, INML), por ofício ([1]) remetido a Vossa Excelência, solicitou a emissão de «parecer sobre o acesso e a passagem de cópia ou de certidão de relatórios de perícias médico-legais».

A situação que suscita esse pedido de parecer, segundo o ofício, traduz-se no facto de ter sido solicitado ao INML, pelo Presidente do Conselho Jurisdicional Regional da Secção Regional do Sul da Ordem dos Enfermeiros, cópia do resultado de uma determinada autópsia, pedido que foi fundamentado pela junção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (doravante, CADA) e pela alegação de que, segundo esse parecer, «tem a Ordem dos Enfermeiros pleno direito de acesso aos dados contidos no relatório da autópsia».

Refere-se que o aludido parecer da CADA terá sido solicitado por um Hospital e que nele se apreciava o pedido formulado por aquele Conselho Jurisdicional a esse Hospital de «uma listagem com identificação e morada de enfermeiros e cópia do processo clínico de uma doente». Ora, considera o INML que são diferentes as matérias em causa no parecer da CADA e na ora manifestada pretensão da Ordem dos Enfermeiros, não sendo aplicável a doutrina daquele parecer a esta pretensão.

Sobre o mencionado pedido da Ordem dos Enfermeiros, exprime o INML que «[t]em sido entendimento dos Serviços Médico-Legais, assente nas normas processuais vigentes (designadamente do Código do Processo Penal e do Código do Processo Civil) e confirmado diversas vezes pelos Senhores Magistrados titulares de processos, que o acesso e a passagem de cópia ou de certidão dos relatórios de perícias médico-legais – e, consequentemente, do relatório da autópsia em causa – se rege pelas normas do respectivo processo (e não pelo Código do Procedimento Administrativo ou pela L.P.T.A.[ [2]])».

Mais se informa ter sido ouvido o Gabinete de Assessoria Jurídica do INML, o qual, no seu parecer – cuja cópia foi enviada –, sustentou que o relatório de uma perícia médico-legal «é parte integrante do processo» e «permanece sob a autoridade do Magistrado titular do respectivo processo», salientando ainda a especial acuidade dessa circunstância quando se trata de processo de natureza criminal sob segredo de justiça. Aí se reiterou ainda a orientação, já antes seguida pelo INML, de que o requerimento de cópia ou certidão de relatório de perícias médico-legais «deve ser dirigido ao processo respectivo», cabendo aos magistrados titulares dos processos «a competência para a [sua] apreciação e deferimento».

Em todo o caso, foi sugerido pela Assessoria Jurídica do INML que se pedisse parecer sobre o tema à Procuradoria-Geral da República, «para que possa manter-se a linha de actuação acima indicada ou para a sua modificação se tal se revelar necessário» – sugestão que foi acolhida pelo Presidente do Conselho Directivo do INML.


2. Não obstante a entidade oficiante carecer de legitimidade para suscitar a intervenção do Conselho Consultivo, entendeu Vossa Excelência que «[a] matéria em questão interfere directamente com a resposta do Mº Pº, em processos-crime, quando confrontado com o pedido de certidão de perícias médico-legais, nomeadamente de autópsias», pelo que determinou a remessa do expediente a esta instância consultiva para apreciação.

Cumpre, pois, emitir o respectivo parecer.


II


1. A questão colocada pela entidade oficiante consiste em saber, genericamente, se o INML tem ou não o dever de facultar os relatórios de perícias médico-legais a entidades exteriores aos processos a que aqueles se destinam e que lhos solicitem – e identifica uma situação concreta de um relatório de autópsia solicitado pela Ordem dos Enfermeiros.

Entretanto, através do despacho que ordenou a consulta, foi a questão, de algum modo, restringida, na medida em que nele se determina que esta seja perspectivada em função do posicionamento do Ministério Público, em processos de natureza criminal – e, subentende-se, quando esses processos estiverem sob a direcção de magistrados do Ministério Público –, perante pedidos de certidão de relatórios de perícias médico-legais, designadamente de autópsias, formulados por terceiros.

Delimitado desta forma o objecto do parecer, centraremos a nossa atenção no tema do acesso aos relatórios de perícias médico-legais (em especial, de autópsias) integrados em processos de natureza criminal sob a direcção do Ministério Público, sem prejuízo de referências complementares ao acesso a relatórios de perícias médico-legais integrados em processos de natureza civil ou laboral.


2. A temática suscitada impõe, por um lado, apurar os termos da articulação dos serviços médico-legais com a actividade processual desenvolvida nos tribunais e, por outro, definir os poderes de direcção dos magistrados titulares de processos e os limites que daí derivam para o acesso de terceiros a peças processuais, tendo em conta a especial natureza das peças que se caracterizam como relatórios médico-legais e dos dados que neles se contêm.

Atentemos nesses diferentes aspectos.


III


1. O primeiro diploma orgânico global dos serviços médico-legais editado na vigência da actual ordem constitucional ([3]) foi o Decreto-Lei nº 387-C/87, de 29 de Dezembro ([4]).

Esse diploma visou, essencialmente, reorganizar a estrutura interna dos institutos de medicina legal e regular em novos moldes a obrigatoriedade da realização de perícias médico-legais.

No seu artigo 1º estabeleceu-se que «[o]s serviços médico-legais têm por atribuição coadjuvar os tribunais na aplicação da justiça, procedendo aos exames periciais de medicina legal que lhes forem solicitados nos termos do presente diploma» (nº1). E ficou claro que «[o]s serviços médico-legais estão administrativamente organizados no âmbito do Ministério da Justiça» (nº 2).

A estrutura orgânica dos serviços médico-legais assentava nas seguintes entidades: Conselho Superior de Medicina Legal; conselhos médico-legais; institutos de medicina legal; e gabinetes médico-legais.

Concretamente, quanto aos institutos de medicina legal, eram estes qualificados como serviços públicos personalizados, dotados de autonomia administrativa e financeira, com património próprio e tutelados pelo Ministro da Justiça (artigo 12º, nos 2 e 3).

Como se disse, nessa actividade de coadjuvação dos tribunais na aplicação da justiça, cabia aos serviços médico-legais proceder aos exames periciais de medicina legal que lhes fossem solicitados. Esses exames revestiriam diferentes espécies ou categorias, podendo distinguir-se os seguintes: autópsias médico-legais; exames de clínica médico- legal, que compreendem todos os exames de vítimas de crimes contra a integridade física e o pudor das pessoas, ou de vítimas de acidentes de viação ou de trabalho ou afectados por doenças profissionais, bem como os exames de psiquiatria forense, de sexologia, de traumatologia ou de outros exames directos nas pessoas; exames de toxicologia forense, que integram a execução de análises químicas e toxicológicas; perícias de biologia forense, que incluem os exames bacteriológicos, de hematologia forense e de outros vestígios orgânicos; e exames de anatomia patológica e de histologia ([5]).

Sendo função essencial dos serviços médico-legais a coadjuvação dos tribunais na aplicação da justiça, necessariamente «a realização dos exames e a efectivação das perícias médico-legais apenas se compreende e se prevê, por via de regra, na dependência processual, isto é, no âmbito de um processo – penal, civil ou de jurisdição laboral» ([6]).

Essa regra de dependência processual espelhava-se, no diploma em apreço, quer pela conexão entre a organização médico-legal e o mapa judiciário, através da criação de circunscrições médico-legais definidas pela agregação de círculos judiciais, quer pela atribuição de poderes de intervenção na realização das perícias a autoridades judiciárias em função da titularidade dos processos judiciais respectivos – como sucede, v.g., quanto à dispensa da autópsia (artigo 33º), à determinação de perícias (artigos 35º, 36º, 37º e 38º) ou à presença na execução de exames (artigo 41º).

As perícias médico-legais surgem, assim, como um meio de prova com uma relação directa com o processo.

A perícia, segundo MANUEL DE ANDRADE ([7]), consiste num meio de prova que se traduz na «percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas».

Por sua vez, a perícia médico-legal tem lugar quando, para a percepção e apreciação dos factos, sejam necessários especiais conhecimentos científicos do domínio da medicina legal. E, como meio de prova organizado e produzido no próprio processo em que se utiliza, encontra-se expressamente prevista em normas processuais.

Assim, refira-se que o Código de Processo Civil, no actual nº 3 do artigo 568º, estabelece que «[a]s perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta».

Por outro lado, o artigo 159º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «Perícia médico-legal e psiquiátrica», rege, nos seus dois primeiros números, do seguinte modo:

«1. A perícia relativa a questões médico-legais é deferida a institutos de medicina legal, a serviços oficiais médico-legais, a médicos constantes de listas existentes na comarca ou, quando isso não for possível ou conveniente, a quaisquer médicos especialistas ou que desenvolvam, de forma continuada, actividades médico-legais ou apresentem para elas especial qualificação.
2. O disposto no número anterior é correspondentemente aplicável à perícia relativa a questões psiquiátricas, na qual podem participar também especialistas em psicologia e criminologia.»

E, em matéria laboral, surge a menção a perícias médico-legais, essencialmente, a propósito dos processos especiais emergentes de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, estando prevista a realização de autópsia em caso de morte por acidente de trabalho [artigo 100º do actual Código de Processo do Trabalho ([8])] e de diversos exames médicos em casos de incapacidade permanente ou temporária por acidente de trabalho (artigos 101º, 102º e 105º e seguintes), parcialmente aplicáveis, com as devidas adaptações, aos casos de doença profissional (artigo 155º).


2. O regime orgânico instituído pelo Decreto-Lei nº 387-C/87 foi, entretanto, substituído pelo Decreto-Lei nº 11/98, de 24 de Janeiro ([9]).

