Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | FERNANDO VILARES FERREIRA | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE RENDIMENTO INDISPONÍVEL DO INSOLVENTE SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO DO DEVEDOR | ||
Nº do Documento: | RP202406182741/23.5T8STS.P2 | ||
Data do Acordão: | 06/18/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2.ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | Em sede de procedimento de exoneração do passivo restante, o montante não abrangido pela cessão do rendimento disponível, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. i), do CIRE, deve ser fixado casuisticamente, na justa medida em que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar, não podendo em caso algum ser inferior ao salário mínimo nacional. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | PROCESSO N.º 2741/23.5T8STS.P2 [Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 3]
Relator: Fernando Vilares Ferreira Adjuntas: Márcia Portela Alexandra Pelayo
SUMÁRIO: ……………………………... ……………………………... ………………………………
EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO 1. Em 26.09.2023 AA apresentou-se à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante. 2. Por sentença de 28.09.2023, o dito Apresentante foi declarado em estado de insolvência, tendo sido relegada para momento ulterior a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante. 3. O Administrador da Insolvência deu parecer positivo à admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante. 4. Nenhum credor se opôs à admissão liminar do pedido. 5. Por decisão de 18.02.2023 foi declarado encerrado o processo. 6. No seguimento de decisão sumária desta Relação, de 22.02.2024, que anulou uma primeira decisão sobre a fixação do “rendimento disponível a ceder” no âmbito da exoneração do passivo restante, em 21.03.2024 foi proferida nova decisão pela 1.ª instância, determinando-se, para além do mais: [Face à composição do agregado e às condições de vida resultantes do processo e consideradas provadas, fixa-se ao insolvente como rendimento disponível, todo aquele que exceder o valor de um salário mínimo nacional, acrescido de ¼ do SMN por cada um dos seus filhos que sendo maiores, terá que confirmar documentalmente que os mesmos ainda se encontram a completar a sua formação académica. Tal valor será multiplicado por doze meses, a iniciar-se com o trânsito deste despacho uma vez que já foi proferido despacho de encerramento do processo.] 7. Não se conformando com aquela decisão, o Insolvente interpôs o presente recurso de apelação, admitido com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, assente nas seguintes CONCLUSÕES: a) O Requerente, apresentou-se insolvência. b) Na petição inicial requereu a sua exoneração do passivo restante. c) Por Despacho, foi declarado pelo Exm° Sr. Dr. Juiz, que nos termos do art.° 239 n.° 3 do CIRE, considera-se excluído do rendimento disponível o valor de 1 SMN acrescido de 1/4 desse valor por cada um dos filhos, desde que o insolvente faça prova que os mesmos, embora maiores, se encontrem a completar a sua formação académica. d) Fixou o Exm° Sr. Dr. Juiz o montante equivalente a 820,00€ para o Requerente pagar as suas despesas mensalmente durante o período de cessão. e) Valor nitidamente diminuto tendo em consideração que o requerente vive sozinho, e face às despesas mensais invocadas nos autos que são todas suportadas apenas pelo insolvente. f) O art.° 239 n.° 3 b) dispõe que integra o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com excepção daqueles que sejam razoavelmente necessários para um sustento digno do devedor. g) Aliás o valor fixado no despacho não respeita o espírito da lei, nomeadamente o art.° 239 do CIRE quando refere no n.° 3 b) i) "O sustento minimamente do devedor...". h) Mais nem se entende de que forma foi calculado e ponderado o valor a atribuir ao insolvente, como o valor justo e adequado à manutenção de uma vida condigna. i) Pelo que, ao que parece, as despesas suportadas pelo insolvente, e que não foram contestadas por nenhum credor, não foram consideradas para efeitos desta decisão de que ora se recorre. j) O insolvente, em requerimento datado de 12.11.2023 apresentou uma relação das suas despesas médias mensais, sendo que nenhum credor se opôs às mesmas, nem questionou qualquer dos valores indicados. k) E tais despesas nem foram consideradas para efeitos de cálculo, pois que, o Tribunal a quo, não levou em ponderação que o Insolvente residia em casa arrendada, com despesas fixas, agua, luz, gás etc... I) Despesas que não pode deixar de suportar pois são imprescindíveis em qualquer economia doméstica. m) O cumprimento do despacho inicial de exoneração do passivo restante empurrará esta pessoa para uma situação de grande debilidade económica e para uma situação de sobrevivência limite que colocará em causa a sua dignidade. n) Dando-se provimento à apelação, deve ser revogado parcialmente o douto despacho, substituindo-se o mesmo por outro que fixe o valor excluído do rendimento disponível em 2 SMN acrescido de 1/4 desse valor por cada um dos filhos, desde que o insolvente faça prova que os mesmos, embora maiores, se encontrem a completar a sua formação académica. o) Pois, esse é, no entender do insolvente apelante, o valor necessário para poder ter uma vida condigna nos 36 meses seguintes ao Despacho inicial de exoneração do passivo restante. 8. Não foram apresentadas contra-alegações.
