Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00035666 | ||
Relator: | GONÇALO SILVANO | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO INDEMNIZAÇÃO | ||
Nº do Documento: | RP200306260333036 | ||
Data do Acordão: | 06/26/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recorrido: | 1 V CIV PORTO | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | REVOGADA A DECISÃO. | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | O cônjuge de sinistrado em acidente de viação que em virtude do acidente ficou afectado na sua capacidade sexual, tem direito a ser indemnizado por se sentir afectado directamente no seu direito à sexualidade no âmbito dos deveres conjugais com referência expressa ao débito conjugal. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto: I- Relatório Maria ................, residente na Rua ............., nº .., ......., intentou a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra Companhia de Seguros ............., S.A., com sede no ..........., n° .., ........., pedindo a condenação desta a pagar-lhe quantia não inferior a € 150.000,00, acrescida dos juros à taxa legal a partir da citação: Alegou, em síntese, que: -no dia 3 de Novembro- de 2000, o condutor do veiculo segurado na companhia de seguros Ré embateu na traseira do veículo conduziu pelo marido da A., quando este se encontrava parado para ceder a passagem a peão que procedia à travessia de via na passadeira para peões; - que em virtude do embate, o marido da A. padece de disfunção sexual, o que causou danos à A. Em contestação a ré alegou, por impugnação, que os danos peticionados pela autora não são indemnizáveis. Em saneador sentença, seguindo-se orientação perfilhada nos acórdão de 4.04.1991-CJ-ano 1991-tomo 2, pág.254 e 20.11.94-CJ-ano 1994, tomo 4,pág. 35, decidiu-se que os danos não patrimoniais sofridos por outrem que não o lesado, só são indemnizáveis no caso de morte deste último. Inconformada com o decidido a autora recorreu, tendo concluído as suas alegações, pela forma seguinte: 1.A douta sentença recorrida que julgou improcedente a acção e absolveu a Ré do pedido, deve ser revogada, pois nela não se fez correcta interpretação dos factos e adequada aplicação do Direito. 2.Em 12 de Julho de 2002, a Apelante intentou acção de condenação, com processo ordinário, contra a Apelada, Companhia de Seguros ..............., S.A. pretendendo -como pretende -, por via dessa acção, obter a condenação da Apelada no pagamento de uma indemnização ou compensação como ressarcimento do dano directo e não patrimonial que sofreu no seu direito de personalidade, em virtude do acidente de viação que, também, vitimou o seu marido, António ............. Na verdade, 3.No dia 3 de Novembro de 2000, pelas 13h 36m, na Rua ............, .........., ........., ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes as seguintes viaturas: veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..EL, conduzido por António ............, e propriedade de Maria ...........; e o veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-MC, conduzido por Fernando ............ e propriedade da sociedade S............., Lda. 4.No local onde se viria a dar o acidente - uma recta -, o marido da Apelante parou para ceder a passagem a uma senhora idosa, que, no momento, atravessava a faixa de rodagem na passadeira para peões aí existente. 5.Quando se encontrava parado, o veículo no qual circulava o marido da Apelante foi, violentamente, embatido na traseira pela parte dianteira do veículo de matrícula ..-..-MC, e que era conduzido por Fernando ..........., e que o precedia, circulando atrás e, na mesma via e no mesmo sentido. 6.O acidente deu-se, assim, por culpa, única e exclusiva, do condutor do veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-MC, Fernando ............, que circulando a elevada velocidade, completamente desatento ao trânsito e manobrando com manifesta imperícia a falta de destreza provocou o embate, violando, assim, frontalmente o disposto nos art.4s 13, 18, 24 e 25, n41, do Código da Estrada. 7.Por força do contrato de seguro titulado pela apólice nº ..........., válido à data do acidente, a sociedade proprietária do automóvel, S............., Lda, transferiu para a Companhia de Seguros ..............., S.A., aqui Apelada, a responsabilidade civil emergente dos danos provocados a terceiros pela circulação do veículo automóvel de matrícula ..-..