Parecer do Conselho Consultivo da PGR |
Nº Convencional: | PGRP00001845 |
Parecer: | P006112000 |
Nº do Documento: | PPA110120000061100 |
Descritores: | FUNDAÇÃO FUNDAÇÃO PARA A PREVENÇÃO E SEGURANÇA PESSOA SINGULAR PESSOA COLECTIVA PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PRIVADO PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO ASSOCIAÇÃO FUNDAÇÃO PÚBLICA DE DIREITO PRIVADO INSTITUIÇÃO PARTICULAR DE SOLIDARIEDADE SOCIAL FUNDAÇÃO DE SOLIDARIEDADE SOCIAL FUNDAÇÃO PRIVADA DE INTERESSE SOCIAL NEGÓCIO DE FUNDAÇÃO NEGÓCIO INTER VIVOS NEGÓCIO JURÍDICO UNILATERAL SUBSTRATO PATRIMÓNIO DOTAÇÃO FIM ESTATUTÁRIO RECONHECIMENTO RECONHECIMENTO NORMATIVO RECONHECIMENTO POR CONCESSÃO PODER DISCRICIONÁRIO ACTO DE INSTITUIÇÃO ESTATUTO REDUÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO APOIO FINANCEIRO PÚBLICO PRINCÍPIO DA IGUALDADE PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE PRINCÍPIO DA JUSTIÇA PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE PRINCÍPIO DA BOA FÉ PRINCÍPIO DA LEGALIDADE MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA SERVIÇO NACIONAL DE PROTECÇÃO CIVIL COMISSÃO NACIONAL ESPECIALIZADA DE FOGOS FLORESTAIS DIRECÇÃO GERAL DE VIAÇÃO TRIBUNAL DE CONTAS CONTROLO FINANCEIRO |
Livro: | 00 |
Numero Oficio: | 9045 |
Data Oficio: | 12/04/2000 |
Pedido: | 12/05/2000 |
Data de Distribuição: | 12/05/2000 |
Relator: | LUCAS COELHO |
Sessões: | 01 |
Data da Votação: | 01/11/2001 |
Tipo de Votação: | MAIORIA COM 2 VOT VENC |
Sigla do Departamento 1: | MAI |
Entidades do Departamento 1: | MIN DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA |
Posição 1: | HOMOLOGADO |
Data da Posição 1: | 01/23/2001 |
Privacidade: | [01] |
Data do Jornal Oficial: | 06-03-2001 |
Nº do Jornal Oficial: | 55 |
Nº da Página do Jornal Oficial: | 4218 |
Indicação 2: | ASSESSOR:MARIA JOÃO CARVALHO |
Conclusões: | 1. A Fundação para a Prevenção e Segurança, instituída por escritura pública lavrada em 5 de Maio de 1999, no 3º Cartório Notarial de Lisboa, com reconhecimento outorgado pela Portaria nº 736/99, de 23 de Julho de 1999, do Secretário de Estado da Administração Interna, deve, considerando o acto de instituição e os Estatutos que constam do referido instrumento notarial, ser qualificada juridicamente como fundação de interesse social, de direito privado, subordinada em especial ao regime definido nos artigos 185º e segs. do Código Civil; 2. Segundo os elementos de análise disponíveis, o acto de instituição e os Estatutos da Fundação apresentam-se em conformidade com a lei que a rege, sem prejuízo das conclusões 3., 4. e 5.; 3. Com efeito, os nºs 4 e 9 do artigo 13º dos Estatutos, possibilitando ao conselho de administração, numa certa interpretação - muito difícil, aliás, de imputar à intenção dos fundadores -, dispor do património da Fundação ou transferir o domínio de quaisquer bens desse património para outros entes, envolveriam no limite a transformação ou extinção da Fundação e a desconsideração do escopo fundacional, em usurpação dos poderes legais da entidade competente para o reconhecimento, violando, nessa interpretação, nomeadamente os artigos 190º, 192º e 193º do Código Civil; 4. Também o artigo 19º dos Estatutos, ao conferir a competência de alteração estatutária à assembleia de fundadores, quando esta competência é confiada pelo artigo 189º do Código Civil imperativamente à autoridade competente para o reconhecimento, colide inelutavelmente com aquele preceito, sendo consequentemente nulo; 5. As cláusulas estatutárias aludidas nas anteriores conclusões 3. e 4. podem ser expurgadas das ilegalidades, ou eliminadas, em oportuna alteração dos Estatutos, e, na falta dela, mediante sentença judicial que as declare nulas na medida pertinente, subsistindo em qualquer caso a Fundação, escorada na interpretação conforme e na disciplina legal imperativa (cfr. o artigo 292º do Código Civil), tanto mais que os aludidos vícios não afectam o substrato da pessoa jurídica na veste do negócio fundacional, nem contaminam o acto de reconhecimento; 6. Os fins da Fundação enunciados nos artigos 3º e 4º dos Estatutos consistem em promover, desenvolver e apoiar acções e estudos nos domínios da segurança, designadamente rodoviária, e da protecção civil; 7. A prossecução destes interesses públicos por parte do Estado foi confiada nuclearmente às atribuições e competências do Ministério da Administração Interna, nos termos da sua lei orgânica consubstanciada no Decreto-Lei nº 55/87, de 31 de Janeiro, pelo que pode o Estado, através daquele Ministério, apoiar as actividades da Fundação que visem a prossecução dos aludidos fins, mediante subsídios financeiros e outras atribuições patrimoniais; 8. Na concessão dos subsídios e outras atribuições patrimoniais aludidas na anterior conclusão 7., os órgãos públicos competentes ficam, todavia, sujeitos aos requisitos e formas de controlo descritos paradigmaticamente no ponto V do parecer, em particular: 8.1. À observância, em geral, dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, imparcialidade, boa fé e legalidade (artigo 266º, nº 2, da Constituição e artigos 3º a 6º--A do Código do Procedimento Administrativo) - ponto V, 1.; 8.2. Quanto às atribuições financeiras no domínio específico do Serviço Nacional de Protecção Civil (SNPC), à compatibilidade com as disponibilidades e o plano anual de actividades deste Serviço [artigo 8º, alínea f), do Decreto-Lei nº 203/93, de 3 de Julho, na redacção do artigo 1º do Decreto--Lei nº 152/99, de 10 de Maio], bem como às formas de controlo financeiro de legalidade internas e pelo Tribunal de Contas previstas nos artigos 12º, nº 2, alínea d), e 14º, alíneas d) e h) - ponto V, 2.1; 8.3. No tocante a apoios financeiros por intermédio da Comissão Nacional Especializada de Fogos Florestais (CNEFF), aos meios disponíveis e sua vinculação à investigação científica aplicada aos fogos florestais, e, bem assim, aos programas adrede aprovados [nºs 1 e 4, alínea e), da Resolução do Conselho de Ministros nº 9/91, de 21 de Março] - ponto V, 2.2; 8.4. Relativamente a subvenções financeiras pela Direcção--Geral de Viação (DGV) no capítulo das acções que visem a prevenção de acidentes e a melhoria da segurança rodoviária, à celebração dos adequados protocolos [artigos 5º, nº 2, alínea h), e 24º, nº 3, do Decreto-Lei nº 484/98, de 10 de Novembro], assim como às formas de controlo financeiro de legalidade internas e pelo Tribunal de Contas previstas no artigo 5º, nº 2, alíneas f) e i), do mesmo diploma - ponto V, 2.3; 8.5. Ao exercício da discricionaridade subsistente na prática dos actos de apoio financeiro aludidos nos anteriores nºs 8. 2 e segs. com respeito do interesse público e, por conseguinte, dos parâmetros, em especial, da igualdade, proporcionalidade e imparcialidade pressupostos na prossecução participada do interesse público mediante a partilha de recursos escassos - ponto V, 3.; 8.6. À publicação semestral no «Diário da República» das atribuições patrimoniais mencionadas, de acordo com o regime definido na Lei nº 26/94, de 19 de Agosto (artigos 1º, nº 1, 2º, nº 1, e 4º), e à sua divulgação em locais acessíveis a consulta pública mediante comunicação às freguesias respectivas (artigo 6º, nº 1, da Lei 104/97, de 13 de Setembro) - ponto V, 4.; 8.7. À autovinculação prévia de emanação da disciplina geral exigida pela concretização dos princípios da igualdade, proporcionalidade e imparcialidade, complementada por contratos-programas, programas e protocolos, na medida em que se revelem lacunares os mecanismos de controlo que fluem dos regimes descritos nos números anteriores - ponto V, 5.; 8.8. Ao acatamento do regime aplicável de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos (v.g., Lei nº 64/93, de 26 de Agosto), do pessoal de livre designação por titulares de cargos políticos, maxime dos membros dos gabinetes ministeriais (Decreto-Lei nº 196/93, de 27 de Maio) e das garantias de isenção da Administração Pública (Decreto-Lei nº 413/93, de 23 de Dezembro) - ponto V, 6.; 9. Tornando-se beneficiária das atribuições financeiras aludidas na conclusão 7., nomeadamente nos domínios especificados na conclusão 8., nºs 8.2 e segs., a Fundação fica nessa qualidade subordinada aos requisitos e formas de controlo referidos no ponto V, 7. do parecer, em especial: 9.1. Às formas de controlo resultantes dos diplomas legais concernentes à protecção civil, aos fogos florestais e à segurança rodoviária enunciadas nos nºs 8.2 a 8.4 da conclusão anterior; 9.2. Aos procedimentos definidos em autovinculação pela Administração a que se refere o nº 8.7; 9.3. Ao cumprimento, de todo o modo, pelos ditames da boa fé, das apropriadas solicitações a posteriori dos órgãos competentes, visando aferir da satisfação tributada aos interesses públicos; 9.4. Aos poderes de controlo financeiro directo do Tribunal de Contas (cfr. o artigo 2º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, e os artigos 1º e 2º, da Lei nº 14/96, de 20 de Abril). |
Texto Integral: | Senhor Ministro da Administração Interna, Excelência: I Ponderando que foi «posta em causa a legalidade da concessão de apoios do Estado através do Ministério da Administração Interna à Fundação para a Prevenção e Segurança no quadro dos respectivos fins estatutários», e considerando importar, «em obediência ao princípio da transparência, esclarecer o quadro legal em que tais apoios podem ser concedidos», dignou-se Vossa Excelência solicitar o parecer urgente deste Conselho Consultivo acerca das questões assim enunciadas: «a) Face à Escritura de Constituição e aos Estatutos da Fundação para a Prevenção e Segurança, pode o Estado através do Ministério da Administração Interna sob a forma de subsídios financeiros, cedência de bens ou outros meios materiais, apoiar a actividade da referida Fundação para prossecução dos fins de interesse público, nomeadamente quando se inserem na área de atribuições do próprio Ministério? b) Em caso afirmativo, quais os requisitos legais específicos relativos à despesa e à prestação de contas a que a Fundação fica vinculada?» ([1]) Sendo estes os termos da consulta que nos é dirigida, importa, pois, averiguar apenas: por um lado, se o quadro legal aplicável permite a concessão de apoios estaduais à Fundação sob as formas de atribuições patrimoniais mencionadas; e, na hipótese afirmativa, os mecanismos de controlo financeiro a que o organismo fica sujeito. Não submetendo, aliás, Vossa Excelência a esta instância consultiva a apreciação de algum concreto acto, não nos cabe, consequentemente, emitir juízos de legalidade sobre qualquer das atribuições já efectuadas à Fundação, sem prejuízo da submissão destas, em princípio, ao quadro legal e aos mecanismos de controlo que resultarem do estudo das duas mencionadas vertentes. Sabemos que a «questão da Fundação» originou acesa polémica e a produção de efeitos políticos profusamente publicitados em termos de informação e de opinião. Funcionalmente, porém, a vocação do Conselho Consultivo impõe-lhe alhear-se da controvérsia pública. O que através da consulta formulada estritamente lhe compete, e dele se espera, não é decerto a resolução do fenómeno político-so-cial tal como se projecta mediaticamente, mas unicamente a resolução jurídica das questões enunciadas, com recurso exclusivo aos elementos documentais disponibilizados. Precise-se, por último, que a dilucidação metódica dos específicos problemas colocados demanda, em primeiro lugar, uma análise do ente que se apresenta à nossa consideração retratado no acto de instituição e nos estatutos, o que pressupõe, por conseguinte, o exame destes instrumentos à luz da lei e da teoria jurídica aplicável. Compreende-se a obrigatoriedade desta apreciação prévia, não suceda inclusivamente que a criação do ente sub iudicio enferme de ilegalidades tais que prejudiquem à partida os apoios públicos. Apenas se, nesta óptica vestibular de legalidade, nada obstar à sua concessão se imporá, em segundo lugar, definir o regime jurídico convocado pelas questões das atribuições patrimoniais ao ente e do controlo a que por tal motivo fica subordinado. E tudo isto com a urgência pretendida por Vossa Excelência. Cumpre, nestas condições, emitir parecer. II 1. O acto de instituição da Fundação – que doravante assim se denominará –, outorgado por três pessoas singulares, é do seguinte teor: «Que pela presente escritura, constituem uma FUNDAÇÃO com a denominação «FUNDAÇÃO PARA A PREVENÇÃO E SEGURANÇA», com sede na Rua Ernesto Silva, nº 11, 1º andar direito, em Algés, freguesia de Algés, concelho de Oeiras, a qual se regerá pelos estatutos constantes do documento complementar elaborado nos termos do nº 2 do artigo 64º, do Código do Notariado.» 2. Os Estatutos, por seu turno, compreendem vinte artigos, agrupados em quatro capítulos, que interessa reproduzir na íntegra: «Capítulo I Disposições Gerais «Artigo 1º (Instituição e Natureza) É instituída uma Fundação denominada Fundação para a Prevenção e Segurança, pessoa colectiva de direito privado, que se rege pelos presentes estatutos e, subsidiariamente, pelas normas legais aplicáveis. «Artigo 2º 1. A Fundação durará por tempo indeterminado e tem a sua sede no primeiro andar direito do número cento e onze da Rua Ernesto Silva, em Algés, Freguesia de Algés, concelho de Oeiras.(Duração e Sede) 2. Por deliberação da Assembleia Geral [sic; cfr. infra, o artigo 7º, nº 1], a Fundação poderá alterar a sua sede ou criar delegações ou quaisquer formas de representação, no país e no estrangeiro, designadamente países lusófonos e da União Europeia, e organizá-las pela forma que julgar mais conveniente para a prossecução dos seus fins. «Artigo 3º (Fins) São fins da Fundação promover, desenvolver e apoiar acções e estudos nos domínios da segurança, designadamente da segurança rodoviária e da protecção civil. «Artigo 4º (Actividades) 1. Para a consecução dos fins previstos no artigo anterior a Fundação promoverá e desenvolverá uma cultura de cidadania activa em matéria de protecção e segurança, incentivando uma cultura de autoprotecção e auto-segurança, enquanto meio privilegiado de prevenção de riscos e ameaças contra a segurança de pessoas e bens. 2. Compete ao Conselho da Administração, de acordo com as prioridades que estabelecer e com os meios disponíveis determinar a forma, o lugar e a duração por que deverão ser realizados os fins indicados no número anterior, bem como resolver todas as dúvidas que possam eventualmente vir a suscitar-se quanto à caracterização dos mesmos fins. 3. A Fundação orientará as suas actividades exclusivamente para fins de utilidade pública, cooperando com a administração central e local e sujeitando-se aos deveres e princípios consagrados na legislação em vigor. «Capítulo II (Regime Patrimonial e Financeiro) «Artigo 5º (Património) 1. O património da Fundação é constituído: a) pela dotação inicial no valor de dez milhões de escudos; b) pelas contribuições regulares, ou não, que receba, designadamente, doações, heranças, legados, subsídios ou produtos de subscrições públicas; c) pelas receitas que lhe advenham de qualquer actividade que venha a exercer no âmbito da realização dos seus fins; d) pelos bens que a Fundação adquirir; e) pelos rendimentos dos seus bens; f) pelas receitas provenientes de protocolos a celebrar com instituições ou entidades e decorrentes das respectivas prestações de serviços. e) por todos os demais bens que à Fundação advierem por outro qualquer título gratuito ou oneroso. «Artigo 6º 1. A Fundação goza de autonomia financeira.(Autonomia Financeira) 2. A Fundação no exercício da sua actividade poderá: a) alienar, onerar ou adquirir livremente quaisquer bens móveis ou imóveis quer para o exercício das suas actividades quer para realizar aplicação dos valores do seu património, podendo, igualmente, para este último fim, adquirir quaisquer participações sociais, salvas as restrições impostas por lei; b) negociar e contratar empréstimos e conceder garantias, no quadro da optimização da valorização do seu património e da concretização dos seus fins; c) aceitar doações, heranças ou legados condicionais, desde que a condição não contrarie os seus fins. «Capítulo III (Organização e Funcionamento) «Artigo 7º (Órgãos da Fundação) São órgãos da Fundação: 1. A Assembleia de Fundadores. 2. O Conselho da Administração. 3. O Conselho Fiscal. «Artigo 8º (Assembleia de Fundadores) 1. A Assembleia de Fundadores é composta pelo conjunto dos membros fundadores, sendo a respectiva Mesa constituída por um presidente e um secretário. 2. São membros fundadores os outorgantes da acta da assembleia preparatória realizada no dia dois de Fevereiro de mil novecentos e noventa e nove. 3. Mediante proposta do Conselho de Administração, a Assembleia de Fundadores poderá conferir a qualidade de membro fundador, de pleno direito, a outras individualidades que entenda distinguir. 4. A qualidade de membro fundador perde-se: a) por vontade expressa do membro em causa, mediante carta enviada nesse sentido ao presidente do Conselho de Administração; b) por morte, interdição ou inabilitação do membro em causa; c) por prática de actos graves contrários aos fins prosseguidos pela Fundação ou ofensivos do seu bom nome e após exclusão votada pela Assembleia de Fundadores. 5. Em qualquer dos casos previstos no número anterior, a vaga verificada será preenchida mediante votação da Assembleia de Fundadores. «Artigo 9º 1. A Assembleia de Fundadores reúne ordinariamente uma vez por ano para apreciação do relatório e contas da Administração relativo ao ano anterior e do parecer do Conselho Fiscal.(Reuniões e deliberações) 2. A Assembleia de Fundadores reúne extraordinariamente sempre que for convocada pelo respectivo presidente da Mesa, por um terço dos seus membros ou pelo presidente do Conselho de Administração. 3. A Assembleia de Fundadores será convocada por carta enviada aos membros fundadores com a antecedência mínima de oito dias, indicando o local, o dia e a hora da reunião e a respectiva ordem de trabalhos. 4. A Assembleia reúne validamente estando presente a maioria dos seus membros. 