II. OBJETO DO RECURSO Considerando as conclusões das alegações apresentadas pelo Apelante, e sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso, a questão controvertida no presente recurso passa por saber se existe ou não fundamento bastante para alterar a decisão recorrida, no que concerne ao valor do rendimento disponível do insolvente. Tendo a decisão recorrida especificado devidamente a factualidade que julgou provada e não provada tida com relevância para a decisão, assim como os respetivos fundamentos em termos de juízo probatório alcançado, as considerações genéricas vertidas pelo Apelante nas suas alegações/conclusões em torno de eventual falta de consideração de despesas por si alegadas, não se mostram adequadas e suficientes ao cumprimento dos ónus de impugnação da decisão em matéria de facto, previstos no art. 640.º, n.º 1, do CPCivil. Sendo assim, o conhecimento deste recurso cingir-se-á a matéria de direito, tendo por base a factualidade julgada provada e não provada pela decisão recorrida.
III. FUNDAMENTAÇÃO 1. OS FACTOS 1.1. Factos provados O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos: A. O Insolvente é divorciado, reside, por favor em casa de amigos, na Travessa ..., ... .... B. O Insolvente foi sócio gerente da sociedade A..., Limitada e B... e atualmente trabalha por conta de outrem e aufere o Salário Mínimo Nacional. C. O agregado familiar é composto apenas pelo Insolvente, suportando com o seu vencimento as despesas com a sua alimentação, transporte e despesas de saúde. D. O Insolvente não é proprietário de bens móveis nem de bens imóveis. E. O insolvente não beneficiou nos últimos 10 anos da exoneração do passivo restante. F. O insolvente não tem antecedentes criminais. 1.2. Factos não provados Dos factos alegados, tidos com relevância para a decisão, o Tribunal de que vem o recurso julgou não provado: - Que o Insolvente suporta o valor de 300,00€ a título de ocupação da casa onde reside. 2. OS FACTOS E O DIREITO 2.1. A exoneração do passivo restante, cujo regime se mostra vertido essencialmente nos arts. 235.º a 248.º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)[1], representa, como é por demais sabido, um benefício muito relevante concedido ao devedor pessoa singular declarado insolvente, por lhe permitir libertar-se do peso do passivo e refazer a sua vida económica, constituindo uma causa de extinção das obrigações. Nas palavras de CATARINA SERRA[2], “[t]al como o regime alemão, o regime português consiste, em traços gerais, na afetação, durante certo período após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos réditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não tenha sido possível cumprir, por essa via, durante esse período. A intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que, “depois de aprendida a lição”, ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da atividade económica ou empresarial. O objetivo é, por outras palavras, dar ao sujeito a oportunidade de (re)começar do zero”. Nos termos do art. 235.º, “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições deste capítulo”. Por sua vez, o art. 239.º, sob a epígrafe “Cessão do rendimento disponível”, dispõe assim: “1 - Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236.º. 2 - O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte. 3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor. 4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores. 5 - A cessão prevista no n.º 2 prevalece sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor. 6 - Sendo interposto recurso do despacho inicial, a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a decisão”. Como se deixou bem sintetizado no acórdão do STJ de 2 de fevereiro de 2016[3]: [I – Jogam-se no art. 239.º, n.º 3, b)-i), do CIRE – cessão do rendimento disponível – dois interesses conflituantes: um, aponta no sentido da proteção dos credores dos insolventes/requerentes da exoneração; outro, na lógica da “segunda oportunidade” concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período de cinco anos a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos. II - O montante não abrangido pela cessão do rendimento disponível deve ser fixado casuisticamente, tendo em conta “o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar…”. III - A norma remete para o conceito de “dignidade” que indissocia da exigência do sustento do devedor e do seu agregado familiar. IV - Se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deve atender a esse salário mínimo nacional, para no caso concreto, saber a partir dele, o quantum que se deve considerar compatível o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. V - Em regra, o salário mínimo nacional é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna]. 2.2. No caso que nos ocupa, tendo por base a factualidade apurada e tida por relevante, a decisão recorrida considerou suficiente e adequado ao sustento condigno do Insolvente, o montante mensal correspondente a um salário mínimo nacional, acrescido de ¼ do SMN por cada um dos seus filhos que sendo maiores, terá que confirmar documentalmente que os mesmos ainda se encontram a completar a sua formação académica, sendo que o dito valor será multiplicado por 12 meses, com início a partir do trânsito da decisão. A avaliação que fazemos em nada diverge da feita pela Exma. Juíza de Direito, porquanto a temos como respeitadora da preservação do sustento minimamente digno do Insolvente, sem esquecer o acautelamento possível dos interesses dos credores. Com efeito, conforme se deixou bem notado na decisão recorrida, “o Insolvente tem de adequar o seu modus vivendi ao estado de insolvência a que está sujeito. E não é este estado de insolvência que tem de se adequar ao modus vivendi que o insolvente entenda adoptar”. Acrescentar mais um SMN ao rendimento indisponível, como pretendido pelo Apelante, num quadro em que as despesas de subsistência ficam até abaixo do que é normal uma pessoa suportar (mormente com a habitação), não encontra qualquer justificação lógica e racional em face do direito aplicável. Termos em que, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, impõe-se-nos que concluamos pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
IV. DECISÃO Pelos fundamentos expostos, acordamos em julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmamos a decisão recorrida. * Custas a cargo da massa insolvente (304.º do CIRE), sem prejuízo do disposto nos artigos 241.º, n.º 1 a) e 248.º do mesmo diploma legal, assim como do apoio judiciário de que possa beneficiar o Apelante. ***
Tribunal da Relação do Porto, 18 de junho de 2024 Os Juízes Desembargadores, Fernando Vilares Ferreira Márcia Portela Alexandra Pelayo
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