Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA DEOLINDA DIONÍSIO | ||
Descritores: | CRIME DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA AGRAVAÇÃO PROVA PERICIAL PERÍCIA DE AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA VALOR FUNÇÃO JUDICIAL | ||
Nº do Documento: | RP202407101434/21.2JAPRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | PROVIDO O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO | ||
Indicações Eventuais: | 4.ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I – O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial apresenta um valor presuntivamente pleno, ou seja, faz prova dos factos atestados com base nas percepções da entidade documentadora, pelo que, para contrariar esta valoração, o julgador terá que fundamentar a divergência com argumentos técnicos ou científicos equiparados aos dos peritos, isto é, fazendo uma crítica da mesma natureza, material e científica. II – Porém, não se integram em tal critério os juízos de probabilidade ou meramente opinativos, pelo que não pode equiparar-se a perícia de avaliação psicológica de menor, que incide sobre a credibilidade do depoimento deste, a uma qualquer outra perícia, pois que o juízo de credibilidade dos depoimentos das testemunhas é tarefa própria e indeclinável do juiz, amparado pelos princípios da imediação e oralidade e pelas regras de experiência e normalidade de acontecer. III – Assim, o juízo pericial opinativo, constituindo um subsídio importante para a valoração da prova sobre que incide, não pode substituir ou suplantar o juízo próprio e característico da função judicial, o que significa que não pode transferir-se para o perito, que, aliás, emite a sua opinião sem recurso a elementos atinentes ao contraditório só possível em audiência de julgamento, aquilo que é inato à função judicial. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | RECURSO PENAL n.º 1434/21.2JAPRT.P1 2ª Secção Criminal Conferência
Relatora: Maria Deolinda Dionísio Adjuntos: Jorge Langweg Maria Dolores Sousa
Comarca: Porto Este Tribunal: .../Juízo Central Criminal-… Processo: Comum Colectivo n.º 1434/21.2JAPRT
**** Assistente: AA [em representação de sua filha menor BB] Arguido/Recorrente: CC
Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
1. No âmbito dos autos supra referenciados, por acórdão proferido e devidamente depositado a 09 de Fevereiro de 2024, foi o arguido CC, com os demais sinais dos autos, ABSOLVIDO da prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, agravado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. d), do Cód. Penal, e CONDENADO na pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante regime de prova e obrigação de, no prazo máximo de 8 (oito) meses, entregar no Tribunal – para posterior entrega à menor BB - a quantia de e 2.000,00 (dois mil euros), em resultado das seguintes penas parcelares: a) 3 (três) anos de prisão pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, agravado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b), do Cód. Penal; b) 6 (seis) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, agravado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 171º, n.º 3, al. a), 170º e 177º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal; c) 9 (nove) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, agravado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos citados arts. 171º, n.º 3, al. a), 170º e 177º, n.º 1, al. b). 2. Mais foi condenado nas penas acessórias de proibição do exercício de profissão, emprego, funções ou actividades públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores e proibição de assumir a confiança de menor, em especial, a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega ou confiança de menores, pelo período de 5 (cinco) anos, ao abrigo e por força do preceituado nos arts. 69º-B, n.º 2 e 69º-C, n.º 2, do Cód. Penal. 3. Foi também condenado a pagar à ofendida BB a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de reparação pelos prejuízos sofridos[1]. 4. Inconformado, o arguido CC interpôs recurso cuja motivação finalizou com as conclusões que se transcrevem: (…)[2] IV Todavia, o Recorrente não se conforma com tal decisão, a qual, com o devido respeito por opinião contrária, padece de vícios que a ferem irremediavelmente, quer a nível de julgamento da matéria de facto, quer da aplicação do Direito. V Para tal o Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos: (Teor dos pontos 1 a 14 que infra se reproduzirão) VI Na verdade, importa desde já sublinhar que a menor foi ouvida em 3 momentos distintos: no Instituto de Medicina Legal (IML), na Polícia Judiciária (PJ) e no Tribunal onde prestou declarações para memória futura. VII E nos 3 momentos, a mesma criança, diz coisas totalmente diferentes, sendo que, sempre nos questionaremos, afinal em que versão acreditar, ou se alguma delas será verdadeira ou invencionada. VIII E isto aponta logo, para um conjunto de ambiguidades e contradições às quais não nos podemos manter alheios, nem aceitar que tal não tenha sido considerado pelo Tribunal a quo. IX Ora, olhando para as declarações, prestadas pela mesma menor em 3 momentos distintos, (conforme resulta dos pontos 16, 17 e 18 supra onde se procedeu às respetivas transcrições e para onde se remete e que aqui só não se volta a transcrever para evitar a sua extensiva repetição e por economia) verifica-se que tais relatos da menor, não são congruentes entre si, senão vejamos: - no primeiro episódio, a menor, refere que o café estava fechado, que o amigo foi de carro, e que o arguido parou num monte, já num outro momento, refere que o amigo afinal vai a pé, que afinal ele pára na estrada que levavam rumo a casa (e não em nenhum monte) e ainda refere que ele lhe disse para tirar a roupa e depois já refere que estava de macacão e que ele afinal lhe disse para tirar a camisola, as calças e as cuecas e num outro momento afinal só lhe disse para tirar as cuecas e mais nada. - já num segundo episódio diz que foram ao café e ao vir para casa pararam perto do ..., que ele lhe disse tirar a roupa e se sentar no colo dele, que ele também ia tirar a roupa, num outro momento já disse que ele até já estava a tirar as calças e lhe disse para ir para cima dele e por fim já não diz nada disto e até fala num outro local que até ali nunca tinha falado, que afinal era atrás da Igreja ..., mas que aquele era o percurso que tinham de fazer e já nem se lembrava de onde vinham. - Por fim, no terceiro episódio começa por dizer que, tudo ocorreu de tarde, estava no quarto parado da mãe dele, que era o local onde normalmente dormia, que foi para o quarto do arguido ver televisão, que pensava que ele estava a dormir e ainda que ele estava vestido, para de seguida já dizer que sentiu algo a roçar no seu rabo e que nunca viu o pénis dele, para por fim vir dizer, que afinal ela é que fingiu que estava a dormir, era de manhã cedo, e que sentiu algo nas costas e não no rabo, que ele estava sem boxers e que viu que era o pénis dele. X Isto é, a ser como foi descrito, não parece racional, nem verosímil, que o Recorrente tenha praticado os atos que resultaram provados, num ambiente público, ainda para mais nas estradas que eram recorrentes passar, XI Aliás, nunca tendo feito nenhum desvio como referiu a menor, ou seja, aqueles eram os caminhos que normalmente percorriam. XII Num sítio onde a BB e o arguido eram conhecidos, por vizinhos e pessoas da terra, aliás, uma terra pequena onde todos se conhecem. XIII Sendo os factos durante o dia, onde podiam ser vistos por qualquer transeunte, vizinho ou familiar da menor, e que ela ia com ele ao café porque queria, não explicando porque é que quis continuar a ir ao café com ele depois do primeiro episódio (se efetivamente ele tivesse ocorrido). XIV Tudo a apontar para uma muito latente dúvida sobre o que, na verdade, se terá passado, ou se efetivamente se passou alguma coisa. XV Dúvida essa que terá que ser atendida em favor do Recorrente em honra ao princípio in dúbio pro reo. XVI Daí que, quer a menor, quer a sua mãe, assim como a psicóloga e a prima relataram então coisa bem diversa do que resultou agora provado, aliás, a psicóloga relatou 4 factos, a prima 2, e o Tribunal acabou por escolher à sorte o que quis dar como provado. XVII Exemplo claro disso são os factos dado como provados no ponto 9 e 10, e o facto dado como não provado no ponto e), são semelhantes tendo o Tribunal, apenas escolhido o que melhor serviria à sua convicção. XVIII Aliás, a própria psicóloga, afirmou que a menor é influenciável e orientada, acabando por manifestar mesmo a perigosidade que a mãe representa para a criança. XIX Esta testemunha acabou mesmo por usar a expressão que a BB lhe narrou as coisas como se estivesse a dizer a tabuada, sem que aquela nunca concretize o fim de nada. XX Por todos estes factos, parece que a menor apresenta um testemunho sugestionado ou mesmo invencionado, pois como é que pode dizer, a titulo de exemplo, nas primeiras vezes que foi ouvida que o arguido estava vestido, para alterar que viu o pénis dele, como é que pode dizer que roçou o pénis no rabo, para alterar que foi nas costas, se afinal depois diz que nunca viu o pénis, como é que pode dizer que pararam num monte, para vir alterar que foi numa estrada rumo a casa, como é que pode dizer que ele apenas lhe disse para tirar a roupa e mais nada, para passar a dizer que afinal ele até já estava a tirar as calças, como é que pode dizer que foi junto ao ..., para alterar que foi junto à ..., como é que pode dizer que deram boleia a um amigo dele, para alterar que esse amigo afinal foi a pé, como é que diz que foi de tarde, para alterar que afinal foi de manhã cedo... XXI É estranho… de facto tão estranho que o relatório da própria PJ após ouvir os intervenientes concluiu: “(…) Com efeito, os elementos recolhidos e constantes dos autos não permitem, salvo melhor entendimento, afirmar categoricamente que os factos tenham ocorrido da forma como a BB os relatou ou se pelo contrário foram ficcionados tendo em vista uma qualquer retaliação contra o arguido (…)” – 2.º parágrafo de fls. 133 dos autos. XXII Mais, as mentiras por parte da menor vão sendo claras ao longo do seu testemunho, pois além do já exposto, como é que se pode aceitar que a menor tenha dito que dormia em casa dos pais do arguido, quando tal facto foi negado pelo mesmo (fl 6 in fine do acórdão), foi negado pela própria mãe da menor (cf. Fl 7, 4.º parágrafo do acórdão) e ainda pelos pais do arguido (fl 9, 1.º parágrafo do acórdão). XXIII Ou seja, todos são unânimes neste facto, incluindo a mãe da menor, mas curiosamente, a menor é a única que diz que dormia em casa dos pais do arguido, inclusive fez alusão ao quarto onde normalmente dormia, o que não se compreende, por ser corroborado por todos que tal facto era falso. XXIV Mais, entendeu o Mmo Juiz que existia coabitação entre o arguido e a mãe da menor, o que também é falso, pois o arguido residia e laborava na Suíça, e quando vinha a Portugal ficava em casa dos seus pais. XXV Aliás, o próprio disse-o nas suas declarações, e a própria menor, acaba por confirmar quando refere nas declarações que prestou no primeiro episódio que o arguido deixou-a e voltou a sair, ora se coabitasse com a mãe da menor, já ficaria em casa dela, mas, não era isso que acontecia. XXVI O mesmo se diga quanto ao terceiro episódio, em que ela refere que ele chega bêbado de manhã cedo e foi para casa dos pais dele, não foi para casa da mãe dela. XXVII O mesmo se diga quanto ao facto de a mãe da menor vir dizer que era ela quem incentivava a menor a ir com o arguido ao café pois assim garantia que aquele chegava cedo a casa e que não consumia bebidas alcoólicas, quando, de modo inverso, a menor nas suas declarações contrariou isso, dizendo que ela ia porque queria (vide transcrições das declarações da menor supra), e contrariando ainda a mãe quando afirmou que num dos episódios o arguido a deixou em casa e voltou a ir sair. XXVIII Mais, disse a mãe nas suas declarações que não teve coragem para falar com a filha sobre o assunto, tanto que só soube dos factos depois da denúncia apresentada (cf. Fl 7, 3.º parágrafo in fine), o que foi contrariado pela psicóloga que referiu que falou com a mãe e lhe pediu para a acompanhar à GNR, bem como, pela própria BB que quando ouvida no IML referiu, “a minha mãe foi-me buscar a casa da minha prima e perguntou-me a mim e à minha prima. Depois a minha mãe ligou à advogada e contou-lhe o que tinha acontecido (…)” XXIX Voltou a tentar a mãe convencer o Tribunal que a sua filha sempre foi uma menina alegre e bem integrada, sem problemas absolutamente nenhuns, quando ela própria no IML referiu (pág. pág. 5 do relatório o IML, in fine) “(…) porque a BB andava estranha, respondona, revoltada, chorava por tudo e por nada, o motorista dizia que ela chorava ao entrar e sair da camioneta (…)”, ou seja, chorava ao ir e vir da escola, vindo alegar a mãe que na escola corria tudo bem. XXX Para tal testemunho ser totalmente desmentido pela psicóloga que veio dar a conhecer ao Tribunal e como decorre do acórdão fl 8, 3.