Este diploma teve em vista, principalmente, introduzir «alterações e aperfeiçoamentos estruturais, de modo a possibilitarem uma maior operacionalidade e flexibilidade dos serviços médico-legais» ([10]), sem introduzir reformas de fundo.

Esse Decreto-Lei nº 11/98 veio a acolher os vectores essenciais do anterior regime. Assim, reafirmou-se como atribuição fundamental dos serviços médico-legais a de «[c]oadjuvar os tribunais na administração da justiça, procedendo aos exames e perícias de medicina legal que lhes forem solicitados, nos termos da lei» [artigo 5º, alínea a)]. Reiterou-se a afirmação de que esses serviços «estão administrativamente organizados no âmbito do Ministério da Justiça» (artigo 4º) e manteve-se a estrutura orgânica desenhada no Decreto-Lei nº 387-C/87.

O seu artigo 40º veio consagrar expressamente a regra de dependência processual já antes reconhecida, ao estabelecer que «[a]s perícias médico-legais são ordenadas, nos termos da lei de processo, por despacho da autoridade judiciária competente». E nas disposições específicas sobre as autópsias médico-legais ([11]), constantes dos artigos 50º a 54º, são conferidos poderes de intervenção na realização das perícias às autoridades judiciárias competentes.

O mencionado quadro organizativo dos serviços médico-legais veio a ser objecto de alterações através da Lei Orgânica do Ministério da Justiça, aprovada pelo Decreto-Lei nº 146/2000, de 18 de Julho ([12]).

O artigo 5º desse diploma prevê a existência de um «Instituto Nacional de Medicina Legal», que ficará sujeito «aos poderes de superintendência e tutela do Ministério da Justiça» [alínea d)]. E no artigo 20º caracteriza-se a nova entidade como «um instituto público dotado de personalidade jurídica e de autonomia administrativa e financeira, sujeito à superintendência e tutela do Ministro da Justiça, regendo-se por estatuto a aprovar em diploma próprio» (nº 1). Entre as atribuições desse novo organismo refere-se, novamente, a de «[c]oadjuvar os tribunais na administração da justiça, realizando os exames e as perícias de medicina legal que lhe forem solicitados, nos termos da lei» [alínea b)].

De acordo com o nº 8 do artigo 31º do Decreto-Lei nº 146/2000, integrado nas disposições finais e transitórias do diploma, «[o] Instituto Nacional de Medicina Legal sucede nas competências dos Institutos de Medicina Legal de Coimbra, de Lisboa e do Porto e do Conselho Superior de Medicina Legal» – mas estes organismos apenas seriam «extintos com a entrada em vigor dos diplomas orgânicos dos serviços ou entidades que lhes sucedem nas competências» [artigo 33º, nº 2, alíneas f) a i)].

Os Estatutos do Instituto Nacional de Medicina Legal vieram a ser aprovados pelo Decreto-Lei nº 96/2001, de 26 de Março ([13]), entrando em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (artigo 7º). O artigo 2º do diploma preambular renova a declaração de que o INML «sucede em todos os direitos, obrigações e competências dos extintos Institutos de Medicina Legal de Lisboa, Porto e Coimbra e do Conselho Superior de Medicina Legal». E o artigo 6º contém uma norma revogatória, que abrange «os capítulos I, II e VII, com excepção do artigo 90º do Decreto- -Lei nº 11/98, de 24 de Janeiro, mantendo-se em vigor, com as devidas adaptações, as matérias respeitantes a exames e perícias médico-legais, autópsias médico-legais e pessoal».

Posteriormente, este último segmento do artigo 6º do Decreto-Lei nº 96/2001 foi objecto de revogação, associadamente com a revogação dos artigos 40º a 54º e 78º a 82º do Decreto-Lei nº 11/98, que correspondem aos capítulos referentes a exames e perícias médico-legais e autópsias médico-legais (capítulos III e IV) e a disposições finais (capítulo VI), operadas pela Lei nº 45/2004, de 19 de Agosto [artigo 33º, nº 2, alíneas a) e b)], diploma que «estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico-legais» (artigo 1º).

Sendo assim, do Decreto-Lei nº 11/98 apenas resta hoje em vigor, e «com as devidas adaptações» (como referia o artigo 6º do Decreto-Lei nº 96/2001), o seu capítulo V, concernente a pessoal (artigos 55º a 77º), e o artigo 90º, disposição transitória relativa à carreira de técnico de diagnóstico e terapêutica, ou seja, também dedicada à temática do pessoal.

Nesta medida, o regime orgânico dos serviços médico-legais deve ser hoje procurado no citado Decreto-Lei nº 96/2001, que é complementado pelos preceitos ainda vigentes – artigos 55º a 77º e 90º – do Decreto-Lei nº 11/98. Já quanto à disciplina material das perícias médico-legais, rege actualmente a mencionada Lei nº 45/2004.


3. Nos Estatutos do Instituto Nacional de Medicina Legal, em anexo ao Decreto-Lei nº 96/2001, apresentam-se como dados mais salientes os seguintes:

– caracterização do INML como «instituto público, dotado de personalidade jurídica e de autonomia administrativa e financeira, sujeito à superintendência e tutela do Ministro da Justiça» (artigo 1º, nº 1);
– enunciação de atribuições do INML, de que se destaca a de «[c]ooperar com os tribunais e demais serviços e entidades que intervêm no sistema de administração da justiça, realizando os exames e perícias de medicina legal que lhe forem solicitados, bem como prestar-lhes apoio técnico e laboratorial especializado» [artigo 2º, nº 1, alínea b)];
– indicação dos órgãos do INML, sendo de natureza executiva o conselho directivo, o Conselho Médico-Legal, o Conselho Nacional do Internato Complementar de Medicina Legal e a comissão de fiscalização, e de natureza consultiva o Conselho Nacional de Medicina Legal (artigo 3º);
– criação das delegações de Lisboa, Porto e Coimbra do INML (artigo 24º);
– identificação dos serviços técnicos das delegações do INML (artigo 25º), que apresentam as denominações e realizam os tipos de exames que se indicam seguidamente: Serviço de Tanatologia Forense [«autópsias médico-legais» e «actos (…) de identificação de cadáveres e de restos humanos, de embalsamamento e de estudo de peças anatómicas» (artigo 26º)]; Serviço de Clínica Médico-Legal [«exames e perícias em pessoas, para descrição e avaliação dos danos provocados na integridade psico-física, nos diversos domínios do direito, designadamente no âmbito do direito penal, civil e do trabalho» (artigo 27º)]; Serviço de Toxicologia Forense [«perícias e exames laboratoriais químicos e toxicológicos» (artigo 28º)]; Serviço de Genética e Biologia Forense [«perícias e exames laboratoriais, de hematologia forense e dos demais vestígios orgânicos, nomeadamente os exames de investigação biológica de filiação, de criminalística biológica ou outros» (artigo 29º)]; Serviço de Psiquiatria Forense [«perícias e exames psiquiátricos e psicológicos» (artigo 30º)]; e Serviço de Anatomia Patológica Forense [«perícias e exames de anatomia patológica forense» (artigo 31º)];
– previsão de gabinetes médico-legais, na dependência directa das delegações do INML, que actuam nas áreas geográficas não abrangidas pelas áreas de actuação das delegações, e a quem compete «a realização de autópsias médico-legais» e «a identificação de cadáveres e a execução de embalsamamentos», bem como «a realização de exames e perícias em pessoas, para descrição e avaliação dos danos provocados na integridade psico-física, no âmbito do direito penal, civil e do trabalho» (artigo 35º).

Refira-se ainda que, prosseguindo uma solução já ensaiada na legislação anterior, se prevê a possibilidade de o INML «[p]restar serviços a entidades públicas e privadas, bem como aos particulares, em domínios que envolvam a aplicação de conhecimentos médico-legais» [artigo 2º, nº 1, alínea b)]. E admite-se também que o INML possa «atribuir ou adquirir a outros serviços e entidades públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, a realização de exames e de perícias médico-legais que lhe forem solicitadas» (artigo 41º).

Por sua vez, o regime jurídico da realização das perícias médico-legais pressupõe a aludida regra da dependência processual. É ainda essa regra que aflora quando se prevê, no nº 1 do artigo 3º da Lei nº 45/2004, que «[a]s perícias médico-legais solicitadas por autoridade judiciária ou judicial são ordenadas por despacho da mesma, nos termos da lei de processo».

Nesse diploma, estabelece-se, em geral, que «[a]s perícias médico-legais são realizadas, obrigatoriamente, nas delegações e nos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal» (artigo 2º, nº 1) e «[e]xcepcionalmente, perante manifesta impossibilidade dos serviços, (…) por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas para o efeito pelo Instituto» (artigo 2º, nº 2).

Determinada, assim, a necessária conexão da perícia médico-legal a um processo, importa agora compreender melhor os poderes sobre os processos que têm os magistrados que os dirigem e os regimes de acesso de terceiros a esses processos.



IV


1. Sobre os processos judiciais têm, necessariamente, poderes de direcção as autoridades judiciárias competentes, isto é, os magistrados (juízes e magistrados do Ministério Público) definidos como responsáveis pela sua tramitação e a quem está confiado o respectivo poder decisório intraprocessual, segundo as leis de organização judiciária e de processo.

De acordo com a mencionada regra de dependência processual, que permite estabelecer uma conexão entre as perícias médico-legais e os processos a que se destinam, é possível afirmar que o destino dos respectivos relatórios está indissoluvelmente ligado aos poderes de direcção dos magistrados a quem os processos estão confiados.