-MC. 8.Na sequência do acidente resultou ferido o marido da Apelante, o qual foi transportado para o Hospital ............, no ........, numa ambulância da Polícia de Segurança Pública, tendo-se diagnosticado, nomeadamente, o estiramento do nervo ciático direito, traumatismo no hipocôndrio direito e parestesias e monoparésia inferior direita, bem como ausência de força muscular. 9.Em exames urológicos efectuados posteriormente ao acidente, e como consequência directa, imediata e necessária deste, foi diagosticada, também, uma lesão neurológica parcial infra nuclear, com importante repercussão no aparelho genito-urinário, daí resultando disfunção eréctil e bexiga neurogénica periférica que necessita de cateterismos intermitentes diários permanentes. 10.Assim, como consequência directa do acidente e das lesões nele sofridas, o marido da Apelante passou a padecer, nomeadamente, de disfunção vésico-uretral, compatível com lesão parassimpática do motoneurónio inferior, que se caracteriza por hipossensibi1idade à distensão vesical, com hesitação inicial e prolongamento do tempo miccional, conseguido com esforço abdominal e frequentemente necessitando de estar sentado, não acompanhado de resposta motora contráctil significativa, sugestiva de arreflexia do detrusor. 11.Ficou a padecer, também, de disfunção eréctil, caracterizada pela conservação da libido e orgasmo manifestada na tumescincia peniana mas incompatível com penetração, a que acresce uma ejaculação dolorosa. 12.O marido da Apelante ficou portador de disfunção eréctil, vulgarmente designada por impotência. 13.Dos factos precedentemente expostos decorre, clara e inequivocamente, que o condutor do veículo de matrícula ..-..-MC, Fernando ............, que estava seguro na companhia Apelada, violou, de forma directa, ilícita e culposa, o direito de personalidade da Apelante que se consubstancia no seu direito à sexualidade (vide art. 483, nº 41, do Cód. Civil). 14.Com efeito, o condutor do veículo segurado na Apelada lesou, de forma culposa, o direito à sexualidade conjugal da Apelante, amputando-lhe, de forma brutal, o seu exercício, o que consubstancia violação de um direito de personalidade, tutelado pela ordem jurídico-constitucional. 15.Na verdade, do acidente de viação supra referido resultou a violação simultânea de dois direitos subjectivos: (I) violação directa da integridade física e moral do marido da Apelante; (II) violação de forma directa do direito de personalidade da A. que se traduz no exercício normal e sadio da sexualidade conjugal. 16.O direito de personalidade da Apelante consubstanciado no direito à sexualidade conjugal, decorre quer da lei ordinária (art. 704, 15774, 16724, do Cód. Civil), quer da lei constitucional (art.254 n41, 264, 364, 674 e 684), traduzindo, assim, esses comandos normativos, a consagração jurídico-constitucional do papel fundamental do indivíduo e da família na sociedade. 17.A pessoa humana é protegida na sua personalidade e dignidade, com vista à plena integridade e desenvolvimento físico e moral, protecção essa que encontra expressão jurídica na lei constitucional - vide, por exemplo, os art.4s 14, 13 011, 24 01, 254, 264, 27 n41, 644, 664, 694 - e, também, no art. 24, 64, 124 e 294, da Declaração Universal dos Direitos do Homem. 18.Os direitos de personalidade são direitos absolutos e, por isso, oponíveis em relação a todos os terceiros, sobre os quais Impende o dever de se absterem de praticar ou deixar de praticar qualquer acto que ilicitamente ofenda ou ameace ofender a personalidade de outrem. 19.O artº 70 nº1, do Cód. Civil, estabelece e consagra o direito geral de personalidade pelo qual a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou qualquer ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, significando isto que, os bens, as funções, os estados e as forças, potencialidades e capacidades que são a expressão do “todo” que constitui a personalidade humana, gozam da tutela, geral e directa, do art. 70º, do Cód. Civil. (cfr. R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, p. 200) 20.Deste modo, além dos direitos de personalidade elencados nos artºs 72 e seguintes do Cód. Civil, decorre do princípio geral do artº 70º, do mesmo diploma legal, outros direitos de personalidade, como é o caso do direito à sexualidade, designadamente quando materializado no âmbito do casamento, atento o inerente direito/dever da plena comunhão de vida, consagrado no art. 1577º, do Cód. Civil. 