Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1598/20.2T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
EXAMES MÉDICO-LEGAIS
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
RESPONSABILIDADE DO COMITENTE
Nº do Documento: RP202407101598/20.2T8MTS.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O Tribunal da Relação goza no âmbito da reapreciação da matéria de facto dos mesmos poderes e está sujeito às mesmas regras de direito probatório que se aplicam ao juiz em 1ª instância, competindo-lhe proceder à análise autónoma, conjunta e crítica dos meios probatórios convocados pelo recorrente ou outros que os autos disponibilizem, introduzindo, nesse contexto, as alterações que se lhe mostrem devidas.
II - Os exames médico-legais, mesmo quando efetuados nos Institutos de Medicina Legal, estão sujeitas à livre apreciação do tribunal embora, não obstante sejam revestidos de um muito especial valor, face à natureza dos técnicos que neles intervêm-medico-legistas-, especialmente conhecedores da matéria e com qualificação insuspeita.
III - A autoridade do caso julgado não é uma exceção dilatória e não pode conduzir à absolvição da instância.
IV - A vinculação a uma decisão transitada em julgado exige que os titulares de relações juridicamente afetáveis tenham tido a oportunidade de nela influir: é este o fundamento do princípio do contraditório, princípio fundamental do processo, e que justifica a oponibilidade relativa do caso julgado, razão pela qual o citado princípio exige que a oponibilidade da força e autoridade do caso julgado pressuponha a identidade de sujeitos.
V - A autoridade de caso julgado de uma decisão não abrange os seus fundamentos de facto, pelo que os mesmos não gozam dessa eficácia extraprocessualmente.
VI - Consoante art. 500.º, nºs 1 e 2 CCivil a responsabilidade do comitente depende da verificação de três requisitos: a)- a existência de relação de comissão, que implica liberdade de escolha pelo comitente e se caracteriza pela subordinação do comissário ao comitente, que tem o poder de direção, ou seja, de dar ordens ou instruções ; b)- a responsabilidade do comissário, já que, em princípio, o comitente só responde se tiver havido culpa do comissário; c)- que o ato praticado pelo comissário o tenha sido no exercício da função que lhe foi confiada.
VII - Com a fórmula restritiva adotada no nº 2 desse inciso (ato praticado no exercício da função), a lei quis afastar da responsabilidade do comitente dos atos que apenas têm um nexo temporal ou local com a comissão.
VIII - A responsabilidade prevista no art. 502º do CC pode ser afastada se resultar demonstrada a culpa do lesado, ou a culpa de terceiro na ocorrência do facto.
IX - Os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1598/20.2T8MTS.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este-Juízo Local Cível de Penafiel



Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Drª Maria Fernandes de Almeida
2º Adjunto Des. Drª Eugénia Marinho da Cunha




Sumário:
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I - RELATÓRIO


Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


Nestes autos de ação declarativa comum, que AA, residente na Rua ..., ..., ..., moveu contra BB, residente residência na Rua ..., ..., ... veio o primeiro peticionar a condenação desta ao pagamento de indemnização a ser liquidada em de incidente, mas não inferior a 22.034,60€, dos quais 10.000,00€, a título de danos não patrimoniais, e 12.034,60€, a título de danos patrimoniais (referentes a despesas médicas e hospitalares), acrescida de juros moratórios legais à taxa civil desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, e em suma, alegou ter sofrido ataque por dois cães, da propriedade da Autor, do qual lhe advieram várias lesões e incómodos, causado pelo facto de pessoa, a quem a Ré incumbiu de contactar com o Autor para o arranjo de um portão, não ter verificado que os mecanismos de fecho da jaula se encontravam devidamente cerrados.
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Contestando, a Ré defendeu-se por impugnação e exceção de caso julgado, litispendência e ilegitimidade passiva invocando, em súmula, que a mesma pretensão fora conhecida e julgada improcedente no âmbito do processo crime n.º 2160/18.5T9MTS, e que seria parte ilegítima por se encontrar a sua responsabilidade civil por atos dos seus cães transferida por seguro obrigatório.
Mais peticionando a condenação do Autor como litigante de má-fé, em multa não inferior a 15 UCs e indemnização em igual valor, com base no conhecimento pelo A. de que a ação não poderia ser intentada por ter por objeto o mesmo dano que já havia sido judicialmente decidido no processo crime, assim procurando uma acumulação de indemnizações.
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Em resposta, o Autor argumentou que a responsabilidade civil da R. não chegou a ser apreciada no âmbito daquele processo crime, em virtude da prolação de despacho de não pronúncia da R., e que aí se apurava a responsabilidade civil por factos ilícitos e aqui a responsabilidade civil objetiva pelo risco, assente na relação de comissão; bem como que desconhece se os animais em causa são considerados perigosos para o efeito de classificação do seguro como obrigatório, defendendo que o art. 146.º, n.º 1, do DL n.º 72/2008, de 16 de abril concede uma faculdade e não institui um dever.
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Em sede de despacho saneador, foram julgadas improcedentes as exceções dilatórias invocadas pela Ré.
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Por requerimento de 18/09/2023, foi suscitada pelo Autor a autoridade de caso julgado e que viria, em sede decisória, a ser julgada improcedente.
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A mesma veio a apresentar articulado superveniente, a 08/11/2023, o qual não foi admitido, bem como não foram admitidos os documentos àquele anexados.
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Teve lugar a audiência de julgamento com observância de todos os trâmites legais.
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A final foi proferida decisão que julgou a ação totalmente improcedente, por, não provada e consequentemente absolveu a Ré do pedido contra ela formulado.
Mais foi absolvido o Autor da condenação por litigância de má fé.
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Não se conformando com o assim decidido veio o Autor interpor o presente recurso rematando com as seguintes extensas conclusões que mais não são, salvo alterações pontuais (uma delas foi romanização dos números), do que mera cópia do corpo alegatório:[1]
I. O presente recurso tem como objeto a matéria de facto (com reapreciação da prova gravada) e de Direito da decisão proferida nos presentes autos que julgou totalmente improcedente a ação declarativa, judiciando pela absolvição da Ré do pedido.
II. Quanto à matéria de facto, a impugnação do Recorrente versa a que foi vazada nos pontos 2, 16, 18, 19 e 34 do elenco de factos provados, bem como o facto b) do elenco de factos não provados, mais asseverando a inserção de factos com relevância para a discussão da causa que não foram contemplados e que deveriam ter sido dados como provados.
III. Quanto à matéria de Direito, a impugnação do Recorrente versa sobre a transgressão/errada interpretação e aplicação das normas jurídicas atinentes à autoridade do caso julgado, e à responsabilidade civil ínsita nos artigos 500.º, 502.º e 493.º do CC, bem como a violação do disposto no artigo 607.º n.º 4 do CPC.
Dos factos provados:
IV. No que concerne ao facto provado n.º 2, não detinha o Tribunal a quo qualquer sustento probatório que permitisse concluir que o pedido da Ré a CC se terá tratado de um “especial favor”, tratando-se tal expressão de uma mera ilação sem aporte factual ou concretização.
V. A própria testemunha CC refere, nas declarações prestadas, que a Ré lhe solicitou que contactasse o Autor, uma vez que esta transmitiu que não se sentia muito à vontade para tratar de tais questões (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 09/11/2023, com início pelas 09h45 e término pelas 10h33, mormente o período compreendido entre 00:05:15 e 00:06:31).
VI. O argumento dedutivo do Tribunal a quo mostra-se errado, de acordo com as regras da lógica, e concretamente com as normas silogísticas, pois que, não é de todo razoável que se extraia a conclusão de que tal solicitação se tratou apenas e somente de um “especial favor” tendo apenas por base o uso repetido de tal expressão ao longo das sessões de julgamento.
VII. Nessa medida, mal andou o Tribunal a quo ao considerar como provado o “especial favor”, não detendo qualquer indício probatório e tratando-se de mero conceito, devendo, considerando o exposto, ser alterada a redação do ponto 2) dos factos dados como provados, passando a constar o seguinte:
2. A R. solicitou a CC, seu ex-companheiro, que contactasse o serralheiro que seria habitualmente contratado por este para o mesmo tipo de serviços, a fim de arranjar o portão automático da sua casa, sita na Rua ..., ... ..., ....
Ademais,
VIII. No que concerne ao facto provado 16), de acordo com o depoimento prestado pela testemunha DD, médica perita, a data da consolidação das lesões do Autor deu-se com a última consulta de cirurgia plástica, em 12-10-2018, onde se verifica efetivamente a estabilidade das mesmas (cf. Depoimento da testemunha DD, na audiência de julgamento de 19-09-2023, depoimento com início pelas 12h03 e término pelas 12h23, mormente o período compreendido entre 00:06:57 e 00:08:55).
IX. Pelo que, quanto a tal facto, mal andou o Tribunal a quo ao considerar a data de consolidação das lesões, devendo ser alterada a sua redação, passando a constar a seguinte:
16. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 12/10/2018.
X. No que respeita ao facto provado 18), considerando o depoimento da testemunha DD, bem como o relatório pericial carreado aos autos como Doc. 2 do requerimento do Autor de 21-05-2020, deveria ser alterada a redação do facto provado, passando a constar o correspondente ao diferencial entre os 249 dias e os 10 dias, designadamente:
18. De igual modo, viu parcialmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária desde 05/02/2018 até 07/03/2018, entre 13/03/2018 e 21/03/2018, e entre 27/03/2018 e 12/10/2018, num total de 239 dias.