2. Poderia pretender-se que, permanecendo as cópias dos relatórios médico-legais enviados aos processos na posse dos respectivos serviços, lhes seria aplicável o regime da Lei nº 65/93, de 26 de Agosto ([14]), que dispõe sobre o «Acesso aos documentos da Administração».

O artigo 4º do diploma define como documentos administrativos «quaisquer suportes de informação gráficos, sonoros, visuais, informáticos ou registos de outra natureza, elaborados ou detidos pela Administração Pública, designadamente processos, relatórios, estudos, pareceres, actas, autos, circulares, ofícios-circulares, ordens de serviço, despachos normativos internos, instruções e orientações de interpretação legal ou de enquadramento da actividade ou outros elementos de informação» [nº 1, alínea a)] e exclui do conceito «[o]s documentos cuja elaboração não releve da actividade administrativa» [nº 2, alínea b)].

Sendo as cópias dos relatórios periciais documentos “elaborados” e “detidos” pelos serviços médico-legais, pareceria estarmos perante documentos abrangidos pelo diploma em apreço. Porém, são os tribunais e autoridades judiciárias que determinam a elaboração desses relatórios pelos serviços médico-legais, pelo que ficam aqueles com o domínio sobre essas peças processuais – estando assim, consequentemente, excluídas do campo de aplicação da Lei nº 65/93.

Nessa medida, o acesso a esses relatórios (e suas cópias) atenderá às normas reguladoras do acesso ao tipo de procedimento judicial em questão.

À mesma conclusão chegou já esta instância consultiva no Parecer nº 30/95 ([15]). Aí se entendeu que os relatórios de perícias médico-legais se encontram «funcional e finalisticamente afectos aos procedimentos judiciais para que foram produzidos – e, nessa medida, sujeitos aos respectivos regimes jurídicos e às decisões em aplicação destes tomadas pelos competentes juízes ou autoridades judiciárias», considerando, ao mesmo tempo, que «o âmbito de aplicação da Lei nº 65/93 se restringe, organicamente, à Administração Pública, não abarcando, nessa medida, os tribunais».

Apurar as condições de acesso de terceiros aos relatórios de perícias médico-legais dependerá, pois, do concreto regime processual sobre consulta de autos e obtenção de certidões.

Centremos a nossa atenção no processo penal.


V


1. A tramitação comum do processo penal desdobra-se em três fases – inquérito, instrução e julgamento (sendo a segunda fase facultativa) – e a cada uma corresponde um diferente titular do processo, ou seja, a direcção dessas fases cabe a diversos magistrados – respectivamente, magistrado do Ministério Público, juiz de instrução e juiz (de julgamento) ([16]).

Nos termos do artigo 263º do Código de Processo Penal (CPP), «[a] direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal». Sendo finalidades do inquérito «investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação» (artigo 262º, nº 1), incumbe ao Ministério Público «pratica[r] os actos e assegura[r] os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no artigo 262º, nº 1», sem prejuízo dos actos que devam ser praticados, ordenados ou autorizados pelo juiz de instrução (artigos 268º e 269º) e dos actos que possam ser delegados pelo Ministério Público nos órgãos de polícia criminal (artigo 270º).

A fase de instrução tem carácter facultativo e visa a «comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» (artigo 286º, nos 1 e 2). Quanto aos poderes de direcção, esclarece o artigo 288º, nº 1, que «[a] direcção da instrução compete a um juiz de instrução, assistido pelos órgãos de polícia criminal».

Refira-se ainda que a instrução é «formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório» (artigo 289º, nº 1), praticando o juiz «todos os actos necessários à realização das finalidades referidas no artigo 286º, nº 1» (artigo 290º, nº 1), sem prejuízo da possibilidade de atribuição aos órgãos de polícia criminal do «encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas à instrução», ressalvados certos tipos de actos (artigo 290º, nº 2).

Na fase de julgamento pontifica o juiz (de julgamento), que recebe e saneia o processo (artigo 311º) e o tramita até à decisão final em 1ª instância. A esse poder genérico de direcção, adita-lhe a lei a atribuição específica, entre outros, de poderes de disciplina e de direcção da audiência (artigos 322º e 323º) e de poderes relativos à produção dos meios de prova (artigo 340º).

Anote-se ainda que, em sede de recurso, os poderes de direcção do processo estão confiados ao juiz relator (artigo 417º).


2. A lei processual penal dirime a questão do acesso ao processo partindo da distinção entre publicidade do processo e segredo de justiça. Dispõe sobre a matéria o artigo 86º do CPP ([17]):
«Artigo 86º
(Publicidade do processo e segredo de justiça)

1. O processo penal é, sob pena de nulidade, público, a partir da decisão instrutória ou, se a instrução não tiver lugar, do momento em que já não pode ser requerida. O processo é público a partir do recebimento do requerimento a que se refere o artigo 287º, nº 1, alínea a), se a instrução for requerida apenas pelo arguido e este, no requerimento, não declarar que se opõe à publicidade.
2. A publicidade do processo implica, nos termos definidos pela lei e, em especial, pelos artigos seguintes, os direitos de:
a) Assistência, pelo público em geral, à realização dos actos processuais;
b) Narração dos actos processuais, ou reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social;
c) Consulta do auto e obtenção de cópias, extractos e certidões de quaisquer partes dele.
3. A publicidade não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova. A autoridade judiciária especifica, por despacho, oficiosamente ou a requerimento, os elementos relativamente aos quais se mantém o segredo de justiça, ordenando, se for caso disso, a sua destruição ou que sejam entregues à pessoa a quem disserem respeito.
4. O segredo de justiça vincula todos os participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo e conhecimento de elementos a ele pertencentes, e implica as proibições de:
a) Assistência à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de acto processual a que não tenham o direito ou o dever de assistir;
b) Divulgação da ocorrência de acto processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação.
5. Pode, todavia, a autoridade judiciária que preside à fase processual respectiva dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, se tal se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade.
6. As pessoas referidas no número anterior ficam, em todo o caso, vinculadas pelo segredo de justiça.
7. A autoridade judiciária pode autorizar a passagem de certidão em que seja dado conhecimento do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, desde que necessária a processo de natureza criminal ou à instrução de processo disciplinar de natureza pública, bem como à dedução do pedido de indemnização civil.
8. Se o processo respeitar a acidente causado por veículo de circulação terrestre, a autoridade judiciária autoriza a passagem de certidão:
a) Em que seja dado conhecimento de acto ou documento em segredo de justiça, para os fins previstos na última parte do número anterior e perante requerimento fundamentado no disposto no artigo 72º, nº 1, alínea a);
b) Do auto de notícia do acidente levantado por entidade policial para efeitos de composição extrajudicial de litígio em que seja interessada entidade seguradora para a qual esteja transferida a responsabilidade civil.
9. O segredo de justiça não prejudica a prestação de esclarecimentos públicos:
a) Quando necessários ao restabelecimento da verdade e sem prejuízo para a investigação, a pedido de pessoas publicamente postas em causa;
b) Excepcionalmente, nomeadamente em casos de especial repercussão pública, quando e na medida do estritamente necessário para a reposição da verdade sobre factos publicamente divulgados, para garantir a segurança de pessoas e bens e para evitar perturbação da tranquilidade pública.»

Da lei resulta assim, como regra, que a fase de inquérito é secreta, a de julgamento é pública e a de instrução é, em princípio, secreta, só sendo pública quando seja requerida exclusivamente por arguido e este não declarar que se opõe à publicidade (nº 1).

Sem curar aqui – por irrelevante para a economia do parecer – do acesso permitido aos próprios sujeitos processuais, importa essencialmente sistematizar o regime aplicável a outras pessoas externas ao processo. Nessa perspectiva, apresenta igualmente relevância o disposto no artigo 90º do CPP:
«Artigo 90º
(Consulta de auto e obtenção de certidão por outras pessoas)

1. Qualquer pessoa que nisso revelar interesse legítimo pode pedir que seja admitida a consultar auto de um processo que se não encontre em segredo de justiça e que lhe seja fornecida, à sua custa, cópia, extracto ou certidão de auto ou de parte dele. Sobre o pedido decide, por despacho, a autoridade judiciária que presidir à fase em que se encontra o processo ou que nele tiver proferido a última decisão.
2. A permissão de consulta de auto e de obtenção de cópia, extracto ou certidão realiza-se sem prejuízo da proibição, que no caso se verificar, de narração dos actos processuais ou de reprodução dos seus termos através dos meios de comunicação social.»

Perante as disposições transcritas, é possível afirmar que só a publicidade implica, em regra, a livre consulta do processo e a obtenção de cópias, extractos e certidões de quaisquer partes dele [artigo 86º, nº 2, alínea c)] – mas ainda assim não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova, cabendo à autoridade judiciária que preside à fase processual respectiva especificar os elementos relativamente aos quais se mantém o segredo (artigo 86º, nº 3).

Contudo, essa livre consulta do processo e a obtenção de cópias, extractos e certidões de partes dele, está condicionada à formulação do respectivo pedido perante a autoridade judiciária competente e à constatação de que o terceiro tem interesse legítimo nesse pedido, decidindo o magistrado titular do processo em conformidade (artigo 90º, nº 1).

