Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
261/12.2GDVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: PODER / DEVER DE CORRECÇÃO DE MENORES
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
QUEIXA
MANIFESTAÇÃO DO MP DA INTENÇÃO DE DAR INÍCIO AO PROCESSO
INTERESSE DO MENOR
Nº do Documento: RP20140402261/12.2GDVFR.P1
Data do Acordão: 04/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Excede o poder/dever de educação-correcção dos progenitores a conduta dos pais que, com o uso de um cinto, batem no filho de 11 anos, porque encobria dos pais os maus resultados escolares e estaria a fumar.
II – Sendo, neste enquadramento, o comportamento dos pais de censurar, não merece, porém, aquele acrescido e especial juízo de reprovação, indispensável para o considerar como ofensa à integridade física qualificada.
III – Estando-se perante um crime de ofensas à integridade física simples, de natureza semi-pública, em relação ao qual a titularidade do direito de queixa – por se tratar de menor – pertenceria aos pais a quem a prática do crime é imputada, tem de se registar no processo uma manifestação expressa do Mº Pº, no sentido de dar início e continuação ao procedimento, por o interesse do menor o aconselhar.
IV – Sem esse juízo inicial, carece o Mº Pº de legitimidade para deduzir acusação por esses factos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 261/12.2GDVFR.P1
1º Juízo Criminal do T. J. de Santa Maria da Feira

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No 1º Juízo Criminal do T.J. de Santa Maria da Feira, processo supra referido, foram julgados B… e C…, tendo sido proferida Sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decide-se:
i) Condenar o arguido C…, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo art.° 145.° n.° 1 al. a) do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, com a obrigação de entregar durante o período da suspensão a quantia de 350,00€ (trezentos e cinquenta euros) a uma instituição de Solidariedade Social, comprovando nos autos tal facto.
ii) Condenar a arguida B…, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo art.° 145.° n.° 1 al. a) do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, com a obrigação de entregar durante o período da suspensão a quantia de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros) a uma instituição de Solidariedade Social, comprovando nos autos tal facto.”
*
*
Desta Sentença recorreram os condenados B… e C…, formulando as seguintes conclusões:
“1. Pelo circunstancialismo concreto da factualidade dada como provada, e atendendo a que os casos de “especial perversidade” enumerados no Cod.Penal como agravantes neste tipo legal de crime não são taxativos, não são exemplos padrão, mas simplesmente constituindo exemplos, a conduta dos recorrentes não tipifica um crime de ofensas à integridade física qualificada;
2. Tal conduta, por parte dos recorrentes, tipificará um crime de ofensas à integridade física simples;
3. A conduta dos recorrentes, apesar do objecto utilizado como processo de agressão da integridade física do ofendido, não poderá ser o reflexo duma” especial censurabilidade ou perversidade”, mas antes o exercício duma conduta, eventualmente desproporcionada, motivada pelo “mau aproveitamento escolar do filho de o repreender e não como uma mera intenção de lhe causar dor”.
4. O meio utilizado e a agressão em si, visaram só e exclusivamente corrigir o ofendido pelo seu comportamento escolar, de forma a que este possa vir a ter, no futuro, uma vida melhor e mais responsável;
5. Objectivo dos pais como educadores e responsáveis, pelo menos para já, pelo futuro do ofendido.
Caso tal seja entendido por este Venerando Tribunal,
6. O crime de ofensas corporais simples, neste caso, depende de queixa;
7. Nem o menor nem os pais, coincidentemente neste caso arguidos, exerceram esse direito.
8. Carecendo o M.P. de legitimidade para, face ao desfecho final do mesmo, por que se pugna, “patrocinar” o processo e deduzir a consequente acusação.
Deverá assim conceder-se provimento ao recurso e, tal como se pede, “desagravar” a conduta delituosa imputada aos recorrentes, devendo a mesma ser enquadrada na previsão do artº 143º do Cod.Penal.