5. Os membros da Assembleia poderão fazer-se representar, mediante comunicação escrita dirigida ao presidente da Mesa, através de outro membro fundador. § Das deliberações: As deliberações da Assembleia de Fundadores são tomadas por maioria dos votos expressos, com excepção da referida na alínea c) do nº 4 do artigo 7º [sic; artigo 8º, decerto, por lapsus calami] para a qual é necessária maioria qualificada de três quartos dos membros fundadores. «Artigo 10º (Competências da Assembleia de Fundadores) Compete à Assembleia de Fundadores: 1. estabelecer as linhas gerais de orientação da actividade da Fundação, em ordem ao cumprimento dos fins consagrados nos presentes estatutos; 2. eleger para mandatos de três anos os membros do Conselho de Administração, do Conselho Fiscal e da Mesa da Assembleia de Fundadores; 3. apreciar e votar anualmente o relatório de actividades, balanço, contas e relatório sobre o inventário do património elaborado pelo Conselho de Administração, bem como o parecer do Conselho Fiscal; 4. deliberar sobre outros assuntos de interesse para a prossecução dos fins da Fundação. «Artigo 11º 1. O Conselho de Administração é o órgão de administração da Fundação, tendo, para esse efeito, poderes de representação e de gestão.(Conselho de Administração) 2. O Conselho de Administração é constituído pelo presidente e quatro vogais, eleitos pela Assembleia de Fundadores para mandatos de três anos. 3. O Conselho de Administração poderá delegar num dos seus membros, que será designado administrador-delegado, a prática de actos de gestão corrente da Fundação. 4. A Fundação obriga-se: a) pela assinatura de dois administradores, sendo uma do presidente do Conselho; b) pela assinatura do administrador-delegado, no âmbito da respectiva delegação; c) nos termos das procurações ou títulos de delegação que outorgar. 5. Em caso de impedimento ou renúncia de qualquer membro do Conselho de Administração será eleito um substituto que terminará o respectivo mandato. 6. O cargo de administrador será ou não remunerado, conforme for deliberado pelo Conselho de Administração. «Artigo 12º 1. O Conselho de Administração deliberará por maioria simples, tendo o presidente voto de qualidade.(Reuniões e deliberações) 2. O Conselho de Administração reunirá com a periodicidade que vier a fixar e sempre que for convocado pelo seu presidente. «Artigo 13º Compete, nomeadamente, ao Conselho de Administração:(Competências do Conselho de Administração) 1. zelar pela realização do objecto da Fundação, nomeadamente, aprovando para esse fim planos de actividades anuais ou plurianuais; 2. elaborar e submeter anualmente à aprovação da Assembleia de Fundadores e do Conselho Fiscal o seu relatório de actividades, balanço e conta do resultado do exercício relativos ao ano civil anterior e elaborar também anualmente um relatório sobre o inventário do património da Fundação; 3. definir e estabelecer as linhas de funcionamento e organização interna da Fundação; 4. administrar e dispor do património da Fundação, praticando todos os actos necessários a esse objectivo e tendo os mais amplos poderes para o efeito; 5. constituir mandatários ou delegar em quaisquer dos seus membros ou em pessoas estranhas ao Conselho a representação deste e o exercício de algum ou alguns dos seus poderes, devendo as procurações e os títulos de delegação especificar os poderes conferidos ou delegados e os condicionalismos a que fica sujeito o seu exercício; 6. criar na sua dependência os órgãos e serviços, permanentes ou não, que julgue necessários, preencher os respectivos cargos, e, em geral, contratar e dirigir os recursos humanos, bem como fixar as respectivas remunerações; 7. deliberar, nos termos do regulamento interno, atribuir o título de «Membro benemérito» a pessoas, singulares ou colectivas, que auxiliem, mediante contribuições patrimoniais ou de outra forma, a Fundação na prossecução dos seus fins; 8. deliberar atribuir o título de «Membro honorário», nos termos do regulamento interno, a pessoas singulares ou colectivas que especialmente se distingam na sua actividade em prol da segurança, designadamente da segurança rodoviária e da protecção civil; 9. criar quaisquer pessoas colectivas ou fundos financeiros que se mostrem necessários ou convenientes à boa gestão do património da Fundação e transferir para as mesmas o domínio, posse ou administração de quaisquer bens que sejam parte do referido património, bem como deliberar aquisição de quaisquer participações sociais, salvas as restrições legais; 10. negociar e contratar empréstimos e emitir garantias, nos termos da alínea b), do nº 2 do artigo 5º [deve, sem dúvida, ler-se «artigo 6º»]; 11. recorrer à subscrição pública para angariação de fundos destinados à prossecução do seu objecto. «Artigo 14º 1. Compete ao presidente do Conselho de Administração: (Competências do presidente) a) representar a Fundação em juízo e em todas as manifestações externas; b) superintender em todos os actos sociais; c) convocar e presidir às reuniões do Conselho de Administração, estabelecendo a respectiva agenda; d) convocar a Assembleia de Fundadores, fixando, nesses casos, a ordem de trabalhos respectiva. «Artigo 15º (Conselho Fiscal) 1. O Conselho Fiscal é órgão de fiscalização da actividade da Fundação, que será constituído por três membros, eleitos pela Assembleia de Fundadores, sendo que um será o presidente. «Artigo 16º (Competências do Conselho Fiscal) 1. verificar e dar parecer, até 31 de Março de cada ano, sobre o relatório de actividades, balanço e conta do resultado do exercício do Conselho de Administração relativo ao ano civil anterior; 2. apreciar anualmente o relatório do Conselho de Administração sobre o inventário do património da Fundação; 3. verificar se a aplicação das receitas e do património da Fundação se realiza de harmonia com os fins estatutários. "Artigo 17º O Conselho Fiscal reúne uma vez por ano e extraordinariamente a todo o tempo, sob convocatória do respectivo presidente ou da maioria dos vogais.(Reuniões e deliberações) "Artigo 18º 1. O Conselho de Administração poderá propor à Assembleia de Fundadores a criação de um Conselho Consultivo, que será uma instância consultiva da Fundação com número ilimitado de membros a quem caberá pronunciar-se sobre questões específicas que lhe sejam submetidas pela Assembleia de Fundadores, pelo Conselho de Administração ou pelo presidente deste último.(Conselho Consultivo) 2. O Conselho Consultivo será constituído por pessoas ou entidades que, em virtude da importância das liberalidades feitas à Fundação, de serviços relevantes a esta prestados ou de actuação destacada em áreas que importem à realização dos seus fins estatutários, o Conselho de Administração considere justificado distinguir. «Capítulo IV A alteração dos presentes estatutos exige o voto favorável de três quartos do número de elementos presentes na Assembleia.Disposições Finais e Transitórias «Artigo 19º (Alterações estatutárias) «Artigo 20º No prazo de trinta dias a contar da data da escritura de constituição da Fundação proceder-se-á à designação dos titulares dos respectivos órgãos.»(Primeira titularidade dos órgãos) III 1. Hominum causa omne ius introductum est. O direito existe, pois, para a humanidade. O «fim de todo o direito é sempre um interesse humano». Só que os interesses humanos não são exclusivamente individuais. Por vezes assumem «carácter social», implicando grupos, categorias de pessoas. E a sua realização pode exigir o desenvolvimento harmónico de actividades que mobilizam o trabalho solidário de múltiplos «indivíduos» ou a organização de complexos de bens e «meios materiais», ao serviço do fim ou «interesse social» de satisfação de necessidades comuns a uma generalidade de pessoas singulares. Na consecução deste escopo é, por consequência, necessário imprimir às actuações individuais «unidade de acção e direcção» e dotar os meios finalisticamente predispostos de condições de «permanência» igual ou semelhante à dos interesses prosseguidos. Um dos meios técnico-jurídicos de assegurar tais exigências consiste no recurso à ideia de «personalidade colectiva». Mercê desta «forma de representação jurídica», conatural à tendência do espírito para «personificar abstracções», as realidades pessoais e materiais ordenadas à prossecução de interesses socialmente apreciáveis vêm a revestir uma figuração dir-se-ia antropomórfica e são tratadas como «sujeitos de direito» e «centros autónomos de relações jurídicas» (ANDRADE), tal como as pessoas físicas. Um método, observe-se, por virtude do qual ficam os interesses colectivos desde logo confiados a um acervo de normas e dispositivos que já tutelavam os interesses individuais das pessoas singulares, com a vantagem, por conseguinte, de dispensar a introdução no seio da ordem jurídica de outros mecanismos específicos de tutela. Tal em grandes rasgos o conceito de «pessoa colectiva», não obstante inconfundível com o de «pessoa singular». A este corresponde, na verdade, «uma realidade concreta, física e psíquica palpável», um organismo bio-psíquico, consciência própria e vontade em sentido psicológico. Ao conceito de pessoa colectiva subjaz «uma abstracção impalpável», ou uma pura «realidade abstracta», criação mentada normativamente ([2]). A ciência jurídica arquitectou ao longo dos tempos uma superestrutura teórica de compreensão do instituto da personalidade colectiva e da natureza da pessoa jurídica. Recordem-se apenas, entre outras, a célebre «teoria da ficção» (SAVIGNY, PUCHTA, WINDSCHEID), a teoria da «realité technique» (MICHOUD, SALEILLES, GÉNY, COLIN-CAPITANT) e a teoria ecléctica da «personificação do fim» (ENNECCERUS) ([3]). Talvez nenhuma das teses haja logrado sintetizar por si a essência do fenómeno. Mas todas aduziram construções interessantes em tónicas complementares. A explanação dessas doutrinas revestir-se-ia, pois, de escassa utilidade e seria mesmo excessiva na economia do parecer. Basta, portanto, neste momento, que, atendendo à permanência e ao invariável acolhimento da personalidade colectiva em todas as legislações desde a antiguidade clássica, se aceite a legitimidade e o provável valor «categorial» da fórmula como «lógica e epistemologicamente indispensável no mundo dos conceitos jurídicos» ([4]). 2. Na óptica da consulta interessa, todavia, evidenciar singularidades que os aludidos factores sociais de prossecução de interesses, a pretexto dos quais intervém a personalização jurídica, podem ostentar, com reflexos em aspectos nucleares de regime da pessoa colectiva. Nalguns casos avulta, como se deixou entrever, uma pluralidade de pessoas singulares associadas com vista à realização de um interesse comum (universitas personarum). Noutros sobressai o conjunto de bens patrimoniais afectados por um indivíduo, ou vários, e até por uma pessoa jurídica, a determinado escopo ou interesse de natureza social (universitas rerum) ([5]). Às realidades sociais empíricas esquematicamente desenhadas correspondem as modalidades doutrinais das corporações ou associações, no primeiro caso, e das fundações, no segundo, categorias que a lei geral, aliás, acolhe e regula como tais – artigos 157º e segs. do Código Civil, respeitando os artigos 167º a 184º especificamente às associações, e os artigos 185º a 194º em especial às fundações. Permita-se breve explicitação, na suposição – que a pré-–compreensão do acto constitutivo e dos estatutos insinua – de que o organismo submetido à nossa apreciação se integra na segunda espécie. Enquanto nas associações são as pessoas dos associados que dão existência, organizam e disciplinam a vida e destino da corporação, dirigindo-a de dentro e tomando nas suas mãos, mediante alterações do pacto estatutário e de outras deliberações, a sorte do ente jurídico – «os associados não só põem de pé a organização corporacional, mas entram para ela, ficando a dirigi-la por si próprios ou através de órgãos por eles designados» –, também nas fundações sucede poder o instituidor, com a atribuição patrimonial posta ao serviço do escopo visado, fixar as directivas e disposições organizatórias tendentes a regular a existência, funcionamento e destino da pessoa jurídica. Criando, todavia, a fundação, o fundador fica fora dela. A sua vontade governa a fundação, mas governa-a de fora, mais como «legislador», do que de dentro, como «órgão», segundo a expressão «cristalizada» ne varietur no acto de instituição e nos estatutos. Na verdade, os órgãos de administração do ente fundacional, que o fundador pode decerto integrar, estão sujeitos a essa «lei suprema» da pessoa colectiva sem a poderem alterar ([6]). 3. Delineadas as realidades «extrajurídicas» de natureza pessoal e material que constituem tipicamente suporte das pessoas colectivas, interessa ainda observar que, uma vez personificadas, essas subjectividades se reflectem no espaço normativo assumindo ora configuração prevalentemente privatística, ora juspublicística. Daí que o pensamento categorial-classificatório tenha procurado caracterizar e distinguir as pessoas colectivas de direito privado em face das pessoas colectivas de direito público. Existe, todavia, grande variedade de opiniões e as maiores discordâncias acerca dos termos da distinção ([7]), uma vexata quaestio sobre a qual, não obstante largamente versada e desde remota data, não pôde ainda formar-se opinião comum, ou decisivamente predominante sobre as outras. Compreende-se porque nela convergem as dificuldades próprias da «summa divisio do direito» – direito público, direito privado –, e aporias suplementares, o que tanto condiciona a formulação de um critério prevalecente, como explica a existência de zonas híbridas, «sobretudo na nossa época de interpenetrações do público e do privado». Vale a pena precisar sucessivamente estes dois aspectos. 3.1. No tocante ao primeiro, aceite-se que as dificuldades apontadas não têm, apesar de tudo, impedido em absoluto atingir uma razoável diferenciação entre pessoas colectivas de direito público e pessoas colectivas de direito privado ([8]). A doutrina administrativa enuncia exemplificativamente os seguintes critérios distintivos: o da capacidade jurídica; o critério do fim; o do modo de criação; o da competência; o da existência ou não de poderes de autoridade; o da obrigação de existir ([9]). Ou, noutra formulação: o critério da criação pelo Estado; o da tutela do Estado; o dos fins coincidentes com os fins do Estado; o dos fins de realização obrigatória; o da titularidade de poderes de supremacia sobre outras pessoas ([10]). Seria manifestamente inviável a exposição e discussão de todos esses critérios no âmbito do presente parecer e dos condicionalismos de urgência que o rodeiam. Anotar-se-á apenas que os cultores do direito administrativo evocados mostram preferência pela conjugação dos critérios do modo de criação, do fim e da competência, definindo consequentemente as pessoas colectivas de direito público como entes criados «por acto do Poder ([11]), para a prossecução necessária de interesses públicos ([12]), através do exercício em nome próprio de poderes de autoridade ([13])» ([14]). Próxima deste conceito assinala-se curiosamente a opinião dominante na civilística germânica, segundo a qual as pessoas colectivas de direito privado assentam «num acto de constituição jurídico-privado (contrato de constituição, negócio de fundação), enquanto as pessoas colectivas de direito público, com excepção do Estado, se fundam, ao invés, num acto de soberania estadual [«staatlicher Hoheitsakt»], especialmente numa lei ou num acto administrativo, mediante o qual é outorgado o status de pessoa jurídica dotada de poderes públicos [«öffentliche Aufgaben»]» ([15]). Entre os civilistas portugueses que abordam o tema é, por seu turno, conferido relevo ao critério da titularidade de poderes de autoridade, segundo o qual se consideram «de direito público as pessoas colectivas que desfrutam, em maior ou menor extensão, o chamado ius imperii, correspondendo-lhes portanto quaisquer direitos de poder público, quaisquer funções próprias da autoridade estadual» ([16]), e «de direito privado todas as outras» ([17]). 3.2. Quanto às zonas de «interpenetração do público e do privado», propícias à génese de formações híbridas, interessará trazer à colação, sem necessidade de qualquer compromisso do Conselho, os seguintes elementos ilustrativos. Há quem fale de «entidades colectivas sem personalidade jurídica pública», isto é, de «pessoas colectivas de estatuto privado integrantes da administração indirecta do Estado (ou de uma região autónoma ou de uma autarquia local)», tais como as «fundações e associações criadas por entidades públicas para prosseguir objectivos das entidades instituidoras» ([18]). As associações agrupam-se em duas espécies ([19]). A primeira compreenderia as «associações integralmente constituídas por entidades públicas» ([20]), enquanto a segunda seria integrada pelas «associações de entidades públicas e privadas» ([21]). Tais «associações privadas criadas por iniciativa pública» não mereceriam, aliás, as reservas opostas pela opinião em apreço às fundações da mesma natureza, as quais se perfilariam em torno dos aspectos seguintes ([22]). Por um lado, observa-se, não existe entre nós «qualquer norma constitucional ou legal a que possa ser atribuído o sentido de uma habilitação genérica da Administração Pública para instituir fundações», salvo, desde recente data e limitada aos municípios, a do artigo 53º, nº 2, alínea l), da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro. É certo «que a prossecução de atribuições públicas por entidades privadas não se encontra constitucionalmente proibida», podendo, pois, admitir-se a instituição de fundações privadas» «para prosseguir fins públicos determinados». Mas isso desde que observadas certas «limitações e constrangimentos»: os derivados da «excepcionalidade da administração pública por entes privados»; da proibição do uso desse procedimento para evitar a observância dos chamados dados fundamentais da administração pública, tais como «os controlos ministerial e parlamentar, a vinculação aos direitos fundamentais» ([23]). Determinadas tarefas não poderiam sequer deixar de ser desempenhadas por entes públicos ([24]). Por outro lado, a instituição de fundações de direito privado por entidades públicas, envolvendo a separação entre a fundação e o fundador, que a lei civil postula, implicaria, para a tese exposta, um «abandono definitivo» pelo ente público «dos interesses públicos de cuja prossecução a lei o encarregou». Outros pontos de vista apresentam-se, porém, menos restritivos relativamente à admissibilidade destas figuras transaccionais das «fundações públicas de direito privado». Desde logo porque, «reconhecendo a doutrina do direito público ampla capacidade de gestão privada às pessoas colectivas de direito público, nada impede que estas últimas criem fundações exclusivamente ao abrigo do direito privado, por negócio jurídico privado, ficando as fundações públicas assim criadas sujeitas no seu funcionamento apenas ao direito privado» ([25]). E existindo «pessoas colectivas públicas de direito privado (v.g., empresas públicas de regime geral, sociedades de capitais públicos, sociedades de economia mista controlada, cooperativas mistas, associações públicas de direito privado, etc.)», nada também impede «que qualquer delas crie fundações de direito privado que serão igualmente públicas por serem de iniciativa pública e afectarem um património público ao serviço de fins de interesse social que a entidade instituidora pretende prosseguir, mas que são fundações de direito privado porque criadas ao abrigo do direito privado (Código Civil), por negócio jurídico privado, ficando apenas sujeitas ao direito privado» ([26]). 