Na pendência do segredo de justiça ([18]) funciona a regra da proibição de acesso ao processo e de obtenção de cópias, extractos e certidões (artigo 86º, nº 4), mas com excepções: a autoridade judiciária pode permitir o conhecimento por certas pessoas do conteúdo de acto ou de documento quando o considerar conveniente ao esclarecimento da verdade (artigo 86º, nº 5); a autoridade judiciária pode autorizar a passagem de certidão em que seja dado conhecimento do conteúdo de acto ou de documento quando necessário a processo de natureza criminal, à instrução de processo disciplinar de natureza pública ou à dedução do pedido de indemnização civil (artigo 86º, nº 7); a autoridade judiciária, em processo que respeite a acidente causado por veículo de circulação terrestre, autoriza a passagem de certidão em que seja dado conhecimento do conteúdo de acto ou de documento, com vista à dedução em separado do pedido de indemnização civil [artigo 86º, nº 8, alínea a)]; ou a autoridade judiciária, em processo que respeite a acidente causado por veículo de circulação terrestre, autoriza a passagem de certidão de auto de notícia do acidente levantado por entidade policial, com vista à composição extrajudicial de litígio com entidade seguradora para a qual esteja transferida a respectiva responsabilidade civil [artigo 86º, nº 8, alínea b)].


3. Definido o regime legal do acesso de terceiros a processos de natureza criminal, cabe agora averiguar em que medida o conteúdo dos relatórios de perícias médico-legais, enquanto peças processuais integradas em processos-crime, se projecta na aplicação daquele regime.

3.1. Como salienta LESSEPS REYS ([19]), a Medicina Legal é «uma actividade eminentemente informativa, exercida por médicos» e destina-se a esclarecer os juristas do ponto de vista da ciência médica, em particular o magistrado, «a quem o médico fornece as conclusões dos exames que efectua sobre determinados factos, com vista a permitir ao magistrado a respectiva interpretação na perspectiva judiciária».

As perícias médico-legais envolvem, necessariamente, uma percepção directa de factos através do exame de pessoas vivas ou de cadáveres (ou de componentes de uns ou de outros).

No caso das pessoas vivas, colhem-se pelo exame (do corpo ou de componentes) dados relevantes sobre a saúde dessas pessoas. A saúde, na clássica noção da Organização Mundial de Saúde, «é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste somente na ausência de doença ou de enfermidade» ([20]). Numa outra definição, saúde «é o estado de completo equilíbrio funcional e adaptativo, físico e mental do organismo e considera-se factor essencial da vida humana e um valor que supera todos os outros ao longo da existência de cada indivíduo, na criação de capacidade de trabalho, de adaptação e de bem-estar, satisfação ou felicidade pessoal» ([21]). Ou seja, o conceito de saúde refere-se a tudo aquilo que tem a ver com o estado físico e mental de cada ser humano.

Nesta medida, os elementos recolhidos nos exames médico-legais de pessoas vivas, e vertidos nos respectivos relatórios, constituem dados relativos à saúde – e, enquanto tais, podem ser caracterizados como dados pessoais.

Esses elementos revestem, claramente, a natureza de dados pessoais, à luz da Lei da Protecção de Dados Pessoais, a Lei nº 67/98, de 26 de Outubro ([22]). É a alínea a) do artigo 3º desse diploma legal que contém a respectiva definição:

«a) “Dados pessoais”: qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (“titular dos dados”); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social.»

E mais: esses dados relativos à saúde devem ser considerados dados sensíveis, que carecem de especial protecção. Com efeito, o nº 1 do artigo 7º da Lei nº 67/98 qualifica como dados sensíveis os «dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica», bem como os «dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos», estabelecendo condições específicas de legitimidade do tratamento desses dados.

3.2. A matéria da protecção de dados pessoais tem assento constitucional. No artigo 35º da Constituição ([23]) consagra-se o direito à protecção de dados pessoais como direito fundamental, atenta a sua inserção no Título relativo aos direitos, liberdades e garantias ([24]). E, como doutrinariamente é reconhecido, essa protecção encontra o seu fundamento na salvaguarda da reserva da vida privada ([25]).

Quanto à protecção acrescida dos dados sensíveis, a mesma colhe a sua fundamentação no nº 3 desse artigo 35º, que consagra uma proibição-regra de tratamento de «dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica», ressalvadas condições mais exigentes que as impostas em relação a outros dados pessoais. Embora o nº 3 do artigo 35º da Constituição, ao elencar os dados sensíveis, não mencione expressamente o domínio da saúde, tem-se entendido que a referência à vida privada já incluiria esse domínio ([26]). Nessa medida, a inserção – operada pelo nº 1 do artigo 7º da Lei nº 67/98 – dos dados relativos à saúde no elenco dos dados sensíveis, a par dos dados da vida privada, constituiria afinal um mero desdobramento clarificador ([27]).

Refira-se ainda que o artigo 35º da Constituição contempla não só a protecção relativamente ao tratamento automatizado ou manual de dados pessoais, mas também uma proibição de «acesso a dados pessoais de terceiros», que é outra forma de exprimir o impedimento a que terceiros acedam aos dados de outrem ([28]). E esta proibição vale para todos os dados pessoais, incluindo os dados sensíveis a que se refere o nº 3 do artigo 35º da Constituição.

De todo o modo, sublinhe-se que a disposição constitucional em apreço se dirige, essencialmente, à tutela dos dados pessoais na perspectiva do seu tratamento automatizado ou manual ou do acesso a ficheiros automatizados ou manuais de onde os mesmos constem ([29]).

Ora, se é certo que no presente parecer está em discussão o acesso de terceiros a dados sensíveis, convém especificar que não está propriamente em causa o acesso de terceiros a ficheiros automatizados ou manuais que incluam esse tipo de dados. O que se questiona é tão-só o acesso a documentos integrados em processos judiciais que contenham dados sensíveis – neste caso, relatórios de perícias médico-legais, que contêm dados pessoais relativos à saúde.

Nesta conformidade, não será tanto pela via da protecção conferida pelo artigo 35º da Constituição que nos interessa equacionar o acesso a esses dados sensíveis, mas, mais rigorosamente, pela via do seu enquadramento na protecção mais geral da reserva da vida privada – que já vimos constituir a ratio da protecção de dados pessoais.

3.3. Chegados a este ponto, importa salientar que o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar tem consagração constitucional, no nº 1 do artigo 26º, constituindo um direito fundamental, atenta a sua inserção no Título relativo aos direitos, liberdades e garantias. Para GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, esse direito «analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem» ([30]).

No que releva para o enquadramento dos dados pessoais relativos à saúde, já ficou demonstrado que os mesmos integram a categoria dos dados pessoalíssimos ou sensíveis – pelo que se inscrevem na esfera da vida íntima, cuja protecção emerge directamente da aplicação do artigo 26º, nº 1, da Constituição.

Dessa aplicação decorre uma protecção reforçada dos dados pessoalíssimos ou sensíveis. Note-se, porém, que não há direitos fundamentais totalmente absolutos e que o direito de reserva sobre a intimidade da vida privada não é garantido sem limites ([31]) – o que remete para as restrições aos direitos, liberdades e garantias admitidas pelo artigo 18º da Constituição, derivadas da necessidade de salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos.

Ou seja, serão de aceitar excepções à proibição de acesso de terceiros a dados pessoais sensíveis, que, contudo, terão necessariamente de ser equacionadas segundo um critério de proporcionalidade, nos termos do artigo 18º da Constituição.

3.4. Assente a natureza de dados pessoais sensíveis dos dados relativos à saúde contidos nos relatórios de perícias médico-legais e a possibilidade, em abstracto, de restrições à proibição-regra de acesso de terceiros a esses dados, resta confrontar estes parâmetros com o regime de acesso aos processos-crime constante dos artigos 86º e 90º do CPP.

Sendo os relatórios de perícias médico-legais peças processuais, não se suscitarão conflitos de direitos ou interesses enquanto as normas processuais impuserem a concreta proibição de acesso ao processo ou de obtenção de cópias, extractos e certidões – seja fundada no segredo de justiça ou noutro critério normativo (v.g., carência manifesta de interesse legítimo do terceiro).

A situação problematiza-se, porém, quando a lei processual penal possibilita esse acesso.

3.4.1. Como vimos, é possível o acesso a peças processuais e a obtenção de cópias, extractos e certidões, por parte de terceiros, nos períodos de publicidade do processo de natureza criminal, desde que essas pessoas tenham interesse legítimo no respectivo pedido (artigo 90º, nº 1, do CPP), e ressalvados os «dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova» (artigo 86º, nº 3).

Na medida em que os relatórios de perícias médico-legais constituem meios de prova, só por via da aplicação do conceito de interesse legítimo é possível salvaguardar os dados pessoais sensíveis constantes desses relatórios.

É neste ponto que assume especial relevância o critério de ponderação de direitos e valores para que aponta o regime de restrições aos direitos, liberdades e garantias previsto no artigo 18º da Constituição – cuja concretização casuística fica a cargo da autoridade judiciária competente, que deverá, na apreciação do pedido de divulgação do relatório de exame médico-legal, pôr em confronto o direito à reserva da vida privada que assiste ao examinado (quanto aos seus dados pessoais relativos à saúde) e o eventual interesse legítimo invocado pelo terceiro acedente. Cabe, assim, ao magistrado titular do processo (juiz ou magistrado do Ministério Público, consoante quem presidir à fase em que se encontra o processo) decidir, depois de sopesados os direitos ou interesses em conflito, se continuam sob segredo os dados pessoais relativos à saúde do examinado.

Sobre a colisão de direitos fundamentais, e para densificar o conteúdo material desse juízo de ponderação, diremos com VIEIRA DE ANDRADE ([32]) que «a solução dos conflitos e colisões entre direitos, liberdades e garantias (…) não pode (...) ser resolvida através de uma preferência abstracta, com o mero recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais», antes deve «respeitar-se a protecção constitucional dos diferentes direitos ou valores, procurando as soluções no quadro da unidade da Constituição, isto é, tentando harmonizar da melhor maneira os preceitos divergentes».