XI. Considerando os mesmos elementos probatórios concretizados no ponto anterior (que por economia processual se remete), haveria que ser alterada a redação do facto provado 19), passando a constar a seguinte:
19. O A. esteve incapacitado para o exercício da sua atividade profissional entre 05/02/2018 e 12/10/2018, num total de 249 dias.
XII. No que concerne ao facto 34) dos factos provados, consideramos que não contemplou devidamente o Tribunal a quo o valor de todas as despesas sofridas pelo Autor e que se relacionam diretamente com as lesões por si sofridas- na fundamentação de facto, refere o Tribunal a quo que “Foram excluídas as despesas constantes das faturas juntas com o doc. 3 da PI, porquanto se reportam quer a medicamentos, exames, consultas, operações ou outros atos médicos relevantes referentes quer a datas anteriores ao evento danoso (05/02/2018), quer referentes a datas ulteriores à data de consolidação das lesões (15/06/2018) (…) O mesmo se entendeu quanto à fatura n.º ...01, datada de 03/07/2018 junta com o requerimento de 18/09/2023.”
XIII. As faturas concretamente indicadas referem-se a consultas de cirurgia plástica e a análises gerais com marcadores inflamatórios, encontrando-se relacionadas com a cirurgia à perna a que foi o Autor submetido, encontrando-se perfeitamente demonstrado o nexo e relação causal com o evento em discussão nos presentes autos.
XIV. Considerando os documentos carreados como Doc. 3 da petição inicial (à exceção da fatura anterior à data do evento), bem como a fatura n.º ...01 carreada com o requerimento de 18/09/2023, bem como a data da consolidação das lesões, assalta à conspeção que ao valor apurado pelo Tribunal a quo deveria acrescer o montante constante de tais faturas (correspondendo a 340,00 €), devendo ser alterada a redação do facto 34, passando a constar a seguinte redação:
34. Em consequência do evento, o A. Suportou despesas médicas e medicamentosas, referentes a consultas, tratamentos, medicamentos e intervenções cirúrgicas, no valor de 11.429,69 €.
Dos factos não provados:
XV. No que concerne ao facto b) dos factos dados como “não provados” (“Foi a R. que solicitou a CC que se deslocasse à sua residência e acompanhasse os arranjos que o A. iria efetuar no portão de entrada”), consideramos que deveria tal facto integrar o leque dos factos provados, pois que, devidamente concatenado o depoimento da testemunha CC (cfr. depoimento de CC na audiência de 09-11-2023, com início pelas 09h45 e término pelas 10h45, mormente atentando nos períodos compreendidos entre 00:18:21 e 00:19:25, 00:20:20 e 00:20:42, e 00:33:18 e 00:33:50) com o depoimento de parte da Ré (cfr. depoimento na audiência de 09-11- 2023, com início pelas 09h29 e término pelas 09h45, mormente o período compreendido entre 00:07:15 e 00:07:50) e não olvidando as regras da lógica e da experiência comum que deverão relevar para o apuramento e a ponderação dos indícios probatórios, resulta patente que a Ré terá solicitado à testemunha CC que esta recebesse o Autor na sua casa, e acompanhasse a evolução dos trabalhos.
XVI. O facto de a Ré se encontrar ausente do seu domicílio por motivos profissionais, de não ter o contacto do Autor nem o conhecer pessoalmente, e, bem assim, o facto de a Ré ter entregue o comando do portão à testemunha CC com o propósito único de este receber o Autor na propriedade da Ré, são indícios suficientes para a conclusão de que seria CC a receber e acompanhar os trabalhos do Autor, sob a dependência da Ré.
XVII. Pelo que, concatenando a demais factualidade com as regras da experiência, da lógica e da razoabilidade do homem médio, haveria que necessariamente dar-se como provado o facto b) do elenco de factos não provados.
Dos factos não contemplados que deveriam ter sido dados como provados:
XVIII. Não foram diretamente contemplados, devendo ter sido dados como provados, com relevância para a discussão da causa, pelo menos, os seguintes factos:
i. O portão da casa da Ré que carecia de reparação, foi instalado pelo Autor, no período em que o proprietário da casa era CC.
ii. A Ré e CC tiveram, no passado, uma relação profissional e amorosa, mantendo entre si, à data dos factos do processo, uma relação de índole pessoal.
iii. À data dos factos, a Ré, em virtude do exercício da atividade profissional, saía cedo para trabalhar, e voltava tarde do trabalho, não lhe sendo possível, nesse horário, receber o Autor para a realização do serviço de reparação do portão.
iv. A Ré entregou o comando do portão a CC, com a finalidade de que este recebesse o Autor na sua casa para a realização da reparação do seu portão.
v. Era a Ré que iria pagar a realização do serviço de reparação ao Autor.
vi. O Autor não foi ressarcido de qualquer montante relativamente ao processo n.º 2160/18.5T9MTS.
XIX. Para a prova do facto i., concorre o depoimento da testemunha CC, que confirma que o portão foi colocado pelo Autor, quando casa era ainda da sua propriedade (cf. depoimento de CC na audiência de 09-11-2023, com início pelas 09h45 e término pelas 10h45, mormente o período compreendido entre 00:15:05 e 00:15:44), bem como o depoimento de parte da Ré (cf. depoimento na audiência de 09-11-2023, com início pelas 09h29 e término pelas 09h45, mormente o período compreendido entre 00:02:30 e 00:02:50).
XX. Para a prova do facto ii., cumpre analisar também o depoimento da sobredita testemunha CC, que confirma tal facto (cfr. depoimento de CC na audiência de 09-11-2023, com início pelas 09h45 e término pelas 10h45, mormente atentando no período compreendido entre 00:33:18 e 00:33:50).
XXI. No que concerne ao facto iii., tal resulta das declarações da testemunha CC, que atestou a impossibilidade de comparência da Ré BB em virtude dos horários profissionais desta, e da sua intenção em não a “deixar enrascada” (cf. depoimento de CC na audiência de 09-11-2023, com início pelas 09h45 e término pelas 10h45, mormente atentando no período compreendido entre 00:18:21 e 00:19:25).
XXII. No que respeita ao facto iv. cumpre atentar no depoimento de parte prestado pela Ré (cfr. depoimento na audiência de 09-11-2023, com início pelas 09h29 e término pelas 09h45, mormente o período compreendido entre 00:07:15 e 00:07:50) e o depoimento prestado pela testemunha CC (cfr. depoimento de CC na audiência de 09-11-2023, com início pelas 09h45 e término pelas 10h45, mormente o período compreendido entre 00:20:20 e 00:20:42) e que atestam que a Ré entregou o comando à testemunha, apenas para a situação específica de CC receber o Autor e este reparar o portão.
XXIII. Relativamente ao facto v., atentemos, novamente, no depoimento de parte da Ré, que assevera, no período compreendido entre 00:06:25 e 00:06:43, que era sobre si que impendia a realização do pagamento relativo ao serviço de reparação do portão (cfr. depoimento na audiência de 09-11-2023, com início pelas 09h29 e término pelas 09h45).
XXIV. O facto vi. resulta facilmente apurado das declarações da testemunha CC, designadamente do período compreendido entre 00:33:04 e 00:33:14 (cf. depoimento de CC na audiência de 09-11-2023, com início pelas 09h45 e término pelas 10h45), em que este confirma que o único valor por si liquidado foi ao Tribunal, relativamente a custas.
XXV. A inclusão dos factos indicados supra contribuiria, desde logo para a prova cabal, ou pelo menos, para a prova indiciária relativamente ao facto não provado b), de forma que este integrasse o leque dos factos provados, concatenando com as máximas da experiência comum.
XXVI. Outrossim, ao decidir como decidiu, não contemplou devidamente o Tribunal a quo a prova testemunhal, por declarações, e documental produzida, motivo pelo qual segue a matéria de facto impugnada nos exatos termos supra expostos.
MATÉRIA DE DIREITO
Da violação do efeito positivo da exceção de autoridade do caso julgado:
XXVII. A questão sub judice prende-se com a responsabilidade objetiva/pelo risco, baseada numa relação de comissão existente entre a Ré e a testemunha CC, e que depende da necessária responsabilidade do comissário.
XXVIII. Colocar em causa a decisão prolatada na ação n.º 2160/18.5T9MTS, na qual resultou provada e demonstrada a responsabilidade penal e civil do comissário CC, bem como a extensão dos danos e lesões sofridas pelo Autor, seria reapreciar uma decisão já anteriormente proferida por outro Tribunal, sobre os mesmos factos e tendo na sua base a mesma relação jurídica, o que não se afigura consentâneo com os princípios mais básicos e enformadores do ordenamento jurídico.
XXIX. A tal propósito, citamos o entendimento propalado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto no Acórdão de 12-07-2023, pela relatora Alexandra Pelayo, nos termos do qual “III- A figura da autoridade do caso julgado-que é distinta da exceção do caso julgado e que não supõe a tríplice identidade por esta exigida-visa a garantia, a coerência e a dignidade das decisões judiciais. III- A autoridade do caso julgado abrange as questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado, implicando o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior, cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior.”.
XXX. Considerou, porém, o Tribunal a quo que “por falta de coincidência de sujeitos e, por ser inoponível a força de caso julgado à aqui R., nos termos do art. 522.º do Código Civil, é improcedente a exceção de autoridade do caso julgado.”.