4. Abstraindo destas figuras híbridas, caberia porventura neste momento desenvolver em pormenor a análise e caracterização das diversas figurações de pessoas jurídicas que é possível distinguir nas duas categorias superiores que há pouco se procuraram individualizar – pessoas colectivas de direito público e pessoas colectivas de direito privado (supra, 3., 3.1) –, mas os objectivos e circunstâncias da consulta não justificam nem permitem senão uma abordagem menos ambiciosa. 4.1. Refira-se, pois, que também no domínio das pessoas colectivas de direito público existem, entre outras, a espécie das «associações públicas» e a espécie institucional dos «institutos públicos», englobando esta, além dos serviços personalizados e dos estabelecimentos públicos, ainda as fundações públicas – patrimónios «afectados à prossecução de fins públicos especiais» sob a égide do direito administrativo (v.g., o antigo Fundo de Abastecimento, hoje Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola; as «Caixas de Previdência»; os «serviços sociais» existentes em diversos ministérios) ([27]). 4.2. No âmbito, por sua vez, das pessoas colectivas de direito privado distinguem-se, segundo o critério da sua finalidade estatutária, as de utilidade pública – que se propõem um escopo de interesse público, embora cumulativamente possam também almejar a satisfação de interesses dos próprios associados ou do fundador – e as de utilidade particular – que prosseguem primacialmente um interesse particular, maxime lucrativo (v.g., as sociedades comerciais) ([28]). Dentro das pessoas colectivas de direito privado e utilidade pública autonomizam-se duas modalidades: as de fim desinteressado ou altruístico, e as de fim interessado ou egoístico. Nas primeiras o interesse próprio que os associados ou o fundador visam satisfazer é um interesse de natureza altruística, a saber, o de promover certos interesses de outras pessoas (beneficiários). Daí a «utilidade pública» destas pessoas colectivas de direito privado, posto que «à comunidade social importa que tais interesses sejam satisfeitos». E tanto assim que «o próprio Estado ou os entes públicos menores costumam prover no mesmo sentido», «através dos seus próprios recursos». A esta categoria, sublinha-se, «pertencem todas as fundações – excepto porventura algum raríssimo caso (os autores falam principalmente nas chamadas fundações de família) – e ainda um grande número de associações, como sejam as de beneficência ou as humanitárias». Contrapõem-se-lhes as pessoas colectivas de fim interessado ou egoístico, quase sempre de tipo associativo, cujo escopo «interessa de modo egoístico aos próprios associados, mas é tal que ao mesmo tempo interessa à comunidade». E em consideração da natureza desse escopo ainda se distinguem nesta sub-espécie as pessoas colectivas de fim ideal (não económico: recreio, desporto, instrução, cultura) – v.g., clubes desportivos – e as de fim económico não lucrativo – v.g., associações de socorros mútuos, cooperativas. 4.3. Não podem neste quadro esquecer-se, por fim, as denominadas instituições particulares de solidariedade social, com Estatuto inaugurado mediante aprovação do Decreto-Lei nº 519-G/79, de 29 de Dezembro, cuja natureza de pessoas colectivas privadas em face deste diploma ([29]) não parece ter sofrido radical modificação à luz do novo Estatuto anexo ao Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro, que o aprovou ([30]). O artigo 1º, nº 1, do Estatuto considera instituições particulares de solidariedade social «as constituídas, sem finalidade lucrativa, por iniciativa de particulares, com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre os indivíduos e desde que não sejam administradas pelo Estado ou por um corpo autárquico, para prosseguir, entre outros, os seguintes objectivos, mediante a concessão de bens e a prestação de serviços». Alinham-se subsequentemente nas alíneas a) a g) os objectivos assim anunciados, relevando dos domínios da segurança social [alíneas a) a d)], da saúde [alínea e)],da educação [alínea f)] e da habitação [alínea g)]. E observe-se, a propósito, recordando os Estatutos da Fundação, que, embora a enumeração constante das aludidas alíneas pareça não ser taxativa, se afigura discutível que o perfil teleológico esboçado nomeadamente nos artigos 3º e 4º do referido instrumento se ajustasse à moldura do «dever moral de solidariedade e de justiça entre os indivíduos» que introduz, difusa, mas parametricamente a mesma enunciação. Como quer que seja, as instituições em exame podem revestir as formas especificadas no artigo 2º, e, entre elas, a de «fundações de solidariedade social» [nº 1, alínea d)]. Todavia, não é propriamente na especial disciplina que o Estatuto lhes dedica nos artigos 77º a 86º – os quais, aliás, reproduzem muito ao pé da letra os artigos 158º, nº 2, e 185º a 194º do Código Civil, reguladores das fundações privadas de interesse social (cfr. o artigo 157º) –, mas noutros aspectos de regime, que se pode encontrar a differentia specifica entre uma e a outra espécie de fundações. De facto, fundações de solidariedade social, segundo o artigo 77º do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei nº 119/83, «são as instituídas nos termos do presente diploma e que prossigam alguns dos objectivos enumerados no artigo 1º». A aludida diferença residirá porventura nos objectivos, há instantes aflorados, mas ressalta sobretudo com nitidez de aspectos da instituição das fundações segundo o citado Estatuto, a que interessa aludir sucintamente . Em primeiro lugar, estão sujeitos a registo no ministério da tutela, entre outros, os actos jurídicos de instituição das fundações, os respectivos estatutos e suas alterações [artigo 7º, nºs 1 e 2, alínea b), na redacção do artigo único do Decreto-Lei nº 402/85, de 11 de Outubro; artigo 5º, nº 1, alínea a), do Regulamento aprovado pela Portaria nº 778/83, de 23 de Julho ([31]); artigo 4º, nº 1, alínea a), do Regulamento aprovado pela Portaria nº 860/91, de 20 de Agosto ([32])]. E daqui, desde logo, duas consequências. Por um lado, o registo torna-se condição indispensável das amplas isenções fiscais que o Decreto-Lei nº 9/85, de 9 de Janeiro, na altura veio atribuir às instituições particulares de solidariedade social. Por outro lado, as instituições registadas, dispõe o artigo 8º do Estatuto, «adquirem automaticamente a natureza de pessoas colectivas de utilidade pública, com dispensa do registo e demais obrigações previstos no Decreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro». Em segundo lugar, os estatutos «não carecem de revestir a forma de escritura pública desde que o respectivo registo seja efectuado» nos termos referidos (artigo 11º do Estatuto, na redacção do artigo único do citado Decreto-Lei nº 402/85). Acresce que as instituições ficam sujeitas a um regime de tutela estadual definido nos artigos 33º e seguintes, incidindo nos seguintes aspectos: sujeição a visto dos serviços competentes dos orçamentos e contas aprovados pelos corpos gerentes (artigo 33º, nº 1); possibilidade de os mesmos serviços ordenarem inquéritos, sindicâncias e inspecções às instituições e seus estabelecimentos (artigo 34º); accionamento da destituição judicial dos corpos gerentes quando se verifique a prática reiterada de actos de gestão prejudiciais aos interesses das instituições (artigo 35º); suspensão cautelar dos corpos gerentes e nomeação de um administrador judicial por dependência dessa acção (artigo 36º); encerramento dos estabelecimentos ou serviços das instituições em situações graves (artigo 37º); requisição de bens em favor de outras instituições ou serviços oficiais no caso de suspensão de actividades ou de extinção (artigo 38º); obrigação de cumprimento de acordos de cooperação celebrados com o Estado (artigo 39º). Ora os descritos vectores são em geral estranhos à disciplina das fundações regidas pelo Código Civil. Nem um sistema especial de registo como o previsto para as fundações de solidariedade social ([33]), com a consequente dispensa de escritura pública, nem um regime geral de tutela do Estado sobre as fundações de interesse social se encontram desenhados nesse corpo de leis. A entidade competente para o reconhecimento é também diferente, como adiante se verá (cfr. infra, nota 81). 5. O excurso antecedente privilegiou a contextura externa, como se tornava mister, dos entes colectivos, observando as formas por que se manifestam empiricamente na vida social as respectivas realidades pré-jurídicas, examinando a sua projecção no mundo do ordenamento e, logo, as relações de recíproca alteridade em que passam a situar-se. Surge assim o ensejo propício a perscrutar agora a estrutura interna, o estofo interior da pessoa jurídica, que se revela desde logo nos seus elementos constitutivos: o substrato, aquela materialidade social anterior à personalização; e o reconhecimento, imprimindo-lhe de fora o timbre da subjectividade jurídica. Analisem-se em separado, na medida indispensável à resolução dos problemas implicados na consulta. 5.1. O substrato, suporte imprescindível da existência da pessoa colectiva – na falta do qual esta não passaria de «uma superestrutura pairando no vácuo», isto é, «no puro plano do pensamento onde se situa o conceito de personalidade jurídica» ([34]) -, compreende vários subelementos. 5.1.1. Em primeiro lugar, o elemento «pessoal ou patrimonial» com relevo predominante nas associações e nas fundações, respectivamente. Interessando-nos particularmente a segunda modalidade, precise-se que o elemento patrimonial integrador do substrato das fundações é a massa ou conjunto de bens afectados pelo fundador à consecução do fim fundacional, a denominada dotação. Efectivamente, nos termos do artigo 186º, nº 1, do Código Civil, deve o instituidor no acto de instituição, além de indicar o fim da fundação, «especificar os bens que lhe são destinados». A dotação assume, pois, um papel primordial nas fundações, sendo «mesmo indispensável para que venham a constituir-se como pessoas jurídicas» ([35]). Na verdade, as fundações «adquirem personalidade jurídica pelo reconhecimento, o qual é individual e da competência da autoridade administrativa» (artigo 158º, nº 2, do Código Civil). Mas o reconhecimento deve ser recusado, estatui o nº 2 do artigo 188º, «quando os bens afectados à fundação se mostrem insuficientes para a prossecução do fim visado e não haja fundadas expectativas de suprimento da insuficiência». «O que bem se compreende» – comentam os autores que vêm de se citar – pois «não convém ao interesse público que se personalize uma fundação quando lhe faltem, e não haja probabilidades seguras de vir a obtê-los, meios bastantes para esta surgir como viável. A intervenção da autoridade administrativa – tratando-se, como se trata, neste caso, de um reconhecimento individual ou por concessão – servirá precisamente para garantir a existência 'de um mínimo de viabilidade económica, sem o qual a nova organização técnica e autónoma de interesses apenas irá constituir um factor de perturbação no tráfico jurídico'» ([36]). Daí precisamente a exigência formulada pelo artigo 186º, nº 1, ao fundador no sentido de «especificar» – isto é, descrever, determinar, enumerar, esmiuçar, individualizar, particularizar, precisar ([37]) – os bens afectados ao fim fundacional. Se estes bens fossem na realidade indicados de forma genérica, imprecisa, vaga ou indefinida, a autoridade competente não ficaria em posição de apreciar a suficiência deles para a prossecução do fim visado. É, pois, indispensável nas fundações o elemento patrimonial. MANUEL DE ANDRADE ([38]) admitia, «quando muito», poder bastar «um património só potencial (valores que venham a ser obtidos mediante subscrições, espectáculos ou ofertas espontâneas), ponderando, no entanto, que «tão raros serão os casos deste género, que até podem deixar-se de parte sem grande inconveniente». Na doutrina alemã considera-se o património fundacional [«Stiftungsvermögen»] elemento constitutivo da fundação, sendo a praxis de autoridades administrativas dos Länder competentes para o reconhecimento no sentido, inclusivamente, da exigência de montantes mínimos estimados ora em 50.000 ora em 100.000 marcos ([39]). O § 82 do BGB estatui, por sua vez, que o fundador fica obrigado a transmitir para a fundação o património prometido [assegurado, afectado («zugesichertes Vermögen»)] se esta for reconhecida – sem prejuízo da transmissão directa por mero efeito do reconhecimento em determinadas hipóteses –, solução construída dogmaticamente à luz da natureza e dos efeitos obrigacionais do negócio de fundação [«verpflichtendes Rechtsgeschäft»] ([40]). Em face do teor dos artigos 186º, nº 1, e 188º, nº 2, do Código Civil, a exigência da dotação parece hoje não sofrer dúvidas, embora possa considerar-se não essencial que tenha de consistir no «apport» de um «capital» inicial ([41]). O relevo do elemento patrimonial nos termos expostos não significa, porém, que não exista nas fundações actividade pessoal. Mas ela é necessária à consecução do escopo fundacional, estando por isso ao serviço da afectação patrimonial e a esta subordinada ou até, «rigorosamente, fora do substrato da fundação». Assim, os beneficiários, que podem, aliás, constituir um grupo difuso de cidadãos, têm «uma posição passiva» que os coloca «fora e para além da fundação». O fundador – ou fundadores (fundação colectiva) –, por seu turno, cuja vontade fixada nos estatutos rege a fundação, «está igualmente, como tal, fora da fundação e aquém desta». Os titulares do órgão de administração – integrando, se for o caso, o próprio instituidor, como se notou – são «serventuários» da vontade plasmada no acto de instituição e nos estatutos, não tendo «legitimidade originária» para alterar as normas ditadas pelo fundador; «agem no interior da fundação, mas não fazem parte do substrato»; pode a fundação já existir sem que essas pessoas estejam determinadas e em exercício de funções» ([42]). Em resumo, escrevem FERRER CORREIA/ALMENO DE SÁ ([43]): «Não há neste tipo de pessoas colectivas qualquer elemento pessoal que as integre como parte componente do respectivo organismo ou de estrutura interna. «(...) o fundador cria a fundação, e pode ditar (como normalmente é o caso) a lei que haverá de regê-la (estatutos), mas fica antes. O círculo mais ou menos amplo de beneficiários ou destinatários da fundação abrange os portadores dos interesses a que ela se propõe dar satisfação, mas fica depois ou para além dela. Ficando antes ou depois dela, tanto aquele como estes estão fora da fundação. Por isso o desaparecimento do fundador não provoca a extinção da fundação, nem a sua vontade que a fez surgir lhe pode pôr termo, excepto se houver no acto de fundação qualquer cláusula nesse sentido, e nas precisas condições aí fixadas ([44]). Tão-pouco, como é evidente, os beneficiários podem, por vontade sua, suprimir a fundação.» A doutrina explanada obtém, se bem pensamos, inequívoco apoio no nº 3 do artigo 185º do Código Civil, conforme o qual a instituição das fundações por acto entre vivos – como é, de resto, o caso sujeito à nossa apreciação – «torna-se irrevogável logo que seja requerido o reconhecimento ou principie o respectivo processo oficioso» ([45]). Tornando-se o acto de instituição irrevogável a partir do momento indicado, compreende-se que a fundação se torne também «indisponível» para o fundador desde o mesmo instante quanto aos aspectos ora aludidos e outros oportunamente focados (supra, III, 2., e nota 6). 5.1.2. O «elemento teleológico», enformando o elemento material, constitui a segunda componente do substrato das fundações. Trata-se, justamente, da finalidade prosseguida pela pessoa jurídica, do fim ou causa determinante da dotação fundacional. Na lição da doutrina que vimos acompanhando ([46]) deve esse escopo obedecer a certos desideratos. Primeiro, há-de revestir os requisitos gerais do objecto de qualquer negócio jurídico, de acordo com o artigo 280º do Código Civil, solução hoje indiscutível mercê da introdução na versão originária do Código do artigo 158º-A ([47]), pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro: «Artigo 280º Requisitos do objecto negocial 1. É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável. 2. É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.» Discutindo-se no domínio do direito anterior ao Código qual o grau de determinabilidade exigível, sustentou-se o entendimento de que «a determinação não carece de descer até às últimas especificações» e tem «de ir somente até onde for exigido pelas próprias razões que justificam a sua necessidade» – maxime o controlo da observância dos demais requisitos – podendo, pois, «ser feita em termos bastante genéricos». Exemplificava-se ser corrente nas sociedades comerciais, à luz do artigo 104º, nº 1º, do Código Comercial, «indicar-se como finalidade social o exercício de certo ramo do comércio, ou de qualquer outro a que a sociedade resolva dedicar-–se» ([48]). Acresce que o fim da fundação deve ser «comum ou colectivo», não podendo tratar-se de um escopo individual, mas de finalidade que favoreça um círculo mais ou menos amplo de pessoas. A necessidade deste requisito não oferecerá dúvidas, atendendo ao disposto nos artigos 157º, 188º, nº 1, e 190º, nº 1, alínea b), do Código Civil, dos quais resulta que o fim da fundação tem de ser de interesse social (cultural, científico, artístico, ou outro), estando nesta medida excluída a admissibilidade de fundações dirigidas a fins estritamente privados dos fundadores. Quanto ao carácter «duradouro ou permanente» do escopo fundacional, num aspecto existe acordo: o fim da fundação não tem que ser perpétuo ou indefinido no tempo ([49]). Assim resulta do artigo 192º, nº 1, alínea a), que admite claramente a fundação temporária [v.g., formação de técnicos durante um período de 20 ou 30 anos, ou auxílio a ex-combatentes de determinada guerra ([50])]. Ressalvado este aspecto, o que pode dizer-se é que «seria insuficiente para justificar a criação de um organismo novo um escopo facilmente conseguível de uma só vez, com o acto de uma só pessoa» (RUGGIERO). É, porém, duvidoso que o carácter duradouro ou permanente deva considerar-se requisito legal do escopo das fundações, antes relevando, porventura, como um dos aspectos a que a autoridade pública deve atender «ao valorar o escopo para se pronunciar sobre o reconhecimento» ([51]). 