º parágrafo que “(…) o acompanhamento da menor foi motivado pelas dificuldades de adaptação à escola, existindo outras queixas relacionadas com a eventual prática de bullying (…)” XXXI Assim, como referiu a mãe nas suas declarações no Tribunal que a menor nunca fez xixi nem cocó na cama o que só começou a ocorrer depois destes factos, contrariando o que disse no IML (pág. 5 do relatório o IML primeira parte) – “Como a menor faz xixi na cama e cocó nas cuecas (sic), a mãe coloca-lhe fralda durante a noite (…) Questionada mais pormenor, a progenitora relatou que os problemas de enurese e encoprose já seriam anteriores aos alegados abusos sofridos pela BB (…)” para mais adiante acrescentar (pág. pág. 6 do relatório o IML, 2.º parágrafo) – “Acrescentou que a BB, está a ser seguida no Hospital ..., ..., devido à enurese e encoprese. (…) Quando lhe foi perguntado se teria informado o médico sobre os alegados abusos, a progenitora respondeu negativamente (…)” XXXII Acabando por nesse mesmo relatório, logo de seguida, a perita afirmar que a progenitora foi contraditória afirmando que “(…) no que toca ao controlo dos esfíncteres, visto que a mesma se contradiz ao longo da entrevista (…)”. XXXIII Em suma, entende o Recorrente existir manifesto erro na fixação da matéria de facto prova inserta nos pontos 2º a 11º, 17º e 18.º, inclusive dos factos provados, os quais deviam ter sido considerados não provados, XXXIV Nomeadamente, não ficou provado – pontos 2, 3 e 11 - que mantiveram uma relação análoga à dos cônjuges, e nem que durante 2016 e 2020 a BB tenha vivido com o arguido, até porque ele encontrava-se a laborar e residir no estrangeiro e quando vinha a Portugal dormia em casa dos seus pais, apenas tendo uma relação de namoro com a mãe da menor onde poderia raras as vezes pernoitar em casa dela, mas, não fazendo vida de casal, nem que com a menor vivia. XXXV Também não se pode dar como provado – ponto 4 e 5 - que o arguido tenha parado a viatura num monte, nem que ele lhe tenha dito para tirar a camisola, as calças, e as cuecas. XXXVI Não se compreende igualmente que se tenha dado como provado – ponto 6 a 8 - que vinham do café, que pararam junto à ..., local de pouco movimento, pedindo para tirar a roupa que tiraria a sua e ainda que se sentasse no seu colo, aliás, o Mmo juiz deu como não provado que ocorreram num local escondido (ponto c) dos factos não provados) para alterar para um local com pouco movimento, desconhecendo-se em que prova se baseou para essa alteração. XXXVII Por fim, manifestamente, é impensável estes factos - pontos 9 e 10 - ser dado como provados, quando em primeiro lugar, o Mmo Juiz adianta que foi ao final da manhã, sem que se perceba onde se baseou neste dado, pois a menor numa das declarações falou à tarde, noutras de manhã cedo (nunca final da manhã). XXXVIII Assim como, é que é possível que afirme que o arguido vendo BB a dormir tenha se aproveitado de tal circunstancia quando ela diz que foi ter com o arguido porque ela pensou que ele estaria a dormir e ainda que aquele baixou os boxers, quando não o viu a fazer, apenas presumiu, como se verifica das declarações que prestou. XXXIX Bem como, diz a menor que roçou o pénis, sem que nunca o tenha visto, e ainda por cima mantendo que sempre se manteve de costas… de facto, é novelesco. XL Por fim, os pontos 18 e 19 dos factos provados também não foram corroborados por nenhuma outra prova, aliás, a existente, quer a psicóloga, quer do exame do IML demonstram que a BB já padecia dos problemas de enurese e encoprese, e ainda que o sofrimento advinha da vivência e relações com os seus pares, atendendo a que sofria bullying e como referiu a mãe chorava a entrar e sair da camioneta sempre que vinha da escola. XLI Mais, a menor começa as suas declarações por dizer “e eu fiquei em casa com ele porque ele estava a dormir e então eu fiquei em casa com ele”, ora se o arguido estava a dormir lá saberia se estava sozinho ou não, assim como se fosse ao contrário, se afinal fosse a BB que estivesse a dormir como aponta o acórdão também lá saberia ela dizer que tinham ido todos às compras, nomeadamente, a mãe do arguido, o pai do arguido e mesmo a sua mãe. Isto é só surreal. XLII Posto isto e, sempre salvo o devido respeito por melhor opinião, a prova produzida em audiência de julgamento conjugada com a demais existente nos autos, não permite concluir que o Recorrente praticou os factos dados como assentes nos pontos 2 a 11 e 17 e 18 da factualidade provada, XLIII Daí que, dando-se aqui como totalmente reproduzido tudo quanto acima se disse sobre o depoimento das mesmas, a consideração de tal factualidade como provada deveria, ao invés, ter sido considerada não provada. XLIV Assim, os factos provados 2 a 11, 17 e 18, devem ser considerados não provados dada a inexistência de prova direta sobre os mesmos, tendo o douto Tribunal “a quo” extravasado os limites impostos pelo artº. 127º do C.P.P. ao considerá-los como tal. XLV Acresce, pois, um flagrante erro na apreciação da prova previsto no artigo. 410º nº 2 c) CPP. XLVI Constando do processo todos os elementos de prova que serviram de base à fixação da matéria de facto, e dado cumprimento ao imposto pelo artigo 412º, nº 3 do CPP, impõe-se a modificabilidade da decisão recorrida, nos termos do disposto nos artigos 412º, nºs. 3 e 4 e 431º, alíneas a) e b), todos do Cód. Proc. Penal. XLVII Tendo em conta que esse Venerando Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, e que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, e constante das gravações, não conduz à factualidade apurada na douta decisão em crise, supra discriminada, justificado está o pedido supra formulado de modificabilidade da decisão do tribunal de 1ª. Instância sobre a matéria de facto, nos termos apontados e conforme disposto no artigo 431º do Código de Processo Penal. Dito isto, XLVIII Considerou o douto Tribunal “a quo”, condenar o Recorrente também pelo n.º 1 e nº. 3 do artº. 171º do Código Penal, e art 177.º do CP por concluir que entre o Recorrente e a mãe da menor existia coabitação que os factos provados não integram. XLIX Não obstante, também nos parece óbvio, salvo melhor entendimento, que os atos imputados ao recorrente, nos precisos termos que constam dos factos provados, para além de não revelarem a dita intenção libidinosa, também não integram o conceito de “ato sexual” e muito menos “ato sexual de relevo”, e, por isso, não preenchem o tipo objetivo do crime de abuso sexual de crianças, da previsão do nº 1 do art. 171º do Código Penal, por que foi condenado. L Aliás, na verdade e como se deixou dito, a menor presumiu que era o pénis, sem nunca o ter visto, mantendo (nas suas palavras) que sempre esteve de costas para o arguido, chegando mesmo a dizer quando foi ouvida que ele estava vestido. LI Cremos pois que as considerações feitas anteriormente, também já apontam no sentido de que os actos que o arguido praticou com a menor, tal como estão descritos nos factos provados, não contêm, necessariamente, conotação sexual e muito menos de relevo. LII Ora revertendo aos presentes autos, inexistindo qualquer concretização perante toda a dúvida deixada, jamais se poderá considerar a existência de acto sexual de relevo. LIII O mesmo se diga quanto às propostas hipoteticamente formuladas, que salvo devido respeito, não estão sequer provadas. Tanto que, acrescenta-se que se estranha a afirmação feita pela menor quando refere “ele também só queria saber do DD e já não estava muito tempo comigo”, demonstrando ciúmes com o nascimento do irmão, sendo que o arguido passou toda a atenção para o seu filho, o que não deixa de ser estranha esta afirmação, atendendo que a menor, a ser verdade tais factos, deveria querer distância do arguido e não o inverso. LIV E a este respeito também se diga que, na importunação sexual o agente não chega a praticar qualquer ato sexual de relevo, referindo-se os contactos de natureza sexual a um contacto corporal que transporta significado sexual, sem contudo representar um ato sexual de relevo, o que manifestamente também não se aplica ao caso sub judice. LV Por fim, quando à aplicação da sanção previstas no n.º 2 dos artigos 69-B e 69-Cº do Código Penal tem como pressuposto basilar a exigência de que entre o agente e a vítima do crime sexual medeie uma determinada relação. LVI É mais que duvidoso. Ora, in dubio pro libertate, consabidamente o mandamento que do lado do direito penal substantivo cumpre a função do in dubio pro reo do lado do processo penal. LVII Face ao exposto, ponderados todos os fatores, nomeadamente, ao que se deixou dito supra, deve o arguido ser absolvido dos crimes e, consequentemente, improceder arbitramento determinado, bem como, as respetivas penas acessórias. LVIII Todavia, salvo o devido respeito, ainda que se entenda que a matéria dada como provada deve manter-se como tal, no que não se concede e apenas se equaciona por mera hipótese de raciocínio, sempre se dirá que a pena aplicada ao Recorrente é elevada, atento, nomeadamente, atendendo ao fim ressocializador das penas. LIX Da materialidade considerada como provada resulta que o Recorrente não possui antecedentes criminais, sendo pessoa com bom comportamento social, bem inserido familiar e socialmente, com um relacionamento familiar estável, nunca tendo estado ligado à prática de atos pelos quais foi agora condenado. LX pelo que, recorrendo ao critério previsto no art.º 71º, n.º 1 do Código Penal e atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depõem a favor do agente ou contra ele, concluímos que as penas aplicadas são exageradíssimas. LXI Ao não decidir desde modo, violou o Meritíssimo Juiz “a quo” o disposto nos artºs 71º, nºs. 1 e 2, 170.º, 171º, nºs. 1 e 3 e art 177.º todos do Código Penal, bem como o artº. 32º da Constituição da República Portuguesa, na interpretação feita a tais normativos legais 5. Admitido o recurso, por despacho com o teor que se pode ver a fls. 511 dos autos, responderam o Ministério Público e a assistente AA sufragando, a sua improcedência e manutenção do decidido, com os fundamentos que resumiram nas conclusões seguintes: Ministério Público (…)[3] 3. Decorre da motivação de recurso que a menor ofendida teria um discurso induzido, com contradições e ambiguidades, com falta de um relato circunstancial e espontâneo do ocorrido, apresentando três versões dos factos: uma perante o INML; outra perante a Polícia Judiciária; e outra perante o Tribunal, em Declarações para memória futura. 4. À data dos factos, BB tinha 9 anos de idade, pelo que não se estranha que a mesma, apesar de, no essencial e para o que aqui interessa, ter sempre a mesma versão, não se estranha que haja uma ou outra precisão, ou complemento que varie de depoimento para depoimento, nisso se reflectindo exactamente a sua espontaneidade e veracidade. 5. Se o discurso estivesse tão bem decorado, como pretende o recorrente, e se a mãe da menor representasse a perigosidade para a menor que o recorrente pretende, o relato das três situações seria sempre igual. 6. Nos termos do relatório pericial de psicologia forense, as declarações da vítima mostraram-se perfeitamente credíveis, no quadro de um relato congruente, espontâneo e ajustado à sua idade, onde não foram observados ganhos secundários, nem indicadores sugestivos de ser resultado da sua imaginação ou de uma interferência de terceiro. No crime de abuso sexual de crianças, o contacto sexual não terá de ser conseguido por meio de constrangimento da criança (ou, no crime de abuso sexual de menores dependentes, de jovens): desde que não seja o contacto naturalisticamente causado pela criança ou jovem, estaremos perante uma importunação sexual de crianças naquelas situações em que o contacto sexual é provocado pelo agente, ainda que com aceitação (que é coisa diferente de ser naturalisticamente provocado) da criança ou jovem menor. 7. Cumpre sublinhar que igualmente se pune a conduta que se concretiza em “formular proposta de teor sexual”, com o que se pretende acautelar a sua liberdade e autodeterminação sexual associado ao livre desenvolvimento da sua personalidade em matéria sexual. Com efeito, formular proposta de teor sexual é propor à vítima a prática de atos que assumam um caráter irrenunciavelmente sexual, tanto podendo propor-se à vítima que assuma um papel ativo ou que se limite a um papel passivo. 8. Note-se ainda, na agravação da conduta por força da alínea b) do nº 1 do art. 177º, na medida em que prevê que “as penas previstas nos artigos 163º a 165º e 167º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima” “se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.” 9. Pelas razões expostas, concordamos, na íntegra com o Douto Acórdão recorrido, sendo quer as penas parcelares, quer a pena única, justas, adequadas, proporcionais.