XXXI. A autoridade do caso julgado dispensa a tríplice identidade, designadamente a identidade de sujeitos, considerando as exigências do prestígio dos tribunais e da segurança e certeza jurídica das suas decisões, que deverá prevalecer.
XXXII. Mas, ainda que se perscrutasse pela necessária identidade subjetiva, é entendimento jurisprudencial que tal identidade poderá dar-se por via equiparada, o que sempre se verificaria in casu, considerando a posição jurídica da aqui Ré e de CC, falecendo in totum a argumentação do Tribunal a quo.
Ademais,
XXXIII. A ratio da norma jurídica ínsita no artigo 522.º do Código Civil não contempla a autoridade do caso julgado, mas sim os efeitos do caso julgado formal e material, considerando o disposto nos artigos 628.º, 619.º e 621.º do CPC- vide, a este propósito, a anotação ao artigo 522.º do Código Civil Anotado, nos termos do qual “Diferente da invocação, por um devedor solidário, do caso julgado entre o credor e outro devedor solidário é a invocação das exceções de litispendência ou de caso julgado, para efeitos do disposto no artigo 519.º, n.º 1, 2.ª parte (v. a respetiva anotação).
XXXIV. Outrossim, sempre seria aplicável, in casu, a exceção de autoridade de caso julgado, enquanto vertente positiva do caso julgado, pelo que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nas normas jurídicas ínsitas nos artigos 522.º do CC, e 581.º do CPC, bem como os pressupostos atinentes à exceção de autoridade do caso julgado, preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido de que se verificam, in casu, os requisitos para a aplicação da exceção de autoridade do caso julgado, impondo-se na decisão a quo o que naqueloutra resultou judiciado, com as necessárias consequências legais.
Da transgressão das normas jurídicas ínsitas nos artigos 500.º do CC e 607.º n.º 4 do CPC:
XXXV. Considerou o Tribunal a quo que “(…) Assim, porquanto inexiste qualquer relação de dependência, quer situacional, emocional ou económica, que coloque a R. na posição de emitir ordens ou instruções a CC, inexiste igualmente relação de comissão entre ambos.”, entendimento que relativamente ao qual não assentimos.
XXXVI. Tal como apurado na impugnação factual supra, a Ré e a testemunha CC detinham entre si uma relação pessoal, nutrindo, pelo menos, laços de amizade, fruto do seu prévio relacionamento amoroso.
XXXVII. Sempre CC teria um interesse pessoal na realização do pedido da Ré, e sempre a Ré teria um interesse pessoal em solicitar o referido “favor” ou pedido a CC, ora em virtude dos estreitos laços que existiam, ora em virtude de a casa agora da propriedade da Ré, ter pertencido anteriormente à testemunha CC, e ter sido o portão automático em crise colocado nesse período.
XXXVIII. E mais: a Ré não se sentia à vontade para tratar de tais questões, afigurando-se notório o seu interesse pessoal.
XXXIX. Outrossim, outro não poderia ser o remate que não o de que, quer a Ré quer a testemunha CC, sempre teriam uma vantagem e um interesse pessoal ora na solicitação, ora na realização do referido pedido, estando verificados os pressupostos da subordinação, ordens e direção, ou, pelo menos, da dependência de CC, aplicando-se plenamente o instituto jurídico contemplado no artigo 500.º do CC.- vide, a tal propósito, a sapiência propalada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 14 de Janeiro de 2021, pelo Relator Alcides Rodrigues, “(…) A existência de uma relação laboral pode ser, por si, indicador da existência de uma relação de comissão, mas está longe de esgotar a possibilidade de criação de relações de comissão por via contratual (6). Na verdade, poderá abranger situações de contratos de prestação de serviços – como seja no âmbito do contrato de mandato (art. 1157.º) ou de depósito ou até de comodato (7) –, situações ocorridas fora de um contexto negocial, como seja com base em relações familiares (8) ou até de cumprimento de contratos inválidos ou ineficazes.
Decisiva é a verificação, em concreto, de um controlo e recíproca dependência entre comitente e comissário (9). (…) ”
XL. Mas, mesmo que assim não se entendesse, considerando a matéria factual que haveria que ter sido dada como provada, e atendendo às regras da lógica e da experiência comum, nos termos do artigo 607.º n.º 4 do CPC, sempre se deveria ter considerado que CC estaria sobre as instruções e direção da Ré, ou, pelo menos, sobre a sua dependência, a fim de acompanhar os trabalhos, pois que esta era a legítima proprietária da casa onde iria ser realizada a reparação do portão, sendo que o serviço a realizar seria liquidado por esta e realizado por alguém que apenas CC conhecia.
XLI. Considerando que a Ré não poderia receber o Autor e acompanhar a realização do serviço, e tendo esta entregado à testemunha CC o comando do portão com a estrita finalidade de receber o Autor, afigura-se notório que, atendendo às presunções impostas pelas regras da experiência, a intenção da Ré era que, na sua ausência, CC recebesse o Autor na sua casa, e acompanhasse a realização do serviço de reparação contratado.
XLII. E ainda que as instruções não incluíssem a verificação do serviço de reparação, incluíam a receção e acompanhamento do Autor na propriedade, em virtude da impossibilidade de comparência da Ré, tendo sido precisamente durante essa receção que o Autor sofreu os danos em discussão nos presentes autos.
XLIII. Pelo que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo interpretou e aplicou erradamente as normas jurídicas constantes dos artigos 500.º n.º 1 e n.º 2 do Código Civil, e 607.º n.º 4 do CPC, devendo ter interpretado e aplicado tais normas jurídicas no sentido da verificação, in casu, dos pressupostos da responsabilidade civil objetiva da Ré, considerando ainda as regras da experiência comum face aos indícios probatórios obtidos.
Ainda que assim não se entendesse, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, Da errada interpretação e aplicação da norma jurídica ínsita no artigo 502.º do CC.
XLIV. Não poderá assistir razão ao Tribunal a quo no entendimento propalado quanto à inaplicabilidade do artigo 502.º do CC, pois que, de acordo com a sapiência verberada por Ana Prata e à qual aderimos “Aqui, em rigor, a situação prevista é diversa: porque de responsabilidade pelo risco se trata, o que está em causa é a vantagem da utilização do animal e o perigo que ela envolve e que deve ser suportado, nas suas consequências, por quem aproveita as vantagens- não necessariamente económicas- daquela utilização, se considerarmos o risco/proveito.
XLV. A Ré era a proprietária dos canídeos, pelo que retirava as vantagens inerentes a tal propriedade.
XLVI. Considerando que os canídeos eram de grande porte, de raça Serra da Estrela, a produção dos danos sofridos pelo Autor em consequência da mordedura, insere-se no especial perigo da utilização dos animais.
XLVII. A responsabilidade objetiva não implica que haja culpa por parte da Ré, não sendo relevante que a mordedura se tenha devido a descuido por parte de CC, não sendo a referida interrupção do nexo causal (que, no nosso modesto entendimento, nem sequer se verifica) causa suficiente para a exclusão da responsabilidade objetiva da Ré, enquanto proprietária.
XLVIII. Pelo que, ao decidir como decidiu, interpretou e aplicou erradamente o Tribunal a quo o disposto nas normas jurídicas ínsitas nos artigos 500.º n.º 2 e 502.º do Código Civil, devendo ter interpretado e aplicado tais normas no sentido da verificação, in casu, dos pressupostos da responsabilidade civil da Ré e a sua condenação.
Mas ainda que assim não se entendesse, o que por mero dever de patrocínio se concebe, Da transgressão da norma jurídica constante do artigo 493.º do CC:
XLIX. Ainda que se considerasse, em última ratio, a não verificação das responsabilidades ínsitas no artigo 500.º e 502.º, haveria que equacionar-se, salvo superior entendimento, a aplicação da responsabilidade pela vigilância prevista no artigo 493.º do CC.
L. Resulta da factualidade impugnada que a Ré era a proprietária dos canídeos, detendo o conhecimento de que o Autor se deslocaria à sua residência para a reparação do portão, tal como combinado com CC.
LI. A considerar-se que CC nenhuma instrução teria, haveria ainda que equacionar-se que este não estaria encarregue de vigiar os canídeos.
LII. Em primeira linha, a responsabilidade e o encargo de vigilância caberiam ao proprietário do animal, in casu, a Ré, que não iria estar presente aquando da receção do aqui Autor.
LIII. Deixando CC receber o Autor em seu lugar, bem sabendo que os canídeos necessitam de se encontrar devidamente fechados quando recebem estranhos, considerando a sua raça e porte, a Ré não atuou com o cuidado e a diligência que lhe eram devidas.
LIV. Pelo que, e a título subsidiário, sempre haveria que judiciar-se pela condenação da Ré pelo incumprimento do dever de vigilância que sobre si impendia, tendo o Tribunal transgredido a norma jurídica constante do artigo 493.º n.º 1 do CC.
Alfim,
LV. Reapreciando a factualidade e juridicidade invocada nos autos, revogando a decisão revidenda e substituindo-a por uma que judicie pela condenação da Ré, farão Vossas Excelências inteira e sã Justiça.
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Devidamente notificada contra-alegou a Ré concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são duas as questões que importa apreciar:
a) - saber se tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b) - saber se verifica, ou não, a autoridade de caso julgado;
c) - decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. O A. é sócio gerente da sociedade comercial A..., Lda., que se dedica à fabricação de estruturas de construções metálicas.