Caso tal venha a acontecer, porque o procedimento criminal depende de queixa, que, neste caso, não existe, falta ao Ministério Público legitimidade para dirigir o processo e deduzir acusação, dada a natureza do crime como semi-público.
A douta sentença ora posta em crise, viola o disposto nos artºs. 145º, nº 1, al. a) e 143º, nº 2, ambos do Cod.Penal, impondo-se a absolvição dos recorrentes.”
*
Em 1ª Instância, o MºPº defendeu a improcedência do recurso, afirmando, nomeadamente:
“(…)
3. O modus operandi dado como provado, ou seja, o uso de um cinto para perpetrar as agressões não pode deixar de revelar censurabilidade;
4. Tese que sai reforçada tendo em conta as lesões causadas na vítima, que implicaram doença por 10 (dez) dias;
(…)”
*
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, igualmente, pela improcedência do recurso.
*
Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor da Sentença recorrida.
Factos Provados:
“1. No dia 19 de Março de 2012, cerca das 22h, na residência onde o ofendido menor, D…, vive com os arguidos, seus tais, na sequência de uma discussão motivada pelo encobrimento, por parte do menor, dos maus resultados escolares por si obtidos, e por que este se revelava impertinente, a arguida, munida de um cinto de calça desferiu com a mesma num membro inferior.
2. Acto contínuo, e como o menor não acatou a repreensão levada a cabo pela arguida e sorria, o arguido, pegou no cinto de calça e desferiu com a mesma, por duas vezes, num membro inferior.
3. Como consequência directa e necessária destas agressões, o ofendido apresentou as seguintes lesões: 3 equimoses de coloração arroxeada, uma que se estende desde a região nadegueira à direita até à face lateral do terço superior da coxa com 24 por 7 cm de maiores dimensões, outra na face posterior e lateral do terço médio da coxa com 17 por 7 cm de maiores dimensões e outra na face posterior do terço médio da coxa com 7 por 4 cm de maiores dimensões; e no membro inferior esquerdo duas equimoses de coloração arroxeada, ambas na região nadegueira, uma no terço médio com 4 por 3 cm de maiores dimensões, outra com 6 por 7 cm de maiores dimensões. Áreas de equimoses dolorosas à palpação.
4. Tais lesões demandaram para o ofendido um período de doença fixável em dez dias para a cura sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
5. Os arguidos actuaram com a intenção de afectar o ofendido na sua saúde física, o que conseguiram, conformando-se com esse resultado, que representaram.
6. Bem sabiam os arguidos, progenitores do ofendido menor, que não podiam infligir castigos que não se encontram compreendidos no dever de correcção dos progenitores para com os seus filhos.
7. Os arguidos agiram livre e deliberadamente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Mais se provou que:
8. Os arguidos agiram do modo mencionado em 1. e 2. com a finalidade de repreender o menor devido aos maus resultados escolares e ao facto de se encontrar a fumar.
9. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
10. A arguida B… não aufere qualquer tipo de rendimentos.
11. É auxiliada financeiramente pelo arguido C….
12. O arguido C… auferiu, como vendedor, no ano passado o montante de € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros).
13. Os arguidos residem em casa arrendada liquidando o valor mensal de 340,00 € (trezentos e quarenta euros).
14. Os arguidos são denotados como boas pessoas.”
*
Enquadramento Jurídico-Penal:
“Sendo esta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal e, em seguida, a haver lugar, a determinação da natureza e medida da pena a aplicar ao arguido.
O arguido foi acusado pelo Ministério Público pela prática de um crime de maus-tratos, previsto e punido pelo art.° 152.°-A n.° 1 al. a) do Código Penal.
Prescreve tal normativo que:
Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente
(…)
É punido com pena de prisão de uni a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
No que concerne ao bem jurídico protegido neste tipo legal, a doutrina e jurisprudência têm entendido, através da análise da inserção deste preceito no Código Penal, que tal como no crime de violência doméstica, também no crime maus tratos, os bens jurídicos são a dignidade pessoal e a saúde (Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, 2ª ed., p. 535).