5.1.3. Alguns autores [ENNECCERUS/NIPPERDEY, LEHMANN, COVIELLO, SCUTO, ANDRADE, CABRAL DE MONCADA ([52])] requerem, em terceiro lugar, a presença de um «elemento intencional» traduzindo o intento de constituir uma nova pessoa jurídica autónoma e distinta do fundador e dos beneficiários (animus personificandi). A exigência deste subelemento do substrato relaciona-se com a circunstância de a constituição da fundação ter origem num negócio jurídico – o acto de instituição ou de fundação –, posto que os efeitos dos negócios jurídicos determinados pela lei dependem da existência e de um conteúdo de vontade correspondente ([53]). Embora na maior parte dos casos seja de presumir ou considerar implícito no acto de fundação, o animus personificandi pode na realidade ser arredado pelo pretenso fundador. E por isso mesmo não são pessoas colectivas os denominados patrimónios de oblação, as fundações de facto, as fundações fiduciárias ([54]). 5.1.4. Por último, o «elemento organizatório». A fundação é também integrada por uma organização destinada a introduzir «ordenação unificadora» na pluralidade de pessoas e bens existentes. Essa organização traduz-se na definição de uma lei interna (estatuto) e dos órgãos indispensáveis para a pessoa colectiva poder funcionar como ente jurídico autónomo ([55]). É, porém, contestado que tal organização seja essencial, na composição do substrato fundacional, argumentando-se com a eventualidade de o ente jurídico poder já existir antes de estabelecida a organização e a possibilidade de a lei – bem como a autoridade competente para o reconhecimento – suprir a falta dela ([56]). Não se esqueça, todavia, que o artigo 186º, nº 2, do Código Civil confere algum relevo ao elemento organizatório, quando dispõe poder o instituidor, no acto de instituição ou nos estatutos, providenciar ainda – além da indicação do fim da fundação e da especificação dos bens que lhe são destinados (nº 1) – «sobre a sede, organização e funcionamento da fundação, regular os termos da sua transformação ou extinção e fixar o destino dos respectivos bens». A elaboração dos estatutos pertence, pois, em primeiro lugar ao fundador. Se este os não tiver criado e a instituição for por acto entre vivos – como sucede no caso da consulta –, a sua elaboração, total ou parcial, incumbe à própria autoridade competente para o reconhecimento (artigo 187º, nº 2), a qual deverá ter «em conta, na medida do possível, a vontade real ou presumível do fundador» (nº 3). A alteração dos estatutos, por sua vez, pertence também, a todo o tempo, exclusivamente a esta autoridade, sob proposta da administração da fundação, contanto que não haja alteração essencial do fim da instituição e não se contrarie a vontade do fundador (artigo 189º) ([57]). A administração – mas apenas este órgão – tem unicamente o poder de proposta, não o de decisão da alteração ([58]). E compreende-se, atendendo à posição externa do fundador enquanto tal relativamente à fundação, e à regra da irrevogabilidade da instituição logo que requerido o reconhecimento ou iniciado o respectivo processo oficioso, que nenhum poder de alteração dos estatutos assista também àquele ([59]). Quanto aos órgãos, que os estatutos devem designar conforme a disposição geral do artigo 162º, as fundações têm pelo menos dois obrigatórios: um órgão colegial de administração e um conselho fiscal. Posto que o substrato não compreende pessoas ou membros, inexiste aqui qualquer assembleia geral ([60]). Ponderou-se a este propósito que «as fundações privadas não se encontram sujeitas a qualquer controlo permanente de organismo oficial», inexistindo, por conseguinte, «um sistema geral de tutela administrativa» impendente sobre elas ([61]). Do mesmo passo que os administradores são civilmente responsáveis para com a fundação no caso de má gestão, em conformidade com as regras do mandato (artigo 164º). É neste conspecto que o Código concebe uma estrutura integrada por conselho de administração e conselho fiscal, pretendendo sublinhar que o exercício das funções administrativa e de controlo pertence a verdadeiros organismos colegiais. Abstendo-se de atribuir efeitos às decisões individuais dos trustees, apenas reconhece a vontade colectiva. Assim, conclui o pensamento que estamos a acompanhar, a legislação portuguesa dá testemunho «d'un esprit assez libéral» no tocante às fundações privadas. Mas isso não impede que o Governo, no acto do reconhecimento, precedendo acordo prévio do fundador ou em conformidade pelo menos com a vontade manifestada no acto de instituição, fixe os termos em que a fundação fica submetida à tutela da Administração, como já aconteceu ([62]). E a tutela pública pode inclusive ser exercida até certo ponto por intermédio do conselho fiscal, apesar de se tratar de órgão do ente jurídico e não de organismo oficial. Tudo depende das regras fixadas nos estatutos concernentes à composição e funcionamento. Pode, em suma, o Governo assegurar «uma certa intervenção na gestão da fundação através do conselho fiscal». 5.2. Considerado assim o substrato das fundações nas diversas cambiantes refractadas pelos elementos que o integram, interessa ainda em breve relance auscultar a sua formação, a criação e agrupamento ou organização desses elementos de suporte da personalidade jurídica ([63]). Como são realmente erigidos e unitariamente organizados esses factores? Numa palavra, o substrato fundacional forma-se por acto do fundador ou fundadores. E concebe-se com naturalidade que possa tratar-se de um negócio inter vivos ou mortis causa. Não são hoje legítimas dúvidas sobre este ponto, outrora discutido, quando o artigo 185º, nº 1, do Código Civil é expresso no sentido de que as fundações podem ser constituídas por essas duas vias. A opinião porventura dominante acerca da natureza do acto de fundação qualifica o acto entre vivos, única modalidade que nos interessa, como negócio jurídico unilateral, posto obviamente ser integrado por uma única declaração de vontade - ou por várias paralelas ou concorrentes no mesmo sentido ([64]), como no caso de pluralidade de fundadores -, aliás não receptícia ([65]). Na perspectiva de que o acto vai endereçado à criação de um ente jurídico provido de organização, é o mesmo caracterizado ainda como acto constitutivo [«Konstitutivakt»] ([66]) ou de organização [«Organisationsakt»] ([67]) e em parte como negócio de destinação (de bens a um escopo) ([68]). A instituição da fundação por acto entre vivos está sujeita a escritura pública (artigo 185º, nº 3), e a publicação na folha oficial (nº 5). 5.3. Analisado finalmente o substrato na óptica das exigências problemáticas da consulta, é altura de abordar o elemento das fundações em que se traduz o reconhecimento. Trata-se como sabemos de um elemento de direito pelo qual o cunho da personalidade é impresso no substrato já unificado juridicamente pelo negócio de fundação. Como há pouco se deu conta, o artigo 158º, nº 2, do Código Civil dispõe exactamente que as fundações «adquirem personalidade jurídica pelo reconhecimento, o qual é individual e da competência da autoridade administrativa». O correspondente § 80, primeiro período, do BGB atribui ao reconhecimento [«Genehmigung»] a mesma aptidão e função de personificação. 5.3.1. Vem, no entanto, a propósito precisar ainda as relações entre o substrato, naquela sua veste jurídico-negocial de fundação, e o reconhecimento. Na opinião comum, o negócio de fundação e o reconhecimento constituem pressupostos autónomos para que surja uma fundação ([69]). O primeiro estabelece as bases da organização fundacional. O segundo outorga a esta organização a personalidade jurídica. Logo, o reconhecimento não incide verdadeiramente sobre o negócio, mas sobre a fundação ela mesma. Tanto assim que a recusa do reconhecimento deixa intocada a eficácia jurídica do negócio de fundação, não impondo propriamente a repetição deste se o fundador, em face da cessação das primitivas razões de recusa, pretender renovar o pedido. A doutrina dominante acrescenta que o reconhecimento não sana eventuais vícios do negócio de fundação ([70]). Mas isto não significa que a nulidade do negócio esvazie de conteúdo o reconhecimento. Os vícios jurídico-negociais da organização fundacional justificam a recusa do reconhecimento. Mas se este for, não obstante, outorgado, o organismo recebe a personalidade jurídica sem restrições. De modo que a fundação reconhecida pela autoridade competente permanece dotada de personalidade até à revogação/anulação, com eficácia meramente ex nunc, do acto de reconhecimento ([71]). Alternativamente, a nulidade do negócio de fundação determinaria a necessidade de a fundação restituir os bens que lhe foram atribuídos, com a consequente extinção por impossibilidade de consecução do escopo ([72]). MARCELLO CAETANO sustentou entre nós doutrina semelhante. Vale a pena transcrever na integra o passo respectivo, pese a extensão ([73]): «Reconhecida uma fundação como pessoa colectiva, qual o efeito que produz no reconhecimento a consequente verificação da nulidade do acto de instituição? «Ferrara resume a discussão que acerca da possibilidade de validação dos vícios do acto de instituição pelo reconhecimento se tem travado (Ob. cit., pág. 193; reproduzido em José Tavares, ob. cit., II, pág. 195). Mas, em nosso entender o problema nem sempre está bem posto. «Referimo-nos às pessoas colectivas de direito privado, neste caso às fundações instituídas por acto jurídico. Se este acto jurídico é inválido, e se só posteriormente ao reconhecimento se verificou ou foi declarada a invalidez, quid juris? «Em primeiro lugar há a considerar a hipótese de o reconhecimento ter sido feito por lei ou diploma com força de lei e de se tratar de algum vício que resulte de mera inobservância de formalidades de interesse público: nesse caso, não o reconhecimento, mas a forma do acto de que ele consta, pode sanar a nulidade. Mas repare-se que as únicas nulidades do acto de instituição que assim podem sanar-se são, a nosso ver, as que resultem de formalidades legais prescritas sem ser para segurança da liberdade da manifestação de vontade ou para defesa dos interesses de terceiros. «Em todos os outros casos, o reconhecimento, acto administrativo, não pode ter o mérito de sanar vícios do acto jurídico de instituição, de direito privado, assim como não é afectado, em si, pela nulidade deste, salvo num caso, o da inexistência. «Na verdade, se o Direito privado admitir a inexistência jurídica dos actos, está claro que declarado inexistente o acto de instituição essa declaração acarreta consigo a inexistência jurídica do reconhecimento, pois não há pessoa em Direito sem suporte físico e o acto de reconhecimento estaria afectado de erro essencial quanto ao objecto. «Se, porém, o acto de instituição produz efeitos jurídicos durante algum tempo, até que vem a ser anulado, o reconhecimento é eficaz durante a vigência do acto, e pode não caducar necessàriamente com a anulação, se esta for proferida, por exemplo, em razão da indisponibilidade pelo instituidor dos bens afectados e, sendo meritório o fim, entretanto a fundação tiver conseguido meios próprios de subsistência que lhe permitam sobreviver à perda da dotação inicial. «Quer dizer: o acto administrativo de reconhecimento é mera atribuição da personalidade colectiva a um substrato que se reputa existente e digno de actuar como sujeito de direito. Não tem, pois, esse acto qualquer virtude saneadora dos vícios essenciais do acto de instituição do substrato que devam ser impugnados e sancionados por meios civis ou criminais. E não pode subsistir, se o substrato desaparecer, mas sem que a ineficácia do reconhecimento corresponda (salvo no caso da inexistência jurídica), à contaminação da nulidade do acto de instituição, pois os dois actos são independentes na sua produção, condições de validade e efeitos, embora concorrentes para a criação da pessoa colectiva.» 5.3.2. Emerge, por conseguinte, de todo o exposto acerca da figura do reconhecimento que não se está diante de uma declaração de vontade jurídico-privada, mas de um acto administrativo ([74]), que interessa ainda analisar muito sumariamente na sua génese e teleologia. De facto, são possíveis duas modalidades fundamentais de reconhecimento. O reconhecimento normativo, que se opera mediante uma norma, uma providência geral e abstracta; cumpridas as condições ou pressupostos que a norma postule, logo se verificará ipso iure a personalização do substrato. E o reconhecimento por concessão, através de um acto individual e normalmente discricionário da autoridade pública competente, que em face de cada substrato concreto decide «se convém ou não atribuir-se-lhe a personalidade jurídica». Uma apreciação, por conseguinte, que «deverá ser feita segundo critérios de oportunidade, que não de estrita legalidade» ([75]). Precisa a este respeito justamente FERRER CORREIA ([76]): «À cet égard, on peut discerner dans la sphère de compétence de l'Administration des pouvoirs discrétionnaires et des pouvoirs liés. En matière, par exemple, de possibilité physique et légale de l'objet de la fondation, il est parfaitement clair et hors de doute que l'activité du gouvernement n'est nullement une activité libre: il ne peut s'agir ici que de vérifier si l'objet de la fondation correspond ou pas à certaines caractéristiques exigées par la loi. De même en ce qui concerne la condition de la non-atteinte à l'ordre public, bien que cette fois-ci il s'agisse d'une notion au contenu indéterminé. Si donc le gouvernement refuse l'autorisation demandée en arguant de la non conformité de la fondation à l'ordre public, la décision est susceptible de recours. «Mais il en va tout autrement lorsque la question se pose de savoir si le but de la fondation doit être considéré comme un but d'intérêt social. Nous savons déjà que seules les fondations d'intérêt social pourront être autorisées et constituées en personnes juridiques. Est-ce que l'Administration, quand elle cherche à résoudre ce problème, c'est-à-dire à qualifier le but de l'oeuvre par rapport à cette valeur qui est définie par les mots d'intérêt social, n'exercerait qu'un simple pouvoir lié? «Certes, non. Cette fois-ci, il s'agit bien d'un pouvoir discrétionnaire authentique, car c'est à l'Administration et à elle seule qu'il appartient de déterminer ce qui est - ou n'est pas - conforme à l'intérêt social. De toute évidence, on est ici devant un de ces cas où l'autorité saisie «agit librement, sans que la conduite à tenir lui soit dictée à l'avance par une règle de droit» (Michoud). Sous ce rapport, la décision du gouvernement n'est donc soumise à aucun contrôle juridictionnel, sauf, bien entendu, pour détournement de pouvoir.» Já se chegou a opinar que o poder é vinculado no tocante à apreciação sobre a suficiência dos bens (artigo 188º, nº 2), aduzindo--se, porém, um argumento meramente literal, cuja fragilidade não permite, salvo o devido respeito, superar os fundamentos substanciais que presidem à tese oposta: enquanto a redacção do artigo 188º, nº 1 («cujo fim não for considerado»), aponta para um poder discricionário, a do nº 2 do mesmo artigo («quando os bens...se mostrem insuficientes») sugeriria a aplicação de critérios objectivos ([77]). Sustenta-se, todavia, ex adverso, que o juízo acerca da suficiência do património afectado entra «no poder discricionário de quem decida», ponderando-se ([78]): «Só a autoridade que haja de reconhecer a pessoa colectiva poderá verificar se os bens afectados podem ou não bastar para justificar a criação de um novo sujeito de direito. Mas esta liberdade de apreciação tem de conter-se dentro das regras comuns da experiência ou da boa administração, tendo de entender-se que há-de ser exercida com senso esclarecido e não por puro arbítrio. «Trata-se de uma «verificação» e não, pròpriamente, duma decisão. E se em certos casos a insuficiência é patente para o que o instituidor pretendeu, noutros casos-limite poderá haver dúvidas, e verificar-se a suficiência mas para uma actividade restrita e apagada. É nessas ocasiões que o problema se põe acerca da utilidade de erigir uma nova pessoa colectiva, mais do que da sua possibilidade ou viabilidade, dependendo do critério da autoridade a criação da obra, na esperança de que a vida a robusteça, ou o encaminhamento dos bens da instituição para outro destino mais eficaz. «Não vale a pena discutir os casos excepcionais em que o Estado, perante uma iniciativa útil que venha suprir certa deficiência notória e verificando não serem bastantes para alcançar os resultados necessários os bens afectados pelo instituidor, resolve reconhecer a fundação assim mesmo, com a disposição de colaborar com ela, por meio de subsídios periódicos, ou juntando novos recursos aos da instituição. «Isso é sempre possível e depende apenas da vontade do Poder.» A fundamentação racional do reconhecimento assenta em três ordens de factores: a necessidade de disciplinar, quiçá controlar a constituição e características das pessoas colectivas, que podem revestir dimensão e influência poderosas em face do Estado, ou propender para actividades contrárias à licitude ou ao interesse público; assegurar que não surjam entes inviáveis por carência de meios, factores de perturbação da vida jurídica; publicitar a existência das pessoas jurídicas, em protecção de terceiros e da segurança e facilidade do comércio jurídico ([79]). No caso das fundações vigora, pois, no direito português, tal como no direito alemão ([80]), o reconhecimento por concessão ([81]) - valendo o reconhecimento normativo actualmente no domínio das associações (artigo 158º, nº 1, do Código Civil). IV O quadro teorético-normativo esboçado nas páginas antecedentes coloca-nos em posição de apreciar mais esclarecidamente a Fundação para a Prevenção e Segurança através dos elementos disponíveis: o acto de instituição e os Estatutos constantes da escritura pública. 