2. A R. solicitou, como especial favor, a CC, seu ex-companheiro, que contactasse o serralheiro que seria habitualmente contratado por este para o mesmo tipo de serviços, a fim de arranjar o portão automático da sua casa, sita na Rua ..., ... ..., ....
3. Ao que este acedeu.
4. À data, a R. detinha dois canídeos de raça Serra da Estrela, de nome ... e….
5. A R., consciente de que o A. se iria deslocar à sua residência num qualquer dia daquela semana, fechou os canídeos na jaula onde habitualmente pernoitavam.
6. Nesse seguimento, CC contactou, telefonicamente, em dia não concretamente apurado, o A., solicitando os seus serviços para arranjo do referido portão.
7. Na manhã do dia 05/02/2018, dias após ter havido o contacto referido em 6., o A. e CC combinaram deslocar-se à residência da R. para os fins suprarreferidos, o que fizeram.
8. Pouco antes de o A. chegar, CC deslocou-se à jaula para brincar com os canídeos.
9. Em hora não concretamente apurada, mas naquela manhã, o A. contactou, telefonicamente, CC, no sentido de lhe informar que já se encontrava à porta da residência da R.
10. Pouco tempo depois, CC abriu o portão ao A. e, quando este se encontrava a verificar o automatismo do portão de entrada, os dois canídeos surgiram a correr, em direção ao A., tendo um deles, ..., mordido a perna esquerda deste.
11. Aquando da sua saída da jaula, CC não se assegurou que os mecanismos de fecho da jaula se encontravam devidamente cerrados, o que permitiu que os canídeos se tivessem soltado.
12. CC estava ciente de que, quando foi visitar os canídeos, deveria ter-se certificado que os mesmos se encontravam devidamente enclausurados, porquanto iria receber uma pessoa estranha aos mesmos.
13. Durante o ataque, o A. temeu pela sua segurança.
14. Do evento, e como consequência direta da mordedura do canídeo, resultou para o A. as seguintes lesões e sequelas no membro inferior esquerdo:
i. Área cicatricial hipercrómica, irregular e distrófica, com 16 por 8,5 cm de maiores dimensões, localizada na face medial do terço superior da perna;
ii. Cicatriz linear hipercrómica que circunda a região rotuliana, perfazendo uma área oval com aproximadamente 16 por 6 cm de maiores eixos perpendiculares, com região central de pele lisa, não dismórfica;
iii. Duas cicatrizes aproximadamente ovais, paralelas entre si, de orientação horizontal, localizadas na face anterolateral do terço superior da perna, a mais superior com 1 por 0,2 cm de maiores dimensões, a mais inferior com 1,3 por 0,4 de maiores dimensões, distando cerca de 1 cm entre si;
iv. Cicatriz vertical arqueada, hipercrómica, com 2 por 0,4 cm de maiores dimensões, localizada na face lateral do terço superior da perna.
15. E no membro inferior direito: mobilidade do joelho preservada, mas dolorosa na região da tuberosidade tibial nos últimos graus do arco de flexão; e força muscular de grau 5.
16. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 15/06/2018.
17. Também em consequência do evento, o A. viu restringida a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida, em absoluto, no período compreendido entre 08/03/2018 e 12/03/2018 e entre 22/03/2018 e 26/03/2018, num total de 10 dias.
18. De igual modo, viu parcialmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária desde 05/02/2018 até 07/03/2018, entre 13/03/2018 e 21/03/2018, e entre 27/03/2018 e 15/06/2018, num total de 121 dias.
19. O A. esteve incapacitado para o exercício da sua atividade profissional entre 05/02/2018 e 15/06/2018, num total de 131 dias.
20. Experienciou, ainda, dores físicas e psíquicas, entre a data do evento e a consolidação das lesões, vulgo quantum doloris, fixável em grau 3 numa escala de 7.
21. Em consequência do evento supra descrito, o A. sofre, ainda hoje, de mal-estar e de dores residuais de caráter permanente na perna esquerda.
22. O A. não recorre a medicação para o alívio das dores que ainda hoje sofre, nem as dores que eventualmente continuará a sofrer no futuro requerem uso habitual de medicação para alívio sintomático.
23. A afetação da mente do A. resultante do evento, com repercussão nas suas atividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais, vulgo défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, é fixável em 6 pontos.
24. As sequelas sofridas pelo A. não são impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares.
25. Do evento resultou para o A. degeneração estética fixável no grau 3 numa escala de 7 graus.
26. O A. deixou, ainda em consequência do evento, de frequentar a praia por vergonha de expor o seu corpo, nomeadamente as cicatrizes resultantes do evento.
27. Prejuízo que é fixável em 1 ponto numa escala de 7.
28. As cicatrizes que originaram do evento supramencionado são permanentes e visíveis a uma distância social.
29. À data do evento, o A. apresentava já quadro prévio de anquilose do joelho esquerdo em extensão completa, de «pé pendente», com incapacidade total de fletir aquele joelho, de hipotrofia da coxa e encurtamento deste membro, resultantes de um quadro de carcinoma de células gigantes ocorrido em 1985 e intervencionado no Centro Hospitalar ... em 1988.
30. O que lhe determinava incapacidade fixada em 33 pontos.
31. O A. apresenta, ainda, as seguintes sequelas que não são consequência do evento descrito em 10.:
i. Membro inferior esquerdo: hipotrofia evidente global do membro inferior, com perimetria da coxa a 15 cm da interlinha articular de 35 cm (versus 44 cm à direita);
ii. Encurtamento do membro inferior esquerdo - medição real [espinha ilíaca
antero-superior ao maléolo medial] de 83 cm versus 91 cm à direita; medição
aparente [cicatriz umbilical ao maléolo medial] de 93 cm versus 99 cm à direita);
iii. Joelho anquilosado em extensão completa; tornozelo com limitação marcada da mobilidade;
iv. Pé pendente, sem dorsiflexão;
v. Incapacidade de efetuar a extensão dos dedos do pé;
vi. Força muscular grau 4 e global (grau 5 à direita);
vii. Efetua marcha com extensão completa do membro inferior esquerdo e pé
esquerdo pendente [no dia a dia usa bota com suporte de cunha no pé esquerdo];
viii. Efetua marcha em pontas;
ix. Impossibilidade de marcha em calcanhares por incapacidade de efetuar a dorsiflexão do tornozelo esquerdo;
x. Cicatrizes resultantes de intervenção cirúrgica em 1988 já acima descrita: cicatriz hipocrómica ténue envolvendo a face anterior dos terços médio e inferior da coxa, com cerca de 15 cm de comprimento; cicatriz hipocrómica ténue com cerca de 5 cm de comprimento, localizada na face anteromedial do terço inferior da coxa; complexo cicatricial hipercrómico infrarrotuliano ocupando área de 2 cm de maior eixo.
32. O A. nasceu a ../../1956.
33. À data do ataque, o A. trabalhava na empresa referida em 1., exercendo funções de manutenção e colocação de automatismos e serralharia.
34. Em consequência do evento, o A. suportou despesas médicas e medicamentosas, referentes a consultas, tratamentos, medicamentos, e intervenções cirúrgicas, no valor de 11.089,69€.
35. Não é previsível que as sequelas supra descritas determinem, no futuro, a realização de exames ou de tratamentos, cirúrgicos ou não, complementares.
36. O A. formulou pedido de indemnização civil contra CC, no âmbito do processo crime n.º 2160/18.5T9MTS, que aí figurava como arguido, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 21.808,30€, com base no mesmo evento supra descrito, sendo 11.808,30€ a título de danos patrimoniais e 10.000,00 € a título de danos não patrimoniais, e o demais que se liquidasse em execução de sentença.
37. Por sentença proferida a 09/03/2020, no âmbito do processo aludido em 36., julgou-se «parcialmente provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo lesado AA contra o arguido, condenando este no pagamento àquele da quantia de 608,12€, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a data da notificação do pedido cível, a título de indemnização por danos patrimoniais, e no pagamento da quantia de 3.500,00€, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a data desta sentença, a título de compensação por danos não patrimoniais».
38. Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do mesmo processo, e transitado a 18/11/2020, julgou-se “parcialmente procedente o recurso interposto pelo lesado/demandante civil AA e em consequência alterando a decisão recorrida: Condena o arguido/demandado CC a pagar ao lesado/demandante civil a quantia de dezanove mil cinquenta e oito euros e trinta cêntimos, sendo sete mil e quinhentos euros por danos não patrimoniais, e onze mil quinhentos e cinquenta e oito euros e trinta cêntimos por danos patrimoniais sendo estes acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a data da notificação do pedido cível”.