Nisto se traduz o princípio da harmonização ou da concordância prática, que, segundo o autor, «enquanto critério de solução dos conflitos (-) não pode (...) ser aceite ou entendido como um regulador automático», mas antes como «um método e um processo de legitimação das soluções que impõe a ponderação (...) de todos os valores constitucionais aplicáveis, para que se não ignore algum deles, para que a Constituição (…) seja preservada na maior medida possível». E acrescenta: «O princípio da concordância prática executa-se, portanto, através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito.»

A rematar, esclarece VIEIRA DE ANDRADE que «sempre que não seja possível graduar as soluções concretas em termos correspondentes, ponto por ponto, às graduações de protecção dos respectivos bens no caso concreto, torna-se necessário estabelecer a preferência de um direito sobre o outro, em termos que poderão mesmo equivaler, na prática, ao sacrifício total do direito preterido (-). É, nessa medida, uma actividade simultaneamente de interpretação e de restrição – de delimitação restritiva –, mas que parece dever (…) integrar-se na competência interpretativa do juiz e, em geral, dos aplicadores da Constituição (-).»

3.4.2. Deve ainda equacionar-se a possibilidade de acesso a peças processuais e de obtenção de cópias, extractos e certidões, por parte de terceiros, nos períodos de segredo do processo de natureza criminal, que vimos consubstanciar-se nas excepções previstas nos nos 5, 7 e 8 do artigo 86º do CPP.

Os relatórios de perícias médico-legais podem subsumir-se, em tese, nas previsões dos nos 5, 7 e 8, alínea a) ([33]).

Nos casos dos nos 5 e 7 do artigo 86º, a lei utiliza as expressões “pode dar” ou “pode autorizar”, o que sugere claramente a atribuição de um poder-dever, à autoridade judiciária que presidir à fase processual respectiva, de decidir a abertura do processo. No caso da alínea a) do nº 8 usa-se apenas a expressão “autoriza”, mas a remissão para a finalidade respectiva prevista no número anterior (dedução de pedido de indemnização civil) pressupõe a aplicação de critério idêntico ao constante do nº 7.

No eventual confronto com a protecção da reserva da vida privada quanto a dados pessoais relativos à saúde, o valor a ponderar na hipótese do nº 5 será o da conveniência para a descoberta da verdade, enquanto nas hipóteses dos nos 7 e 8, alínea a), será o da necessidade de utilização em processo-crime ou em processo disciplinar de natureza pública ou na dedução do pedido de indemnização civil (no próprio processo ou em separado).

Dada a protecção reforçada conferida aos dados sensíveis, impor-se-á uma particular exigência na aplicação dos referidos critérios de conveniência e de necessidade, a concretizar segundo o prudente juízo de ponderação do magistrado titular do processo.


4. Temos estado a analisar a temática da protecção dos dados pessoais contidos em relatórios de perícias médico-legais e do regime de acesso de terceiros a esses relatórios enquanto peças integradas em processos-crime. Porém, essa análise foi empreendida sempre na perspectiva do exame médico-legal em pessoas vivas. Importa agora verificar se valem as mesmas considerações para os exames em cadáveres – o que nos coloca perante a situação particular dos relatórios de autópsias médico-legais.

4.1. Antes de mais, convirá precisar o conceito de autópsia médico-legal.

A autópsia (ou necrópsia) consiste num exame «dos órgãos internos de um corpo morto a fim de determinar a causa da morte ou a fim de estudar as alterações patológicas actuais» ([34]). Ou, noutra definição, designa «a abertura de um cadáver humano e o exame dos seus órgãos, seja com uma finalidade clínica, científica ou didáctica, seja com uma finalidade médico-legal, que pode tocar a matéria civil ou criminal» ([35]).

Há, assim, que distinguir a autópsia médico-legal da autópsia clínica de carácter científico ou didáctico – as quais apresentam diferenças quanto ao seu objectivo e quanto à respectiva técnica.

A autópsia médico-legal, que aqui nos interessa destacar, visa particularmente: «pesquisar a causa médica da morte e os estados patológicos existentes; determinar a forma médico-legal do facto judiciário – homicídio, suicídio, acidente, morte natural; fixar no tempo a data e a hora aproximada da morte; enfim, identificar o cadáver, se necessário» ([36]).

Diz impressivamente RICHARD BOUNAMEAU que «[p]ara o perito médico-legal, um cadáver é uma testemunha muda que acarreta na sua pele, nos seus tecidos ou nas suas vísceras, os traços externos ou internos dos factos que precederam e/ou provocaram a sua morte». E prossegue assim: «A necrópsia judiciária é uma operação complexa que permite, antes de tudo, ao fazer “falar o cadáver”, a reconstituição dos acontecimentos e das circunstâncias que lhe determinaram a morte» ([37]).

4.2. A questão do acesso de terceiros aos relatórios de autópsias médico-legais passa pela averiguação da condição jurídica do cadáver.

Nos termos do artigo 68º do Código Civil, «[a] personalidade cessa com a morte». Perante a linearidade desta disposição legal, afigura-se inequívoco que no momento da morte a pessoa perde a sua aptidão para ser sujeito de relações jurídicas, perde os direitos e deveres da sua esfera jurídica – deixa, em suma, de ser pessoa.

Certamente por isso, as Declarações de Direitos do Homem não se referem a direitos post mortem, porquanto «esses textos visam os direitos do homem e quem está morto deixou de ser homem» ([38]).

Pareceria assim excluída, à partida, a aplicação ao falecido de todo o apurado regime de tutela dos dados relativos à saúde das pessoas vivas objecto de perícias médico-legais.

A elaboração doutrinal, vasta e duradoura, sobre o status do cadáver tem oscilado entre aqueles que ainda vêem nele uma pessoa passada ou um resíduo da pessoa do falecido, de que emergiria uma espécie de personalidade post mortem, e os que o qualificam como coisa, discutindo depois se se trata de coisa no comércio ou fora do comércio.

Para CUNHA GONÇALVES, «se [pela morte] a personalidade fica extinta, o cadáver, como resíduo ou invólucro dela, é ainda objecto de respeito (…); e certo é que uma simples coisa não tem de ser respeitada» ([39]). Por sua vez, DIAS FERREIRA argumentava que «o cadáver (…) está indubitavelmente compreendido na categoria das coisas, por ser coisa tudo o que carece de personalidade» ([40]). Já GOMES DA SILVA, partindo duma concepção personalista do direito, sustentava que «o cadáver não é nem pessoa, nem coisa; mas em atenção ao que foi e ao que há-de vir a ser, por um lado, e aos fins da personalidade, sempre subsistente, de que fez parte e aos das outras pessoas que com ela estiveram em relação, o cadáver está subordinado a fins intrínsecos, próprios das pessoas, e só pode ser tomado pelo direito como acessório ou extensão das pessoas» ([41]).

É também célebre, a este propósito, uma sentença de 1ª instância, proferida em Lisboa e datada de 31 de Agosto de 1874, onde se afirma que «os restos mortais de qualquer indivíduo juridicamente não podem ter-se como coisas para as tornar susceptíveis de apropriação e propriedade, (…) mas sim como pessoa, embora destituída de vida» ([42]).

Entre nós, a discussão tem ainda de passar pelo teor do artigo 71º do Código Civil, segundo o qual «[o]s direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular». Diante dessa disposição legal, defendem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA ([43]) que «a protecção dos direitos de personalidade depois da morte constitui um desvio à regra do artigo 68º». Na mesma linha, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA ([44]) vê nesse artigo 71º o estabelecimento de «uma permanência genérica dos direitos de personalidade do defunto após a sua morte», entendendo que o uso na norma do advérbio “igualmente” sugere que «as características dominantes da tutela geral da personalidade do art. 70º do Código Civil sejam aplicáveis, na medida do possível (…), à tutela da personalidade das pessoas falecidas». Também DIOGO LEITE DE CAMPOS ([45]) retira dessa norma a ideia de que a «personalidade jurídica prolonga-se, é “empurrada”, para depois da morte».

Mesmo que se exclua a existência de uma personalidade post mortem, face à evidência do direito positivado, não pode deixar de se considerar que o respeito devido ao cadáver e aos sentimentos de piedade dos familiares impede uma exclusão liminar de valorações que atribuam relevância à pessoa do defunto para além da sua morte.

Desde logo não pode ser esquecida a dimensão simbólica do cadáver. É sabido como o cadáver tem sido objecto de veneração e respeito e como, ao longo dos tempos, a morte surge associada a tradições e crenças que possuem importante sentido ético ou religioso.

Conforme assinala MARIA PAULA BONIFÁCIO RIBEIRO DE FARIA ([46]), «a visão teológica da vida depois da morte teve um grande impacto na forma como devia ser encarado o cadáver», tendo a doutrina cristã, neste ponto, um papel determinante no quadro do nosso espaço civilizacional.

Deste ponto de vista, são particularmente impressivas as palavras registadas por JOÃO CARLOS SIMÕES GONÇALVES LOUREIRO ([47]): «[O corpo humano morto] é, por tradição, um objecto de respeito e o sujeito de “mistérios sagrados” para os crentes. Para os seus íntimos, é também o símbolo presente de um ausente que foi amado, e o suporte do luto».

Numa diferente perspectiva cultural, de base antropológica, analisando a relação do homem com a morte desde a pré-história, já afirmara EDGAR MORIN ([48]) que «[o] cadáver humano (…) suscita emoções que se socializam em práticas fúnebres e a conservação do cadáver implica um prolongamento da vida. O não abandono dos mortos implica a sua sobrevivência». E, mais adiante, sintetiza: «A morte é, portanto, à primeira vista, uma espécie de vida, que prolonga, de uma forma ou de outra, a vida individual.»