21.O direito à sexualidade é, pelo menos no âmbito do casamento, um direito de personalidade tutelado na lei. 22. No caso "sub judice" a conduta ilícita e culposa do condutor do veículo segurado na Apelada, nos termos já descritos atrás, causou (I) o dano biológico "impotência" ao marido da Apelante colocando-o numa situação de Impossibilidade de cumprir o débito conjugal, comprometendo, assim, a sã convivência sexual do casal e (II) violou, directamente, o direito da Apelante ao cumprimento daquele débito conjugal. 23.É de a tentar, também, que na idade da Apelante lhe era, ainda, possível, em termos biológicos, ter outro(s) filho(s), o que amputa e viola, ainda e de forma brutal, -o direito individual- de relevante valor social - da maternidade (cfr. art. 68°, n°2, da Constituição da República Portuguesa). 24.A Apelante viu, em relação ao direito à sexualidade, violado, de forma directa e Irreversível, pelo condutor do veículo, o direito que tinha ao cumprimento do débito conjugal em relação ao seu marido. 25.Viu, ainda, violado, pelo mesmo condutor do veículo seguro na Apelada, de forma directa e necessária, o seu direito à maternidade. 26.Não se diga, pois, como se afirma erradamente na sentença ora recorrida, que "... não sendo titular do interesse que (...) a norma estradal violada se destina a proteger, não tem a mesma direito a indemnização pelos (...) danos não patrimoniais por si sofridos". 27.Pelo contrário, a violação das normas do Código da Estrada por parte do segurado na Ré acarretou a violação de direitos de personalidade da Apelante, diminuíndo-a na sua realização pessoal e na sua integridade psico-física. 28.Olvida-se, na douta sentença, que esses direitos de personalidade - que de acordo com a mesma sentença parecem desprovidos de qualquer garantia, quer à luz Código da Estrada, quer de qualquer outro ramo de direito - estão devidamente tutelados no ordenamento jurídico-constitucional. 29.Quer porque os direitos de personalidade da Apelante existem e foram gravemente violados, quer porque os direitos que se pretendem salvaguardar estão, desde logo, salvaguardados e garantidos pela Lei constitucional, quer porque o titular do interesse na segurança do trânsito rodoviário é todo e qualquer cidadão - enquanto titular de um direito geral à segurança -, quer porque não pode valer qualquer argumento da lei ordinária que sobreleve ou contrarie a Lei fundamental e a Justiça, 30.A Apelante tem, de facto, direito à indemnização ou compensação para ressarcimento do dano causado directamente pela citada violação do seu direito de personalidade -art. 483, n°1, do Cód. Civil -, tratando-se, obviamente, de ressarcimento do dano não patrimonial que, como tal, está previsto no art. 496, n°1, do Cód. Civil. 31.Em sentido idêntico ao agora propugnado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/11/98, publicado no B.M.J. no 481, a páginas 470 e seguintes, preterindo o "(...) formal sobre o direito substantivo (...)", fundamentou o direito à indemnização directamente na lei constitucional, decidindo: IV - Enquanto titulares do poder paternal, os pais têm o direito de ver o filho menor crescer e desenvolver-se em saúde, por força do nº1 do artigo 682 de Constituição da República Portuguesa. A directa violação de tal direito, absoluto, pela grave omissão dos funcionários da ré, de que resultaram danos pessoais para o menor, implica Indemnização, por danos não patrimoniais, a favor dos progenitores". 32.No caso "sub judice", à semelhança do que acontece no Acórdão do S.T.J. atrás citado, também está em causa, para além de tudo o precedentemente exposto nas conclusões, a violação de um direito absoluto por grave acção do condutor do veículo seguro na Ré, de que resultaram simultaneamente danos pessoais para o marido da Apelante, e danos directos e não patrimoniais para a Apelante. 33.O Direito, felizmente, tutela a situação expendida na presente acção, pelo que esta não pode deixar de ser viável sob pena de flagrante e intolerável injustiça. 34.Decidindo como decidiu a douta sentença recorrida viola a lei, maxime os artigos 70º, nº 1, 483°, nº1, 496°, nº1, 1577º, todos do Cód. Civil e o artigo 684, nº2 da Constituição da República Portuguesa. Não houve contra-alegações. Corridos os vistos, cumpre decidir: II- Fundamentos a)- A matéria de facto a considerar é constituída pelos articulados apresentados pelas partes, os quais aqui se têm por inteiramente reproduzidos, nos termos do art. 713º nº 6 do CPC. b)- Apreciação da matéria de facto, o direito e o recurso de apelação. É pelas conclusões que se determina o objecto do recurso (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº1 do CPC), salvo quanto às questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado. Vejamos pois do seu mérito. 