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Factos não provados
Não se provou que:
a) Em consequência do evento descrito em 10., o A. sente dores e mal-estar ao deslocar-se.
b) Foi a R. que solicitou a CC que se deslocasse à sua residência e acompanhasse os arranjos que o A. iria efetuar no portão da entrada.
c) À data do ataque, o A. auferia um rendimento líquido de 725,37€.
d) Das contusões sofridas pelo A. resultaram as seguintes sequelas e lesões no membro inferior esquerdo:
1.1. Entre as duas cicatrizes horizontais e a cicatriz arciforme, apresenta tumefação mole, com dores à palpação da mesma, por se tratar do local onde foi mordido pelo canídeo;
1.2. Edema ligeiro, ao nível da perna esquerda, de predomínio no seu terço inferior, que resultou num período de doença fixável em 249 dias, com afetação da capacidade de trabalho geral, tendo, no período de tempo dos 249 dias, 10 deles sido em regime de internamento hospitalar, e com a afetação da capacidade de trabalho profissional, igualmente por 249 dias, dos quais 10 em regime de internamento hospital.
e) Com a redução da sua capacidade laboral, o A. viu o rendimento por si auferido diminuído.
f) O cão ... atacou o A. após ter sido provocado por este.
g) As lesões e sequelas sofridas pelo A. suprarreferidas são também consequência de mazelas de que o mesmo já padecia anteriormente ao evento supra descrito.
h) O A. recusou-se a colocar a sua perna dentro do carro, contra a expressa advertência de CC, o que permitiu que o canídeo o alcançasse.
i) O A. propôs anterior ação contra a R., com o n.º de processo 2160/18.5T9MTS, na qual a R. foi absolvida.
j) O A. propôs a presente ação, alegando os mesmos factos nos quais se baseou o pedido de indemnização civil por si formulado contra CC, e repetindo, parcialmente, o aí pedido, com o propósito de conseguir uma acumulação de indemnizações.
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III. O DIREITO

Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
b)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões o recorrente abrange, com o recurso interposto, a impugnam a decisão da matéria de facto, não concordando quer com a resenha dos factos provados quer não provados.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[2]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[3]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[4]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[5]
Importa, porém, não esquecer porque, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[6]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão ao Autor apelante neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele pretendidos.
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O ponto 2. da resenha dos factos provados tem a seguinte redação:
A R. solicitou, como especial favor, a CC, seu ex-companheiro, que contactasse o serralheiro que seria habitualmente contratado por este para o mesmo tipo de serviços, a fim de arranjar o portão automático da sua casa, sita na Rua ..., ... ..., ...”.
Alega o apelante que o citado ponto devia antes ter a seguinte redação:
“A R. solicitou, a CC, seu ex-companheiro, que contactasse o serralheiro que seria habitualmente contratado por este para o mesmo tipo de serviços, a fim de arranjar o portão automático da sua casa, sita na Rua ..., ... ..., ....”
Pretende, assim, o apelante que o facto em causa seja expurgado da expressão “por especial favor”.
Ora, como se torna evidente a expressão em causa assume uma natureza conclusiva, pois que, implica uma avaliação ou julgamento sobre a natureza do favor concedido.
Como assim, a referida expressão não devia constar do ponto mencionado, já que na fundamentação da sentença devem apenas constar factos (cf. artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Desta forma, elimina-se do ponto referido ponto a citada expressão.
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O ponto 16. dos factos provados tem a seguinte redação:
”A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 15/06/2018”.
Propugna o apelante que o referido ponto devia antes ter a seguinte redação:
”A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 12/10/2018.”
Para o efeito convoca o depoimento da testemunha DD, médica perita que examinou o Autor no processo crime n.º 2160/18.5T9MTS.
Das conclusões do relatório elaborado pelo IML datado de 23/08/2021, no qual o tribunal recorrido assentou o seu juízo probatório, consta o seguinte:
A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 15.06.2018”.
Conclusão com a qual o apelante se conformou, pois que, nos esclarecimentos que solicitou em 17/10/2022 nada refere sobre a mesma.
Para além disso, como se torna evidente o relatório do IML sendo colegial, assume preponderância probatória em relação ao depoimento individual da testemunha em causa, não obstante os seus conhecimentos médicos.
É verdade, que os exames médico-legais, mesmo quando efetuados nos Institutos de Medicina Legal, não têm valor como meio de prova plena, sendo que apenas correspondem a meras apreciações técnicas, por mais qualificadas que sejam, a apreciar livremente pelo tribunal (cf. artigo 389.º do CCivil), embora, importa reconhecê-lo, sejam revestidas de um muito especial valor, face à natureza dos técnicos que neles intervieram, seja médico-legistas, especialmente conhecedores da matéria e com qualificação insuspeita.
Nestes termos e dentro do principio da livre apreciação suprarreferida, não se divisa com que fundamento se deva valorar o depoimento da testemunha em causa em detrimento da resposta colegial dada pelos peritos do IML à questão da consolidação da lesões sofridas pelo apelante.
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Deve, assim o citado facto constar do elenco dos factos provados com a mesma redação.
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E as mesmas considerações valem, mutatis mutandis, em relação aos pontos 18. e 19. dos factos provados.
Com efeito, também eles têm como suporte probatório o referido relatório do IML que, como acima referido deve ser valorado, em detrimento do depoimento da testemunha DD e do relatório de clínica forense por ela subscrito individualmente em 11/02/2019 e junto pelo apelante em 21/05/2021.
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Portanto, também esses pontos devem continuar com a mesma redação na resenha dos factos provados.
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O ponto 34. dos factos provados tem a seguinte redação:
“Em consequência do evento, o A. suportou despesas médicas e medicamentosas, referentes a consultas, tratamentos, medicamentos, e intervenções cirúrgicas, no valor de 11.089,69€”. 
Pretende o apelante que o citado ponto deve passar a ter a seguinte redação:
“Em consequência do evento, o A. Suportou despesas médicas e medicamentosas, referentes a consultas, tratamentos, medicamentos e intervenções cirúrgicas, no valor de 11.429,69 €.
Na motivação da decisão da matéria de facto o tribunal recorrido e relativamente ao referido ponto discorreu do seguinte modo:
Foram excluídas as despesas constantes das faturas juntas com o doc. 3 da PI, porquanto se reportam quer a medicamentos, exames, consultas, operações ou outros atos médicos relevantes referentes quer a datas anteriores ao evento danoso (05/02/2018), quer referentes a datas ulteriores à data de consolidação das lesões (15/06/2018) e que não se enquadram nos critérios supra aludidos para confirmar ou fazer presumir a sua conexão com as lesões/sequelas sofridas em consequência do evento danoso.
O mesmo se entendeu quanto à fatura n.º ...01, datada de 03/07/2018 junta com o requerimento de 18/09/2023”.
Salvo o devido respeito por diferente opinião, acompanha-se na íntegra a referida fundamentação.
Na verdade, tal como refere, e bem, o tribunal recorrido, as faturas juntas com o doc. 3 da petição inicial reportam-se quer a medicamentos, exames, consultas, operações ou outros atos médicos relevantes referentes quer a datas anteriores ao evento danoso (05/02/2018), quer referentes a datas ulteriores à data de consolidação das lesões (15/06/2018).
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Desta forma, deve o referido ponto continuar a constar dos factos provados com a mesma redação.
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A al. b) da resenha dos factos não provados tem a seguinte redação:
Foi a R. que solicitou a CC que se deslocasse à sua residência e acompanhasse os arranjos que o A. iria efetuar no portão da entrada”.
Alega o apelante que a citada al. devia integrar os factos provados.
Convoca para o efeito o depoimento de parte da Ré e o depoimento da testemunha CC.
O tribunal recorrido relativamente à al. em questão motivou da seguinte forma:
“Em b), concatenaram-se as declarações da R. com o depoimento de CC, tendo este aclarado como se oferecera para receber o A. na residência daquela que já tinha sido sua: “não queria deixar a BB enrascada, ela trabalhava das 8 da manhã às 8 da noite, e como eu trabalhava por conta própria, por serviços encomendados […].
Também a R. mostrou desconhecer o dia exato em que o A. iria lá, nem fez referência a ter pedido a CC para lá estar, mas sim a ter pedido que encetasse contacto e combinasse com o habitual serralheiro uma ida à sua residência”.
Ora, ouvidos, quer o depoimento de parte que o depoimento da testemunha CC, deles não se retira a realidade factual que encerra a al. b) dos factos não provados.
Efetivamente, o que deles retira é que a Ré solicitou à testemunha CC que encetasse contacto e combinasse com o habitual serralheiro uma ida à sua residência para arranjar o portão automático da sua casa, realidade factual que, aliás, já consta do ponto 2. dos factos provados.
E foi na sequência dessa solicitação, que a testemunha CC para, nas suas palavras “(…) não queria deixar a BB enrascada, ela trabalhava das 8 da manhã às 8 da noite, e como eu trabalhava por conta própria (…),” acedeu a tal pedido (cf. ponto 3. dos factos provados), ou seja, estar presente quando o apelante lá fosse executar o arranjo (cf. ponto 3. dos factos provados).
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Deve, assim, continuar a constar dos factos não provados a mencionada al. b).
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Pretende depois o apelante que deviam ser dados como provados os seguintes factos:
i. O portão da casa da Ré que carecia de reparação, foi instalado pelo Autor, no período em que o proprietário da casa era CC.
ii. A Ré e CC tiveram, no passado, uma relação profissional e amorosa, mantendo entre si, à data dos factos do processo, uma relação de índole pessoal.
iii. À data dos factos, a Ré, em virtude do exercício da atividade profissional, saía cedo para trabalhar, e voltava tarde do trabalho, não lhe sendo possível, nesse horário, receber o Autor para a realização do serviço de reparação do portão.
iv. A Ré entregou o comando do portão a CC, com a finalidade de que este recebesse o Autor na sua casa para a realização da reparação do seu portão.
v. Era a Ré que iria pagar a realização do serviço de reparação ao Autor.
vi. O Autor não foi ressarcido de qualquer montante relativamente ao processo n.º 2160/18.5T9MTS.