Esta visão metafísica da morte explica a predisposição de muitos autores para tratarem a temática da condição jurídica do cadáver a propósito dos chamados direitos de personalidade.

Segundo esses autores, trata-se de uma postura dogmática que permite justificar melhor a protecção legal conferida postumamente a bens da personalidade do defunto – e cuja defesa é confiada a seus parentes ou herdeiros –, como a identidade [tutela do direito ao nome e pseudónimo da pessoa falecida (artigos 73º e 74º do Código Civil)], a imagem [tutela de retrato de pessoa falecida (artigo 79º, nº 1)] ou a honra, bom nome e intimidade da vida privada [tutela dos direitos de personalidade inerentes às suas cartas confidenciais, memórias familiares e outros escritos confidenciais ou referentes à intimidade da vida privada (artigos 76º, nº 2, e 77º) e tutela penal da ofensa à memória de pessoa falecida (artigo 185º do Código Penal)] ([49]). E à mesma luz pode ser apreciada a relevância concedida pela lei à vontade manifestada em vida pelo de cujus, quer no plano sucessório, quer quanto ao destino do seu próprio cadáver.

A mesma perspectiva é ainda coerente com a existência dos tipos legais de crimes de «impedimento ou perturbação de cerimónia fúnebre» ou de «profanação de cadáver ou de lugar fúnebre», previstos nos artigos 253º e 254º do Código Penal, sob a designação conjunta de «crimes contra o respeito devido aos mortos», e cujo bem jurídico protegido se considera ser o sentimento de piedade para com os mortos ([50]).

A descrita concepção não contraria a evidência da cessação da personalidade jurídica com a morte, antes transporta a matéria da protecção jurídica do cadáver para o domínio da tutela do valor fundamental da dignidade humana, que – como refere PAULA RIBEIRO DE FARIA – «não se pode considerar pura e simplesmente extinta com a morte da pessoa» ([51]). Para essa autora, «o corpo humano, mesmo depois da morte da pessoa, deve ser objecto do respeito devido à dignidade humana» ([52]).

No mesmo campo situa JOÃO GONÇALVES LOUREIRO o fundamento para a afirmação de uma protecção constitucional do cadáver. Reconhecendo embora aquela evidência da cessação da personalidade jurídica com a morte, discorre o autor que «a afirmação de uma dimensão objectiva da dignidade humana traz-nos a chave» para essa tutela constitucional.

E partindo da constatação de que os direitos de personalidade são direitos fundamentais ([53]), conclui esse mesmo autor que «[a] dignidade da pessoa humana, valor basilar do ordenamento jurídico, implica o “respeito da contingência corporal do Homem” (…)(-), resultando daí uma protecção que se projecta para lá da morte» ([54]). Nessa medida, a «tutela do cadáver surge como refracção da pessoa que se foi em vida» e aquela tutela alicerçar-se-ia num direito geral de personalidade ([55]).

O princípio da dignidade humana é, desde logo, enunciado no artigo 1º da Constituição. Dele se pode dizer que consiste numa «referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais» ([56]) e que se «concretiza (…) em múltiplas normas, sobretudo no campo dos direitos fundamentais» ([57]). É disso paradigma o artigo 26º da Constituição, que se apresenta como «expressão directa do postulado básico da dignidade humana» e como «sede fundamental do direito geral de personalidade» ([58]).

O direito geral de personalidade é hoje dominantemente reconhecido como tendo estatuto constitucional ([59]), dele se extraindo uma «tutela abrangente de todas as formas de lesão de bens de personalidade independentemente de estarem ou não tipicamente consagrados» ([60]).

É neste contexto, pois, que se deve enquadrar a protecção jurídica do cadáver. Como declaram definitivamente JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, «numa ordem fundada no princípio da dignidade humana, o bom nome, a reputação ou a intimidade da vida privada de uma pessoa falecida merecem tutela» ([61]).

Nessa medida, afigura-se evidente que devem ser igualmente objecto de protecção os elementos obtidos nos exames em cadáveres que revelem dados pessoais relativos à saúde do defunto enquanto pessoa viva – e, como é óbvio, esses exames podem dar a conhecer muitos aspectos da vida das pessoas (doenças, hábitos pessoais, causa da morte).

Se esses dados relativos à saúde integravam, em vida, a esfera de vida privada da pessoa falecida, forçoso é concluir que, após a morte, devem permanecer sob recato os dados recolhidos na autópsia sobre essa mesma saúde e aqui incluem-se, designadamente, os dados acerca da própria causa da morte (i.e., da situação de não-saúde que determinou a morte).

Pode assim falar-se de um dever de reserva quanto à intimidade da vida privada reportado ao falecido ([62]), que, aliás, motivou já o nosso legislador a retirar a menção à causa da morte dos assentos de óbito do registo civil. Com efeito, essa menção – obrigatória na vigência da versão originária do anterior Código do Registo Civil ([63]) – foi eliminada com as alterações introduzidas naquele Código pelo Decreto-Lei nº 54/90, de 13 de Fevereiro. No próprio preâmbulo do diploma se salientava «a eliminação da causa da morte nos assentos de óbito, em obediência aos princípios relativos à protecção e respeito pela vida privada e familiar que informam o direito português».

E esta orientação foi mantida no actual Código do Registo Civil ([64]), que no seu artigo 201º não refere, entre os requisitos especiais do assento de óbito, a menção à causa da morte. Sendo os assentos de registo civil de acesso público ([65]) – já que «qualquer pessoa tem legitimidade para requerer certidão dos registos constantes dos livros do registo civil» (artigo 214º, nº 1) –, compreende-se a ocultação da menção da causa da morte no assento de óbito. O mesmo não sucede com o certificado médico do óbito, com base no qual é lavrado o assento, em que deverá ser indicado o elemento “causa da morte” ([66]) ([67]), documento esse que já é de acesso reservado, na medida em que dele «só podem ser passadas certidões a quem comprove interesse legítimo e fundado no respectivo pedido» (artigo 217º, nº 2).

Aliás, a extensão post mortem da reserva da vida privada, em particular quanto à causa da morte, foi já, de algum modo, reconhecida por este corpo consultivo em anterior ocasião. Assim, no Parecer nº 29/98 ([68]), afirmou-se o seguinte:

«A causa da morte é considerada como um dado sensível, ou seja, como um daqueles dados a que o cidadão tem direito à salvaguarda contra a devassa ou difusão, e em relação aos quais é proibido o acesso de terceiros. (…)
Fácil é intuir que a causa da morte pode revelar-se degradante para a imagem do falecido e ou da sua família. (…)
E, sempre que possível, deve evitar-se personalizar a informação, minimizando os riscos de potenciais ofensas à intimidade da vida privada ou familiar.»

Recorde-se, porém, que na Informação-parecer nº 129/83 desta instância consultiva ([69]) – em que se discutia se a publicação de um livro que incluía relatórios de autópsias efectuadas nos cadáveres de vítimas do acidente de Camarate, descrevendo pormenores íntimos dos falecidos, constituía ofensa à reserva da intimidade da vida privada – se entendeu que «[c]om a morte cessa a vida privada e familiar do defunto, não fazendo sentido que, após aquela, se admitam violações originárias à intimidade desta». E concluiu-se que «a descrição do vestuário de um cadáver e da sua subsequente autópsia não viola aqueles interesses que, historicamente, estiveram sempre subjacentes à tutela da intimidade da vida privada» ([70]).

Contudo, já vimos como as premissas dessa argumentação podem conduzir a uma síntese diversa.

Note-se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional, não obstante também perfilhar o entendimento de que um cadáver não é titular de direitos de personalidade, não deixou de considerar que «[o] regime jurídico do cadáver, seja qual for a qualificação jurídica a atribuir- -lhe, não pode compreender-se se não se vir no cadáver ainda uma projecção da pessoa viva». Com efeito, no Acórdão nº 130/88 ([71]) – em que estava em causa o direito de uma pessoa a opor-se à utilização do seu próprio cadáver para efeitos de colheita de órgãos ou tecidos –, apesar de se afirmar que «só uma pessoa pode ser agredida ou ofendida [e] nunca um cadáver», sustentou-se que «a esse direito não poderá deixar de reconhecer-se um fundamento constitucional, considerados os princípios humanísticos em que a Constituição assenta», encontrando esse fundamento, «em último termo, na própria ideia ou princípio do Estado de direito, iluminado pelo relevo que nele tem a dignidade da pessoa humana».

4.3. De tudo o que vem de se expor se deduz que os dados recolhidos nos relatórios de autópsias médico-legais devem beneficiar de uma protecção semelhante à que é concedida aos dados relativos à saúde constantes dos relatórios de exames médico-legais de pessoas vivas.

Quanto aos exames de pessoas vivas, essa protecção baseia-se no direito à reserva da vida privada. Já no caso dos exames em cadáveres a tutela devida encontra o seu fundamento no princípio da dignidade humana, precipitado num direito geral de personalidade que se projecta no falecido quanto ao segmento respeitante à reserva da vida privada.

Em qualquer dos casos estão implicados direitos fundamentais, pelo que o acesso de terceiros aos dados recolhidos nos respectivos relatórios periciais, enquanto peças processuais incorporadas em processos-crime, obedecerá ao disposto nos artigos 86º e 90º do CPP, em cuja aplicação a autoridade judiciária competente procederá, quando necessário ([72]), a um juízo de ponderação à luz do regime de restrições aos direitos, liberdades e garantias previsto no artigo 18º da Constituição.