1-Estamos ainda no domínio da alegação de factos controvertidos, apresentados na petição inicial, já que a acção foi decidida em despacho saneador, onde se apreciou o direito em tal situação, considerando-se, desde logo, que a autora não era titular do interesse que a alegada norma estradal violada se destina a proteger e dai que não tenha a mesma direito a indemnização pelos alegados danos não patrimoniais por si sofridos. Importa assim analisar se, perante a factualidade alegada (a provarem-se esses factos) pode ou não configurar-se como fundamentada, em termos de direito, a pretensão apresentada pela autora. 2-Pretende a apelante , por via desta acção, obter a condenação da Apelada no pagamento de uma indemnização ou compensação como ressarcimento do dano directo e não patrimonial que sofreu no seu direito de personalidade, em virtude do acidente de viação que vitimou o seu marido, António ............. Vejamos então: 3-Foi alegado que no dia 3 de Novembro de 2000, pelas 13h 36m, na Rua .........., ............., .........., ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes as seguintes viaturas : veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-EL, conduzido por António ............, e propriedade de Maria ................; e o veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-MC, conduzido por Fernando ........... e propriedade da sociedade S..............., Lda. Em, síntese, conclui a recorrente que este acidente, que descreve factualmente na petição inicial, se deveu a culpa, única e exclusiva, do condutor Fernando ............ do veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-MC (segurado na ré apelada, pelo contrato de seguro titulado pela apólice nº .........., válido à data do acidente), que circulando a elevada velocidade, completamente desatento ao trânsito e manobrando com manifesta imperícia a falta de destreza provocou o embate, violando, assim, frontalmente o disposto nos artºs 13, 18, 24 e 25, nº1, do Código da Estrada. E, no que ora importa para analisar a questão destes autos, alegou a autora/apelante que na sequência do acidente resultou ferido seu marido, ficando, como consequência directa do acidente, com lesões de que passou a padecer, nomeadamente, de disfunção vésico-uretral, compatível com lesão parassimpática do motoneurónio inferior, que se caracteriza por hipossensibi1idade à distensão vesical, com hesitação inicial e prolongamento do tempo miccional, conseguido com esforço abdominal e frequentemente necessitando de estar sentado, não acompanhado de resposta motora contráctil significativa, sugestiva de arreflexia do detrusor. E ficou a padecer, também, de disfunção eréctil (vulgarmente designada por impotência), caracterizada pela conservação da libido e orgasmo manifestada na tumescência peniana mas incompatível com penetração, a que acresce uma ejaculação dolorosa. 4-É perante estes factos que a apelante invoca que o condutor do veículo de matrícula ..-..-MC, Fernando ............., violou, de forma directa, ilícita e culposa, o seu direito de personalidade que se consubstancia no seu direito à sexualidade (vide art. 483, nº1, do Cód. Civil) uma vez que lhe foi amputado de forma brutal, o seu exercício. 5-A jurisprudência e doutrina, como é sustentado no Ac. de 4.4.1991 (CJ-ano 1991, tomo 2, pág.255), citado na decisão recorrida, tem entendido que a lei só prevê a obrigação de indemnizar os danos provocados às pessoas directamente afectadas pelo acidente, extraindo-se essa conclusão do que se dispõe no artº 495º do CC, onde só excepcionalmente se prevê o alargamento a outras pessoas aí concretizadas. Numa teoria geral do dano, Vaz Serra (Boletim nº 84, pág.8 e ss) define o dano como todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos de carácter patrimonial ou não. E Pereira Coelho (o Problema da causa virtual na responsabilidade civil, pág.250 e ss) refere que “por dano pode entender-se por um lado o prejuízo rela que o lesado sofreu in natura em forma de destruição, subtracção ou deterioração de um certo bem”. Dario Martins de Almeida, a obra Manual de Acidentes de Viação, 3ª ed., pág. 82, dá-nos também uma síntese das distinções feitas na doutrina entre danos patrimoniais, resumindo-as, assim: a)- dano patrimonial, aquele que é susceptível de avaliação pecuniária, traduzido numa abstracta diminuição do património; b)- o dano não patrimonial, também conhecido na doutrina francesa por dano moral-aquele que afecta bens