Importa, desde logo, salientar que os pontos em causa terão resultada da instrução da causa, pois que, em nenhures das peças processuais apresentadas pelas partes foram alegados.
Por outro lado, segundo nos é dado entender, esses factos serão, na ótica do Autor apelante, meramente instrumentais tendentes a contribuir para a prova, ou pelo menos, para o indício probatório, do facto não provado constante da al. b), concatenado com as máximas da experiência comum.
É que se não forem considerados instrumentais, nunca este tribunal ad quem podia dá-los como provados.
Analisando.
O artigo 5.º do CPCivil define em sede de matéria de facto o que constitui o ónus de alegação das partes e como se delimitam os poderes de cognição do tribunal.
Assim, nos termos do seu n.º 1, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
Todavia, o n.º 2 acrescenta que além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Resulta desta norma que o tribunal deve considerar na sentença factos não alegados pelas partes. Não se trata, contudo, de uma possibilidade sem limitações.
Desde logo, não cabe ao juiz supor ou conceber factos que poderão ter relevo, é necessário que estejamos perante factos que resultem da instrução da causa, isto é, factos que tenham aflorado no processo através dos meios de prova produzidos e, portanto, possuam já alguma consistência prática, não sejam meras conjeturas ou possibilidades abstratas.
Por outro lado, o juiz só pode considerar factos instrumentais e, quanto aos factos essenciais, aqueles que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado. E isto é assim porque mesmo no novo Código de Processo Civil o objeto do processo continua a ser delimitado pela causa de pedir eleita pela parte [artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea d), 581.º e 615.º, n.º 1, alínea d), segunda parte] e subsistem ainda as limitações à alteração dessa causa de pedir (artigos 260.º, 264.º, 265.º).
Portanto, mesmo que tais fossem considerados como complemento ou concretização dos que o apelante alegou (sendo essenciais tinham, como supra referido, de ter sido alegados), a sua consideração oficiosa, não pode ser feita sem que as partes se pronunciem sobre ela, ou seja, o juiz, ante a possibilidade de tomar em consideração tais factos, tem que alertar as partes sobre essa sua intenção operando o exercício do contraditório e dando-lhe a possibilidade de arrolar novos meios de prova sobre eles.
Ora, não tendo o Sr. juiz do processo feito uso desta possibilidade, teria de ter sido a parte, em momento oportuno, a impetrar requerimento com vista a que tais factos fossem considerados pelo tribunal.
Como assim, não o tendo feito, esta Relação nunca poderia substituir-se à 1.ª instância e valorar já em termos definitivos a prova produzida quanto aos novos factos, ampliando em 2.ª instância a matéria de facto sem que previamente, em fase de audiência de julgamento, as partes estejam alertadas para essa possibilidade e lhes seja facultado produzir toda a prova que entenderem.
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São, portanto, os referidos factos meramente instrumentais.
Mas pergunta-se: qual a sua relevância jurídica em termos das várias soluções plausíveis da questão de direito colocada nos autos?
A resposta é simples: nenhuma.
 Com efeito, os referidos factos, mesmo que fossem julgados provados não integrariama factie species de qualquer das normas jurídicas convocadas pelas partes para a decisão do pleito e, concretamente, os artigos 500.º, 502.º e 493.º do CCivil.
Ora, atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
Como refere Abrantes Geraldes,[7]De acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objeto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) n) Abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
Bem pode dizer-se, pois, que a impugnação da decisão sobre matéria de facto, neste conspecto, é mera manifestação de “inconsequente inconformismo[8], razão pela qual nos abstemos de reapreciar relativamente aos pontos em questão.[9]
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Como assim, temos de convir, salva outra e melhor opinião, que as discordâncias que o apelante convoca para que se imponha uma decisão diversa sobre a impugnação da matéria de facto em causa, não são de molde a sustentar a tese que vem por ele expendida, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo que afirmar ter a Mmª juiz captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem.
Numa apreciação distante, objetiva e desinteressada esta é a única conclusão lícita a retirar, refletindo a fundamentação dos factos os meios probatórios trazidos aos autos que não podiam conduzir a conclusão diversa, que sempre teria de ser alicerçada em certezas e sem margem para quaisquer dúvidas.
Conclui-se, por isso, que o tribunal de forma fundamentada, fez uma análise crítica e ponderada todos os meios probatórios, e, reavaliada essa prova, apenas haverá que sufragar tal decisão com a alteração pontual relativamente ao ponto 2. dos factos provados nos moldes que ficaram decididos.
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Improcedem, assim, em parte, as conclusões II a XXVI formuladas pelo apelante.
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Inalterada a fundamentação factual (exceto no que tange à redação do ponto 2. dos factos provados) analisemos agora:
b)- se a sua subsunção jurídica se encontra, ou não, corretamente feita.
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1- A questão da autoridade do caso julgado.
No requerimento impetrado em 18/09/2023 o apelante veio solicitar que, no que se refere à concreta responsabilidade civil de CC a única apreciada em ambos os processos, bem como relativamente às lesões por si sofridas, fosse aplicado positivamente a autoridade do caso julgado, dando por assente os elementos constitutivos de tal responsabilidade.
Como se evidencia da decisão recorrida o tribunal a quo proferiu, quanto a essa questão, a seguinte decisão:
Pelo que, por falta de coincidência de sujeitos, e por ser inoponível a força de caso julgado à aqui R., nos termos do art. 522.º do Código Civil, é improcedente a exceção de autoridade de caso julgado, o que se decide”.
Quid iuris?
Importa, desde logo, salientar que não há nenhuma exceção de autoridade do caso julgado, ou seja, a autoridade do caso julgado não é uma exceção dilatória, é antes a invocação de uma decisão para efeitos de se dizer que um dos elementos da causa de pedir da nova ação já está assente num determinado sentido e não pode ser decidido noutro. Ou seja, invoca-se a autoridade do caso julgado para se dar como assente um dos elementos da causa de pedir da nova ação, não para obstar ao conhecimento do mérito da nova ação.
Assim, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[10], “A exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela exceção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. […]. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há de ser proferida […]”.
No mesmo sentido, veja-se o comentário de Miguel Teixeira de Sousa[11]o acórdão contém uma inesperada alusão a uma exceção de autoridade de caso julgado. Trata-se, efetivamente, de algo inexistente. […] o caso julgado produz um efeito positivo e um efeito negativo: O efeito positivo é a autoridade de caso julgado: o tribunal posterior fica vinculado ao decidido pelo tribunal anterior (quase sempre sobre uma questão prejudicial para o julgamento da segunda ação); O efeito negativo é a exceção de caso julgado: o tribunal posterior não pode voltar a julgar, entre as mesmas partes, o que já foi julgado pelo tribunal anterior; esta exceção é uma exceção dilatória nominada (art.º 577.º, al. i, CPC). Já daqui resulta que não pode existir nenhuma exceção de autoridade de caso julgado, desde logo porque esta expressão conjuga dois efeitos incompatíveis: o referido efeito positivo do caso julgado e o seu referido efeito negativo. […]”).
Conforme se refere no Acórdão do STJ de 26/02/2019[12]Esta distinção tem justamente por pressuposto que, na autoridade de caso julgado, existe uma diversidade entre os objetos dos dois processos e na exceção uma identidade entre esses objetos. Naquele caso, o objeto processual decidido na primeira ação surge como condição para apreciação do objeto processual da segunda ação; neste caso, o objeto processual da primeira ação é repetido na segunda.
Na exceção, a repetição deve ser impedida, uma vez que só iria reproduzir inutilmente a decisão anterior ou decidir diversamente, contradizendo-a.
Na autoridade, há uma conexão ou dependência entre o objeto da segunda ação e o objeto definido na primeira ação, sem que aquele se esgote neste. Aqui, impõe-se que essas questões comuns não sejam decididas de forma diferente, devendo a decisão da segunda ação acatar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível”.
Daí que se considere que, ao contrário do que acontece com a exceção de caso julgado (cujo funcionamento pressupõe a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir–cfr. artigo 580.º, nº 1, do CPC), a invocação e o funcionamento da autoridade do caso julgado dispensam a identidade de pedido e de causa de pedir.[13]
Isto não significa, porém, que a autoridade do caso julgado possa valer fora dos limites definidos pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir, sendo certo que, conforme resulta do disposto no artigo 619.º do CPCivil, é apenas dentro desses limites que a decisão adquire a força de caso julgado.
Aquilo que se impõe por força da autoridade do caso julgado é a definição–feita por decisão transitada em julgado–da concreta relação jurídica que aí foi delimitada pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir. Mas a definição dessa concreta relação jurídica–assim delimitada–impõe-se e é vinculativa para os respetivos sujeitos no âmbito de qualquer outro litígio que entre eles venha a ocorrer e que tenha como pressuposto ou condição aquela relação e por isso se afirma que o funcionamento da autoridade do caso julgado não exige a identidade de pedido e causa de pedir; tal autoridade pode, de facto, impor-se no âmbito de ação posterior com pedido e causa de pedir diversas nas circunstâncias supra mencionadas, vinculando as partes e o Tribunal e evitando, dessa forma, que a relação ou situação jurídica já definida por decisão transitada em julgado seja novamente apreciada para o efeito de decidir o objeto da segunda ação.