Assistente AA (…)[4] III- Porém, o recorrente não se conformou com tal decisão, alegando que a mesma padece de vícios que a ferem irremediavelmente, quer a nível de julgamento da matéria de facto, quer da aplicação do direito. IV- Razões que a Recorrida, não subscreve, pelo contrário, é seu entendimento que o Tribunal a quo ao decidir conforme douto Acórdão, decidiu exemplarmente, quer quanto à matéria de facto quer a aplicação do direito. V- Entende o recorrente que o Tribunal não levou em linha de conta, a incredibilidade, o ressentimento, a falta de aptidão probatória e as obvias e claras ambiguidades e contradições existentes. VI- E que o depoimento da menor não foi, nem é, uma descrição conclusiva e sem margem para dúvida, e que o depoimento não foi espontâneo, e, na generalidade induzido, determinando respostas, em algumas vezes, do género “sim” e “não”. VII- Convém frisar que estamos a falar de uma criança que à data dos factos tinha nove (9) anos de idade. E, só, quem não convive, com crianças de tão tenra idade, desconhece, que face a perguntas efetuadas a crianças desta idade, as mesmas respondem “sim” e “não”. IX- Pelo que não é de admirar, perante uma situação tão constrangedora, mais ainda, quando se trata de uma criança, é perfeitamente natural que a menor ao ser inquirida, por um juiz, num ambiente por si intimidatório, até para adultos, sobre os factos que o arguido estava indiciado e, que veio a ser condenado, a mesma tivesse respondido “sim” e “não”. X- Quando as crianças, no seu dia a dia, mediante perguntas do quotidiano, respondem com um sim ou não. E isso não significa, que não tenha sido um depoimento ausente de espontaneidade, como na verdade o foi, e muito menos induzido. XI- A doutrina que atribui às crianças tendência para mentir ou para memórias falsas está já ultrapassada pela investigação científica. Com efeito, esta demonstra que as crianças não têm tendência a mentir e que relevam elevadas competências testemunhais e comunicacionais, assim como a capacidade de discernimento superior à que lhes é frequentemente atribuída, percebendo-se a diferença entre a verdade e a mentira, geralmente a partir dos 4 anos. Vários estudos demonstram também que as crianças, tendencialmente, não mentem sobre a ocorrência de situações de abuso, não fantasiam acerca das situações abusivas, nem fabricam esse tipo de acontecimentos. XII- O recorrente alega que a menor foi ouvida em três momentos distintos, instituto de medicina legal (IML), polícia judiciaria (PJ), e Tribunal, e que a menor diz coisas totalmente diferentes, não sabendo em que versão acreditar, ou, se alguma será verdadeira ou invencionada. XIII- A verdade, é que nos três momentos, a criança não diz coisa diferente, tudo o que diz, converge no mesmo sentido, quanto a pessoas, locais e factos. XIV- Ou seja, refere sempre o café, onde ia com o arguido; sabe que o local é ...; refere sempre o amigo EE; sabe que ao regressar a casa passava em ..., refere o ..., e não outro; e, em todos os momentos em que a menor foi ouvida houve proposta de cariz sexual. XV- A criança no IML disse o seguinte: “parou no monte e disse para eu tirar a roupa”; Na Polícia Judiciaria “oh BB tira as cuecas e eu respondi que não e fomos embora”; Em declarações para memória futura “depois parou num coiso, num monte, tipo assim, e disse para tirar as calças, a camisola e eu disse que não…”. XVI- Sendo estas propostas de cariz sexual, de forma livre, deliberada e consciente, feitas no regresso a casa, após ida ao café e, há noite, não durante o dia. XVII- Em ... existe um Parque, porém a menor nunca falou em outro Parque, senão o ..., a memória é precisa, nunca se confundiu, nem disse coisa diferente e nada é inventado. XVIII- A menor refere sempre o episódio que aconteceu no quarto, a mesma quando prestou declarações, foi bem clara, ao dizer ao tribunal, que sentiu puxar-lhe a camisola para cima, que sentiu o pénis a bater nas costas mais que uma vez. XIX- O recorrente transcreve o depoimento prestado pela menor, para memória futura, porém não o transcreve no todo, porém a prova deve ser avaliada no seu todo. XX- Se dúvidas existiam, se era o pénis do recorrente, a bater com força nas costas da menor, essas dúvidas foram dissipadas, aquando do pedido de esclarecimentos à menor por parte da sua defensora, ao que a menor explicou sem qualquer hesitação ou dúvida onde o recorrente tinha as mãos, quando ela sentiu bater nas costas. XXI- O recorrente tinha uma mão na sua testa/cabeça e outra na sua barriga, que estava de costas para recorrente e que sentiu bater-lhe com força, e que era uma coisa dura, e este testemunho não foi sugestionado nem invencionado. XXII- As declarações da menor suportam a generalidade da factualidade atribuída ao recorrente nos referidos contextos situacionais e são corroborados com o depoimento da prima FF, a qual de forma desinteressada, contou ao tribunal o que a prima lhe tinha confidenciado quanto a alguns dos atos contra si perpetrados e à qual pediu segredo. XXIII- Assim como, também encontram suporte no depoimento da psicóloga, GG, que embora no início do seu depoimento manifestou dúvida, sobre a veracidade do relato da criança. XXIV- Contudo, as suas dúvidas manifestaram-se não tanto quanto ao relato da criança, que reconheceu ter mantido com ela uma relação de verdade, mesmo quando a progenitora sugestionava no sentido de não falar a verdade relativamente a aspetos que a progenitora considerava serem menos abonatórios. XXV- A conduta do arguido pareceu à psicólogo GG algo “atípica relativamente ao normal” comportamento de abusadores sexuais de crianças porque, no dizer dela, o arguido “freava” os seus instintos libidinosos pela simples recusa da menor. XXVI- Também foi notório a animosidade que a psicóloga demonstrou ter, para com a mãe da menor. XXVII- Apesar da dúvida demonstrada pela psicóloga GG, a mesma confrontada com as declarações da menor à Polícia Judiciária o que lhe foi lido, acabou por confirmar tais declarações. XXVIII- O mesmo se passou, quando confrontada com as conclusões vertidas no exame de psicologia forense, realizado à menor, nenhum elemento aportou que os pudesse contrariar, acabando por concordar com as conclusões. XXIX- E, aqui, uma vez mais, o recorrente, transcreve parcialmente o depoimento da psicóloga, Dra. GG, ora a prova deve ser analisada num todo e não em meros excertos. XXX- Apesar do arguido, tentar convencer o tribunal, que tudo foi invenção da mãe da menor, para o prejudicar nas visitas ao filho, que tem em comum, com a mãe da menor BB. XXXI- Tentando deste modo beneficiar do princípio in dúbio pro reo, como é seu apanágio. 6. Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso louvando-se nos fundamentos da resposta aludida que reforçou ainda com douta argumentação estribada em oportunas citações doutrinárias e jurisprudenciais. 7. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, respondeu o arguido insistindo na sua tese. 8. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão. ***
II – FUNDAMENTAÇÃO 1. É consabido que, para além das matérias de conhecimento oficioso [v.g. nulidades insanáveis, da sentença ou vícios do art. 410º n.º 2, do citado diploma legal], são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [v. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt]. Assim, na hipótese sub judicio, vista a síntese recursiva, as questões suscitadas são as seguintes: * 2. A fundamentação de facto realizada pelo tribunal a quo, no que ao caso interessa, é a seguinte: (transcrição) A) Factos Provados 1. - BB nasceu a ../../2010 e é filha de AA e de HH. 2. - Entre o dia ../../2016 e o dia 6 de setembro de 2020, AA, mãe da BB, manteve uma relação análoga à dos cônjuges com o arguido, CC. 3. - Durante aquele período, a BB viveu com o arguido e AA, juntamente com DD, filho destes, todos residindo no Caminho ..., ..., ..., .... 4. – Em data concretamente não apurada, mas situada entre janeiro e março de 2020, num fim-de-semana, à noite, quando regressavam a casa, vindos de um estabelecimento de café onde haviam estado em ..., o arguido parou a viatura que conduzia num monte situado em ... e, dirigindo-se à BB, pediu-lhe para tirar a camisola, as calças e as cuecas que a mesma trajava; 5. - Todavia, BB recusou aquela proposta, seguindo o arguido o caminho até casa. 6. - Cerca de um mês depois, antes da hora de jantar e quando regressavam a casa vindos, novamente, do café onde haviam estado momentos antes, o arguido parou o veículo que conduzia junto à Igreja ..., em ..., local com pouco movimento, e, dirigindo-se à BB, pediu-lhe, uma vez mais, para tirar a roupa que usava, mais lhe dizendo que também ele tiraria a sua; 7. Além disso, o arguido pediu ainda à BB para, depois, se sentar no seu colo. 8. Todavia, a BB recusou aquelas propostas e o arguido seguiu o caminho que levavam até casa. 9. - Posteriormente, em data concretamente não apurada, mas situada entre abril de 2020 e o início de setembro de 2020, em casa dos pais do arguido e ao final da manhã, o arguido, vendo a BB a dormir no seu quarto e aproveitando-se de estar em casa sozinho com aquela, deitou-se ao lado da mesma; 10. – De seguida, o arguido aproximou-se dela, baixou as cuecas (“boxers”) que ele trajava, subiu a camisola que BB usava e, estando a menor virada de costas para ele, esfregou o pénis nas costas da menor. 11. - O arguido tinha pleno conhecimento da idade de BB, assim como da relação próxima que tinha com a mesma, filha da sua companheira e com quem vivia, e dos deveres de respeito e cooperação que advinham de tal relação. 12. - O arguido sabia que atuava contra a vontade de BB e que, em todo o caso, face à idade da mesma, nunca poderia manter com ela qualquer relacionamento sexual ou formular qualquer convite de cariz íntimo e sexual, nomeadamente os em cima referidos. 13. - O arguido ao agir como agiu, quis e sabia que, com a sua conduta, atentava contra a autodeterminação sexual da menor BB, podendo vir a afetar o seu livre e sadio desenvolvimento sexual. 14. Não obstante, o arguido atuou nos termos descritos em 4., 6., 7. e 10., o que representou, quis e conseguiu; 15. - Agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente com o fito de satisfazer os seus desejos sexuais. 16. - Sabia serem proibidas as suas condutas. – Factos relativos à reparação da vítima: 17. – Os problemas de enurese e encoprese que a menor BB padece tornaram-se mais recorrentes após os comportamentos perpetrados pelo arguido; 18. – Na sequência dos comportamentos do arguido, a menor BB passou a apresentar um quadro de sofrimento emocional e de tristeza mais gravoso, com prejuízo para a sua vivência diária. 19. - Condições individuais e socioeconómicas: O processo de socialização de CC decorreu junto ao seu agregado de origem, constituído pelos progenitores e uma irmã mais velha 2 anos. O progenitor exercia a atividade profissional de serralheiro mecânico e a progenitora era costureira, sendo a situação económica estável. O ambiente familiar foi avaliado como ajustado, sendo referenciada a progenitora como a figura educativa de referência, num ambiente orientado para a aquisição de adequadas competências pessoais e sociais. CC iniciou o seu percurso escolar com 6 anos, onde se manteve até aos 11 anos de idade, concluindo o 6.º ano de escolaridade, tendo sofrido uma retenção no 6.º ano de escolaridade, por desmotivação. Integrou de imediato o mercado de trabalho, numa fábrica de móveis até aos 20 anos de idade. O arguido foi procurando trabalhos que fossem melhor remunerados, tendo laborado no estrangeiro e aos 27 anos de idade foi trabalhar para a Suíça, país onde já se encontrava a sua irmã que o acolheu. O arguido regressou a Portugal, após cessação do contrato de trabalho, em 2017, e nesta data, manteve a relação afetiva com AA, mãe da menor dos presentes autos, que tinha iniciado em dezembro de 2016. Residia conjuntamente com a companheira, a menor BB e o filho em comum do casal, nascido em 2018, atualmente com sete anos de idade. Residiam numa habitação da companheira, de tipologia T2, com adequadas condições de habitabilidade. O arguido laborava em fábrica de móveis e a companheira era proprietária de um café. Esta relação foi avaliada por ambos como conflituosa e reconhecida no meio social como disfuncional, sendo percetíveis as dificuldades de entendimento do casal pelos elementos da rede de vizinhança. Em 2018 ou 2019 regressou à Suíça, tendo o agregado familiar constituído permanecido em Portugal, e iniciado nova atividade profissional como operário numa fábrica de caixilharia metálica. Residia, no período correspondente aos factos, na Suíça, deslocando-se a Portugal em férias e festas para visitar a companheira e o agregado familiar que constituiu. Após o mês de setembro de 2020, o casal separou-se e CC manteve-se na Suíça, onde já se encontrava a exercer atividade profissional, mantendo contacto com o descendente em comum, quando se desloca a Portugal. Na Suíça, estabeleceu nova relação afetiva com II, de origem helvética, enfermeira de profissão, com quem coabita, tendo atualmente o casal, uma descendente de 6 meses de idade. Ambos avaliam a relação como gratificante, assente no respeito mútuo. A atual companheira avalia o arguido como trabalhador e ajustado na dinâmica familiar. O arguido aufere 4.300€, assumindo como despesas 1.300€ de arrendamento de habitação, 930€ de crédito automóvel e de moto, e 200€ de pensão de alimentos, que se encontra regularizada. O arguido encontra-se socio-profissionalmente inserido na comunidade, mantendo boas relações com os amigos, colegas de trabalho, vizinhos e familiares. 