1. Recorde-se o seu teor, introdutoriamente transcrito (supra, ponto II, 2.). Uma visão de fisionomia associativa se insinua à primeira aproximação no espírito do intérprete. As três pessoas singulares que outorgam na escritura notarial declaram que «constituem» uma Fundação, mas abstêm-se de dispor e afectar no próprio acto de instituição, como tecnicamente se auguraria, embora o venham a fazer nos Estatutos, uma certa dotação patrimonial à prossecução de determinado fim. Mas o acto de instituição e os Estatutos não são documentos herméticos e separados entre si, tanto mais que podem «reunir-se no mesmo instrumento jurídico» ([82]). O nº 2 do artigo 186º é, aliás, exemplo flagrante da estrutural solidariedade entre as duas peças, e diversas outras normas revelam que a lei está longe de atribuir a cada uma delas, por seu lado, um significado jurídico-negocial específico e autónomo. Veja-se, por exemplo, que segundo a disposição geral do artigo 159º a sede da pessoa colectiva «é a que os respectivos estatutos fixarem», enquanto o artigo 167º estabelece que a sede das associações deve ser especificada no acto de constituição – sendo, no entanto, praxis corrente a indicação nos estatutos –, e o artigo 186º, nº 2, a remete para um ou outro dos instrumentos indiferentemente. Está fundamentalmente em causa, se bem pensamos, uma arrumação menos judiciosa, ou uma menos rigorosa técnica jurídica, sem outras consequências na ordem substancial. Decisivamente, no nosso caso o acto de instituição remete de forma expressa para os Estatutos. Não pode, pois, duvidar-se com seriedade de que o mesmo satisfaça aos dois requisitos aludidos. A morfologia orgânica, depois, estatutariamente delineada (artigo 7º dos Estatutos), evoca a estrutura prototípica das associações. Uma assembleia de fundadores, de natureza deliberativa, e a respectiva mesa, um conselho de administração e conselho fiscal. Assembleia, inclusivamente, dotada de competências de alteração estatuária (artigo 19º) por maioria qualificada idêntica à prevista para as associações no artigo 175º, nº 3, do Código Civil, e designada «assembleia geral» no artigo 2º, nº 2, dos Estatutos. Talvez que algum projecto preparatório da constituição de uma pessoa jurídica de tipo associativo tenha ainda, na mudança de rumo, deixado vestígios nos instrumentos em apreciação. Contudo, um exame circunstanciado destes instrumentos impõe, na realidade, concluir que se está perante um ente de natureza fundacional. 2. Em primeiro lugar, a Fundação prossegue os fins enunciados nos artigos 3º e 4º dos Estatutos, consistindo estes, primacialmente, em «promover, desenvolver e apoiar acções e estudos nos domínios da segurança, designadamente da segurança rodoviária e da protecção civil». O direito à segurança, significando essencialmente «garantia de exercício seguro e tranquilo dos direitos, liberto de ameaças ou agressão» ([83]), tem dignidade constitucional – artigo 27º, nº 1, da lei básica: «Todos têm direito à liberdade e à segurança» – confiando a lei nuclearmente a sua prossecução por parte do Estado às atribuições e competências do Ministério da Administração Interna. Dispõe, com efeito, o artigo 1º da sua lei orgânica, consubstanciada no Decreto-Lei nº 55/87, de 31 de Janeiro: «Ao Ministério da Administração Interna, abreviadamente designado por MAI, compete, em geral, promover, de acordo com as directrizes do Governo, a formulação, coordenação e execução da política de segurança interna e protecção civil, assegurar as medidas necessárias à organização e execução dos processos eleitorais e garantir, através do governador civil, a representação do Governo na área do distrito.» Por sua, vez, o artigo 2º define certas áreas estratégicas fundamentais: «Artigo 2º Domínios de actuação As atribuições do MAI exercem-se nos seguintes domínios: a) Manutenção da ordem, segurança e tranquilidade públicas; b) Protecção das pessoas e bens; c) (...) d) (...) e) Controle da actividade das empresas de segurança; f) (...) g) (...) h) Prevenção de catástrofes, calamidades ou desastres e prestação de ajuda às populações e de socorro aos sinistrados; i) (...) j) (...)» Nalgumas dessas áreas de segurança e protecção civil pontificam, aliás, determinados organismos especializados dependen-–tes do MAI ou a este estreitamente ligados, a que mais tarde se aludirá. Trata-se, portanto, de importantes fins sociais, os que a Fundação – «cooperando com a administração central e local e sujeitando-se aos deveres e princípios consagrados na legislação em vigor», tal como o nº 3 do artigo 4º dos Estatutos proclama – se propõe prosseguir nas áreas da segurança e da protecção civil. A conformidade do elemento teleológico do substrato da pessoa jurídica com as exigências do artigo 280º do Código Civil é, por conseguinte, indubitável. Poderia porventura objectar-se que os artigos 3º e 4º dos Estatutos são suficientemente vagos, na definição do fim, para se duvidar do preenchimento do requisito da «determinabilidade» (cfr. supra, III, 5.1.2). Viu-se, porém, que a «determinação não carece de descer até às últimas especificações» – e o objecto do negócio jurídico não precisa sequer de ser determinado, bastando, segundo o nº 1 do artigo 280º, que seja determinável –, mas «somente até onde for exigido pelas próprias razões que justificam a sua necessidade» – nomeadamente permitir a verificação da observância dos demais requisitos –, nessa medida podendo ser configurado «em termos bastante genéricos». Ora, se bem vemos, a alusão à promoção, desenvolvimento e apoio de acções e estudos no domínio da segurança, designadamente rodoviária, e da protecção civil, inclusive quando perspectivada à luz dos preceitos legais que regem no sector, imediatamente elucidam acerca do escopo fundacional, permitindo também aferir do cumprimento dos demais requisitos. Por isso pudemos há instantes afirmar que os fins de promoção da segurança e da protecção civil, que a Fundação promete prosseguir, são física e legalmente possíveis, conformes à lei, à ordem pública e aos bons costumes, tal como a lei civil exige. E pela mesma razão não pode duvidar-se de que esses fins sejam «comuns ou colectivos», sendo manifesto que interessam à generalidade dos cidadãos e instituições do País. O seu carácter «duradouro ou permanente» – quando mesmo a exigência fosse de plano indiscutível – não pode igualmente questionar-se. As necessidades de segurança e protecção civil das populações são fatalmente perenes, e cada vez mais agudas nas nossas sociedades. E a Fundação pretende associar-se à sua satisfação por tempo indeterminado (artigo 2º, nº 1, dos Estatutos). 3. Aprecie-se agora o elemento patrimonial do substrato. Como se mostrou oportunamente (supra, III, 5.1.1), o fundador, definindo os fins da fundação, afecta um conjunto de bens à sua prossecução. Nos Estatutos da presente Fundação figura, especialmente votado ao cumprimento deste requisito, o artigo 5º, cujo teor convém relembrar: «Artigo 5º (Património) 1. O património da Fundação é constituído: a) pela dotação inicial no valor de dez milhões de escudos; b) pelas contribuições regulares, ou não, que receba, designadamente, doações, heranças, legados, subsídios ou produtos de subscrições públicas; c) pelas receitas que lhe advenham de qualquer actividade que venha a exercer no âmbito da realização dos seus fins; d) pelos bens que a Fundação adquirir; e) pelos rendimentos dos seus bens; f) pelas receitas provenientes de protocolos a celebrar com instituições ou entidades e decorrentes das respectivas prestações de serviços. g) por todos os demais bens que à Fundação advierem por outro qualquer título gratuito ou oneroso ([84]) Quanto às alíneas b) a g) não pode seguramente dizer-se que elas integrem por si mesmas a ideia de «património» ou «dotação» pressuposta pelo sistema jurídico ([85]). As contribuições, regulares ou não, doações, heranças, legados e subsídios mencionados na alínea b) «não são um dado real e efectivo que possa levar-se em linha de conta, na altura do reconhecimento, para aferir a viabilidade económica do ente colectivo». «Representam, quando muito, bens 'futuros' [artigo 211º, do Código Civil], mas, pela sua própria natureza, totalmente hipotéticos, insusceptíveis, por isso mesmo, de um antecipado 'juízo de probabilidade' acerca da sua entrada na esfera jurídica da fundação». No tocante às alíneas d) e g), está fora de questão que os bens aí mencionados possam «ser considerados como fazendo parte do conceito de 'dotação». «Tais bens, uma vez adquiridos, passam, obviamente, a integrar o 'património' da fundação, mas não são, eles próprios, 'dotação' – isto é, não fazem parte da 'massa de bens' afectada pelo fundador à realização do escopo fundacional. Pressupõem, ao invés, uma ‘dotação’ capaz de os ‘adquirir’». O mesmo se diga fundamentalmente das receitas aludidas nas alíneas c) e f) e dos rendimentos referidos na alínea e). É, por consequência, líquido que estas seis alíneas «não preenchem propriamente o conceito de ‘dotação’, enquanto elemento do substrato das fundações». Em rigor poderia mesmo observar-se que todas essas alíneas «estão a mais» nos Estatutos da Fundação, uma vez que os elementos patrimoniais nelas mencionados sempre entrariam a fazer parte da «esfera patrimonial» da pessoa colectiva mesmo que os Estatutos nada dissessem. Resta a alínea a): uma dotação inicial no valor de dez mil contos. Afigura-se, bem ao invés das demais alíneas, que esta atribuição patrimonial – como sabemos, os fundadores ficam pelo negócio de fundação obrigacionalmente vinculados perante a pessoa colectiva a solver-lhe o respectivo montante ([86]) – não pode deixar de merecer a qualificação de dotação como elemento constitutivo do substrato fundacional ([87]). Questão diferente seria a da suficiência da atribuição em causa, predisposta à consecução do fim, juízo de oportunidade e conveniência, com implicações no plano da política governamental de segurança e protecção civil, cujos vectores são alheios à vocação desta instância consultiva. Não se esqueça, todavia, que a prática alemã do reconhecimento se situa aproximadamente no mesmo nível, se não abaixo, da alínea a) (supra, III, 5.1.1). Observe-se, de qualquer modo, que em face desta dotação os bens e valores descritos nas alíneas b) a g) poderiam já ser encarados de outra forma. Jamais obviamente como constituintes da dotação, pelas razões há pouco sumariadas, mas como elementos cuja potencial obtenção, à sombra da dotação instituída, seria susceptível de fundar, em sede de reconhecimento, um juízo de viabilidade económica da pessoa jurídica que na falta dela se tornasse impossível emitir. Ou, dito por outras palavras em presença do nº 2 do artigo 188º do Código Civil, um juízo de «fundada expectativa» de suprimento da eventual insuficiência objectiva da referida dotação. Semelhante compreensão concordaria, de resto, com o princípio, segundo o qual «deve deixar-se à autoridade administrativa certa liberdade de apreciação e decisão, pois, como aliás notámos [supra, III, 5.3.2], pode o Estado dispor-se a subsidiar a fundação ou ter elementos que lhe permitam crer que, pela subscrição de sócios [leia-se, segundo o autor, «amigos» da fundação] ou por outro meio legítimo, a insuficiência será suprida» ([88]). 4. O denominado animus personificandi não pode, por sua vez, considerar-se ausente na instituição da Fundação. A intenção de criar uma fundação, uma nova pessoa jurídica autónoma e distinta dos fundadores e dos beneficiários, e de a criar revestida de específica natureza, revela-se, mais do que implícita ou presumida, quando o artigo 1º dos Estatutos declara inclusive a sua instituição como pessoa colectiva de direito privado. 5. Quanto ao elemento organizatório, foi a Fundação dotada de Estatutos que prevêem a estrutura orgânica há pouco referenciada – assembleia de fundadores, conselho de administração e conselho fiscal (artigo 7º) –, providenciando normação que se diria suficiente quanto à composição, competência e funcionamento dos órgãos (artigos 8º a 17º) – cfr., todavia, infra, nota 92 – e aludindo outrossim a um «regulamento interno» da Fundação de natureza complementar, por certo, da disciplina organizativa. O artigo 18º previne adicionalmente a possibilidade de criação de um conselho consultivo pela assembleia de fundadores sob proposta do conselho de administração. Estipula a lei, como sabemos (supra, III, 5.1.4), apenas dois órgãos obrigatórios - um órgão colegial de administração e um conselho fiscal (artigo 162º do Código Civil) -, mas isso nada impede o fundador de arquitectar um esquema orgânico mais complexo, como no caso sucede. Extravasaria dos limites razoáveis do parecer qualquer tentativa de escalpelizar o regime que vem de se descrever muito per summa capita. Não pode, todavia, deixar de se aludir a determinados normativos - prescindindo de outros de menor relevo - que suscitam pelo menos sérias dúvidas de conformidade à lei, ainda que a subsistência da Fundação não seja por isso afectada, como se verá. 5.1. O primeiro reparo relaciona-se com as competências do conselho de administração definidas nos nºs 4 e 9 do artigo 13º: «4. administrar e dispor do património da Fundação, praticando todos os actos necessários a esse objectivo e tendo os mais amplos poderes para o efeito; «9. criar quaisquer pessoas colectivas ou fundos financeiros que se mostrem necessários ou convenientes à boa gestão do património da Fundação e transferir para as mesmas o domínio, posse ou administração de quaisquer bens que sejam parte do referido património, bem como deliberar aquisição de quaisquer participações sociais, salvas as restrições legais;» Numa leitura irrestrita destes normativos, o órgão de administração poderia a seu bel talante «dispor» do património ou «transferir o domínio de quaisquer bens» desse património para outros entes, o que implicaria no limite a transformação ou extinção da pessoa jurídica e a desconsideração do escopo fundacional. Tal interpretação – aceite-se que muito difícil de imputar com razoabilidade à intenção dos fundadores – envolveria, pois, a usurpação pelo conselho administrativo dos poderes legais da entidade competente para o reconhecimento, violando o regime gizado nomeadamente nos artigos 190º, 192º e 193º do Código Civil (cfr. supra, III, 2. e 5.1.1). Impor-se-ia, por conseguinte, em oportuna alteração dos Estatutos a revisão dos dispositivos aludidos de modo a expurgá-los do sentido ilegal. Faltando afinal uma similar clarificação, observe-se apenas que a declaração judicial de nulidade das cláusulas nessa interpretação sempre deixaria imprejudicada a Fundação, subsistindo esta ancorada na interpretação conforme, com a adjuvante da disciplina imperativa. Tanto assim, como oportunamente se mostrou (supra, III, 5. 3.1), que o vício não assume amplitude e gravidade susceptível de afectar o substrato fundacional e, através dele, o acto de reconhecimento (cfr. também o artigo 292º do Código Civil) ([89]). 5.2. A segunda ordem de observações relaciona-se com a assembleia de fundadores. É evidente que esta não pode ser assimilada à assembleia geral dos entes de natureza associativa, embora lhe venham adstritas competências características deste órgão (artigo 10º, nºs 2 e 3, dos Estatutos). Como se mostrou (supra, III, 5.1.1 e 5.1.4), as pessoas que podem gravitar na órbita das fundações, maxime o fundador e o círculo de destinatários ou beneficiários, estão verdadeiramente fora do substrato fundacional, e a falta de «membros» da pessoa colectiva priva realmente de sentido a instituição de uma assembleia geral. Por isso que a designação como tal no artigo 2º, nº 2, se deva certamente a lapso, o qual pode ser corrigido mediante alteração dos Estatutos em apropriado ensejo. As alterações estatutárias são, aliás, da alçada da autoridade competente para o reconhecimento, nenhum poder verdadeiramente decisório cabendo na matéria ao fundador ou fundadores, como no momento próprio se deixou demonstrado (supra, III, 5.1.1 e 5.1.4). Contudo, o artigo 19º parece conferir a competência de alteração à assembleia de fundadores: «Artigo 19º (Alterações estatutárias) A alteração dos presentes estatutos exige o voto favorável de três quartos do número de elementos presentes na Assembleia.» Esclareça-se preliminarmente que esta assembleia é composta «pelo conjunto dos membros fundadores» (artigo 8º, nº 1), sendo considerados como tais «os outorgantes da acta da assembleia preparatória realizada no dia 2 de Fevereiro de mil novecentos e noventa e nove» (nº 2) ([90]). Parece, por conseguinte, dever admitir-se que os instituidores da Fundação para a Prevenção e Segurança são todas as pessoas que assim compõem a assembleia de fundadores por haverem participado na mencionada assembleia preparatória, e não apenas as três pessoas singulares que intervieram na escritura de instituição([91]). Seja como for, a competência de alteração estatutária é confiada pelo artigo 189º do Código Civil imperativamente à autoridade competente para o reconhecimento, pelo que o artigo 19º dos Estatutos colide inelutavelmente, assim propendemos a pensar, com aquela norma. Poderia obtemperar-se que a deliberação prevista no artigo 19º, tem em vista a formação da «vontade» do órgão quanto à proposta de alteração dos estatutos prevista no artigo 189º. Não cremos, porém, que esta seja uma interpretação viável do inciso estatutário. Mas admita-se que o era. Nem por isso, salvo melhor opinião, se furtaria o normativo à incidência da invalidade. A deliberação de proposta emergiria então de órgão incompetente, uma vez que o artigo 189º confere o poder de proposta exclusivamente ao órgão de administração. Claro que o artigo 19º pode ser purgado da ilegalidade ou, quando menos, eliminado, em alteração dos Estatutos. E, na falta dela, mediante sentença judicial que o declare nulo. Num caso ou noutro subsistiria, porém, incólume a Fundação, especada no artigo 189º, uma vez que – já o vimos (supra, III, 5.3.1) – o vício não contamina o substrato na veste do negócio fundacional, e muito menos, por isso, o acto de reconhecimento (cfr., por outro lado, o artigo 292º do Código Civil) ([92]). 