Todavia, não prescinde, por via de regra, da identidade dos sujeitos.
Isto porque o objetivo é o de que a questão que ficou definitivamente decidida naquela ação se imponha necessariamente em todas as posteriores ações que venham a correr entre as mesmas partes, ainda que com um objeto diverso, mas em que a apreciação dependa decisivamente do objeto previamente julgado, perspetivando-se como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda ação.
Como se refere no Ac. do STJ de 12/12/2023[14]A vinculação a uma decisão transitada em julgado exige, todavia, que os titulares de relações juridicamente afetáveis tenham tido a oportunidade de nela influir: é este o fundamento do princípio do contraditório, princípio fundamental do processo (cfr. artigo 3.º do Código de Processo Civil e n.º 4 do artigo 20.º da Constituição).
É o princípio do contraditório que justifica a oponibilidade relativa do caso julgado, não se encontrando fundamento material para distinguir, quanto a este ponto, a oponibilidade do caso julgado enquanto releva numa ação subsequente a título apenas prejudicial ou como causa impeditiva da repetição de ações.
Embora não seja uma interpretação isenta de divergências, entende-se que o princípio do contraditório exige que a oponibilidade da força e autoridade do caso julgado pressuponha, portanto, a identidade de sujeitos” (negrito e sublinhados nossos).[15]
Veja-se, em ilustração, o que se diz Acórdão deste Supremo Tribunal de 11/11/2020[16] “Quanto à alegada ofensa da autoridade do caso julgado formado na segunda ação anterior invocada importa ter presente que a jurisprudência do STJ vem admitindo–em linha com a doutrina tradicional–que a autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, sem dispensar, porém, a identidade subjetiva. Significando que tal dispensa se reporta apenas à identidade objetiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objeto da segunda ação e o objeto da primeira”.
Postos breves considerandos é notório, desde logo, que não existe identidade de sujeitos nesta ação e naquela outra que correu termos sob o n.º 2160/18.5T9MTS no T.J.C.-Porto- Juízo Local Criminal de Matosinhos-J3.
Na decisão recorrido e sob este conspecto discorreu do seguinte modo:
“Tanto a jurisprudência como a doutrina definem a identidade de sujeitos, não de acordo com a mera coincidência nominal de sujeitos, sendo dela independente, mas antes segundo critérios materiais: assim, haverá identidade quando “as partes sejam as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, ou seja, não apenas aquelas que intervieram formalmente no processo, [mas também quando sejam] portador[a]s do mesmo interesse substancial quanto à relação jurídica em causa”–v.g. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Pires de Sousa, em Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, 2021, Almedina, págs. 685-686.
Ou como escreve Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, 1979, págs. 309 e 310: “A identidade das partes para tal efeito não é a simples identidade física. Tem lugar quando as partes nos dois processos sejam «as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (…). E sê-lo-ão, fundamentalmente, quando os litigantes no novo processo forem as próprias pessoas que pleitearam no outro, ou sucessores delas (entre vivos ou mortis causa), na relação controvertida: herdeiros, legatários, donatários, compradores, cessionários. As partes no novo processo serão, pois, idênticas às do anterior quando sejam pessoas que na relação ventilada ocupem a mesma posição que, ao tempo, estas ocupavam».
No caso vertente, é notório que a aqui R. não figura como parte na ação cível enxertada no processo crime que correu contra a pessoa de CC, que aí figura não só como arguido, mas como único demandado.
Na verdade, a R. não foi demandada nessa sede, nem nela interveio de alguma forma, pelo que, consequentemente, também não defendeu (nem lhe foi permitido defender) aí nenhum interesse.
Já na presente lide, CC também não tem qualquer intervenção a título principal ou acessório, assumindo a mera qualidade de testemunha, isto é dizer que o mesmo não age, nem teria legitimidade para agir, na prossecução de um qualquer interesse próprio, visto que da procedência ou improcedência da ação não lhe advirá nenhuma utilidade ou prejuízo.
Sem prejuízo do que se veio de expor, deve aceitar-se, em determinadas situações, a extensão da força do caso julgado a terceiros que não figurem como partes na ação primitiva.
Assim, a força do caso julgado há de impor-se também àqueles que, embora não sendo partes, se encontrem legalmente abrangidos por via da sua eficácia direta ou reflexa, beneficiando do efeito favorável, como sucede, designadamente, nas situações de solidariedade entre devedores, de solidariedade entre credores e de pluralidade de credores de prestação indivisível, respetivamente nos termos dos artigos 522.º, 2.ª parte, 531.º, 2.ª parte, e 538.º, n.º 2, do CC (vide acórdãos do STJ, de 12/01/2021, proc. n.º 2030/11.8TBFLG-C.P1.S1; e de 26/11/2020, proc. n.º 7597/15.9T8LRS.L1.S1).
Também não é esse, porém, o caso dos autos.
Nos termos em que a presente ação se acha perspetivada, a R. é demandada na qualidade de comitente, por factos ilícitos da banda do comissário, CC –isto é, com fundamento na responsabilidade pelo risco do art. 500.º do Código Civil–o qual foi já condenado por sentença proferida e transitada em julgado, com base na sua responsabilidade civil aquiliana pela prática dos mesmos factos que nesta lide se lhe imputam.
O que significa que, ainda que apenas seja demandada a alegada comitente, esta o é com fundamento na existência de uma responsabilidade partilhada, em que tanto aquela como o alegado comissário responderiam solidariamente pelos danos invocados (cfr. art. 507.º, n.º 1, do Código Civil).
Em sede de relações solidárias, dispõe o art. 522.º do Código Civil que “o caso julgado entre o credor e um dos devedores não é oponível aos restantes devedores, mas pode ser oposto por estes, desde que não se baseie em fundamento que respeite pessoalmente àquele devedor”.
In casu, é o A., que se arroga credor, que pretende prevalecer-se de um título que detém sobre um dos seus alegados condevedores contra outra alegada codevedora, nomeadamente na parte em que o dispensa de provar a pressuposta responsabilidade daquele comissário.
Em situações com a vertente, a lei permite tão-só o aproveitamento ao codevedor do efeito de caso julgado, quando aquele lhe seja favorável, vedando já ao credor que o oponha.
De qualquer modo, não tendo o A. imputado qualquer culpa à R., ou carreado qualquer factualidade que o suportasse, em caso de procedência do pedido, sempre a responsabilidade da R. estaria balizada nos termos do art. 500.º, n.º 3, do Código Civil, isto é sempre se estaria no domínio da solidariedade imperfeita, uma vez que a R. aqui seria responsável apenas e tão-só nas vestes de garante”.
Ora, acompanha-se na íntegra o assim decidido por traduzir a real situação dos autos e que, portanto, dispensa outra ordem de considerações, por desnecessárias.
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Como assim, por falta de coincidência de sujeitos, e por ser inoponível a força de caso julgado à aqui Ré/apelada, nos termos do art. 522.º do Código Civil, não se pode fazer uso da autoridade do caso julgado, como propugna o apelante.
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Mas ainda que assim não fosse, na decisão prolatada na ação que correu seus termos sob o n.º 2160/18.5T9MTS no T.J.C.-Porto- Juízo Local Criminal de Matosinhos-J3, verifica-se que CC é condenado por via da responsabilidade criminal, nela não se verificando qualquer referencia que permita imputar à Ré responsabilidade civil alguma, muito menos pelo risco.
Por outro lado, não existe segmento algum, na mesma decisão, que determine a existência de uma relação de comitente e comissário na presente lide, pelo contrário, o que aí se verificou foi que CC, na ausência e sem o conhecimento de BB, soltou, por negligência os cães e, um deles mordeu o apelante, ou seja, na referida não foi discutida a questão da relação de comissão.
O apelante perece olvidar que, como veremos mais à frente, a relação de comissão exige mais que a simples responsabilidade do comissário, sendo esta apenas um dos seus requisitos.
Ora, não está controvertido nos autos de que, efetivamente, o mencionado CC foi condenado criminalmente no âmbito do citado processo, bem como no pedido civil aí deduzido (cf. pontos 36. a 38. dos factos provados), razão pela qual não se percebe que outro efeito, pretendia o recorrente que fosse abrangido pela autoridade que não o que consta desses factos.
Mas, porventura, estão assentes nessa decisão factos suscetíveis de preencher a facti species do artigo 500.º do CCivil, isto é, a existência qualquer relação de comissão entre o referido CC e a Ré e, concretamente que este atuou nas vestes de comissário?
No que concerne à extensão da autoridade do caso julgado relativamente à extensão dos danos e lesões sofridas pelo apelante, labora o mesmo, salvo o devido respeito, em manifesto equivoco.
No fundo, está o recorrente a dizer/defender que a decisão de facto proferida no referido processo-crime se impõe, pela autoridade do caso julgado, sobre a decisão de facto proferida nestes autos.
Porém, e salvo sempre o devido respeito, fá-lo sem qualquer razão, isto é, sem qualquer consistência jurídica.
Com efeito, como constitui entendimento claramente prevalecente, o caso julgado incide sobre a decisão e não abrange os seus fundamentos de facto.
Neste sentido, elucida o prof. Antunes Varela[17]Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final.”
Mo mesmo sentido, aponta igualmente o prof. Teixeira de Sousa[18]  quando afirma que “os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressupostos, valor de caso julgado.”
No âmbito jurisprudencial, pode referir-se, por ex., o Ac. do STJ de 02/03/2010[19], onde se afirma, a dado passo, que “(…) a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela. Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente.”