20. - Quanto aos antecedentes criminais resulta: O identificado arguido não possui antecedentes criminais. * B) Factos Não Provados Com relevo para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros que estejam em contradição com os dados como provados. Designadamente, não se provou: a.) – Sem prejuízo do aí descrito, os factos referidos nos pontos 4. a 10., foram ficcionados pela menor BB, após ser sugestionada/orientada pela sua progenitora, assim se associando e tomando partido da mãe nos desentendimentos ocorridos entre esta e o arguido. b.) – Que no período temporal referido nos pontos 2. a 10., o arguido e a mãe da menor tivessem mantido uma mera relação de namoro, sem coabitação. c.) – Sem prejuízo do aí descrito, os factos referidos no ponto 6., ocorreram num local escondido; d.) – Sem prejuízo do aí descrito, nas circunstâncias espácio-temporais referidas no ponto 10., o arguido colocou uma mão na barriga e a outra na cabeça da menor BB. e.) – Após o acontecimento descrito no ponto 10., ainda no mesmo período temporal, o arguido, também em casa dos seus progenitores e numa ocasião em que estava sozinho com BB, voltou a abeirar-se na mesma, quando esta estava deitada na cama no quarto da mãe e do arguido a ver televisão, pediu para a mesma tirar a roupa, o que aquela recusou, virando-se de costas para o mesmo; de seguida, o arguido subiu a parte de cima da roupa que BB usava e esfregou com o seu pénis ereto e desnudo nas costas da menina. * C) Motivação O Tribunal formou a sua convicção na análise conjunta e crítica da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, de acordo com a sua livre convicção e as regras da experiência comum como impõe o art. 127º do CPP. Não olvidando que foram objeto de ponderação, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova e sem postergar o princípio “in dubio pro reo”, o acervo dos elementos infra descritos que contribuíram para formar, para além de qualquer dúvida razoável, a convicção deste Tribunal. Vejamos, então, o âmbito dos elementos probatórios reunidos nos autos. Primeiramente, o arguido CC, prestando declarações, começou por refutar a prática dos factos que lhe são imputados pela acusação pública, que refere terem surgido num contexto de retaliação por parte da progenitora da ofendida, sua ex-companheira, não passando, senão, de mais uma tentativa de o afastar e impedir dos normais contactos com o seu filho DD. Nessa medida, afirmou ter mantido uma relação com a mãe da ofendida, que perdurou desde 2016 até junho ou julho de 2020. Sendo que, após essa data, não teve qualquer outro contacto pessoal com a menor. E, contextualizando a relação e os contactos anteriormente tidos com a menor BB, reafirmou que sempre procurou cuidar da mesma, inclusivamente tentou protegê-la em determinadas situações em que a própria mãe o não fazia. De outro modo, confirmou que, por vezes, saía sozinho com a menor, deslocando-se a um café próximo da residência, onde permaneciam até cerca das 22:00 horas, sempre que a mesma manifestava essa pretensão, ali convivendo com alguns dos seus amigos e respetivos filhos. Outras ocasiões existiram em que a menor frequentou a casa dos seus pais, embora nunca ali tivesse pernoitado ou sequer permanecido sem a presença da sua progenitora. Em síntese, apesar de não encontrar quaisquer razões para a alegada ficção da presente denúncia por parte da menor, entende que a mesma foi para tal sugestionada e orquestrada pela mãe, com intuito de o prejudicar e impedir os contactos com o filho que têm em comum. Por sua vez, AA, mãe da menor BB, assegurou ter mantido com o arguido uma relação análoga à dos cônjuges, inclusivamente no período posterior ao ano de 2018 em que o mesmo se encontrava a trabalhar no estrangeiro, embora se deslocasse frequentemente a Portugal onde permanecia na sua habitação, conjuntamente com a menor BB e o filho DD. Referiu que, em algumas ocasiões, era a própria quem incentivava a menor a deslocar-se conjuntamente com o arguido ao dito café, pois desse modo garantia que o mesmo chegava cedo a casa e que não consumia bebidas alcoólicas em excesso. Sendo certo que nunca denotou qualquer comportamento desadequado ou abusivo do arguido para com a sua filha, no período de vivência comum. Todavia, reconhece, agora, que a menor passou a apresentar um quadro de comportamentos estranhos – choro constante, cortes inusitados dos cabelos e frequentes situações em que urinava na cama, que se agravaram nos últimos anos de vida em comum com o arguido – que a alertaram e motivaram a procurar auxilio de uma psicóloga, na tentativa de a estabilizar emocionalmente. Foi, então, que através de um familiar direto, tomou conhecimento do relato da menor e que algo de errado teria ocorrido no relacionamento desta com o arguido. Logo aí procurou ajuda da psicóloga da menor, a quem a mesma relatou o sucedido, sem que até esse momento tivesse procurado abordar o referido assunto com a sua filha. Sendo essa a sequência temporal que levou a psicóloga a comunicar o sucedido às autoridades policiais, tendo posteriormente tido conhecimento dos episódios ocorridos e dos respetivos contornos da denúncia apresentada. Já numa perspetiva dos acontecimentos passados, confirmou que a menor nunca dormiu em casa dos pais do arguido, ainda que, por vezes, ficasse sozinha no quarto com aquele a ver televisão enquanto a mesma ia às compras, na medida em que nunca equacionou a possibilidade de algo de errado acontecer ou tampouco que o arguido tivesse comportamentos desadequados com a sua filha, ao contrário do que sucedia consigo, atentos os maus tratos de que foi vítima. Ademais, refutou expressamente o uso da presente denúncia no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais relativo ao filho que tem em comum com o arguido, uma vez que todas as modificações verificadas quanto ao direito de visitas foram originadas por sucessivos incumprimentos e comportamentos desajustados do progenitor. Referenciando, também, que o término do relacionamento com o arguido foi por sua iniciativa, face aos maus tratos de que era vítima e em momento muito anterior ao conhecimento dos factos em causa. Por fim, referiu que hoje em dia a sua filha se encontra estabilizada emocionalmente, embora se apresente como uma criança triste, revelando determinados problemas comportamentais. Já a testemunha FF, prima da ofendida, de 13 anos de idade, começou por afirmar ter uma relação de bastante proximidade com a menor BB, sendo ambas confidentes uma da outra. E, pese embora as dificuldades manifestadas em relatar o sucedido, asseverou que a menor lhe confidenciou pelo menos duas situações ocorridas em data próxima, em que o arguido lhe teria pedido para se sentar no seu colo quando ambos se encontravam no carro e, em momento posterior, em casa dos pais daquele, teria sentido o seu pénis a “raspar” no seu corpo, quando ambos se encontravam deitados na cama. Acrescentando que o relato da menor lhe pareceu espontâneo e que a mesma chegou a pormenorizar os acontecimentos vividos, pedindo-lhe, na data, para guardar segredo e não contar a ninguém. Daí que, apenas em momento posterior e após se ter zangado com a BB é que contou à sua mãe e sua avó o que a menor lhe havia confidenciado. Soube também referir que os seus familiares imediatamente alertaram a mãe da menor para o sucedido, e logo esta procurou encaminhar ambas para uma psicóloga, por forma a avaliar o ocorrido. Por sua vez, a psicóloga Dra. GG, começou por sublinhar as razões e o contexto do acompanhamento que realizou junto da menor BB, desde meados de fevereiro de 2020, até abril de 2023. Nesse âmbito, mencionou que em momento anterior ao relato que deu origem à presente denúncia, o acompanhamento da menor foi motivado pelas dificuldades de adaptação à escola, existindo outras queixas relacionadas com a eventual prática de bullying e outras ainda decorrentes da aparente escalada de violência que a menor assistia no seio familiar. Salientou também, com acrescida relevância para o que abaixo se irá referir, que, no âmbito das consultas que realizou, ficou sempre convencida que a menor lhe contava a verdade, mesmo em situações em que era orientada pela progenitora para encobrir certos acontecimentos relacionados com esta, tais como, se estava ou não a trabalhar e se tinha ou não companheiro. Por isso mesmo, e sobretudo porque valorou como credível o relato que a menor lhe fez sobre os quatros episódios vivenciados, decidiu de imediato apresentar queixa às autoridades policiais. Por seu turno, as testemunhas JJ e KK, pais do arguido, para além de descreverem como “tóxico” e conflituoso o relacionamento do filho com a mãe da menor BB, referiram que a mesma somente ficou duas ou três vezes em casa deles a ver televisão e sempre acompanhada pela mãe do arguido. Por tais razões, entendem que a presente denúncia é falsa, sendo inventada pela mãe da menor, como forma de retaliação contra o arguido, em virtude do novo relacionamento que o mesmo mantém. De todo o modo, além de ter sido notório o comprometimento evidenciado pelos progenitores do arguido e a intenção desculpabilizadora de qualquer conduta daquele, mostraram-se discordantes quantos aos alegados comentários feitos pela mãe da BB em público, tal como em relação aos hábitos de consumo de álcool do filho. A testemunha LL, irmã do arguido, assegurou que o seu irmão sempre manteve um relacionamento afetuoso e de respeito para com a menor, tendo presenciado diretamente tal circunstância, quando no ano de 2019 (data anterior aos factos em análise) aquela deslocou-se com o irmão e a mãe à Suíça. Por este facto e em razão da personalidade obsessiva da mãe da menor, entende que os factos denunciados são inverídicos e que apenas surgiram porque a mesma não aceitou a término do relacionamento com o arguido. Já a testemunha MM, não revelou possuir quaisquer conhecimentos sobre a factualidade em apreciação, nem sequer ouviu qualquer comentário da mãe da menor sobre o assunto. Por seu lado, a testemunha NN, prima do arguido, aludiu apenas a um diálogo ocorrido com a mãe da menor, onde a mesma lhe terá referenciado que a sua filha teria sido vítima de abusos por parte do arguido, comentário esse que, segundo a própria, foi efetuado de modo ultrajante e com o único propósito de o rebaixar. Seguidamente, foram recolhidos diversos elementos documentais referentes ao processo de regulação das responsabilidades parentais e respetivos apensos, do menor DD, de modo a analisar a sua tramitação e o contexto temporal de algumas das alterações verificadas. Sendo que, da sua análise, não antevemos a existência de um qualquer propósito infundado da progenitora em obter a modificação dos termos regulados, na medida em que os pedidos de alteração foram consequência de alguns incumprimentos ou comportamentos do arguido (em 07/09/2020 e 15/07/2021), e os respetivos incidentes findaram por acordo dos progenitores. Depreendendo-se, igualmente, que a decisão de suspensão dos convívios do arguido com o filho DD ocorreu por iniciativa do Tribunal (após conhecimento da presente denúncia e em sentido contrário à posição firmada pelo Ministério Público), como forma de acautelar a situação de perigo a que o menor poderia estar sujeito. Aqui chegados, resta-nos atentar no depoimento da menor BB, prestado para memória futura, que revelou um relato credível, coerente e desinteressado, no âmbito do qual descreveu o contexto do seu relacionamento com o arguido e as condutas que este desenvolveu sobre a sua pessoa, o que fez de forma espontânea e pormenorizada. Na verdade, a mesma descreveu os comportamentos que o arguido encetou sobre si, o modo como os desenvolveu e as circunstâncias espácio-temporais em que ocorreram. Salientando-se que a menor reportou diretamente três dos episódios denunciados: um dos quais envolvendo uma conversa num local ermo, dizendo-lhe aquele para tirar a roupa, o que a mesma recusou; um segundo episódio em que o arguido lhe pediu novamente para tirar a roupa e sentar-se ao seu colo, quando circulavam de carro, que ela voltou a recusar; e uma terceira situação em que o arguido “esfregou” com firmeza o pénis nas suas costas, quando ambos se encontravam deitados na cama, em casa dos pais deste. E sendo certo que tal relato não reflete diretamente todos os episódios denunciados à psicóloga e às autoridades, a verdade é que a mesma expressamente referiu que nenhum outro comportamento idêntico ocorreu em momento posterior. Acresce considerar, ainda, que a nossa valoração sobre a autenticidade do relato da menor é suportada nas conclusões vertidas no exame de psicologia forense a que a mesma foi sujeita (fls. 197 a 203), de onde resulta: “com base no processo avaliativo efetuado e nos dados clínicos