VI


1. Apreciada mais detidamente a questão nuclear do acesso de terceiros aos relatórios de perícias médico-legais em processo penal, pela sua especial relevância para a actividade do Ministério Público (enquanto autoridade judiciária que preside à fase de inquérito), resta analisar de forma breve essa temática no âmbito do processo civil e do processo laboral.

Já enunciámos as disposições do Código de Processo Civil (CPC) e do Código de Processo do Trabalho (CPT) que contemplam a realização de perícias médico-legais. Importa agora conhecer as normas que regem sobre o acesso ao processo.

1.1. Em processo civil esse regime encontra-se vertido nos artigos 167º e 168º, que passamos a transcrever:
«Artigo 167º
(Publicidade do processo)

1. O processo civil é público, salvas as restrições previstas na lei.
2. A publicidade do processo implica o direito de exame e consulta dos autos na secretaria e de obtenção de cópias ou certidões de quaisquer peças nele incorporadas, pelas partes, por qualquer pessoa capaz de exercer o mandato judicial ou por quem nisso revele interesse atendível.
3. Incumbe às secretarias judiciais prestar informação precisa às partes, seus representantes ou mandatários judiciais, ou aos funcionários destes, devidamente credenciados, acerca do estado dos processos pendentes em que sejam interessados.
4. Os mandatários judiciais poderão ainda obter informação sobre o estado dos processos em que intervenham através de acesso aos ficheiros informáticos existentes nas secretarias, nos termos previstos no respectivo diploma regulamentar.»
«Artigo 168º
(Limitações à publicidade do processo)

1. O acesso aos autos é limitado nos casos em que a divulgação do seu conteúdo possa causar dano à dignidade das pessoas, à intimidade da vida privada ou familiar ou à moral pública, ou pôr em causa a eficácia da decisão a proferir.
2. Preenchem, designadamente, as restrições à publicidade previstas no número anterior:
a) Os processos de anulação de casamento, divórcio, separação de pessoas e bens e os que respeitem ao estabelecimento ou impugnação de paternidade, a que apenas podem ter acesso as partes e os seus mandatários;
b) Os procedimentos cautelares pendentes, que só podem ser facultados aos requerentes e seus mandatários e aos requeridos e respectivos mandatários, quando devam ser ouvidos antes de ordenada a providência.»

1.2. Em processo laboral, na falta de disposições próprias sobre a matéria, vigora o mesmo regime do processo civil, por força da norma supletiva constante do artigo 1º, nº 1, alínea a), do CPT. Pelo que a análise subsequente dos artigos 167º e 168º do CPC vale igualmente para o processo laboral.


2. Para a matéria do acesso de terceiros ao processo relevam, fundamentalmente, os nos 1 e 2 do artigo 167º e o nº 1 do artigo 168º – os nos 3 e 4 da primeira disposição referem-se, em geral, ao acesso das partes processuais e seus mandatários e o nº 2 da segunda prevê mesmo determinados tipos de processos a que apenas podem ter acesso os referidos intervenientes.

Concentremo-nos naquelas normas.

O nº 1 do artigo 167º consagra a regra da publicidade – e esta implica, em regra, a livre consulta do processo e a obtenção de cópias ou certidões. Mas, quanto a terceiro, a lei exige que este revele no acesso interesse atendível (nº 2).

Por sua vez, o artigo 168º, nº 1, vai mais longe e prevê mesmo limitações ao acesso sempre que a divulgação do conteúdo de peça processual possa causar dano à dignidade das pessoas e à intimidade da vida privada ou familiar ou à moral pública. Esse critério é concretizado, a título meramente exemplificativo, quanto a certos tipos de processos, com a consequência da proibição de acesso por terceiros (nº 2). Daqui decorre que noutras espécies processuais em que ocorra idêntico dano pode ser imposta igual proibição de acesso por terceiros.

Estando já assente, pelo supra exposto, que os elementos recolhidos em relatórios de perícias médico-legais (quer exames de pessoas vivas, quer autópsias) constituem dados ínsitos na esfera de reserva da vida privada, afigura-se inevitável submeter esses relatórios ao regime de protecção do nº 1 do artigo 168º do CPC, na parte em que este preceito se refere ao dano à dignidade das pessoas e à intimidade da vida privada.

Como vimos, o acesso por terceiros só está expressamente excluído, em absoluto, em relação às espécies processuais referidas no nº 2 do artigo 168º. Quanto aos demais tipos de processos (os restantes cíveis e todos os laborais), sempre que neles figurem relatórios de perícias médico-legais, é de admitir que esse acesso por terceiros fique dependente de uma avaliação casuística da dimensão do dano para a dignidade das pessoas e para a intimidade da vida privada, cabendo necessariamente ao magistrado titular do processo decidir sobre essa possibilidade de acesso, com apelo ao juízo de ponderação já antes mencionado, a aferir pelo critério de proporcionalidade previsto no artigo 18º da Constituição.

Em suma: a solução encontrada para a questão em apreço nos domínios do processo civil e do processo laboral não difere, em substância, da que foi delineada no âmbito do processo penal.


VII


Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1ª) Os relatórios de perícias médico-legais encontram-se numa situação de dependência processual relativamente aos procedimentos judiciais para que foram produzidos, estando o acesso de terceiros a essas peças processuais subordinado aos poderes de direcção intraprocessual das autoridades judiciárias competentes;

2ª) Consequentemente, cabe aos magistrados (juízes e magistrados do Ministério Público) titulares dos respectivos processos o poder de decidir dos pedidos de acesso de terceiros aos relatórios de perícias médico-legais, em conformidade com as concretas normas processuais relativas à consulta de autos e obtenção de cópias ou certidões aplicáveis ao tipo de procedimento judicial em causa;

3ª) Os elementos recolhidos nos exames médico-legais de pessoas vivas, e vertidos nos respectivos relatórios, constituem dados pessoais sensíveis, que beneficiam da protecção conferida à reserva da vida privada pelo artigo 26º, nº 1, da Constituição;

4ª) Os elementos recolhidos nos exames médico-legais de cadáveres, e vertidos nos respectivos relatórios, merecem igualmente protecção, com fundamento no princípio da dignidade humana (artigo 1º da Constituição), precipitado num direito geral de personalidade, que é acolhido no artigo 26º, nº 1, da Constituição e que se projecta nos falecidos quanto ao segmento respeitante à reserva da vida privada;

5ª) Em virtude do que se refere nas duas conclusões anteriores, as autoridades judiciárias competentes, ao proceder à aplicação casuística das regras processuais que possibilitem o acesso de terceiros ao processo (consulta e obtenção de cópias ou certidões), devem, na decisão sobre o concreto pedido de acesso a relatórios de perícias médico-legais, interpretar os critérios legais aplicáveis com apelo a um juízo de ponderação que atenda ao regime de restrições aos direitos, liberdades e garantias previsto no artigo 18º da Constituição.