não patrimoniais (bens da personalidade) insusceptível de avaliação pecuniária ou medida monetária e cuja reparação só pode alcançar-se por mera compensação. Neste recurso apenas está em causa a indemnização por danos não patrimoniais .A sua definição está bem caracterizada por Dario Martins de Almeida na obra citada, agora a pág.271, onde se entende este dano não patrimonial como todo aquele que afecte a personalidade moral, nos seus valores específicos. Em sede de responsabilidade civil por factos ilícitos, apurada a ilicitude, culpa e o nexo de causalidade, o correspondente crédito de indemnização, tanto do dano patrimonial como do dano não patrimonial, entronca no titular do direito ou do interesse imediatamente violados, só excepcionalmente se estendendo a terceiros, situação que resulta das hipóteses que são consideradas nos números do artº 495º, nº 2 e 2ª parte do nº 3 do artº 496º do CC. Em principio, e no que ora nos interessa analisar quanto aos danos não patrimoniais e como também defende Antunes Varela-Das Obrigações em Geral-I Vol., pág.547, 4ª ed. “tem direito à indemnização o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal e não o terceiro que só reflexa ou indirectamente seja prejudicado”. [-Cfr.também Vaz Serra RLJ-ano 104º, pág.14 e Antunes Varela RLJ-ano 103º, pág.250, nota 1; Almeida e Costa-Direito das Obrigações, 5ª edição, pág.476 e ss; Inocêncio Galvão Telles-Direito das Obrigações-7ª edição, pág.378; e Ac. RC de 26-10-93-CJ-ano 1993, tomo 4, pág.93] Contudo o caso dos autos tem contornos de um dano directo que resulta imediatamente do acto ilícito praticado e que por isso mesmo merece uma outra vertente de reflexão, na interpretação do direito em causa. 6-A apelante fundamenta o seu direito à indemnização por se sentir afectada directamente no seu direito à sexualidade no âmbito dos deveres conjugais, com referência expressa ao débito conjugal. Ao ser violado o direito do lesado vitima do acidente de viação, por virtude do seu casamento com a apelante fica também violado directamente o direito da autora em poder continuar a partilhar reciprocamente o dever de coabitação na vertente do direito à sexualidade ,por força do que se dispõe no artº 1672º do CC. Nesta perspectiva, estamos, com o devido respeito por opinião contrária, em presença de dano directo com o qual a autora foi afectada. Assim, em termos de danos não patrimoniais a apelante não está impedida de peticionar indemnização. Aqui não há uma situação de dano indirecto, já que a lesão com que ficou afectado o marido da autora ,afecta-a a ela também directamente, pois que deixou de poder exercer a sua sexualidade com o marido, com quem por virtude do casamento celebrou um contrato para constituir família mediante uma plena comunhão de vida (artº 1577º do CC). A apelante na conclusão 23ª invoca também uma outra situação em que ficou afectada relacionada com a sua maternidade. Diz aí a apelante que “É de atentar, também, que na idade da -Apelante lhe era, ainda, possível, em termos biológicos, ter outro(s) filho(s), o que amputa e viola, ainda e de forma brutal, -o direito individual- de relevante valor social - da maternidade (cfr. art. 68°, n°2, da Constituição da República Portuguesa)”. Contudo esta vertente ora alegada pela apelante não consta da petição inicial, pelo que embora em abstracto a mesma também possa ser configurada no direito emergente do casamento, não temos agora que cuidar de factualidade não alegada expressamente. 6-De facto, a autora e o lesado estão vinculados pelo dever legal de coabitação e no inerente exercício da sua sexualidade e por esta via ,não pode deixar de concluir-se que foi também directamente lesada com o acidente. Entendemos, assim, como correcto o enquadramento jurídico defendido pela apelante no que toca a caracterizar o direito da apelante como direito de personalidade consubstanciado no direito à sexualidade conjugal, que decorre da lei ordinária (artsº 1577º, 1671º, 1672º do CC, conjugada com o artº 70º do mesmo CC)no que respeita ao casamento que celebrou com o lesado, também com apoio constitucional (artºs 25º, nº1, 26º, 36º e 67º da CRP) . “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça à sua personalidade física ou moral-artº 70º nº 1 do CC”. 