daí decorrentes, é de admitir que a menor apresenta estruturas e processos cognitivos e afetivos que lhe permitem fazer a distinção entre factos reais e imaginados e/ou fantasiados, distinguir clara e criticamente (aqui estamos a incluir o desenvolvimento moral e o juízo crítico como analisadores) a verdade da mentira, bem como a capacidade de ajuizar situações e compreender normas sociais (inteligência social). A análise e integração dos dados clínicos obtidos sugerem que a examinada apresentou um relato congruente, espontâneo e ajustado à sua idade e nível desenvolvimental. O mesmo foi acompanhado de ressonância emocional compatível com as situações descritas. Não foram observados indicadores sugestivos de o mesmo ser resultado da sua imaginação e/ou interferência de terceiros. Não foram observados quaisquer ganhos secundários. A examinada apresenta, ainda, um quadro sintomatológico compatível com a experienciação de uma situação potencialmente traumática admitindo-se que possa ser resultado dos alegados abusos denunciados. O quadro sintomatológico apresentado causa grave sofrimento e prejuízo na vida desta criança. Sugere-se, vivamente, que a menor beneficie de acompanhamento psicológico especializado”. Ora, a análise qualitativa das declarações prestadas pela menor, em conjugação com as conclusões decorrentes da sua observação clínica, o teor do depoimento de FF e de GG (psicóloga) permite-nos corroborar a credibilidade do seu depoimento, sem que se induza a considerar que, na sua substância, o que narrou tivesse sido sugestionado por terceiro ou mesmo ficcionado pela própria, tanto mais que não prognosticamos a existência de qualquer móbil de ressentimento para com o arguido. Isto posto, é consabido que, em processos desta natureza, as declarações da vítima devem merecer a devida ponderação e acolhimento por parte do julgador, sendo de atender – com a devida temperança e cuidado – a um relato credível dos ofendidos, atribuindo-lhe, por essa via, um especial relevo probatório. Não olvidando que, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do CPP, um único depoimento, mesmo sendo o da própria vítima, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorra: a) ausência de incredibilidade subjetiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objetivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187 e Ac. da Relação de Guimarães de 07.12.2018, processo 40/17.0PBCHV.G1, in http://www.dgsi.pt). Pois bem, é precisamente o caso em análise, onde as declarações da vítima suportam a generalidade da factualidade atribuída ao arguido nos referidos contextos situacionais e são corroboradas pelo depoimento da sua prima FF, a qual, de forma desinteressada, atestou o que aquela lhe confidenciou quanto a alguns dos atos contra si perpetrados. E também encontram suporte no depoimento de GG, como se viu. Sendo de notar, igualmente, que nos termos do relatório pericial de psicologia forense, as declarações da vítima mostraram-se perfeitamente credíveis, no quadro de um relato congruente, espontâneo e ajustado à sua idade, onde não foram observados ganhos secundários, nem indicadores sugestivos de ser resultado da sua imaginação ou de uma interferência de terceiro. De resto, importará evidenciar que o relato da menor é identicamente suportado por determinados fatores conexos, resultantes das regras da experiência comum, que credibilizam o seu depoimento e infirmam o alegado móbil de ressentimento invocado pelo arguido e seus familiares. Senão vejamos: - Em primeiro lugar, a menor começou por contar os episódios de que foi vítima à sua prima, com idade próxima e sua confidente; - Foi esta prima, e não a menor, que deu conta do sucedido aos seus familiares diretos; - Foram esses familiares, e não a menor, quem contou o sucedido à sua progenitora; - Existia uma relação de proximidade do arguido com a menor que lhe permitia privar sozinho com a mesma no dito café e em casa dos seus pais; - Do seu relato, a menor, de forma desinteressada, referenciou a presença de um amigo do arguido, que identificou, pormenorizando os momentos e os locais onde se encontrou sozinha com o arguido; - A separação do arguido e da progenitora ocorreu em momento anterior ao relato da menor à prima; - O processo de regulação das responsabilidades do filho do arguido iniciou-se e teve diversos incidentes motivados por incumprimentos e comportamentos desajustados do arguido. Como tal, ante a contundência dos referidos elementos probatórios e fatores conexos, postergou-se a negação dos factos efetuada pelo arguido, o qual pretendeu atribuir um caráter de retaliação/vingança à denúncia, que não encontra sustentação, tanto mais que o presente processo certamente não originaria uma eventual reconciliação com a mãe da menor, antes provocaria o término definitivo da relação. Mais se valorou de modo conjugado o teor dos elementos documentais constantes de fls. 282, 283, 368 a 491 e 495 a 520 dos autos. Por conseguinte, foi com base na interligação dos referidos meios probatórios e fatores conexos, que o Tribunal formou a convicção segura sobre a realidade vertida e, por tal razão, considerou-se provada a matéria de facto supratranscrita. Não se tente argumentar que GG, psicóloga, manifestou dúvidas quanto à veracidade do relato da menor e que, por isso — e até considerando as suas especiais habilitações e a relação de proximidade/confiança — tal depoimento haveria de suportar um juízo de dúvida sobre os factos imputados ao arguido. É certo, não se ignora, que a dado momento do seu depoimento, GG manifestou dúvidas sobre a veracidade do relato da criança (BB). Contudo, as suas dúvidas manifestaram-se não tanto quanto ao relato da BB — que reconheceu ter mantido com ela uma relação de verdade, mesmo quando a mãe dela a sugestionava ou mesmo solicitava no sentido de não falar verdade relativamente a aspetos que (a mãe) considerava serem “menos abonatórios” (por exemplo, porque poderiam dar a ideia de alguma “promiscuidade”) — mas essencialmente porque a conduta do arguido lhe pareceu algo “atípica” relativamente ao “normal” comportamento de abusadores sexuais de crianças porque, no dizer dela, o arguido “freava” os seus instintos libidinosos pela simples recusa da menor. E, em todo o caso, foi notório que esta sua “dúvida” também surgiu num quadro de alguma animosidade para com a mãe da BB, por força de comportamentos evidenciados por esta última (progenitora da BB) posteriores à denúncia dos factos que determinaram o término do acompanhamento que prestava à menor. Aliás, deve mesmo sublinhar-se, neste ponto em concreto, que a citada testemunha nunca antes havia manifestado tais dúvidas relativamente aos relatos da BB e de tal modo estes lhes pareceram verosímeis/credíveis que deles deu, como devia, conhecimento às autoridades e prestou o depoimento à Polícia Judiciária que se mostra a fls. 95 a 99 — o qual lhe foi lido e, com ele confrontada, acabou por o confirmar. Ademais, o que é relevante, confrontada com as conclusões vertidas no exame de psicologia forense realizado à menor, nenhum elemento aportou que os pudesse contrariar, acabando, até, por reconhecer aquelas conclusões como boas. Já os elementos ajuizados como provados e relativos aos elementos intelectual, emocional e volitivo do dolo concernente às condutas do arguido foram considerados assentes a partir do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum. Por seu lado, os factos referentes aos prejuízos/danos sofridos pela vítima tiveram como suporte probatório as declarações da progenitora, o depoimento da identificada psicóloga da menor e o exame psicológico forense, valorados nos termos supra expostos. A situação socioeconómica do arguido resultou do teor do relatório social junto a fls. 337 a 399 elaborado pela competente equipa da DGRSP, elemento probatório esse que não tendo sido posto em causa por qualquer outro, se mostra idóneo para prova dos factos ali atestados. A ausência de antecedentes criminais por parte do arguido, proveio da análise do certificado de registo criminal junto a fls. 336v. Por último, os factos considerados como não provados resultaram da insuficiência de prova a seu respeito, uma vez que, pese embora a menor BB tivesse relatado à psicóloga e às autoridades uma outra situação para além das que foram consideradas como provadas, o certo é que a mesma, em contexto de declarações para memória futura – onde o seu depoimento se torna mais fiável, estando sujeito ao contraditório -, expressamente referiu que nenhum outro episódio idêntico ocorreu. * 3. Apreciação do mérito 3.1 Do recurso em matéria de facto 3.1.1 Breve enquadramento Os Tribunais da Relação podem conhecer de facto [art. 428º, do Cód. Proc. Penal] numa dupla vertente: §1ª Vícios documentados no texto da própria decisão, de harmonia com o preceituado no art. 410º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal [erros da decisão cognoscíveis a requerimento do interessado ou oficiosamente], com uma intervenção restrita do tribunal ad quem, já que apenas admissível no tocante às patologias catalogadas nas alíneas a) a c), do citado preceito legal [insuficiência para a decisão da matéria de facto, contradição insanável da fundamentação e desta com a decisão e erro notório na apreciação da prova] e evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem; e §2ª Impugnação, nos precisos termos do n.º 3 do art. 412º, do mesmo diploma legal [erros de julgamento dependentes de requerimento prévio do interessado], ou seja quando o recorrente especifique os concretos pontos de facto da discórdia, as provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas, acrescendo ainda o ónus, tendo havido gravação, das duas primeiras especificações deverem ser feitas por referência à acta e com indicação concreta [ou transcrição se a acta for omissa – v. Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012] das passagens em que se funda a impugnação, consoante decorre do n.º 4, do mesmo normativo legal. Aqui, o âmbito da intervenção é bem mais extenso visto ser admissível a reapreciação da prova produzida e documentada em audiência, embora sempre balizada pelos pontos questionados pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de impugnação especificada legalmente imposto e já supra aludido, sendo esta a via escolhida pelo recorrente. In casu, o recorrente optou pela última via, não tendo assinalado qualquer anomalia que se patenteasse do texto decisório susceptível de subsunção aos vícios decisórios. Assim, atento o exposto e acautelando a possibilidade de apreciação oficiosa, ao abrigo do poder de revista alargada que a este tribunal assiste, importa anotar que cotejando o teor da decisão recorrida, nos moldes legalmente estatuídos, ou seja nos moldes em que foi proferida, esta não patenteia hiatos factuais que devessem ter sido colmatados, contradições materiais insanáveis ou erros de lógica e inobservância do que aconselha o senso comum e normalidade do acontecer. Consequentemente, não evidencia qualquer dos vícios da previsão legal do art. 410º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, carecido de reparação oficiosa. Assentes estes pressupostos, cumpre descer ao caso concreto. * 3.1.2 Dos Erros de Julgamento É consabido que o recurso tem em vista o estrito controlo da observância da legalidade na concretização do acto de julgar e decidir de outro órgão judiciário, não visando o cotejo de diferentes sensibilidades sobre a questão controvertida, funcionando antes como remédio quanto a questões concretamente suscitadas e, eventualmente, carecidas de reparação por enfermarem de uma qualquer desconformidade relevante. Daí que, embora a matéria de facto possa ser sindicada por requerimento do interessado, como já supra referido, tal depende do estrito cumprimento dos específicos requisitos previstos no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do Cód. Proc. Penal, cujo fundamento assenta precisamente no modo como o recurso é entendido e foi consagrado no nosso sistema processual penal. Em síntese, está em causa apurar se os meios probatórios sindicados sustentam a convicção adquirida pelo tribunal a quo, de harmonia e em coerência com os princípios que regem a apreciação da prova, e não de obter uma nova convicção do tribunal ad quem assente na apreciação da globalidade da prova produzida, mas aqui sem prejuízo da possibilidade de audição ou visualização de outras passagens (para além das indicadas) que o tribunal ad quem considere relevantes para a descoberta da verdade, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 412º, n.