6. É evidente que a nulidade do artigo 19º por violação do artigo 189º do Código Civil pressupõe a qualificação da Fundação como pessoa colectiva de direito privado. E poderia ser outra a classificação? Não se desperdiçará o ensejo para tentar remover em poucas palavras, melhor apetrechadas após um longo excurso, as dúvidas que pudessem persistir. 6.1. Vimos que na caracterização das pessoas colectivas de direito público a doutrina administrativa privilegiava, em conjugação, os critérios do modo de criação, do fim e da competência, definindo-as como entes criados «por acto do Poder, para a prossecução necessária de interesses públicos, através do exercício em nome próprio de poderes de autoridade» (supra, III, 3.1.). Na civilística portuguesa, por seu lado, sobressaía o critério da titularidade do ius imperii, também advogado grosso modo por civilistas alemães em conjunção com a directriz prático-jurídica do acto de soberania estadual de criação [«staatlicher Hoheitsakt»]. Afigura-se, porém, que, ressalvada a prossecução de fins relacionados com a segurança e protecção civil, escopo cujo interesse social a própria lei civil postula, nenhum outro dos aludidos vectores juspublicísticos se reflecte na imagem da Fundação: nem o acto de criação estadual, uma vez que foi instituída por sujeitos privados mediante escritura pública; nem o exercício, como quer que seja, de quaisquer poderes de império. Admita-se mesmo que entre os fundadores intervenientes na assembleia preparatória, de 2 de Fevereiro de 1999, figuravam individualidades públicas, membros do Governo, de outros órgãos de Estado ou dos respectivos gabinetes. Mais difícil seria conceber a sua participação no acto como forma de exercício de funções, constitucionalmente determinante da natureza pública da pessoa colectiva ([93]). Acrescendo, aliás, em contraponto, que a vontade fundacional daí emergente, mais tarde exteriorizada no acto público do 3º Cartório Notarial, se manifestou pela instituição de um ente de direito privado. 6.2. Mas também pelas razões que vêm de se aduzir tão-pouco poderia a Fundação em apreço ser incluída na categoria híbrida das «fundações públicas de direito privado», a seu tempo caracterizadas pelas notas da afectação de um património público, em regime de direito privado, ao serviço de fins de interesse público da entidade pública instituidora (supra, III, 3.2), quando os elementos em poder do Conselho não mostram que aquela tenha sido instituída por qualquer entidade pública mediante uma dotação pública. De facto a instituição da Fundação, por um lado, deveu-se aos sujeitos privados já aludidos (supra, 5.2 e nota 91). Por outro lado, a dotação foi assegurada mediante o depósito de 10.000.000$00 em conta da Fundação por um desses sujeitos, consoante resulta do documento bancário respectivo (supra, nota 86). Não pode, todavia, deixar de salientar-se que entre os documentos remetidos pelo Ministério da Administração Interna em 22 de Dezembro (supra, nota 1) consta a Informação nº 94/99, de 25 de Maio de 1999, apresentada pela Comissão Nacional Especializada de Fogos Florestais - CNEFF, a que mais tarde se aludirá - ao Secretário de Estado da Administração Interna, propondo a organização de uma campanha de sensibilização da população para a prevenção dos fogos florestais, em conjugação com as suas Delegações Norte, Centro e Sul, no âmbito de um protocolo firmado entre a própria Comissão e a Fundação, e solicitando a autorização da despesa de 10.000 contos - com cabimento na rubrica 04.01.03E do OE do MAI, a que corresponde a dotação inscrita na rubrica 04.01.04D do orçamento do Serviço Nacional de Bombeiros - destinada a custeá-la. A proposta foi autorizada por despacho de 26 de Maio de 1999. O texto do Protocolo, assinado pela Comissão e pela Fundação, sem data, consta junto da Informação referida e pode sumariar--se como segue. À testa dos cinco «objectivos» definidos no ponto I, avulta paradigmaticamente a promoção e desenvolvimento de «estudos e acções que ajudem a prevenir riscos colectivos de fogos florestais que todos os anos destroem muitos hectares de florestas, por vezes com consequências económicas e sociais muito graves». Com vista à sua concretização - diz-se no ponto «II - Articulação Funcional» - «as entidades celebrantes acordam e adoptam formas de actuação conjunta nas áreas da formação, informação, divulgação e sensibilização, bem como acções de campo no quadro de campanhas de vigilância e segurança do Parque Florestal». No capítulo dos «Meios de Execução» - ponto III - «as entidades celebrantes comprometem-se a disponibilizar os meios necessários à prossecução dos objectivos mencionados», nomeadamente, «apoio técnico no domínio da recolha e tratamento da informação», bem como «apoio técnico e material na preparação destas iniciativas conjuntas, tanto no domínio da prevenção e segurança, como na informação e divulgação». Ademais, as entidades celebrantes acordam no ponto «IV - Avaliação», «estabelecer formas de avaliação do presente Protocolo», através de reuniões periódicas, dos relatórios necessários ou convenientes e do relatório final no termo das acções. O Protocolo é «válido para o ano de 1999 e entrará em vigor no dia da sua assinatura, podendo ser renovado por iguais períodos por acordo entre as partes» - ponto «V - Validade». Finalmente, o «Suporte Financeiro» - a que respeita o derradeiro ponto VI - «será garantido através da verba no montante de 10.000.000 de escudos transferida do orçamento da CNEFF para a FUNDAÇÃO a fim de atender aos encargos das acções e Campanhas a realizar». Em face do exposto, o Conselho não se sente autorizado a presumir que a verba de 10 000 contos prevista na Informação nº 94/99 da CNEFF e no ponto VI do Protocolo tenha sido destinada a constituir a dotação da Fundação depositada na Caixa Geral de Depósitos em 28 de Junho de 1999. Tão-pouco lhe compete, no âmbito da presente consulta introdutoriamente precisado (supra, I), apreciar a qualquer título a legalidade da atribuição financeira que assim possa ter sido efectuada à Fundação no período de pendência da personalização a que antes se aludiu (supra, notas 74 e 92). Trata-se inclusivamente de factualidade que poderá ser investigada por organismos vocacionados, tal como a Inspecção-Geral da Administração Interna, à qual Vossa Excelência, por despacho nº 49/MAI/2000, de 3 de Dezembro, incluído na documentação ultimamente recebida, determinou a realização das averiguações necessárias ao esclarecimento dos factos respeitantes às relações entre o MAI e a Fundação. No tratamento jurídico das questões da consulta continuaremos, pois, a admitir, salvo melhor prova, que a dotação da Fundação foi efectuada pelos instituidores privados. 7. Analisados assim aspectos relevantes concernentes ao substrato do ente fundacional objecto do parecer, resta aludir ao negócio de fundação e ao acto de reconhecimento. 7.1. Quanto ao primeiro, cabe notar que o negócio fundacional teve lugar mediante acto inter vivos formalizado por escritura pública. O acto de instituição e os Estatutos constantes do instrumento notarial foram também objecto de publicação no «Diário da República», III Série, nº 144, de 23 de Junho de 1999, nos termos dos preceitos conjugados do nº 5 do artigo 185º e do nº 3 do artigo 168º do Código Civil, tal como o Ministério da Administração Interna informou em 28 de Dezembro a nosso rogo (supra, nota 1). As invalidades, por seu turno, que se admitiu atingirem determinados preceitos estatutários, sabemos já que nem afectam o substrato na indumentária do negócio de fundação, nem, por isso mesmo, se comunicam ao acto de reconhecimento, subsistindo consequentemente a Fundação dotada da personalidade jurídico-pri-vada outorgada por este acto. 7.2. Segundo a mesma documentação recentemente recebida do Ministério, o processo de reconhecimento correu pela sua Secretaria-Geral, a requerimento de um dos fundadores, averbando ali registo sob o nº 1/100, em 22 de Junho de 1999. Emitido parecer inteiramente favorável por uma Técnica Superior daquele Serviço do Ministério - Informação nº 49/NJ, Proc. nº P-1/100, de 30 de Junho de 1999 -, foi assinada, recorde-se, em 1 de Julho de 1999, pelo Secretário de Estado da Administração Interna do Governo de então, a respectiva Portaria de reconhecimento, que veio a ser publicada sob o nº 736/99 (2ª Série) no «Diário da República», II Série, nº 170, de 27 de Julho do mesmo ano. Consta ainda da documentação referida que a Secretaria-Ge-ral, por ofícios de 13 de Agosto seguinte, comunicou a publicação da Portaria ao Governador Civil de Lisboa, ao Ministério Público nos Tribunais Cíveis da Comarca de Lisboa, ao Director do Serviço de Informações de Segurança e à própria Fundação. 8. Em síntese. Mediante a escritura pública lavrada a 5 de Maio de 1999, criou-se uma fundação de interesse social, a qual, segundo os elementos disponíveis, se apresenta aos nossos olhos essencialmente conforme às disposições da lei civil aplicáveis, sem prejuízo das ilegalidades apontadas a cláusulas estatutárias, não impeditivas, todavia, da sua subsistência no mundo jurídico como pessoa colectiva de direito privado, e dos aspectos prejudiciais ao bom funcionamento dos órgãos. Encontra-se neste quadro preenchida, ao que se afigura, a primeira e elementar condição das atribuições patrimoniais públicas hipotizadas na consulta, possibilidade que resultaria inevitavelmente prejudicada se ao invés se tivesse instituído um ente ferido de vícios cuja gravidade tornasse imperiosa a recusa liminar daquelas atribuições. Não sendo esse o caso que objectivamente nos é presente, importa então investigar se o ordenamento jurídico autoriza a concessão das atribuições sub iudicio e quais as formas de controlo dos beneficiários. É o passo que seguidamente se ensaiará. V 1. Os fins prosseguidos pela Fundação, conforme o enunciado dos artigos 3º e 4º dos Estatutos, coenvolvem a promoção, desenvolvimento e apoio de acções e estudos nos domínios da segurança, designadamente rodoviária, e da protecção civil, em estreita conexão com o direito constitucional e o interesse público da segurança, cuja prossecução por parte do Estado a lei confia às atribuições do Ministério da Administração Interna, como se notou – artigos 1º e 2º da lei orgânica deste departamento contida no Decreto-–Lei nº 55/87, de 31 de Janeiro ([94]); cfr. supra, IV, 2. Semelhante conexão confere só por si liminar pertinência à questão dos apoios do Estado, através desse Ministério, às actividades da Fundação que visam a prossecução dos aludidos fins, nas formas das atribuições patrimoniais mencionadas na consulta. Observe-se, porém, desde já, que a Administração Pública está subordinada à regra primordial da legalidade, devendo ademais os órgãos e agentes administrativos actuar, no exercício das suas funções, «com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé» (artigo 266º, nº 2, da Constituição). A satisfação dos propósitos da consulta dispensa-nos da análise aprofundada neste momento do acervo de princípios enunciados, autorizando a aduzir meras sínteses elucidativas de sentido, nas súmulas expressivas do Código do Procedimento Administrativo. O princípio da igualdade significa, assim, que nas suas relações com a particulares, a Administração não pode «privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever nenhum administrado em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social» (artigo 5º, nº 1). Trata-se dos mesmos elementos referenciais plasmados no nº 2 do artigo 13º da Constituição, densificando a proclamação solene e fundamental timbrada no nº 1 do mesmo normativo: «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei». O princípio da proporcionalidade procura, por sua vez, traduzir a ideia segundo a qual as «decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar» (artigo 5º, nº 2). No exercício da sua actividade, a Administração Pública deve ainda «tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação» (artigo 6º), cultivando, pois, com equanimidade, neutralidade, isenção e objectividade o suum cuique tribuere. O princípio da boa-fé, que se impõe tanto à Administração como aos particulares, significa que, no exercício da actividade administrativa e em todas as suas formas e fases, «devem ponderar-–se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas», e, em especial, «a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa» e «o objectivo a alcançar com a actuação empreendida» (artigo 6º-A). Por fim, na prossecução do princípio da legalidade – last but not least – os órgãos da Administração é mister que actuem «em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos» (artigo 3º). 2. Interessa, tendo especialmente presente este princípio, pesquisar, no âmbito do Ministério da Administração Interna, exemplos significativos do regime legal de atribuições públicas a entes privados relacionados com a segurança e a protecção civil, um vasto domínio que vai desde a corrente manutenção da ordem e tranquilidade pública e a inerente protecção de pessoas e bens, até à segurança rodoviária, aos incêndios florestais e demais catástrofes e calamidades ([95]). 2.1. Assim, no capítulo da protecção civil, «actividade desenvolvida pelo Estado e pelos cidadãos com a finalidade de prevenir riscos colectivos inerentes a situações de acidente grave, catástrofe ou calamidade, de origem natural ou tecnológica, e de atenuar os seus efeitos e socorrer as pessoas em perigo quando aquelas situações ocorram», prevê a Lei nº 113/91, de 29 de Agosto – «Lei de Bases da Protecção Civil», cujo artigo 1º acaba de se transcrever –, entre as «medidas de carácter excepcional» visando «repor a normalidade das condições de vida nas zonas atingidas» enunciadas no nº 1 do artigo 4º, a seguinte: «f) Afectar meios financeiros especiais destinados a apoiar as entidades directamente envolvidas na prestação de socorro e assistência aos sinistrados.» Diga-se desde já que não se vêem motivos para excluir desta formulação genérica a Fundação, quando porventura se dedicasse às acções de socorro e assistência figuradas. Notar-se-á a propósito que, segundo o nº 2 do mesmo artigo, na escolha e efectivação das medidas excepcionais «devem respeitar-–se critérios de necessidade, proporcionalidade e adequação aos fins visados». E a afectação extraordinária dos meios financeiros em geral indispensáveis à aplicação das medidas excepcionais incumbe ao Conselho de Ministros [artigo 11º, nº 2, alínea e)]. Devemos, no entanto, prosseguir ainda. Na sequência da Lei de Bases, veio o Decreto-Lei nº 203/93, de 3 de Junho, reorganizar o Serviço Nacional de Protecção Civil (SNPC) – criado pelo Decreto-Lei nº 78/75, de 22 de Fevereiro – e regulamentar aquela Lei, passando a constituir a Lei Orgânica do SNPC. Nos termos do seu artigo 7º, o SNPC é «um serviço dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio» (nº 1), que «depende do Ministro da Administração Interna» (nº 2, na redacção do artigo 1º do Decreto-Lei nº 152/99, de 10 de Maio). Incumbe ao SNPC, além do mais, «fomentar e apoiar actividades em todos os domínios em que se desenvolve a protecção civil, nomeadamente facultando apoio técnico ou financeiro compatível com as suas disponibilidades e plano anual de actividades» [artigo 8º, alínea f), na redacção do mesmo artigo do Decreto-Lei nº 152/99]. São órgãos do SNPC o presidente e o conselho administrativo (artigo 11º). O presidente é equiparado a director-geral (artigo 12º, nº 1, na redacção do citado preceito e diploma), competindo-lhe, além do mais, convocar e presidir ao conselho administrativo e «autorizar a realização de despesas, dentro dos limites legalmente admissíveis» [artigo 12º, nº 2, alíneas c) e d)]. Compete, por seu turno, ao conselho administrativo – constituído, além do presidente, por três membros, um dos quais delegado da Direcção-Geral da Contabilidade Pública (artigo 13º, nº 1) –, entre outras incumbências, «verificar a legalidade das despesas e autorizar o respectivo pagamento», e verificar ainda «a conta de gerência a submeter anualmente ao Tribunal de Contas» [artigo 14º, alíneas d) e h)]. Admitindo, por hipótese, no quadro descrito, que as actividades desenvolvidas pela Fundação relativamente à área da protecção civil pudessem justificar apoios financeiros nos termos previstos na alínea f) do artigo 8º do Decreto-Lei nº 203/93, retenha-se que a sua concessão estaria desde logo sujeita às formas de controlo financeiro de legalidade, prévio e subsequente, inclusive do Tribunal de Contas, previstas na normação a que vem de se aludir. 2.2. No domínio dos fogos florestais foi criada por Resolução do Conselho de Ministros nº 30/87, de 23 de Maio, a Comissão Nacional Especializada de Fogos Florestais (CNEFF). A Resolução nº 9/91, de 21 de Março, veio, porém, alterar a composição e funcionamento da Comissão e clarificar a sua natureza. Deste modo, a CNEFF, que funcionava desde 1987 junto do SNPC (nº 1 da Resolução nº 30/87), passa «a funcionar como órgão de apoio e consulta do Ministro da Administração Interna» (nº 1), cumprindo-lhe, em quanto aqui releva, «incentivar a investigação científica aplicada aos incêndios florestais e suas consequências, apoiando, com os meios disponíveis, os programas por si aprovados» [nº 4, alínea e)]. Parece que os apoios, quiçá financeiros, aqui previstos, se encontram finalisticamente vinculados à investigação científica aplicada aos fogos florestais, domínio que não se pode de todo considerar estatutariamente alheio ao escopo da Fundação. Muito de salientar, todavia, que a sua concessão esteja prevista no âmbito de «programas» aprovados pela Comissão, vocacionados, assim se admite, para definirem as formas de controlo sobre os beneficiários e as vinculações a que estes ficam adstritos por causa das subvenções públicas auferidas. Apoios de natureza financeira estão igualmente previstos na recente Lei Orgânica do Serviço Nacional de Bombeiros constante do Decreto-Lei nº 293/2000, de 17 de Novembro, como atribuição geral desta pessoa colectiva de direito público, afigurando-se, contudo, neste outro caso, que a sua finalidade será completamente estranha às actividades da Fundação – «prestar apoio financeiro ou em espécie no âmbito dos recursos humanos, equipamentos, viaturas e de outras necessidades dos corpos de bombeiros, designadamente mediante a atribuição de subsídios ou comparticipações às entidades que os detêm» [alínea e) do nº 2 do artigo 4º]. 