7-Para efeitos da aplicação desta disposição legal, refere Capela de Sousa na sua obra O Direito Geral de Personalidade, pág. 199 que “o inventário dos elementos componentes da personalidade humana juscivilisticamente tutelada não pode confinar-se à arquitipização de fórmulas jurídicas abstractas e apriosrísticas, antes deve reflectir o mais imediatamente possível, nos limites ditados pela unidade do sistema jurídico, a estrutura individualizada bipolar de cada personalidade humana, ou seja, o facto de esta coenvolver, para além de uma particular unidade somático-pesíquica, uma singular unidade funcional “eu-mundo”. Refere ainda o mesmo autor (página 200) “com efeito, há desde logo em cada personalidade humana uma organização somático-psiquica, cuja tutela encontra aliás, tradução na ideia de “personalidade física” do artº 70º do CC, organização essa que é composta não só por bens ou elementos constitutivos (v.g. a vida, o corpo e o espírito) mas também por funções (v.g. a função circulatória e a inteligência), por estados (p.ex. a saúde, o prazer e a tranquilidade) e por forças, potencialidades e capacidades (os instintos, os sentimentos, a inteligência, o nível de edução, a vontade, a fé, a força de trabalho, a capacidade criadora, o poder de iniciativa, etc”. É este conceito abrangente do direito de personalidade, que como direito absoluto que é ,tem consagração legal nas disposições citadas e também na lei constitucional (art.25º nº1, 26º, 36ºe 67º ). [-Esta orientação foi também acolhida no Ac. do STJ de 25.11.1998-BMJ, nº 481, pág.479, citado pela apelante; cfr. também a abundante jurisprudência em anotação a este acórdão do STJ e também os Acs. do STJ de 21.3.1995-BMJ, nº 445, pág.487 e respectiva anotação] 8-O artº 70º nº1, do Cód. Civil, estabelece, pois, e consagra o direito geral de personalidade, pelo qual a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou qualquer ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. 9-Nesta perspectiva, o condutor do veículo segurado na apelada ao causar no marido da apelante as lesões alegadas, violou, de forma culposa, o direito à sexualidade conjugal da apelante, como componente daquele direito de personalidade, pois que é alegado, que o mesmo ficou numa situação de Impossibilidade de cumprir o débito conjugal, comprometendo, assim, a sã convivência sexual do casal . Cremos que não sofre dúvidas que o dano invocado pela apelante é de natureza não patrimonial e de gravidade acentuada e se insere naqueles que afectam profundamente os valores ou interesses da personalidade moral. 10-Como mulher do lesado em acidente de viação, que foi afectado na sua capacidade de cumprir o débito conjugal ,a apelante foi também afectada no seu direito à sexualidade que tem o direito de exigir de seu marido. Perante a situação dos autos, existe uma alegação de que pela conduta ilícita do condutor do veículo segurado na ré, resultaram danos que implicaram directamente (em nexo de casualidade adequada) com os direito do lesado e de sua mulher ,a aqui autora. 11-Foi com a violação estradal alegada que foram causados esses danos que afectaram um direito absoluto da apelante, o direito de personalidade (realização pessoal da sua vida no âmbito dos deveres conjugais-artº 67º da CRP), na vertente alegada e concreta de exercício da sua sexualidade conjugal, que deixou de poder ser exercida .E enquanto titular deste direito protegido pela Lei Constitucional e lei ordinária (dever de coabitação dos conjugues com a especificidade do débito conjugal) a apelante tem direito a ver-se ressarcida dos danos não patrimoniais que invoca, cuja prova haverá ainda que ser produzida. Esse direito foi violado pela acção do condutor causador do acidente e a sua violação implica que nos termos dos artºs 483º e 496º nº 1 do CC haja lugar a indemnização pelos danos não patrimoniais. 12-O nosso entendimento é, pois, o de que face ao que é alegado e configurando-se aqui danos directos em relação à autora (a provarem-se os factos alegados na petição) existe enquadramento jurídico nos termos acima apontados, podendo a autora pedir a indemnização por danos não patrimoniais pelos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, nos termos do artº 483º e 496º-1 do CC. Há ,pois, lugar à revogação da decisão recorrida, assistindo, assim, razão à apelante. III- Decisão. Pelo exposto acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação, e em consequência, revoga-se o saneador sentença, devendo em substituição proferir-se despacho a ordenar o prosseguimento da acção com a selecção da matéria de facto e organização da matéria assente e da base instrutória e ulteriores termos do processo. Custas a fixar a final. Porto, 26 de Junho de 2003 Gonçalo Xavier Silvano Fernando Manuel Pinto de Almeida João Carlos da Silva Vaz |