º 6, do Cód. Proc. Penal. In casu, o recorrente considera que se mostram mal julgados os pontos 2 a 11, 17 e 18 da matéria de facto provada, sustentando que tal factualidade devia ter sido elencada como não provada. Para tanto e no essencial alega que a menor ofendida sustentou várias versões dos acontecimentos, as declarações da assistente AA são parciais e determinadas pelo interesse de dificultar os contactos do arguido com o filho de ambos e a psicóloga que acompanhava a primeira manifestou dúvidas quanto à veracidade do relato daquela. Por seu turno, o Ministério Público e a assistente AA sustentam que tal não corresponde à realidade e que o relato dos acontecimentos pela BB é consistente e verdadeiro tal como concluiu a perícia a que foi submetida. Vejamos, então. Delimitando o quadro em que nos movemos importa, desde já, estabelecer o seguinte: §1º No âmbito do recurso apresentado invoca o arguido CC o depoimento que a menor ofendida BB prestou na Polícia Judiciária. E, também o Ministério Público e a assistente AA aludem a tal acto. Todavia, cotejadas as actas da audiência de julgamento constata-se que o único depoimento prestado em sede de inquérito, perante a Polícia Judiciária, que foi lido no decurso do acto em causa, de harmonia com os ditames legais do art. 356º, n.ºs 2, al. b) e 5, do Cód. Proc. Penal, foi o da testemunha GG – cfr. acta de 20/11/2023, a fls. 360 a 362 do processo físico. Consequentemente e por força do disposto no art. 355º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, esse referenciado depoimento da menor não será atendido visto que a sua valoração é, in casu, proibida. §2º Consoante decorre do anteriormente exposto, a ofendida BB foi submetida a perícia psicológica no âmbito da qual e entre o mais se concluiu que “… a menor apresenta estruturas e processos cognitivos e afectivos que lhe permitem fazer a distinção entre factos reais e imaginados e/ou fantasiados, distinguir clara e criticamente (aqui estamos a incluir o desenvolvimento moral e o juízo crítico como analisadores) a verdade da mentira, bem como a capacidade de ajuizar situações e compreender normas sociais (inteligência social) A análise e integração dos dados clínicos obtidos sugerem que a examinada apresentou um relato congruente, espontâneo e ajustado à sua idade e nível desenvolvimental. O mesmo foi acompanhado de ressonância emocional compatível com as situações descritas. Não foram observados indicadores sugestivos de o mesmo ser resultado da sua imaginação e/ou interferência de terceiros. Não foram observados quaisquer ganhos secundários.” De harmonia com a previsão do art. 163º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador”, constituindo uma das excepções ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º, do mesmo diploma legal. Quer isto dizer que juízo técnico, científico ou artístico inerente a esse meio de prova, apresenta um valor presuntivamente pleno – ou, como determina o art. 371.º do Cód. Civil, faz prova dos factos atestados com base nas percepções da entidade documentadora – pelo que, para contrariar esta valoração, o julgador terá que fundamentar a divergência com argumentos técnicos ou científicos equiparados aos dos peritos, isto é, fazendo uma crítica da mesma natureza, material e científica. Porém, não se integram em tal critério os juízos de probabilidade ou meramente opinativos, pelo que não se pode equiparar a perícia de avaliação psicológica de menor que incide sobre a credibilidade do depoimento deste a uma qualquer outra perícia. É que o juízo de credibilidade dos depoimentos das testemunhas é tarefa própria e indeclinável do juiz, amparado pelos princípios da imediação e oralidade e pelas regras de experiência e normalidade de acontecer. Assim, o juízo pericial opinativo, constituindo um subsídio importante para a valoração da prova sobre que incide não pode, porém, substituir ou suplantar o juízo próprio e característico da função judicial. Não pode, em suma, transferir-se para o perito (que, aliás, emite a sua opinião sem recurso a elementos atinentes ao contraditório só possível em audiência de julgamento) aquilo que é inato à função judicial. A avaliação psicológica da menor BB encontra fundamento na previsão do art. 131º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, onde se consagrou que «Tratando-se de depoimento de menor de 18 anos em crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, pode ter lugar perícia sobre a personalidade». E a sua finalidade é simples e está expressa no n.º 2, do mesmo preceito legal: verificar «a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso for necessário para avaliar da sua credibilidade», o que não significa que tal avaliação tenha como objectivo determinar se o examinando disse ou não a verdade quando prestou declarações. Desde logo pela já adiantada razão de que tal desiderato se constitui como tarefa fundamental do juiz e depois porque a cientificidade muito limitada e instável da psicologia não lhe permite afiançar que quem quer que seja fala verdade. A avaliação, constitui, pois, um meio auxiliar de que o juiz se serve ou pode servir para melhor ajuizar sobre a aptidão para prestar testemunho, considerando as suas características psicológicas e da personalidade, mas já não para aferir da credibilidade do seu depoimento, na versão que apresenta dos factos. E, “a circunstância de determinado documento estar subscrito por quem pode ser perito e estar encimado com a denominação «relatório pericial», não o torna, só por isso, em juízo pericial. (…) A concreta observação psicológica, sendo um instrumento válido em avaliação psicológica, conjugando testes, mais ou menos aceites, ou mesmo consensuais, na comunidade científica desta área no presente momento de conhecimento, com uma entrevista onde a menor forneceu um depoimento, o certo é que não pode ascender à categoria de exame pericial, pois não deixa, a concreta observação em causa e nessa parte, de ter uma componente «testemunhal». (…) A finalidade da avaliação psicológica levada a cabo era saber se a menor tinha aptidão mental para prestar depoimento. E a isso se devia ter limitado. (…). Concluímos pois que um «Relatório de perícia psicológico-forense» na parte em que se limita a veicular as conclusões e juízos de valor emitidos pela perita derivados do depoimento que ouviu a uma menor não constitui prova pericial, pois não é um juízo técnico ou científico inerente à prova testemunhal, pelo que não pode ser atendido como meio de prova pelo tribunal”[5]. Resumindo e concluindo: A tarefa do psicólogo incide sobre a capacidade física e psicológica da menor para prestar depoimento, enquanto a credibilidade deste, no confronto com as demais provas produzidas e princípios que regem nesta sede, de apreciação da prova, é desígnio do juiz. * Apreciação. 1. Pontos 2 e 3 dos factos provados: O arguido CC, aqui recorrente, questiona a classificação do seu relacionamento com a assistente AA como análogo à dos cônjuges e o facto de ter vivido com esta, com a menor BB e com o filho de ambos, DD, no Caminho ..., ..., ..., .... O tribunal a quo estribou-se nas declarações da assistente referindo que “assegurou ter mantido com o arguido uma relação análoga à dos cônjuges, inclusivamente no período posterior ao ano de 2018 em que o arguido se encontrava a trabalhar no estrangeiro, embora se deslocasse frequentemente a Portugal onde permanecia na sua habitação, conjuntamente com a menor BB e o filho DD”. Todavia, ouvidas as declarações da assistente facilmente se constata que assiste razão ao recorrente já que a mesma afirma claramente que nunca viveram juntos. Na verdade, começando por dizer que teve uma relação com ele - que nem sequer conseguiu localizar bem no tempo sem ajuda do tribunal que fez as perguntas e deu as respostas - depois de uma pergunta explicativa [“O CC está com a sr.ª a viver como se fossem um casal entre 2016 até à altura em que se separam em 2020. Foi na altura para a Suíça… Até ali tiveram uma relação normal…”] da Sr.ª Advogada acaba por dizer que não. Adiantando “Nós nunca vivemos juntos. A nossa relação foi ele lá eu cá. Ele arranjava uma tinha outra…Aquilo não era uma relação”. E diz depois “sim” a mais uma pergunta com a resposta implícita de que se quando estavam juntos e bem era ou não verdade que ele passava muito tempo na sua casa, sem qualquer outra explicação que permita saber qual seria a medida desse “muito tempo”. Mais refere que, nessas ocasiões, a BB também passava muito tempo em casa do pai não ficando com eles – v. segmento da gravação a partir de 43:57. De todo o modo, no mesmo sentido vão as declarações do arguido CC que diz que vivia em casa dos pais, aí tendo a sua roupa. Com a AA ficava lá uma semana, outra já não ficava lá a dormir. As contas era a AA que pagava. Quando o DD nasceu e ela ficou em casa ele ajudava comprando o que era preciso mas o contacto foi sempre irregular. Para ver o filho ele tinha que gerir a situação porque senão ela não deixava. Ambos tiveram relacionamentos com outras pessoas durante a relação que mantiveram entre 2016 e 2020[6] com algumas separações pelo meio – v. segmentos da gravação de 53:47 a 54:45 e 55:08 a 56:45. Por conseguinte, o que daqui se extrai é que arguido e assistente mantiveram um relacionamento irregular, de natureza amorosa e sexual, do qual nasceu um filho, tendo o arguido CC dormido e ficado em casa dela em determinadas ocasiões, por vezes, também na companhia do filho de ambos e da filha dela, a menor BB o que, claramente, não atinge a densificação de “coabitação análoga à dos cônjuges”, de ambos em conjunto com os menores DD e BB, até porque este é um conceito jurídico que teria que ser integrado por factos que não foram alegados nem provados. 2. Ponto 6 – “local com pouco movimento” Ponto 9 – “ao final da manhã” Invoca o recorrente que desconhece em que se baseia o tribunal a quo para as referências em causa já que nenhuma prova foi produzida nesse sentido. Também aqui lhe assiste razão. A menor BB refere que as paragens do veículo foram feitas no percurso normal para casa da mãe dela, sendo uma delas num monte ou estrada com árvores em ... e outra próximo da Igreja ..., daí sendo impossível extrair a conclusão de que algum deles fosse local de pouco movimento, com a consequente eliminação de tal expressão. Relativamente à situação restante, a menor BB referiu que o arguido chegou a casa dos pais, de manhã, cerca das 10 horas, quando estes e a mãe dela se preparavam para ir fazer compras para o almoço, o que fizeram de seguida, sucedendo, então, a factualidade vertida nos pontos 9 e 10. Consequentemente, apenas pode dizer-se que os factos aconteceram de manhã, cerca das 10 horas e não no final da manhã. 3. Quanto ao mais: a) Os presentes autos foram instaurados com base em denúncia apresentada por GG, psicóloga que, à data e desde Fevereiro de 2021 – e não 2020 como se refere na decisão recorrida -, acompanhava a menor BB, mas determinada pela mãe desta que demandou consulta e exigiu a comunicação às autoridades pela mesma, segundo disse por indicação e conselho de advogada, e que aquela acabou por aceitar depois de ouvir a menor - v., auto de notícia de fls. 5 verso a 7, informação de fls. 57/58 do traslado e depoimento da aludida GG nos segmentos 01:30 a 02:03, 05:17 a 06:15 e 49:55 a 50:27 da gravação. b) De acordo com a narrativa que ouviu da menor BB denunciou às autoridades a ocorrência de 4 episódios de eventuais abusos sexuais de criança perpetrados pelo então companheiro da mãe da menor. A saber: - O arguido CC foi com a menor BB a um café denominado “...” em ... e no regresso parou o veículo num local ermo (monte) e pediu a esta que tirasse as suas cuecas, ao que a mesma se negou. O arguido, nessa ocasião, também aproximou a face da vagina da vítima, tendo parado os seus actos e regressado a casa; - O arguido convidou a menor para ir com ele e um amigo de nome EE ao referido café e, no regresso, após deixar o amigo em casa, voltou a parar em local ermo (junto ao ...) e disse-lhe para retirar a roupa e ir para cima dele, ao que a ofendida respondeu que não e então ele seguiu caminho para casa; - Num momento a sós em casa dos pais do arguido CC, quando a mãe da BB teve que se ausentar, este foi ter com ela e segundo as palavras da ofendida ele “deitou-se ao meu lado na cama e senti algo duro no rabiosque e depois senti com mais força” onde percebeu que era a coisa dele. O arguido estava de boxers tendo baixado os mesmos pois ela sentiu a pele dele e fez de conta que estava a ver televisão e depois ele parou e saiu do quarto; - O arguido aproveitou o facto de estar sozinho com a menor BB e foi ter com ela ao quarto tendo-lhe pedido que retirasse a roupa. Ela não acatou e virou-se para o lado, tendo o denunciado baixado as calças do pijama dela e esfregado o pénis na vítima tendo abandonado o quarto posteriormente pois pensou ter chegado alguém à residência – v. auto de denúncia mencionado e depoimento da testemunha GG no segmento 10.03 a 18:17. c) No âmbito da avaliação psicológica a que foi submetida e de acordo com o relatório junto a fls. 197 a 204, a menor BB aludiu aos seguintes 3 episódios: Ê A primeira vez estava no café com o arguido e o amigo dele, o EE, passaram em casa deste e deram-lhe boleia. Ele tinha o carro dele no café e depois foi para casa no carro dele. Era de noite. Ele[7] ia a conduzir e eu ia ao lado. Depois ele parou no monte e disse para eu tirar a roupa. Eu não tirei e ele não fez mais nada, Chegamos a casa e ele disse: então agora tira a roupa. E eu disse: Não. Eu estava de chinelos, abri a porta e fugi. Até deixei os chinelos no carro dele. Ele estava muito bêbado. Ê Depois ele foi para a Suíça e, quando veio, aconteceu a 2ª vez. Ele foi para casa da mãe dele e foi buscar a