Assim, comete o crime de maus tratos, preenchendo o elemento objectivo do tipo de crime, quem infligir de forma reiterada, maus tratos físicos ou psíquicos.
Por fim, resta-nos referir que este crime exige dolo do agente. Após a alteração legislativa levada a cabo pelo legislador penal de 1995, é hoje unânime que o preenchimento deste tipo legal se basta com o dolo do agente em qualquer uma das modalidades expressas no artigo 14° do Código Penal, ou seja, dolo directo, necessário ou eventual. Na verdade, não restam dúvidas que esta é a interpretação que mais se coaduna com o espírito do legislador, após o mesmo ter retirado a exigência de «malvadez ou egoísmo» do corpo deste preceito legal.
Atento o supra exposto, constatamos que no caso em apreço, perante o que ficou provado, não se verifica que os arguidos tenham cometido um crime de maus tratos.
É certo que atento os factos provados verificamos que os arguidos agiram de uma forma violenta, e não ignoramos a possibilidade de apenas ser necessária a prova de uma única conduta para o preenchimento do tipo legal de crime. Contudo, consideramos que tal conduta terá de revestir uma violência de tal ordem (pelo seu período de duração ou pelo mal infligido, etc...) para que se possa concluir pela existência de maus tratos.
Caso contrário, seria esvaziar de conteúdo o crime de ofensa à integridade física qualificada, ocorrido entre pai/filho (cfr. art.° 143.°, 146.° e 132.º n.°2 al. a) todos do Código Penal).
O comportamento dos arguidos merece, sem dúvida, a censura penal, porém, não se integra no crime pelo qual vêm acusados.
Não resultaram do julgamento elementos que convencessem o tribunal de que tenha existido unia reiteração exigida pelo tipo, ou uma ofensa com a mera intenção de causar dor e sofrimento, para que se possa incriminar tal conduta como maus tratos.
Contudo entre o crime de maus tratos e crime que se encontra demonstrado perante a prova produzida (crime de ofensa à integridade física), exista uma relação de especialidade.
Assim, uma vez que se encontra afastado o crime de maus tratos subsistirá o crime que se encontrava em concurso legal, aparente ou impuro com aquele crime, mormente o crime de ofensa à integridade física qualificada.
Razão pela qual o Tribunal procedeu à alteração da qualificação jurídica, nos termos do art.° 358.° do CPP, conforme se constata da respectiva acta.
Do crime de ofensa à integridade física qualificada:
Prescreve o art.° 143.° do Código Penal:
Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado, 16ª ed., p. 518, refere que “as ofensas no corpo ou na saúde de outra pessoa, para que atinjam dignidade penal e sejam subsumíveis à previsão deste artigo, não podem ser insignificantes, precisamente porque sendo o enquadramento penal a ultima ratio, qualquer comportamento humano, para que seja subsumido a preceito incriminador, deve ser filtrado pela luz que dimana do aforismo de minimis non curat praetor”.
Conforme decidiu a RL por Ac. de 19 de Junho de 2001, in CJ, XXVI, Tomo 3, p. 150, “por ofensa no corpo deve entender-se toda a perturbação ilícita da integridade corporal morfológica ou do funcionamento normal do organismo ou das suas funções psíquicas; todo o mau trato através do qual a vítima é prejudicada no seu bem estar físico de forma não insignificante”.
Cumpre realçar que o STJ, por acórdão do plenário das secções criminais de 18 de Dezembro de 1991, DR, série I-A, de 8 de Fevereiro de 1992, fixou jurisprudência no sentido que “integra o crime do art.° 142.° do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão dor ou incapacidade para o trabalho”.
Este tipo legal de crime traduz-se numa ofensa “à normalidade funcional do corpo ou organismo humano, seja do ponto de vista anatómico, seja do ponto de vista fisiológico ou psíquico” (Neste sentido, “O Código Penal de 1982”, Manuel de Oliveira Leal Henriques e Manuel José Simas Santos, 1986, Vol. II, p.96).