2.3. Passe-se ao importante sector da segurança rodoviária, em que assume tradicional desempenho a Direcção-Geral de Viação (DGV). Já se deixou entender (supra, nota 94) que o organismo foi integrado no MAI em 1991, precisamente pelo Decreto-Lei nº 451/91, de 4 de Dezembro, que aprovou a orgânica do XII Governo Constitucional (artigo 9º, nº 3), apenas vindo, todavia, a ser inserido no diploma orgânico daquele Ministério mediante o Decreto-Lei nº 92/92, de 23 de Maio. A nova lei orgânica da DGV surge com o Decreto-Lei nº 484/98, de 10 de Novembro, motivando a sua aparição o seguinte passo do relatório preambular: «Por outro lado, a redução dos elevados índices de sinistralidade rodoviária actuais depende, de um modo geral, do comportamento, da responsabilização e da cooperação de todos os cidadãos e, em particular, do desempenho das entidades intervenientes no sistema de trânsito e segurança rodoviária, importando, por isso, reestruturar a Direcção-Geral de Viação, criando-lhe condições para poder dinamizar e garantir o eficaz funcionamento de todo o sistema.» Nos termos do artigo 1º, nº 1, a DGV «é o organismo do Estado responsável pela administração do sistema de trânsito e segurança rodoviária, cabendo-lhe estudar, promover e executar medidas adequadas à sua operacionalidade e aperfeiçoamento, bem como a uniformização e coordenação da acção fiscalizadora». Incumbe-lhe neste sentido, à testa de muitas outras missões, «contribuir para a definição das políticas no domínio do trânsito e da segurança rodoviária» [artigo 2º, alínea a)]. E, no que directamente concerne à problemática da consulta, «promover, realizar, coordenar e apoiar, técnica e financeiramente, acções que visem a prevenção de acidentes e a melhoria da segurança rodoviária, de iniciativa própria ou de outras entidades» [artigo 2º, alínea m)]. Admite-se que estas outras entidades possam ser entidades privadas, uma vez que o preceito não restringe. Talvez uma delas seja a Prevenção Rodoviária Portuguesa, vetusta «associação de iniciativa particular», «sem intuitos lucrativos», «que tem por finalidade essencial a prevenção contra acidentes de viação e a redução da sua frequência e das suas consequências». Assim reza o preâmbulo do Decreto nº 47203, de 15 de Setembro de 1966, diploma que – ponderando ainda só poderem esses objectivos ser prosseguidos «se à Prevenção Rodoviária Portuguesa forem facultados os meios e as facilidades que lhe permitam atingir os altos fins humanitários que se propõe», justo se afigurando por isso «que o Estado dê o seu contributo para essa finalidade, visto ser o primeiro interessado» – a reconheceu como instituição de utilidade pública, em «atenção aos objectivos nacionais que se propõe alcançar e aos meios de que para isso necessita». Se uma associação particular sem intuitos lucrativos como a Prevenção Rodoviária Portuguesa pudesse beneficiar de apoio financeiro do Estado, não será então descabido admitir que este apoio financeiro possa, com razoabilidade, estender-se a uma fundação privada de interesse social com fins não lucrativos similares. Tanto mais que «as relações da DGV com quaisquer entidades privadas», assim como «a celebração de protocolos com entidades sem fins lucrativos» se encontram expressamente tuteladas no seio do diploma orgânico [artigos 4º, nº 2, alínea b), 5º, nº 2, alínea h), e 6º, nº 2]. E a DGV pode ser autorizada pelo Ministro da Administração Interna a «conceder contribuições financeiras a entidades sem fins lucrativos com objectivos convergentes» às suas atribuições, «no âmbito das acções resultantes de celebração de protocolos» (artigo 24º, nº 3). Estes protocolos oferecem, aliás, a vantagem de possibilitar a precisa definição dos deveres que ficam competindo aos beneficiários dos apoios financeiros em razão das subvenções recebidas, permitindo à entidade concedente acompanhar a sua aplicação. Por outro lado, «constituem despesas da DGV» as que resultam designadamente dos «apoios financeiros e acções que visem a prevenção e a melhoria da segurança rodoviária» (artigo 29º, nº 1), competindo ao conselho administrativo, nos termos do artigo 5º, nº 2, além do mais, «verificar a legalidade e eficiência das despesas e autorizar o respectivo pagamento» [alínea f)], «aprovar a conta de gerência e submetê-la a julgamento do Tribunal de Contas» [alínea i). Também, por conseguinte, estas modalidades de controlo, prévio e sucessivo, culminando em julgamento do Tribunal de Contas, se tornariam aplicáveis à concessão de apoios financeiros à Fundação por intermédio da DGV, na área da segurança rodoviária. 3. É certo que na concessão das atribuições financeiras referenciadas subsiste uma margem de discricionaridade. Compreende-se, efectivamente, que no domínio dos actos políticos e de natureza técnica surja a necessidade, sob pena de menos eficiência da Administração, de uma certa liberdade de actuação dos órgãos, a qual tanto pode respeitar à forma de agir como a certos aspectos do objecto. Mas a actuação da Administração fica, ultima ratio, condicionada, mesmo aí – inexpugnável reduto do princípio da legalidade –, pelo respeito do interesse público definido na lei como fundamento de atribuição dos poderes. Por isso que no domínio dos apoios financeiros sub iudicio o exercício da discricionaridade subsistente deva obedecer aos parâmetros, nomeadamente, da igualdade, proporcionalidade e imparcialidade, pressupostos na prossecução participada do interesse público mediante a partilha de recursos escassos. 4. E não se esqueçam as razões de uma Administração «aberta» com afloração no artigo 268º, nº 2, da lei fundamental, e o escopo tendencial da transparência a que diversos normativos do plano infraconstitucional dão tradução em diferentes domínios ([96]). Sirva de referência no sector em que nos movimentamos a Lei nº 26/94, de 19 de Agosto, que veio disciplinar a publicação dos benefícios concedidos pela Administração a particulares. Considere-se, muito sumariamente, que o diploma tornou obrigatória, entre outros casos, «a publicidade das transferências correntes e de capital que os ministérios, as instituições de segurança social, os fundos e serviços autónomos, os institutos públicos (....) efectuam a favor de pessoas singulares ou colectivas exteriores ao sector público administrativo a título de subsídio, subvenção, bonificação, ajuda, incentivo ou donativo» (artigo 1º, nº 1), quando os montantes em questão «excederem o valor equivalente a três anualizações do salário mínimo nacional» (artigo 2º, nº 1). Sem prejuízo de outros requisitos legalmente exigíveis, a publicitação «efectua-se através de publicação semestral no Diário da República, com indicação da entidade decisora, do beneficiário, do montante transferido ou do benefício auferido e da data da decisão». O regime é extensivo, em certas condições, aos «actos de doação de um bem patrimonial registado em nome do Estado ou das autarquias locais a uma pessoa singular ou colectiva privada» (artigo 4º). A Lei nº 26/94 foi complementada pela Lei nº 104/97, de 13 de Setembro – «Cria o sistema de informação para a transparência dos actos da Administração Pública (SITAAP) e reforça os mecanismos de transparência previstos na Lei nº 26/94, de 19 de Agosto». O reforço salientado pode ver-se, por exemplo, na disposição do artigo 6º, nº 1, segundo a qual, dos benefícios concedidos ao abrigo da Lei nº 26/94 «será dado conhecimento às freguesias onde tenham sede social ou domicílio profissional os respectivos beneficiários, para divulgação em locais acessíveis à consulta pública». 5. O regime assim introduzido não compreende, no entanto, qualquer disciplina substantiva das atribuições financeiras públicas a entes privados. Decerto porque a pressupõe vertida em legislação extravagante relativa aos diferentes domínios da Administração Pública, a exemplo dos diplomas legais há pouco recenseados no perímetro do Ministério da Administração Interna (supra, 2.). Recordem-se, aliás, neste conspecto, os mecanismos de controlo financeiro e de legalidade que fluem da normação respectiva. Na medida em que os regimes substantivos sectoriais sejam nessa tónica lacunares, cremos que os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da imparcialidade resultariam postergados na falta de qualquer autovinculação prévia da Administração à emanação da disciplina geral suficiente. Uma semelhante disciplina, complementada, de resto, pela mecânica dos protocolos, programas e contratos-programas, praticada em diversos sectores administrativos, contribuirá, ademais, como se deixou registado, para a definição segura das vinculações dos beneficiários e o controlo subsequente das aplicações financeiras à satisfação dos fins e interesses públicos visados. 6. A observância dos requisitos enunciados anteriormente permitiria sem dúvida responder afirmativamente à primeira das questões formuladas na consulta acerca da possibilidade legal de atribuições financeiras pelo Ministério da Administração Interna à Fundação para a Prevenção e Segurança. Mas isto pressupondo elementarmente que não se verificassem incompatibilidades ou impedimentos dos titulares das competências de atribuição dos apoios, relativamente à Fundação e aos respectivos órgãos. Trata-se de matérias reguladas nuclearmente, para além dos artigos 44º e segs. do Código do Procedimento Administrativo, na Lei nº 64/93, de 26 de Agosto – «Regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos» –, no Decreto-Lei nº 413/93, de 23 de Dezembro, que veio reforçar as garantias de isenção da Administração Pública, e no Decreto-Lei nº 196/93, de 27 de Maio, que estabelece o regime de incompatibilidades do pessoal de livre designação por titulares de cargos políticos, maxime dos membros dos gabinetes ministeriais, regime cuja explanação neste momento é dispensável posto que nenhuma situação que lhe fosse subsumível vem desenhada na consulta. 7. Resta a segunda questão, relativa à supervisão jurídico-fi-nanceira a que a Fundação quedaria vinculada mercê das atribuições patrimoniais públicas. As formas de controlo resultantes dos diplomas relativos à protecção civil, aos fogos florestais e à segurança rodoviária que paradigmaticamente se analisaram ser-lhe-iam aplicáveis na hipótese de atribuições e apoios de que viesse a beneficiar nesses sectores. A Fundação ficaria igualmente heterovinculada aos procedimentos emanados em autovinculação pela Administração a que acima se aludiu. Pensa-se, inclusivamente, que, mesmo na falta desta última normação, a Fundação beneficiária sempre estaria obrigada, pelo princípio da boa fé, a sujeitar-se às solicitações adequadas que pelos órgãos competentes lhe fossem dirigidas a posteriori com vista à aferição da tradução dada aos interesses públicos. Importa por último acrescentar que, vindo a tornar-se beneficiária das atribuições patrimoniais em causa, a Fundação ficaria directamente sujeita, nessa qualidade, aos poderes de controlo financeiro do Tribunal de Contas nos termos do artigo 2º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto – «Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas» –: «Artigo 2º Objectivo e âmbito de competência 1. (...) 2. Também estão sujeitas aos poderes de controlo financeiro do Tribunal as seguintes entidades: a) (...) (...) g) As fundações de direito privado que recebam anualmente, com carácter de regularidade, fundos provenientes do Orçamento do Estado ou das autarquias locais, relativamente à utilização desses fundos. 3. Estão também sujeitas ao controlo do Tribunal de Contas as entidades de qualquer natureza que tenham participação de capitais públicos ou sejam beneficiárias, a qualquer título, de dinheiros ou outros valores públicos na medida necessária à fiscalização da legalidade, regularidade e correcção económica e financeira da aplicação dos mesmos dinheiros e valores públicos. 4. Ao controlo financeiro das entidades enumeradas nos dois números anteriores aplica-se o disposto na Lei nº 14/96, de 20 de Abril». Reproduzam-se então, a título elucidativo, apenas os artigos 1º e 2º desta última Lei, na parte útil: «Artigo 1º Fiscalização sucessiva das empresas públicas (...) (...) e fundações de direito privado. 1. Ficam sujeitas à fiscalização sucessiva do Tribunal de Contas, nos termos da presente lei: a) (...); b) (...); (...) f) As fundações de direito privado que recebem anualmente, com carácter de regularidade, fundos provenientes do Orçamento do Estado ou das autarquias locais. 2. A fiscalização sucessiva das entidades referidas nas alíneas d), e) e f) do número anterior só pode ser exercida mediante decisão do Tribunal, ou a requerimento de um décimo dos deputados à Assembleia da República ou do Governo. «Artigo 2º 1. No exercício da sua função de fiscalização das entidades referidas no artigo anterior, o Tribunal de Contas pode, a todo o tempo, realizar inquéritos, auditorias e outras acções de controlo sobre a legalidade, incluindo a boa gestão financeira e o sistema de controlo interno.Âmbito do controlo 2. (...) 3. (...) 4. Os resultados das acções de fiscalização empreendidas pelo Tribunal de Contas devem constar de relatórios a remeter à Assembleia da República, ao Governo e aos órgãos da empresa, devendo estes últimos promover a sua publicação em termos idênticos aos demais documentos de prestação anual de contas. 5. (...) 6. (...) 7. (...)» VI Do exposto se conclui: 1. A Fundação para a Prevenção e Segurança, instituída por escritura pública lavrada em 5 de Maio de 1999, no 3º Cartório Notarial de Lisboa, com reconhecimento outorgado pela Portaria nº 736/99, de 23 de Julho de 1999, do Secretário de Estado da Administração Interna, deve, considerando o acto de instituição e os Estatutos que constam do referido instrumento notarial, ser qualificada juridicamente como fundação de interesse social, de direito privado, subordinada em especial ao regime definido nos artigos 185º e segs. do Código Civil; 2. Segundo os elementos de análise disponíveis, o acto de instituição e os Estatutos da Fundação apresentam-se em conformidade com a lei que a rege, sem prejuízo das conclusões 3., 4. e 5.; 3. Com efeito, os nºs 4 e 9 do artigo 13º dos Estatutos, possibilitando ao conselho de administração, numa certa interpretação – muito difícil, aliás, de imputar à intenção dos fundadores –, dispor do património da Fundação ou transferir o domínio de quaisquer bens desse património para outros entes, envolveriam no limite a transformação ou extinção da Fundação e a desconsideração do escopo fundacional, em usurpação dos poderes legais da entidade competente para o reconhecimento, violando, nessa interpretação, nomeadamente os artigos 190º, 192º e 193º do Código Civil; 4. Também o artigo 19º dos Estatutos, ao conferir a competência de alteração estatutária à assembleia de fundadores, quando esta competência é confiada pelo artigo 189º do Código Civil imperativamente à autoridade competente para o reconhecimento, colide inelutavelmente com aquele preceito, sendo consequentemente nulo; 5. As cláusulas estatutárias aludidas nas anteriores conclusões 3. e 4. podem ser expurgadas das ilegalidades, ou eliminadas, em oportuna alteração dos Estatutos, e, na falta dela, mediante sentença judicial que as declare nulas na medida pertinente, subsistindo em qualquer caso a Fundação, escorada na interpretação conforme e na disciplina legal imperativa (cfr. o artigo 292º do Código Civil), tanto mais que os aludidos vícios não afectam o substrato da pessoa jurídica na veste do negócio fundacional, nem contaminam o acto de reconhecimento; 6. Os fins da Fundação enunciados nos artigos 3º e 4º dos Estatutos consistem em promover, desenvolver e apoiar acções e estudos nos domínios da segurança, designadamente rodoviária, e da protecção civil; 7. A prossecução destes interesses públicos por parte do Estado foi confiada nuclearmente às atribuições e competências do Ministério da Administração Interna, nos termos da sua lei orgânica consubstanciada no Decreto-Lei nº 55/87, de 31 de Janeiro, pelo que pode o Estado, através daquele Ministério, apoiar as actividades da Fundação que visem a prossecução dos aludidos fins, mediante subsídios financeiros e outras atribuições patrimoniais; 8. Na concessão dos subsídios e outras atribuições patrimoniais aludidas na anterior conclusão 7., os órgãos públicos competentes ficam, todavia, sujeitos aos requisitos e formas de controlo descritos paradigmaticamente no ponto V do parecer, em particular: 8.1. À observância, em geral, dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, imparcialidade, boa fé e legalidade (artigo 266º, nº 2, da Constituição e artigos 3º a 6º-–A do Código do Procedimento Administrativo) – ponto V, 1.; 8.2. Quanto às atribuições financeiras no domínio específico do Serviço Nacional de Protecção Civil (SNPC), à compatibilidade com as disponibilidades e o plano anual de actividades deste Serviço [artigo 8º, alínea f), do Decreto-Lei nº 203/93, de 3 de Julho, na redacção do artigo 1º do Decreto-–Lei nº 152/99, de 10 de Maio], bem como às formas de controlo financeiro de legalidade internas e pelo Tribunal de Contas previstas nos artigos 12º, nº 2, alínea d), e 14º, alíneas d) e h) – ponto V, 2.1; 8.3. No tocante a apoios financeiros por intermédio da Comissão Nacional Especializada de Fogos Florestais (CNEFF), aos meios disponíveis e sua vinculação à investigação científica aplicada aos fogos florestais, e, bem assim, aos programas adrede aprovados [nºs 1 e 4, alínea e), da Resolução do Conselho de Ministros nº 9/91, de 21 de Março] – ponto V, 2.2; 8.4. Relativamente a subvenções financeiras pela Direcção-–Geral de Viação (DGV) no capítulo das acções que visem a prevenção de acidentes e a melhoria da segurança rodoviária, à celebração dos adequados protocolos [artigos 5º, nº 2, alínea h), e 24º, nº 3, do Decreto-Lei nº 484/98, de 10 de Novembro], assim como às formas de controlo financeiro de legalidade internas e pelo Tribunal de Contas previstas no artigo 5º, nº 2, alíneas f) e i), do mesmo diploma – ponto V, 2.3; 8.5. Ao exercício da discricionaridade subsistente na prática dos actos de apoio financeiro aludidos nos anteriores nºs 8. 