minha mãe para irem ao restaurante comer. Fomos ao restaurante. Ele levou a minha mãe a casa e disse para eu ir ao café com ele. Ao vir para casa ainda era dia, foi de tarde, mais ou menos à hora do lanche. Ao vir para casa perto do ..., ele disse para tirar a roupa e me sentar no colo dele que ele também ia tirar a roupa. Nesse dia não estava bêbado. Eu disse que não fazia e não aconteceu mais nada. Fomos para casa e eu não contei nada a ninguém. Ê Ele foi outra vez para a Suíça e depois veio outra vez para Portugal. Eu e a minha mãe estávamos na casa da mãe dele. Era um quarto que não ia lá ninguém. Tinha arrumos e isso. Quando eu ia lá, para não dormir no meio deles, dormia lá. Esse quarto tinha uma cama. Era de tarde. A minha mãe e a mãe dele tiveram que ir à loja buscar coisas para comer. Fui para o quarto dele ver televisão. Eu pensava que ele estava a dormir, ou pelo menos fingia que estava a dormir. Ele estava vestido. Depois ele virou-se para o meu lado e senti alguma coisa nas minhas costas. Depois senti de mais de força (referindo-se ao órgão sexual do denunciado). Verbalizou também: Eu estava de top e calções e ele estava a esfregar o pénis dele nas minhas costas. Depois senti ele a fazer com mais força. Depois a mãe dele e a minha chegaram e ele parou. Depois disso nunca mais aconteceu nada. Eu estava deitada de lado a ver televisão. Ele estava virado para mim. Nas minhas costas, aqui à beira do rabo. Por cima do rabo. Referiu também ter contado à prima o que se passava cerca de duas, três semanas um mês depois e um dia elas zangaram-se a FF disse que ia contar o meu segredo à frente da minha madrinha (OO, mãe da FF). Contei-lhe e depois chegou o meu padrinho (PP) e ela contou-lhe. d) Ouvida em declarações para memória futura, a 10 de Outubro de 2022, a menor BB, começou logo por afirmar que: “estou cá por causa do que o CC me fez que foi me tentar violar. Estou cá porque ele me tentou violar…” - v., segmento 05:33 a 05:54 da gravação respectiva. Acrescenta depois, entre o mais, que: - Uma vez estava em casa com ele. Quase a dormir e comecei a sentir assim umas coisas nas costas e era a coisinha dele. Pronto. Uma vez fui com ele ao café e ele estava alcoólico e parou no monte, numa estrada qualquer e disse para eu tirar a roupa. Disse que não. Depois fomos para casa e ele levou-a a casa da mãe dela. Outra vez estavam a ir para casa e ele parou e disse para ela tirar a roupa que ele tirava a dele. Disse que não e foram para casa - v., segmento 06:16 a 07:56 da gravação. - O primeiro caso foi no café e estavam com um amigo dele, de nome EE. Falaram e beberam cerveja. Ela bebeu Ice Tea. Foi à noite, depois do jantar. Foi de casa dela (a mãe não quis ir). Saíram e o amigo dele disse que ia para casa e foi a pé. Ele parou num monte ou assim. Disse para ela tirar as calças e camisola e ela disse que não. Ele levou-a a casa. Era um monte em .... Estavam a passar e pararam lá. Era tipo uma estrada e árvores. Ele não disse nada antes. Parou e disse tira a roupa, camisola calças e cuecas, disse que não e foram para casa. Ele levou-a a casa da mãe e ele foi sair - v., segmentos 08:02 a 11:29, 11:49 a 12:27, 12:35 a 13:34 e 13:55 a 14:10 da gravação. - Noutra situação estava a ir para casa da mãe dela com ele (no carro) e antes da ... tem uma descida e ele disse para ela tirar a roupa e ela disse que não. Isto foi em ..., perto da ..., tinham de passar por lá para ir para casa da mãe dela. Não sabe de onde vinham. Ele só disse tira a roupa que eu também tiro a minha. Vem para o meu colo. Disse que não e ele desistiu e deixou-a em casa da mãe. Ela abriu a porta e fugiu para casa. Isto terá acontecido à noite, antes de jantar, e com cerca de um mês de diferença da outra situação - v., segmentos 15:19 a 16:28, 16:32 a 16:55, 16:58 a 17:35, 17:40 a 17:50 e 19:20 a 19:31 da gravação. - No caso restante, estava em casa dos pais do arguido com a mãe dela e o arguido chegou de manhã, cerca das 10 horas. Depois a mãe e os pais dele tiveram que ir fazer compras ao Pingo Doce para o almoço e ela ficou em casa com ele. Estava a dormir e sentiu alguma coisa nas costas e depois reparou que era o pénis dele. Ela antes estava a dormir mas foi à casa de banho e viu-o chegar a casa e depois é que a mãe e os pais dele saíram. Ela voltou para a cama e o arguido estava na cozinha mas veio para a cama. Ela estava no quarto dele porque dormiu lá com a mãe. Quando ele estava ela dormia noutro quarto, mas como ele não estava quis dormir com a mãe. Não adormeceu e sentiu alguma coisa nas costas. Era estranho mas “depois coisei que era o pénis dele”. Sentiu-o bater. Ela estava de calções e camisola e sentiu puxar a camisola para cima. Depois sentiu a bater a meio das costas. Reparou que era o pénis porque a mãe chegou e ele estava a vestir as boxers que antes estavam em cima da cama. A mãe chegou e ele vestiu as boxers de seguida e virou-se para o outro lado. Os boxers antes atirou-os para cima dos pés dela. Não viu o pénis. Associou porque sentia a bater e roçar e as cuecas dele estavam na cama e depois ele vestiu-as. Só lhe tocou nas costas, nem mais para cima nem mais para baixo do que disse. Na altura em que esfregava ele tinha uma mão na barriga dela e outra na cabeça. Era uma coisa dura. Ela estava acordada mas fingiu que dormia quando ele foi ter com ela à cama. O quarto tinha luz acesa. O segundo episódio foi à tarde. Na última vez ele chegou a casa bêbado. Viu-o entrar todo aos esses. Não se segurava em pé. Entrou calmamente na cama. Atirou-se. A luz já estava acesa. Era a luz do corredor. Não conseguia dormir sem luz. A luz era no tecto. A lanterna…A porta do quarto estava aberta – v., segmentos 19:33 a 21:55, 22:14 a 23:39, 23:43 a 25:15, 25:26 a 27:45, 28:05 a 28:55, 29:56 a 30:45, 30:55 a 3135:37 a 36:54, 38:17 a 40:40, 40:50 a 41:10, 41:34 a 42:14, 42:49 a 43:26, 43:35 a 44:02, 44:03 a 45:01 e 50:54 a 53:37. d) Nos depoimentos que prestou na PJ e na audiência de julgamento e na informação junta aos autos já supra referida, a testemunha GG afirmou que: > A sua intervenção foi solicitada, inicialmente, porque a menor BB fora vítima de bullying na escola, sendo rejeitada pelos colegas que a impediam de integrar brincadeiras de grupo, manifestava dificuldades de aprendizagem desde o 1º ciclo, tinha problemas de enurese e cortava o próprio cabelo, sendo uma criança em situação de risco elevado e em situação de grande vulnerabilidade; > Relativamente ao caso dos autos disse que, na altura, acreditou na menor, porque ela nunca lhe mentira nas consultas que tinham tido mas, tanto na PJ como em audiência de julgamento, manifestou receio de se tratar de um discurso contaminado uma vez que a BB foi alvo de diversas perguntas, pelo menos pela mãe e por uma amiga desta de nome QQ, antes de ter falado com ela. > Esclareceu ainda em audiência de julgamento que estranhou haver 4 episódios tão sequenciais e nunca haver um acto final. Ela dizia que não e tudo ficava por ali, não sendo normal nem sendo essa a experiência que tinha de outras situações idênticas. Depois, os próprios termos utilizados eram estranhos (v.g. a palavra vagina), havendo uma história construída e elaborada quando chega até ela, com inúmeras pessoas a questionar a menor anteriormente. A QQ disse-lhe que perguntou tudo (e foi ela que entrou na consulta com a menor e começou a fazer perguntas à mesma sobre o assunto, até a testemunha a ter mandado sair) até se houve penetração, matéria que nunca seria questionada de forma directa numa avaliação por um profissional. Referiu ainda que depois da denúncia do caso começou a ter problemas com a mãe da menor - que a acusava de dizer coisas que não disse ao ponto de lhe ter transmitido que só falaria com ela por escrito (mensagem, mail) - e que apanhou algumas mentiras e viu que a BB começou a ter receio de partilhar porque a mãe a queria tirar das consultas, o que acabou por fazer invocando razões monetárias. > Confirmou a referência aos quatro episódios que constam do auto de notícia esclarecendo que na situação ocorrida na casa dos pais do arguido a BB lhe disse ter sentido qualquer coisa no rabiosque e que depois sentiu com mais força, olhou e viu a coisa dele. Ela pediu-lhe para fazer uma descrição e desenho do pénis dele e ela fez – v., depoimento a fls. 95 a 98 lido em audiência de julgamento e segmentos 01.30 a 03:54, 04:30 a 06:15, 06:25 a 08:08, 08:12 a 09:45, 10:03 a 18:17, 18:20 a 20:24, 20:30 a 21:59, 22:40 a 225:19, 25:58 a 27:1548:44 a 49:12, 55:18 a 56:02 e 01:11:25 a 01:12:19. e) A testemunha FF, prima da menor BB, depois de numa primeira sessão do julgamento não ter conseguido responder a nada, compareceu uma segunda vez, acompanhada de psicólogo forense, confirmando que a prima lhe referiu que o arguido CC, quando estavam os dois no carro, lhe pediu para se sentar em cima dele e ela não se sentou e também que em casa dos pais dele, estava a dormir e sentiu a pila dele tocar no corpo dela a raspar, não sabendo o que ela fez. Ela pediu segredo mas mais tarde chatearam-se e ela disse que ia contar à mãe mas não contou. Quem o fez foi a própria BB[8]. A mãe dela ligou à avó e foi esta que contou à mãe da BB. Esta agarrou nelas as duas (FF e BB) e ia à psicóloga mas estava fechado e voltaram para casa. A mãe da BB perguntou a esta o que se passara e ela contou-lhe – v. segmentos 05:03 a 06:19, 06:29 a 07:18, 07:24 a 08:12, 08:49 a 09:09, 09:30 a 09:48, 10:02 a 11:03 e 14:33 a 16:03. *** Fazendo a síntese da prova referenciada - que se nos afigurou mais relevante para o thema decidendum e ouvimos na íntegra -, não há como negar a inconsistência da versão da menor BB, não por causa de pequenos pormenores divergentes, já que característicos da prova testemunhal, mas antes porque existe modificação de factos estruturantes das condutas que imputa ao arguido. Assim, para além do desaparecimento de um dos episódios que relatou à Sr.ª Psicóloga e bem assim do acto que a mesma considerou ter sido descrito em moldes e com linguagem desapropriada a pessoa da idade da ofendida (aproximação da cara do arguido à vagina dela); da alteração dos períodos do dia[9] e da sequência das ocorrências que se verificaram no regresso a casa vindos do café (o amigo do arguido tanto estava na primeira vez como a seguir já estava na segunda e não na primeira delas); da divergência quanto a irem levá-lo/buscá-lo a casa, ele ter ido para casa a pé ou no próprio carro que estava no café e do enquadramento da última conduta ser completamente diverso na narração ao perito e nas declarações para memória futura, constata-se que, no dizer da BB, o arguido começa por lhe tocar com o pénis no rabiosque, depois já é nas costas junto do rabiosque e, finalmente, é no meio das costas, tendo até o arguido levantado a camisola da menor. A tudo isto acresce que a menor começa por dizer que viu o pénis do arguido – v. depoimento da testemunha GG – para depois negar firmemente tal realidade, construindo uma história sobre boxers na cama que o arguido depois vestiu. Mais acresce que, tal como assinalou a referida testemunha, a narração dos episódios de abuso não é consentânea com a normalidade de acontecer neste tipo de caso. Não só não são fornecidos pormenores de enquadramento das condutas como, segundo a ofendida, estes não existem. Não há qualquer conversa, acto de sedução ou ameaça por parte do predador. Este simplesmente manda-a tirar a roupa e perante a recusa vai levá-la a casa ou, no caso restante, encosta-se e esfrega-se nela sem qualquer acto final ou sequer alguma vez a advertir para não contar a ninguém. Depois, a narração dos factos que consta das declarações para memória futura é intrinsecamente contraditória e contrária à normalidade de acontecer, seja pelo facto da última situação, segundo a menor, ocorrer num quarto em que a porta fica aberta, podendo, pois, o acto ser surpreendido por alguém que, inopinadamente chegasse a casa, seja ainda, porque na mesma situação, presumivelmente ocorrida cerca das 10 horas da manhã, em local com janela (v. gravação declarações para memória futura no segmento 29:10 a 29:55 em que a BB diz que na cama ela estava do lado da janela e ele da porta) se alude a luz acesa [tanto assim que o juiz, inicialmente, quando a menor diz que o quarto estava com a luz acesa converte a expressão em claridade no quarto (v. segmento da gravação 42:45 a 44:02) mas mais à frente a ofendida BB volta a afirmar que a luz já estava acesa e ficou acesa. Luz do corredor. Não consegue dormir sem luz (v. segmento 50:54 a 53:37)]. Obviamente a menor, levada pela explicação de que estava a dormir no quarto do arguido (embora no âmbito da avaliação psicológica dissesse que estava a ver televisão…), esqueceu-se que já dissera que era de manhã e que até já tinha acordado e ido à casa de banho. De notar que as declarações da menor BB são muito cautelosas, como se tivesse medo de errar as respostas e notando-se hesitação nalgumas palavras [v.g. diz a palavra “monte”, hesita antes de a terminar, depois fala “numa estrada qualquer” e, finalmente, era um monte porque era uma estrada com árvores – v., gravação das declarações para memória futura , segmento 06:51 a 07:56 e 11:49 a 12:27]. E, na parte