Imperioso é averiguar da existência de uma ofensa ao corpo ou saúde de outra pessoa, sendo tal suficiente para o preenchimento do tipo legal. A gravidade das lesões ou o modo como estas foram infligidas à vítima, poderão ter relevância a nível da determinação da medida da pena, ou da possível agravação ou qualificação do tipo legal, mas o tipo legal de ofensas à integridade física não exige um modus operandi específico, nem um resultado próprio, que não a ofensa do corpo ou saúde, no sentido supra apontado.
O tipo subjectivo de ilícito do art.° 143.° exige o dolo em qualquer das suas modalidades (cfr. art.° 14.° do Código Penal), pelo que o dolo de ofensas à integridade física refere-se às ofensas no corpo ou na saúde do ofendido.
O elemento subjectivo do tipo legal – o dolo – encontra-se demonstrado.
Corno é sabido o dolo é constituído por três elementos:
- o elemento intelectual: conhecimento da ilicitude do facto;
- o elemento volitivo: vontade de realização do tipo;
- o elemento emocional: atitude pessoal contrária ou indiferente à violação do bem jurídico protegido.
Uma vez analisado o tipo legal de crime de ofensa à integridade física, cumpre salientar que o mesmo pode ser qualificado se as ofensas forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente (art.° 146.º n.° 1 do Código Penal).
Nos termos do n.° 2 do art.° 146.° é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.° 2 do art.° 132.°
Com interesse para o caso sub judice atentemos ao disposto na al. a) do n.º 2 do art.° 132:
“a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante da vítima” (sublinhado nosso).
Ora, considerando o modo de actuação dos arguidos (as agressões foram efectuadas com um cinto); não olvidando que se trata de um descendente – filho –, que detinha apenas onze anos de idade (no mês de Janeiro), sendo, assim, uma criança indefesa e analisando, de igual modo, as sequelas produzidas, entendemos que a conduta do arguido revela uma especial censurabilidade.
Uma vez que está provado que os arguidos ofenderam o corpo do seu filho, agindo com a intenção de o efectuar, ou seja, agiu com dolo directo – art.° 14.° do Código Penal –, nos moldes em que o fez, encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade física qualificada.
[Cumpre salientar que os arguidos agiram, em decorrência de encobrimento por parte do menor de maus resultados por si obtidos e por o menor fumar, contudo a reacção ocorrida (com o uso de um cinto numa criança de 11 anos de idade (acabados de fazer em Janeiro de 2011) não se enquadra, pela sua desproporcionalidade, no âmbito de um poder/dever de educação-correcção dos progenitores].”
*
*
*
Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que os recorrentes B… e C… pretendem suscitar as seguintes questões:
- Não integração dos factos provados na previsão típica do crime de ofensa à integridade física qualificada;
- Inexistência de legitimidade do MºPº para deduzir acusação pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, por se tratar de crime dependente de queixa.
*
Segundo se encontra provado, os recorrentes, respectivamente mãe e pai, bateram com um cinto no filho de 11 anos, na “região nadegal” e pernas, “com a finalidade de repreender o menor devido aos maus resultados escolares e ao facto de se encontrar a fumar”.
Foram absolvidos da prática do crime de maus tratos.
Foram condenados por ofensa à integridade física qualificada.
É afastada a prática do crime de maus tratos com a seguinte argumentação:
“É certo que atento os factos provados verificamos que os arguidos agiram de uma forma violenta, e não ignoramos a possibilidade de apenas ser necessária a prova de uma única conduta para o preenchimento do tipo legal de crime. Contudo, consideramos que tal conduta terá de revestir uma violência de tal ordem (pelo seu período de duração ou pelo mal infligido, etc...) para que se possa concluir pela existência de maus tratos.
Caso contrário, seria esvaziar de conteúdo o crime de ofensa à integridade física qualificada, ocorrido entre pai/filho (cfr. art.° 143.°, 146.° e 132.º n.°2 al. a) todos do Código Penal).