2 e segs. com respeito do interesse público e, por conseguinte, dos parâmetros, em especial, da igualdade, proporcionalidade e imparcialidade pressupostos na prossecução participada do interesse público mediante a partilha de recursos escassos – ponto V, 3.; 8.6. À publicação semestral no «Diário da República» das atribuições patrimoniais mencionadas, de acordo com o regime definido na Lei nº 26/94, de 19 de Agosto (artigos 1º, nº 1, 2º, nº 1, e 4º), e à sua divulgação em locais acessíveis a consulta pública mediante comunicação às freguesias respectivas (artigo 6º, nº 1, da Lei 104/97, de 13 de Setembro) – ponto V, 4.; 8.7. À autovinculação prévia de emanação da disciplina geral exigida pela concretização dos princípios da igualdade, proporcionalidade e imparcialidade, complementada por contratos-programas, programas e protocolos, na medida em que se revelem lacunares os mecanismos de controlo que fluem dos regimes descritos nos números anteriores – ponto V, 5.; 8.8. Ao acatamento do regime aplicável de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos (v.g., Lei nº 64/93, de 26 de Agosto), do pessoal de livre designação por titulares de cargos políticos, maxime dos membros dos gabinetes ministeriais (Decreto-Lei nº 196/93, de 27 de Maio) e das garantias de isenção da Administração Pública (Decreto-Lei nº 413/93, de 23 de Dezembro) – ponto V, 6.; 9. Tornando-se beneficiária das atribuições financeiras aludidas na conclusão 7., nomeadamente nos domínios especificados na conclusão 8., nºs 8.2 e segs., a Fundação fica nessa qualidade subordinada aos requisitos e formas de controlo referidos no ponto V, 7. do parecer, em especial: 9.1. Às formas de controlo resultantes dos diplomas legais concernentes à protecção civil, aos fogos florestais e à segurança rodoviária enunciadas nos nºs 8.2 a 8.4 da conclusão anterior; 9.2. Aos procedimentos definidos em autovinculação pela Administração a que se refere o nº 8.7; 9.3. Ao cumprimento, de todo o modo, pelos ditames da boa fé, das apropriadas solicitações a posteriori dos órgãos competentes, visando aferir da satisfação tributada aos interesses públicos; 9.4. Aos poderes de controlo financeiro directo do Tribunal de Contas (cfr. o artigo 2º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, e os artigos 1º e 2º, da Lei nº 14/96, de 20 de Abril). VOTOS (Luís Novais Lingnau da Silveira) - Votei vencido no tocante à primeira parte da conclusão 2ª, pois considero que o acto de instituição da Fundação em referência não respeita a lei aplicável, nessa medida resultando ferido de nulidade, nos termos gerais do artigo 294º do CC. 2. O nº 1 do artigo 186º do CC diz expressamente que "no acto de instituição" deve o instituído indicar o fim da fundação e especificar os bens que lhe estão destinados - requisitos que o acto de instituição da dita Fundação não satisfaz. O mesmo artigo 186º distingue, aliás, claramente, entre o acto de instituição e os estatutos das fundações. Fá-lo, antes de mais, sob o aspecto formal, não só na sua própria epígrafe, como no seu preceituado, ao destrinçar com nitidez o que deve imperativamente constar do acto de instituição (nº 1), do que pode ainda ser regulado, ou nele mesmo, ou nos estatutos (nº 2). 3. Saliente-se, a propósito, que, para "especificar os bens" destinados à fundação não bastará uma simples indicação do correspondente valor ou montante. Mesmo tratando-se de numerário, haverá que demonstrar suficientemente a sua real existência material - sem o que se abriria a possibilidade de criação de fundações virtuais, geradoras de insegurança na vida jurídica. Que é este o sentido da lei corrobora-o, de resto, o teor do nº 2 do artigo 188º do CC, quando prevê a eventualidade de os bens afectados à fundação se mostrarem insuficientes e a inexistência de fundadas expectativas de suprimento dessa insuficiência - perspectiva essa que implica um juízo sobre a real existência e disponibilidade (ou não) de tais bens. 4. Não releva, em contraposição da posição preconizada quanto ao conteúdo imperativo do acto de instituição das fundações, argumentar com a relativa aproximação e quase interpenetração entre acto de constituição e estatutos que o artigo 167º do CC admite no concernente às associações. A diferença entre o regime dos artigos 167º e 186º do CC (desde logo denunciada, aliás, pelas respectivas redacções) decorre precisamente da distinção entre a natureza das associações e das fundações. É a vontade dos associados que cria e governa a vida das associações, as quais nascem forçosamente já com o respectivo regime orgânico e de funcionamento definido nos estatutos. Ao invés, uma vez instituída a fundação, os seus fundadores afastam-se, enquanto tais, da sua posterior evolução. Para que a fundação nasça, basta que o fundador afecte um acervo patrimonial a certas finalidades - podendo os correspondentes estrutura e funcionamento ser por ele reguladas, ou não. Recorde-se o que, em comentário ao artigo 186º do CC, ponderam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, V. I, 4ª Ed., pág. 182): "São elementos essenciais da instituição apenas a indicação do fim da fundação e a especificação dos bens a ela destinados. O resto, como a sede, organização e funcionamento pode ficar para os estatutos. Há alguma diferença com o estabelecido no artigo 167º para as associações. Mas compreende-se facilmente a diferença. Indispensáveis para a existência da fundação devem considerar-se os dois elementos referidos: o fim da fundação, que é essencial para a apreciação que está na base do reconhecimento (por concessão) - cfr. art. 188º, nº 1; a atribuição patrimonial, para que o novo ente jurídico tenha viabilidade, possua condições de vida (cfr. art. 188º, nº 2)". 5. A falta de menção expressa, no acto de instituição da fundação, aos respectivos fins e ao acervo patrimonial a estes afecto não pode - como no caso presente se terá pretendido - ser suprida pela menção que porventura se lhes faça nos estatutos. Trata-se, na verdade, de actos jurídicos diversos, sujeitos a regimes jurídicos diferentes também. O acto de dotação patrimonial em que a fundação assenta (quer seja considerado como acto autónomo, quer como parte dum negócio complexo, constituído por um acto de fundação e outro de dotação patrimonial) constitui um negócio jurídico, formal, sujeito, em princípio, ao regime das atribuições patrimoniais gratuitas - v. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., com. ao artigo 185º do CC. Prescindindo da discussão sobre a exacta caracterização do acto de aprovação dos estatutos (mesmo quando praticado pelos fundadores), é evidente que ele não assume a mencionada natureza do acto de instituição. Desenvolvendo o ponto de vista acabado de esboçar, dir-se-á, antes de mais, que a dotação patrimonial não é, na fundação, um mero elemento do respectivo património. Nas fundações, a dotação patrimonial constitui, ela própria, o respectivo substrato material, sobre o qual (qualificado pelas finalidades que se destine a propiciar) recai a personificação, atribuída através do reconhecimento (v. Manuel de Andrade, "Teoria Geral da Relação Jurídica", v.I, reimpressão, pág. 56 e segs.; Fausto de Quadros, Enc. Verbo, tema "Fundação"). 7. É esta índole fulcral da dotação patrimonial, em relação à fundação, que explica que, uma vez pedido o reconhecimento, o acto de instituição se torne irrevogável - art. 185º, nº 3. Em contrapartida, se bastasse a previsão da dotação patrimonial nos estatutos (e não já no próprio acto de instituição), nada pareceria obstar à sua alterabilidade, nos termos gerais da modificação dos estatutos das fundações contemplados no art. 189º do CC. 8. O reconhecimento da natureza do acto de dotação (incluído ou consubstanciado no acto de instituição) como um acto de atribuição patrimonial gratuita legitima, como se defendeu, que se lhe aplique, como regra, o regime deste tipo de negócios - designadamente, em sede de interpretação, o artigo 237º do CC, e, no tocante à garantia dos credores, o instituto da acção pauliana previsto nos artºs. 61º e segs. do CC. Estas consequências não pareceriam admissíveis, ao invés, se a dotação patrimonial vier apenas referida nos estatutos da fundação, e não no respectivo acto instituidor. 9. Enfim, o facto de a finalidade e o acervo patrimonial da fundação terem de ser expressos no acto de instituição não obsta, claro - assim sucederá, aliás, em regra -, a que também se lhes faça menção nos estatutos. Mas a relevância essencial daquele primeiro acto no surgimento e vida da fundação justifica que, em caso de eventual contradição entre ele e os estatutos, seja o conteúdo desse acto fundador a sobrelevar. _________________________________________________________ (Alberto Augusto Andrade de Oliveira) – Votei vencido no tocante à primeira parte da conclusão 2.ª. Para além de acompanhar o voto de vencido do meu Exmo. colega Dr. Luís Novais da Silveira, permito-me acrescentar as seguintes observações: 1 - Dou completo apoio à doutrina do parecer no sentido de que a especificação de bens exigida no artigo 186.º, n.º 1 do Código Civil implica que eles não podem ser “indicados de forma genérica, imprecisa, vaga ou indefinida” (III 5.1.1.). mas não a subscrevo quando julga, no caso concreto, que cumpre aquela exigência a mera referência, em artigo dos estatutos, a uma dotação inicial de dez milhões de escudos, sem sequer se indicar o modo da sua realização - em dinheiro, em acções, em obrigações, em imóveis, por qualquer outro título. 2 - Mas decisivo é, para mim, o facto de no acto de instituição se não descortinar o acto unilateral de atribuição que a especificação dos bens destinados à fundação constitui. Ora, sem essa declaração unilateral, que deve ser inequívoca, e daí, também, o requisito legal de especificação, não se gera qualquer efeito jurídico para o instituidor - nem uma obrigação, nem sequer uma obrigação em “gérmen” (na tese de Antunes Varela, Direito das Obrigações, Faculdade de Economia do Porto 1968, pág. 260, para quem a obrigação não se constitui antes do reconhecimento). O que significa que o reconhecimento, que vale como aceitação dos bens destinados à fundação (artigo 185.º, n.º 1), não pode cumprir essa função, por, enfim, nenhuns bens (fungíveis ou infungíveis) lhe terem sido destinados. Afinal, qualquer acto que se pratique sem esse elemento é, ainda, uma mera manifestação da vontade de criação de uma fundação, mas sem consequências, pela inexistência de um dos elementos necessariamente integrantes do negócio que pretende consubstanciar. 3 – O parecer defende a tese da “solidariedade” entre acto de instituição e estatutos (IV. 1.), o que permitiria a localização dos elementos constitutivos em um ou em outro, indiferenciadamente. Essa unidade de negócio jurídico composto pelas disposições do acto constitutivo e dos estatutos, é, na verdade, admitida, por exemplo, na doutrina italiana, mas perante um regime diverso, pelo menos do ponto de vista da sua expressão gramatical, de que é ilustrativo o tratamento conjunto do acto constitutivo de associações e fundações no artigo 14.º, e de acto constitutivo e estatutos no artigo 16.º, ambos do Codice Civile. Deixando em aberto essa questão, admitamos a bondade da tese que fez vencimento, para o efeito de verificarmos se a omissão de atribuição patrimonial detectada na escritura de instituição é suprida pela sua inserção nos estatutos. O parecer pretende detectar essa atribuição no artigo 5.º, n.º 1, alínea a), dos estatutos, mas trata-se, salvo o devido respeito, de ir longe demais. É que, se bem se reparar, também neste artigo não vem expressa a vinculação dos instituidores aos preenchimento dessa dotação. Aliás, porventura, por isso mesmo, ele é completamente omisso quanto ao modo como será obtida essa dotação. Ora, o “negozio di fondazione include, necessariamente, un atto di disposizione patrimoniale, mediante il quale il fondatore si spoglia, in modo definitivo, della proprietà dei beni che destina allo scopo” (Francesco Galgano, Commentario del Codice Civile, Libro Primo, 1969, Nicola Zanichelli Editore, pág. 159), e esse acto falta quer no acto de constituição, quer nos estatutos, ou seja, falta no negócio de fundação, mesmo na tese unitária; num e noutro instrumento falece a promessa de afectação de um qualquer património por parte dos instituidores de que possa resultar a obrigação de transferência que o § 82 do Código Civil Alemão expressamente indica. 4 - E a situação torna-se ainda mais complicada quando o parecer avança a tese de que os instituidores “são todas as pessoas que assim compõem a assembleia de fundadores” “e não apenas as três pessoas singulares que intervieram na escritura de instituição” (IV 5.2). Entra-se, efectivamente, num campo de grande indeterminação da responsabilidade, sendo muitíssimo arriscado admitir como responsável por uma atribuição patrimonial aquele que não surge, por nenhuma via, no acto formal de instituição. 5 - Adianta ainda o parecer que a “dotação foi constituída mediante depósito desse valor [...]” (nota 86). Só que, mesmo esta afirmação não pode senão ser vista com muitas cautelas. Uma coisa é sabermos se foi cumprida a obrigação a que se vincularam os instituidores de uma fundação, outra coisa é o depósito de quantia de montante igual a uma prevista dotação inicial. Repare-se que uma hipotética concessão aos instituidores de quantia de montante igual àquele a que se comprometeram não significa que, por isso, fiquem os instituidores exonerados de cumprir a sua própria obrigação. Aquele montante deverá servir, antes, a adicionar ao património inicial. Evidentemente, tudo na nossa situação é problemático pela razão inicial de que não tendo havido especificação de bens destinados à fundação qualquer conjectura é possível e, simultaneamente, é de afastar. 6 - Em suma, tal como no voto de vencido que acompanho, entendo que o negócio padece de vício originário, pela falta de especificação dos bens destinados à fundação, não cumprindo, pois, um requisito essencial para a sua validade. ____________________________________________________ 1) Transcreveu-se da exposição enviada por Vossa Excelência a Sua Excelência o Conselheiro Procurador-Geral da República, através do ofício nº 9045/Gab. MAI, de 4 de Dezembro de 2000. «Artigo 160º 1. A capacidade das pessoas colectivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins.(Capacidade) 2. Exceptuam-se os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular.» [90]) Esta será, todavia, uma composição originária, posto que, por força do nº 3 do mesmo artigo 8º dos Estatutos, a própria assembleia de fundadores pode, mediante proposta do conselho de administração, «conferir a qualidade de membro fundador, de pleno direito, a outras individualidades que entenda distinguir». A qualidade de membro fundador pode inclusivamente «perder-se» pelas causas enumeradas no nº 4, sendo a vaga preenchida «mediante votação» da assembleia (nº 5). [91]) Com efeito, entre os elementos recebidos adicionalmente do Ministério da Administração Interna (cfr. supra, nota 1) consta a acta da aludida assembleia preparatória assinada pelas nove pessoas singulares presentes e, entre estas, as três que outorgaram na escritura, quem sabe se como representantes, gestores ou mandatários. A assembleia deliberou por unanimidade a instituição da Fundação para a Prevenção e Segurança com os fins constantes dos Estatutos, acordando todos os intervenientes «que se consideram membros fundadores da dita Fundação, sem prejuízo de, nos termos estatutários, o título de membro fundador poder vir a ser conferido a outras personalidades que entenda distinguir». [92]) Ainda a propósito do «elemento organizatório» da Fundação, nos termos expostos, observe-se em aparte o seguinte. Entre os documentos recebidos do MAI em 22 e 28 de Dezembro (supra, nota 1) figura a acta nº 1 relativa à reunião da assembleia de fundadores, de 18 de Maio de 1999, que em cumprimento do artigo 20º dos Estatutos elegeu por unanimidade os titulares da mesa (2), do conselho da administração (5) e do conselho fiscal (3), verificando-se que foram designados para estes cargos todos os nove fundadores, ficando um deles inclusive como secretário da mesa da assembleia e vogal do conselho da administração. Ora, uma similar situação é evidentemente susceptível de ocasionar embaraços ao exercício das competências dos órgãos e de se reflectir desfavoravelmente no seu funcionamento, com as consequentes dificuldades de actuação da pessoa jurídica no mundo do direito. Basta notar, prescindindo de tudo o mais, que os fundadores membros do conselho de administração estarão impedidos de participar, por «conflito de interesses», nas deliberações da assembleia – onde, aliás, constituem uma maioria – que àquele órgão respeitem (cfr., v.g., o nº 3 do artigo 10º dos Estatutos). Compreendemos decerto que se trata de uma «primeira titularidade» logo após a celebração do negócio de fundação, porventura conveniente à «instalação» e lançamento da pessoa colectiva in fieri e, sobretudo, deliberada na fase de pendência da personificação – do «Schwebezustand» de que acima se falou (supra, III, 5.3.2, nota 74) –, pelo que não era ainda caso de verdadeira titularidade jurídica de órgãos da Fundação. Cremos, todavia, que a situação carece de correcção, podendo ser adoptadas, por via de complementação estatutária ou no «regimento interno», as providências tendentes a obviar no futuro às dificuldades aludidas. [93]) Na verdade, a acta dessa assembleia exibe os nomes e outros elementos de identificação, assim como as assinaturas, das nove pessoas singulares fundadoras (cfr. supra, nota 91) despidas de qualquer título ou menção que permitisse pressupor em alguma delas mais do que a mera condição de cidadão. [94]) A «segurança rodoviária» – que o instrumento estatutário da Fundação parece teleologicamente privilegiar – não é, porém, objecto de menção especial nos preceitos citados, talvez porque a Direcção-Geral de Viação, tradicionalmente vocacionada no sector, apenas veio a ser integrada no MAI a partir de 1991, como dentro em pouco se verá. [95]) Constata-se de facto que os actos de atribuições financeiras à Fundação remetidos a nosso pedido (supra, nota 1) - cuja apreciação de legalidade está fora do âmbito da consulta, como notámos no início (supra, I) - tiveram primacialmente por objecto as áreas, a seguir abordadas, da protecção civil, dos incêndios florestais e da segurança rodoviária. [96]) Cfr., v.g., o artigo 65º do Código do Procedimento Administrativo, e os comentários de MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/PEDRO COSTA GONÇALVES/J. PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 342 e seguintes. |