final do seu depoimento, quando é insistentemente questionada sobre se foi nas costas que sentiu o pénis do arguido, se não foi também noutro lado ou se não foi antes no rabo, mantém que foi nas costas mas, percebendo que as suas declarações não são as esperadas, desata num choro incontrolável nada mais respondendo. A este quadro, acrescenta-se a especial vulnerabilidade da ofendida em resultado dos problemas de bullying na escola, dificuldades de aprendizagem e enurese/encoprese, com episódios de automutilação (a mãe e aqui assistente AA fez questão de dizer que a BB, com 13 anos[10], ainda usa fralda todos os dias… concluindo, em tom ressentido, “é uma mulher”) que ditaram a ida à psicóloga ao contrário da versão apresentada pela assistente. E, como evidencia o depoimento da testemunha GG e resulta do relatório de avaliação psicológica a menor BB tem ou teve ciúmes do meio irmão, sentindo que o nascimento deste lhe retirou as poucas atenções que lhe eram concedidas quer pela mãe quer pelo aqui arguido, referindo também a própria ofendida que, por causa de urinar e defecar na cama, a mãe a insulta, a põe de castigo e lhe bate. Aliás, a própria assistente AA reconheceu que berrava e castigava a filha (v. segmento 28:20 a 28:48 da gravação) e o arguido, quando estava, intervinha em favor desta, versão em tudo consistente com as declarações do arguido que disse que a assistente, às vezes, berrava e queria bater na filha e era ele quem a impedia – v. segmento 26:24 a 26:41 da gravação respectiva. Como é óbvio as vulnerabilidades da menor BB, claramente ignoradas e incompreendidas pela mãe – como evidenciam à saciedade as declarações que prestou, onde se destaca a afirmação que o arguido era um bêbado e que mandava a filha com ele ao café para ele vir para casa mais cedo e não beber tanto, sem sequer ponderar os riscos a que a sujeitava já que as deslocações eram realizadas em veículo automóvel por ele conduzido – e agravadas pelo nascimento do irmão, bem como os problemas da mãe com o aqui arguido, a quem, além do mais, acusou de violência doméstica, não podem ser ignorados, importando anotar que qualquer dos profissionais que tiveram contacto com a BB identificaram a necessidade da mesma beneficiar de acompanhamento psicológico, desconhecendo-se se é esse o caso já que, uma vez mais, as declarações de sua mãe a propósito do assunto não são minimamente esclarecedoras[11] e até diz que a BB está estabilizada emocionalmente. E, no entanto, há registo de que, cerca de 3 meses antes do julgamento, a menor, além de cortar o cabelo, começou também a mutilar-se através de cortes no corpo[12] o que denuncia o profundo sofrimento em que se encontra e que, necessariamente, é muito mais remoto e vai muito além do caso aqui em apreciação, não se compaginando minimamente com a invocada estabilidade, tudo a exigir o cabal esclarecimento da sua real situação e, se necessário, a implementação de medidas de protecção adequadas e acompanhamento por profissional de saúde mental de adolescentes, se ainda não existirem e se mantiver o quadro que resultou da audiência de julgamento. Neste preciso contexto, é patente que o risco de manipulação da realidade e dos acontecimentos vivenciados é muito elevado, acrescendo a circunstância de inexistirem testemunhas presenciais dos acontecimentos ou outros elementos objectivos complementares que pudessem invocar-se em reforço da tese sustentada pela menor BB. Aliás, não podemos deixar de referir que a espontaneidade da prova produzida nos autos foi, bastas vezes, prejudicada por intervenções precipitadas já que mal o declarante/depoente começava a contar a sua versão dos acontecimentos era imediatamente interrompido e advertido que alguém já dissera coisa diferente a tal propósito. Do mesmo modo, foram feitas e permitidas perguntas com longos intróitos em que o inquiridor faculta informações ao declarante/depoente e faz o resumo de determinadas matérias com afirmações que não se compaginam sequer com a prova, como o foi caso quando se perguntou à assistente AA se viu o arguido CC de boxers no quarto e ela responde apenas “ele não dormia de pijama”, extrapolando a inquiridora que ela o viu de boxers no quarto com a BB (menor BB) – cfr. segmento da gravação respectiva de 36:25 a 37:01. Ora, uma vez que o arguido negou os factos é essencial aferir a coerência interna e externa das declarações, de molde a superar as contradições e dúvidas que daí necessariamente resultam e, por consequência, o non liquet probatório ou, sendo de todo impossível, accionar os princípios que regem nesta sede, v.g. o da presunção de inocência do arguido. A primeira vertente há-de encontrar a sua base de sustentação nas regras de experiência comum, pelo que as declarações devem mostrar-se correctas e adequadas quando analisadas à luz das regras de normalidade de acontecer e senso comum. A restante, inexistindo prova tarifada, pressupõe a concatenação dos vários elementos probatórios disponíveis, de molde a firmar convicção sobre a realidade de determinado acontecimento submetido à livre apreciação do julgador, também aqui surgindo as regras de experiência, como critério de suplantação de dúvidas ou contradições. Neste conspecto, concatenadas e criticamente analisadas as provas disponíveis, especialmente o registo da prova gravada, com destaque para as declarações e depoimentos supra resumidos facilmente se intui que a coerência narrativa atribuída às declarações da ofendida BB não resiste a observação mais atenta. Com efeito, a narração dos acontecimentos não é consentânea com a normalidade de acontecer neste tipo de situações e apresenta contradições intrínsecas que atingem e contaminam, inexplicavelmente, o seu núcleo essencial, como já antes se explicitou. É consabido que o decurso do tempo tem influência nas memórias adquiridas que, igualmente, podem ser afectadas por condições particulares da testemunha. Todavia, in casu, as narrativas ocorrem em períodos temporais próximos e afectam o âmago da conduta desviante imputada ao agente, não se vislumbrando que a ofendida pudesse esquecer, entre o mais, que viu o pénis do arguido e o local do seu corpo onde ele o esfregou. E, o exame externo da coerência da versão que a sustenta, evidencia insuficiência probatória que, no mínimo, impõe o funcionamento do princípio in dubio pro reo. Com efeito, não existe qualquer contexto ou meio de prova, ainda que indirecto, que coadjuve a versão da menor, nem se compreende que esta, após o primeiro episódio, continue a aceitar ir ao café com o arguido e que, sozinha com ele em casa, se vá deitar (ou fique deitada) na cama dele, tudo a demandar dúvida insuperável a resolver por intermédio do princípio in dubio pro reo. É que, este princípio, sendo corolário do princípio da presunção de inocência, impõe que “a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido”. As características da personalidade da ofendida e do contexto em que vivia na altura não pode deixar de suscitar a dúvida sobre a realidade dos factos que mencionou, ainda que a mesma deles se tenha convencido, tudo a convocar a existência de dúvida razoável e inultrapassável e a dirimir em sentido favorável ao arguido atento o aludido princípio. Na verdade, no contexto referenciado, com patente conflitualidade entre arguido e a mãe da ofendida, detectadas contradições e falta de rigor desta no tocante aos episódios que descreveu e inexistência de qualquer elemento objectivo fidedigno de suporte, entendemos que a responsabilização criminal do arguido por tais factos extravasa os limites impostos pelas regras de experiência à livre convicção do julgador e viola a presunção de inocência de que o mesmo beneficia. Resumindo e concluindo: Os sinais adquiridos pela oralidade e imediação podem servir de critério caldeador entre duas versões aparentemente fidedignas e coerentes mas contraditórias entre si, mas são irrelevantes para sustentar declarações que não se compaginam com as regras de experiência comum ou se mostram inquinadas por outros dados probatórios. É óbvio que a versão do arguido, reputando-se de mera vítima passiva da mãe da ofendida para salvaguardar os contactos com o filho, também não colhe nos exactos termos, até porque o relacionamento com uma e outra era muito distinto não havendo notícia de violência mas sim de protecção relativamente à menor. Impõe-se, pois, também aqui a modificação da matéria de facto de forma a harmonizá-la com a prova produzida e conclusões que dela podem ser retiradas sem que ocorra violação dos limites impostos pelas regras de experiência, ao abrigo do estatuído no art. 431º, al. b), do Cód. Proc. Penal, transitando para os factos não provados os pontos 4 a 11 antes inscritos na matéria provada, caindo com eles todos os demais relativos à responsabilização criminal e cível do arguido (pontos 12 a 18) por falta de objecto. Termos em que, afirmando-se haver fundamento nos invocados erros de julgamento e modificando-se a matéria de facto nos moldes referidos, impõe-se decretar a absolvição do arguido, ficando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas. *** III – DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto conceder provimento ao recurso do arguido CC e, alterando os factos provados e não provados nos moldes supra mencionados, revogar a decisão recorrida com a consequente absolvição do crime de abuso sexual de crianças, agravado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b), do Cód. Penal, e dos dois crimes de abuso sexual de crianças, agravados, previstos e puníveis pelas disposições conjugadas dos arts. 171º, n.º 3, al. a), 170º e 177º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal, e da indemnização oficiosamente arbitrada. * Por ter decaído na oposição ao recurso, a assistente suportará 4 (quatro) UC de taxa de justiça - art. 515º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Penal, e Tabela III anexa ao Reg. Custas Processuais – sem prejuízo do apoio judiciário eventualmente concedido. Notifique. Porto, 10 de Julho de 2024 * A Desembargadora Relatora [Maria Deolinda Gaudêncio Gomes Dionísio] O Desembargador 1º Adjunto [Jorge Manuel Langweg] A Desembargadora 2ª Adjunta [Maria Dolores da Silva e Sousa] _____________________ [1] Indicação das penas e montantes indemnizatórios por extenso como impõe o art. 94º, n.º 5, do Cód. Penal e indicação dos crimes em causa pela nomenclatura legal. [2] As conclusões são – devem ser – um resumo das razões do pedido (art. 412º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal) onde, obviamente não cabe a repetição da imputação criminosa em sede de acusação e dispositivo do acórdão. [3] Omite-se referência à condenação pelas razões que já constam da nota anterior. [4] Idem. [5] Cfr., Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 11/06/2008, Proc. n.º 0745662, rel. António Gama, in dgsi.pt. [6] É impossível determinar o mês exacto do termo do relacionamento já que o arguido o situa em Junho/Julho, logo após a data da conferência da regulação das responsabilidades parentais do filho DD, e a arguida começa por referir Julho/Agosto e depois de muitas intervenções do Tribunal e advogados, apontando para Setembro, acaba por dizer que foi isso que ele até veio para o aniversário dela a 3 de Setembro, o que muito se duvida atento o que consta dos autos n.º 525/20.1GAFLG, cujas certidões foram juntas ao presente processo, no decurso do julgamento, por determinação do tribunal a quo e onde o arguido está acusado de violência doméstica, sendo que um dos episódios se reporta ao dia 6 de Setembro de 2020, dizendo-se que o arguido foi a casa da AA para visitar e levar o filho consigo, o que evidencia a ocorrência da separação em momento anterior. [7] Refere-se ao arguido. [8] Assim, também aqui, ambas as menores dizem que quem acabou por contar o que se passara foi a BB e não a FF ao contrário do exarado na decisão recorrida. [9] A segunda ocorrência tanto foi à noite, antes de jantar, como à tarde à hora do lanche e o 3º caso foi à tarde (relatório de avaliação psicológica) e de manhã cerca das 10 horas (declarações memória futura). [10] Entretanto já fez 14 anos. [11] Aliás, todas as suas declarações se mostram inquinadas por contradições intrínsecas (designadamente por violação das regras de experiência) e extrínsecas (resulta da demais prova testemunhal que a maior parte das suas afirmações não corresponde à realidade, destacando-se como mero exemplo a afirmação de que nunca falou com a filha sobre o assunto dos abusos de que foi vítima por parte do arguido quando o depoimento das testemunhas BB, a sua prima FF e a psicóloga GG demonstra precisamente o contrário). [12] A automutilação (não suicida) diz respeito a lesões feitas intencionalmente em si próprio que não têm o objectivo de causar a morte e são associadas a transtornos de ansiedade, angústia ou até a uma forma de autopunição que a criança/adolescente acredita ser merecida. Também pode ser usada para chamar à atenção dos pais e/ou outras pessoas importantes, expressar ira ou identificação com um grupo de colegas e deve merecer avaliação urgente por um profissional de saúde mental. [13] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora. |