O comportamento dos arguidos merece, sem dúvida, a censura penal, porém, não se integra no crime pelo qual vêm acusados.
Não resultaram do julgamento elementos que convencessem o tribunal de que tenha existido unia reiteração exigida pelo tipo, ou uma ofensa com a mera intenção de causar dor e sofrimento, para que se possa incriminar tal conduta como maus tratos.
Contudo entre o crime de maus tratos e crime que se encontra demonstrado perante a prova produzida (crime de ofensa à integridade física), exista uma relação de especialidade.
Assim, uma vez que se encontra afastado o crime de maus tratos subsistirá o crime que se encontrava em concurso legal, aparente ou impuro com aquele crime, mormente o crime de ofensa à integridade física qualificada.
Razão pela qual o Tribunal procedeu à alteração da qualificação jurídica, nos termos do art.° 358.° do CPP, conforme se constata da respectiva acta.”
É considerado verificado o crime de ofensa à integridade física qualificada, com a seguinte argumentação: “Uma vez analisado o tipo legal de crime de ofensa à integridade física, cumpre salientar que o mesmo pode ser qualificado se as ofensas forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente (art.° 146.º n.° 1 do Código Penal).
Nos termos do n.° 2 do art.° 146.° é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.° 2 do art.° 132.°
Com interesse para o caso sub judice atentemos ao disposto na al. a) do n.º 2 do art.° 132:
“a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante da vítima” (sublinhado nosso).
Ora, considerando o modo de actuação dos arguidos (as agressões foram efectuadas com um cinto); não olvidando que se trata de um descendente – filho –, que detinha apenas onze anos de idade (no mês de Janeiro), sendo, assim, uma criança indefesa e analisando, de igual modo, as sequelas produzidas, entendemos que a conduta do arguido revela uma especial censurabilidade.
Uma vez que está provado que os arguidos ofenderam o corpo do seu filho, agindo com a intenção de o efectuar, ou seja, agiu com dolo directo – art.° 14.° do Código Penal –, nos moldes em que o fez, encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade física qualificada.
[Cumpre salientar que os arguidos agiram, em decorrência de encobrimento por parte do menor de maus resultados por si obtidos e por o menor fumar, contudo a reacção ocorrida (com o uso de um cinto numa criança de 11 anos de idade (acabados de fazer em Janeiro de 2011) não se enquadra, pela sua desproporcionalidade, no âmbito de um poder/dever de educação-correcção dos progenitores].”
*
No recurso argumenta-se que a conduta dos recorrentes, «apesar do objecto utilizado», não reveste «especial censurabilidade ou perversidade», sendo «eventualmente desproporcionada», mas «motivada pelo “mau aproveitamento escolar do filho de o repreender e não como uma mera intenção de lhe causar dor”».
Os recorrentes «visaram só e exclusivamente corrigir o ofendido pelo seu comportamento escolar, de forma a que este possa vir a ter, no futuro, uma vida melhor e mais responsável».
Defendem que a sua conduta «tipificará um crime de ofensas à integridade física simples».
Quanto a este crime, «o procedimento criminal depende de queixa, que, neste caso, não existe, falta ao Ministério Público legitimidade para dirigir o processo e deduzir acusação, dada a natureza do crime como semi-público».
*
Vejamos:
Estamos numa área em que é imprescindível delimitar a fronteira entre o que constitui a esfera interior da família, bem como o exercício do dever de correcção e educação, e as condutas que requerem a intervenção do Direito Penal (cujo princípio da subsidariedade reveste aqui especial acuidade, tendo em conta a gravidade das consequências no relacionamento futuro dos membros dessa família).
Perante a importância e “sensibilidade” dos valores em causa, impõe-se às entidades judiciárias uma actuação especialmente distanciada e equilibrada, que evite o “empolamento” das situações ou uma distorção na apreciação e avaliação dos casos (em parte gerada pela desmesurada difusão mediática de que alguns são objecto).