([1]) Com o nº 676/SD, datado de 22 de Fevereiro de 2005.
([2]) A menção reporta-se à Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA). O actual diploma regulador dessa matéria, sob a designação de Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), foi aprovada pela Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro (rectificada pela Declaração de Rectificação nº 17/2002, de 6 de Abril, e alterada pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro), a qual revoga a anterior LPTA [artigo 6º, alínea e), do diploma preambular], e cuja entrada em vigor foi diferida para 1 de Janeiro de 2004, conforme a nova redacção conferida pela citada Lei nº 4-A/2003 ao artigo 7º da Lei nº 15/2002.
([3]) Sobre a anterior história legislativa em matéria de organização médico-legal portuguesa discorreu este Conselho Consultivo em diversos momentos. Cfr., entre outros, Pareceres nos 57/88, de 28 de Junho de 1990, e 29/95, de 6 de Julho de 1995 – que passamos a acompanhar nalguns trechos, em particular este último.
([4]) Alterado pelo Decreto-Lei nº 431/91, de 2 de Novembro.
([5]) Enunciando essa classificação, v. o citado Parecer nº 29/95.
([6]) Do Parecer nº 29/95, que voltamos a acompanhar de perto.
([7]) Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1979, p. 262. Igualmente citado no Parecer nº 29/95.
([8]) Aprovado pelo Decreto-Lei nº 480/99, de 9 de Novembro, e alterado pelos Decretos-Leis nos 323/2001, de 17 de Dezembro, e 38/2003, de 8 de Março.
([9]) Rectificado pela Declaração de Rectificação nº 9-B/98, de 30 de Abril, e alterado pelo Decreto-Lei nº 499/99, de 19 de Novembro.
([10]) Da nota preambular do diploma (ponto 4).
([11]) Segundo a nota preambular do diploma, «[o] regime de realização de autópsias médico-legais é objecto de clarificação, eliminando-se lacunas e ambiguidades nas regras que as disciplinam» (ponto 10).
([12]) Rectificado pela Declaração de Rectificação nº 7-P/2000, de 31 de Agosto, e alterado pelo Decreto-Lei nº 4/2005, de 5 de Janeiro.
([13]) Alterado pela Lei nº 45/2004, de 19 de Agosto.
([14]) Alterada pelas Leis nos 8/95, de 29 de Março, e 94/99, de 16 de Julho.
([15]) De 6 de Novembro de 1998.
([16]) Sobre a tramitação processual penal, cfr., por todos, GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, III, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1994.
([17]) Na versão actual, resultante das alterações introduzidas pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto.
([18]) Princípio que, aliás, tem consagração constitucional, no artigo 20º, nº 3, da Lei Fundamental, e desde a 4ª revisão (Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro): «A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.» E, de igual modo, goza esse princípio de tutela penal, na medida em que se encontra previsto o crime de «violação de segredo de justiça» no artigo 371º do Código Penal.
([19]) Em «Introdução à Medicina Legal», in Introdução ao Estudo da Medicina Legal, Volume I (Deontologia e Direito Médico), Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1990, p. 11 – invocando uma definição de GÉRARD MÉMETEAU.
([20]) Citada por SÉRVULO CORREIA, em «Introdução ao Direito da Saúde», in AA.VV., Direito da Saúde e Bioética, Lex, Lisboa, 1991, p. 41.
([21]) Assim, F. A. GONÇALVES FERREIRA, entrada «Saúde (sistemas de)», in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Verbo, Edição Século XXI, Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 2003, p. 426.
([22]) Rectificada pela Declaração de Rectificação nº 22/98, de 28 de Novembro.
([23]) Depois de sucessivas alterações em diferentes revisões constitucionais, o preceito apresenta actualmente a seguinte redacção:
«Artigo 35º
(Utilização da informática)
«1. Todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei.
2. A lei define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a sua protecção, designadamente através de entidade administrativa independente.
3. A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis.
4. É proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei.
5. É proibida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos.
6. A todos é garantido livre acesso às redes informáticas de uso público, definindo a lei o regime aplicável aos fluxos de dados transfronteiras e as formas adequadas de protecção de dados pessoais e de outros cuja salvaguarda se justifique por razões de interesse nacional.
7. Os dados pessoais constantes de ficheiros manuais gozam de protecção idêntica à prevista nos números anteriores, nos termos da lei.»
([24]) Com idêntica abordagem, cfr. MARIA EDUARDA GONÇALVES, Direito da Informação, Almedina, Coimbra, 1994, p. 101. Sobre esta temática já se pronunciou por várias vezes este corpo consultivo, mostrando-se especialmente significativos os Pareceres nos 95/87, de 10 de Maio de 1990 (Diário da República, II, de 17 de Dezembro de 1990), e 23/95, de 8 de Junho de 1995 (DR, II, de 22 de Fevereiro de 1996). Mais recentemente, v. ainda os Pareceres nos 182/2001, de 13 de Março de 2003, e 9/2005, de 3 de Março de 2005 – que aqui acompanhamos de perto.
([25]) Neste sentido, embora na perspectiva do tratamento informático de dados pessoais, cfr. FARIA COSTA [«O Direito Penal, a Informática e a Reserva da Vida Privada», in Direito Penal da Comunicação (Alguns Escritos), Coimbra Editora, Coimbra, p. 69], HELENA MONIZ [«Notas sobre a Protecção de Dados Pessoais perante a Informática», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7, fasc. 2º (Abril- -Junho/1997), p. 246] e MARIA EDUARDA GONÇALVES (ob. cit., p. 72).
([26]) Assim, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, p. 218), para quem a esfera da vida privada «há-de incluir necessariamente informações como as referentes à origem étnica, à vida familiar, à vida sexual, à saúde, condenações em processo criminal, situação patrimonial e financeira».
([27]) Neste sentido, o citado Parecer nº 182/2001, que aqui seguimos textualmente.
([28]) Assim também o Parecer nº 182/2001.
([29]) Como se salienta no Parecer nº 182/2001, já se «situa fora do objecto de protecção a que se refere a Lei nº 67/98 (…) o tratamento não automatizado de dados pessoais não contidos em ficheiros».
([30]) Ob. cit., p. 181.
([31]) Neste sentido, JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 386.
([32]) Em Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2001, pp. 310-318 – citado, aliás, a propósito de situações paralelas, por este corpo consultivo, nos Pareceres nos 94/2001-Complementar, de 26 de Setembro de 2002, e 182/2001.
([33]) A alínea b) do nº 8 refere-se concretamente ao auto de notícia de processo-crime por acidente de viação.
([34]) Em Stedman-Dicionário Médico, 23ª ed. (tradução brasileira), Editora Guanabara, Rio de Janeiro, 1979, p. 142.
([35]) Nestes termos (em tradução nossa), RICHARD BOUNAMEAU, L’Autopsie: acte médico-légal et acte scientifique. Aspects théoriques et pratiques, Université Libre de Bruxelles-Monographies de l’École des Sciences Criminologiques «Léon Cornil», E.Story-Scientia, Bruxelles, 1988, p. 14.
([36]) Idem, p. 17.
([37]) Ibidem.
([38]) Assim, RICHARD BOUNAMEAU, ob. cit., p. 1. Porém, o autor manifesta a sua surpresa pela omissão assinalada.
([39]) Em Tratado de Direito Civil, Volume I, Coimbra Editora, Coimbra, 1929, p. 304 – citado por MANUEL DUARTE GOMES DA SILVA, Colheita de órgãos e tecidos nos cadáveres, Colecção Scientia Ivridica, Livraria Cruz, Braga, 1970, p. 25.
([40]) Em Código Civil Português Anotado, Volume I, 2ª edição, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1894, p. 6, apud GOMES DA SILVA, ob. cit., p. 25.
([41]) Ob. cit., p. 25.
([42]) Em Revista de Legislação e de Jurisprudência, VII, p. 345, apud GOMES DA SILVA, ob. cit., p. 25 – e transcrita integralmente por ANTÓNIO CARVALHO MARTINS, A colheita de órgãos e tecidos nos cadáveres, Coimbra Editora, Coimbra, 1986, pp. 34-39.
([43]) Código Civil Anotado, Volume I, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 105.
([44]) O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 192.
([45]) Lições de Direitos da Personalidade, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p. 45.
([46]) Aspectos Jurídico-Penais dos Transplantes, Universidade Católica Portuguesa, Porto, 1995, p. 126.
([47]) Em Transplantações: Um Olhar Constitucional, Colecção Argumentum/9, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 28 – citando HOTTOIS.
([48]) O Homem e a Morte, 1ª edição portuguesa (tradução da 2ª edição francesa, 1970), Biblioteca Universitária/19, Publicações Europa-América, Lisboa, s/d, pp. 24-25.
([49]) Neste sentido, CAPELO DE SOUSA, ob. cit., pp. 189-192.
([50]) Assim, DAMIÃO DA CUNHA, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 651-661, em anotação aos mencionados artigos.
([51]) Ob. cit., p. 124.
([52]) Idem, p. 127.
([53]) Neste ponto argumenta o autor: «Na “era dos direitos (fundamentais)” (…), os direitos de personalidade terão de começar por ser captados a nível constitucional, sendo de rejeitar as teses que reservam a expressão “direitos fundamentais” para o Direito Constitucional e a fórmula “direitos de personalidade” (-) para o Direito Civil.» (ob. cit., pp. 12-13).
([54]) Ob. cit., p. 23.
([55]) Ibidem.
([56]) GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., pp. 58-59.
([57]) JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, ob. cit., p. 53.
([58]) Idem, p. 282.
([59]) Concepção introduzida entre nós por RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, «A Constituição e os direitos de personalidade», in Estudos sobre a Constituição, 2º volume, Livraria Petrony, Lisboa, 1978, pp. 93-196. Neste sentido, JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, ob. cit., p. 283.
([60]) JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, ibidem.
([61]) Idem, p. 284. E prosseguem aí os autores: «O dever de respeito pela personalidade humana prevalece para além da vida. Por ser o resíduo físico de uma personalidade, o próprio cadáver merece protecção que “não se funda no que ele é actualmente, mas naquilo que ele foi”».
([62]) Em sentido próximo, CAPELO DE SOUSA, ob. cit., p. 192.
([63]) Aprovado pelo Decreto-Lei nº 51/78, de 30 de Março. Na alínea b) do nº 1 do seu artigo 240º, especificava-se, entre as menções especiais do assento de óbito, a indicação da «causa da morte».
([64]) Aprovado pelo Decreto-Lei nº 131/95, de 6 de Junho.
([65]) O que, aliás, se afigura muito questionável, do ponto de vista da protecção dos dados pessoais.
([66]) Neste sentido, FILOMENA MARIA MÁXIMO MOCICA e MARIA DE LURDES SERRANO, Código do Registo Civil Anotado, Rei dos Livros, Lisboa, 2003, p. 281.
([67]) Sem prejuízo de, no caso de ser ignorada a causa da morte, dever ter lugar autópsia ou dispensa da mesma, nas condições legais (artigo 197º do Código do Registo Civil).
([68]) De 24 de Setembro de 1998.
([69]) De 3 de Junho de 1983. Encontra-se parcialmente transcrito em Pareceres, Volume VII, Procuradoria-Geral da República, Lisboa, 1998, pp. 22-26.
([70]) Discorreu-se ainda que, mesmo a admitir, por hipótese de raciocínio, uma violação da intimidade da vida privada dos falecidos, naquele caso não ocorreria uma violação ilícita, porque, dada a notoriedade pública dos falecidos, «o direito dos cidadãos à informação e o correspondente dever de a prestar, aliado ao interesse público legítimo de evidenciar o correcto funcionamento das instituições políticas, jurídicas e policiais envolvidas, justificaria o sacrifício do direito à intimidade da vida privada».
([71]) De 8 de Junho (in Diário da República, II Série, de 5 de Setembro de 1988).
([72]) Isto é, quando a lei ponha a cargo do magistrado titular do processo a decisão sobre a possibilidade ou não de acesso de terceiros a auto ou certidão, segundo critérios indeterminados como os de interesse legítimo (artigo 90º, nº 1, do CPP), conveniência (artigo 86º, nº 5) ou necessidade [artigo 86º, nos 7 e 8, alínea a)].