O que se encontra provado é uma actuação dos recorrentes, gerada por um comportamento censurável do filho – encobria dos pais os maus resultados escolares e estaria a fumar –, que impunha o exercício do poder-dever de correcção no cumprimento das responsabilidades parentais.
Analisando os factos pelo prisma oposto ao dos autos, se os pais ignorassem a situação e não procurassem repreender e corrigir o filho, não estariam a cumprir devidamente o dever de assegurar o seu saudável desenvolvimento intelectual e comportamental e poderiam, por isso, também ser alvo – caso o comportamento se agravasse, por não ser corrigido – de procedimento no âmbito do Direito tutelar de menores.
Os pais do menor – no recurso é reconhecido – excederam esse poder-dever de correcção/educação, agindo de forma inaceitável à luz da consciencialização ético-social dos tempos actuais, não se justificando a agressão com o cinto (embora na “região nadegal” e nas pernas, assinale-se).
Sendo, neste enquadramento, o comportamento de reprovar, não merece, porém, aquele acrescido e especial juízo de reprovação indispensável para o considerar como ofensa à integridade física qualificada.
Noutros termos, a actuação dos recorrentes não reveste aquela especial censurabilidade ou perversidade geradora de uma culpa agravada, de que a circunstância prevista no art. 132º, nº 2, al. a), do CP constitui mero exemplo/padrão.
Em conclusão, os factos provados são apenas susceptíveis de integrar a prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do CP.
*
Em relação a este crime, o procedimento criminal depende de queixa – nº 2 do art. 143º do CP –, revestindo, pois, natureza semi-pública.
Daí deriva que a legitimidade do MºPº promover o processo (e consequentemente deduzir acusação) depende dessa queixa – cfr. art. 49º do CPP.
Tratando-se de menor, se “o direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas ao agente do crime”, o MºPº pode dar início ao procedimento “sempre que o interesse do ofendido o aconselhar” – art. 113º, nº 5, al. a), do CP.
Tal como resulta do auto de notícia, os factos foram participados por E…, “madrinha e pessoa que toma conta do menor durante o horário escolar”, tendo o MºPº dado seguimento aos mesmos, numa perspectiva da prática do crime de maus tratos que se não mostrou existente.
Neste enquadramento, nunca foi manifestada expressamente pelo MºPº a decisão de iniciar e prosseguir o procedimento, ainda que fosse entendido estar-se apenas perante um crime semi-público em relação ao qual a titularidade do direito de queixa pertenceria aos próprios agentes do crime.
Essa manifestação expressa – embora não sindicável pelo Juiz – tem de se registar no processo.
Não se verificando isso nos autos, tem-se por inexistente esse pressuposto processual, constituído por uma queixa validamente formulada (ou suprida por decisão expressa do MºPº, nesse sentido), de que deriva a legitimidade do MºPº para prosseguir o processo e deduzir acusação.
Assinale-se, por último, que “se o direito de queixa não for exercido nos termos do nº 4, nem for dado início ao procedimento criminal, nos termos da al. a)” do nº 5, o ofendido pode exercer aquele direito a partir da data em que perfizer 16 anos – art. 113º, nº 6, do CP.
Resumindo e concluindo, estando-se perante um crime semi-público, em relação ao qual a titularidade do direito de queixa – por se tratar de menor – pertenceria aos pais a quem a prática do crime é imputada, tem de se registar no processo uma manifestação expressa do MºPº, no sentido de dar início e continuação ao procedimento, por o interesse do menor o aconselhar.
Sem esse juízo inicial, inexiste legitimidade posterior do MºPº para deduzir acusação por esses factos.
Em conclusão, o recurso merece provimento.
*
Nos termos relatados, decide-se julgar procedente o recurso e, em consequência:
- Julga-se os recorrentes B… e C… incursos na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º do CP;
- Declara-se extinto o presente procedimento criminal, por falta de legitimidade do MºPº para dar prosseguimento ao processo e deduzir acusação.
*
Sem custas.
*
Porto, 02/04/2014
José Piedade
Airisa Caldinho