Refira-se, ainda, por último, o Ac. do STJ de 05/05/2005[20]  ao decidir que “Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objeto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respetiva decisão judicial. Transpor os factos provados numa ação para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.
E em reforço de tal entendimento, e mais ainda quando está em causa a autoridade de uma sentença de natureza criminal (como sucede no caso presente), veja-se o disposto nos artºs. 623.º, e 624.º, nº. 1, do CPCivil, de onde se extrai que as decisões de facto proferidas em decisões penais, quer condenatórias quer absolutórias, podem ser elididas (ou seja, contrariadas) em processos de natureza cível.
Neste contexto, os factos constantes do acórdão proferida no sobredito processo crime não se impõem neste processo por força da autoridade do caso julgado, contrariamente ao que defende o Autor apelante.
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Improcede, assim, as conclusões XXVII a XXXIV formuladas pelo apelante.
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2- A questão da relação de comissão
Importa salientar, antes de avançarmos na análise desta questão, que o que releva, tendo em vista a subsunção jurídica, é a base factual que nos autos se mostra assente e não qualquer outra.
Isto dito, defende o apelante que, contrariamente ao decidido pelo tribunal recorrido, no caso em apreço se encontra preenchida a factie species do artigo 500.º do CCivil.
Que dizer?
Para além do que a esse respeito consta da fundamentação da decisão recorrida e com o qual se concorda inteiramente, e, que por desnecessário, aqui nos abstemos de reproduzir, no sentido de que entre a Ré/apelada e o CC não se estabeleceu qualquer relação de comissão[21], importa referir adicionalmente como se segue.
Tal como afirmado na decisão recorrida o regime de responsabilidade objetiva do comitente pelos factos danosos praticados pelo seu comissário exige a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
i)- Que exista uma relação de comissão;
ii)- que sobre o comissário recaia também a obrigação de indemnizar; e
iii)- que o facto danoso tenha sido praticado no exercício da função atribuída.
Na verdade, o artigo 500.º C.Civil institui uma situação de responsabilidade objetiva do comitente ao determinar, no seu nº 1, que, desde que sobre o comissário recaia a obrigação de indemnizar, aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar.
Acontece que, nos termos do nº 2 da mesma disposição legal, a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.
Efetivamente, para efeitos do citado artigo 500.º C.Civil, a comissão deve ser entendida como serviço ou atividade realizada por conta e sob a direção de outrem, podendo traduzir-se num ato isolado ou numa função duradoura, gratuita ou onerosa, manual ou intelectual, todavia, a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comitido no exercício da função que lhe é confiada.
Segundo o Professor Antunes Varela[22], “com a fórmula restritiva adotada (no nº 2) a lei quis afastar da responsabilidade do comitente os atos que apenas têm um nexo temporal ou local com a comissão. Mas, acentuando ao mesmo tempo que a responsabilidade do comitente subsiste, ainda que o comissário proceda intencionalmente contra as instruções dele, mostra-se que houve a intenção de abranger todos os atos compreendidos no quadro geral da competência ou dos poderes conferidos ao dito comissário. (...) Serão, assim, da responsabilidade do comitente os atos praticados pelo comissário com abuso de funções, ou seja, os atos formalmente compreendidos no âmbito da comissão, mas praticados com um fim estranho a ela”.
Preenchem, pois, o terceiro requisito referido os atos praticados pelo comissário “no quadro geral da competência ou dos poderes do dito comissário, que pertençam ao quadro da atividade adotada para realizar o fim da comissão (Larenz) e que tenham sido praticados com o agente da sociedade agindo em tal veste ou qualidade, isto é, por causa das suas funções”.[23]
Já não assim os atos do comissário que, “praticados no lugar ou no tempo em que é executada a comissão, nada tenham com o desempenho desta, a não ser porventura a circunstância de o agente aproveitar as facilidades que o exercício da comissão lhe proporciona para consumar o ato”.[24]
Como assim, “deverá entender-se que um facto ilícito foi praticado no exercício da função confiada ao comissário quando, quer pela natureza dos atos de que foi incumbido, quer pela dos instrumentos ou objetos que lhe foram confiados, ele se encontre numa posição especialmente adequada à prática de tal facto”.[25]
Daqui resulta que “a lei abrange unicamente os atos ligados ao serviço, atividade ou cargo, embora exista apenas um nexo instrumental, excluindo os praticados por ocasião da comissão com um fim ou interesse que lhe seja estranho. E subsiste a responsabilidade do comitente, mesmo que o comissário, nesse quadro, tenha agido intencionalmente ou contra as suas instruções”.[26]
Era esta também a posição de Manuel de Andrade[27] que ensinava que, para que existisse conexidade entre o facto ilícito e as funções do respetivo agente não bastava  um mero nexo local ou cronológico, externo ou instrumental entre o facto e a comissão, “(...) será mister que o órgão ou agente tenha procedido em tal veste ou qualidade; que tenha praticado o facto ilícito no desempenho das suas funções... e por causa dessas funções, que não apenas por ocasião delas, o nexo, portanto, do facto ilícito com as funções do órgão ou agente deve ser direto, interno, causal. Não basta uma simples relação indireta, externa, puramente ocasional”.
O mesmo entendimento tem o Prof. Mota Pinto, quando refere que “o órgão ou agente deve ter procedido em tal veste ou qualidade ou ter atuado por causa das suas funções, e não apenas por ocasião delas e precisa-se que basta que o ato se integre no quadro geral da respetiva competência”.[28]
E no mesmo sentido vai também Heinrich Hörster, quando diz que “Parece que será de responsabilizar a pessoa coletiva pelos atos dos seus representantes e mandatários ou agentes que, da perspetiva do lesado, tenham com as funções destes uma conexão adequada, uma vez que foi a pessoa coletiva quem os escolheu”.[29]
É claro que não é necessário que o ato seja praticado rigorosamente no exercício da função, bastando que se integre no quadro geral da respetiva competência. De outra maneira ficaria praticamente excluída-ou pouco menos-a responsabilidade das pessoas coletivas, pois todo o facto ilícito envolve, em certo sentido, uma extralimitação daquela competência, isto é, em sair para fora dela.[30]
Entre os critérios que a doutrina tem enunciado para definir o nexo que - para se dizer que o ato foi praticado pelo comitido no exercício das funções que lhe foram confiadas-deve existir entre esse ato e a função, a doutrina tem indicado como meios precisos os dos chamados nexo local e temporal (ou seja, o de que o comitente responde por tal ato se praticado no lugar e no tempo dos serviços a cargo do comitido) e nexo instrumental (isto é, o de que aquele responde pelo ato se foi facilitado pelas funções do comitido, ou seja, pelos meios postos à sua disposição em consequência delas) - para além do que costuma designar-se por critério teleológico (segundo o qual o comitente responde pelos atos do comitido se praticados no interesse dele, comitente).[31]
A dificuldade surge, quando o agente comete um abuso de funções ou um excesso nítido da esfera da ação que o comitente lhe tenha assinado, como acontece no caso de atos dolosos dos agentes, praticados com vista de fins pessoais, mas integrados formalmente no quadro geral da sua competência.
Como se diz no Ac. do S.T.J. de 15/01/1992[32] a resolução do problema da responsabilidade do comitente nesses casos tem de ser encontrada segundo o justo equilíbrio entre o interesse da pessoa coletiva ou do comitente, por um lado, e o interesse do lesado, por outro.
Feito este breve excurso pela jurisprudência e doutrina, aderimos à orientação que os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela[33] entendem ser a preferível, nos termos da qual o comitente deve ser responsabilizado pelos factos ilícitos do comissário que tenham com as funções deste uma conexão adequada, aplicando aqui, num problema de responsabilidade pelo risco, a teoria da causalidade adequada.
Assim, “sempre que as funções do comissário, segundo um critério de experiência, favoreçam ou aumentem o perigo da verificação de certo dano, deverá o comitente arcar com a respetiva responsabilidade. Por outras palavras: deverá entender-se que um facto ilícito foi praticado no exercício da função confiada ao comissário quando, quer pela natureza dos atos a que foi incumbido, quer pela dos instrumentos ou objetos que lhe foram confiados, ele se encontra numa posição especialmente adequada à prática de tal facto”.[34]
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Revertendo ao caso dos autos, vem provado que:
- O A. é sócio gerente da sociedade comercial A..., Lda., que se dedica à fabricação de estruturas de construções metálicas.
- A R. solicitou, a CC, seu ex-companheiro, que contactasse o serralheiro que seria habitualmente contratado por este para o mesmo tipo de serviços, a fim de arranjar o portão automático da sua casa, sita na Rua ..., ... ..., ....
- Ao que este acedeu.
- À data, a R. detinha dois canídeos de raça Serra da Estrela, de nome ... e Laika.
- A R., consciente de que o A. se iria deslocar à sua residência num qualquer dia daquela semana, fechou os canídeos na jaula onde habitualmente pernoitavam.
- Nesse seguimento, CC contactou, telefonicamente, em dia não concretamente apurado, o A., solicitando os seus serviços para arranjo do referido portão.
- Na manhã do dia 05/02/2018, dias após ter havido o contacto referido em 6., o A. e CC combinaram deslocar-se à residência da R. para os fins suprarreferidos, o que fizeram.
- Pouco antes de o A. chegar, CC deslocou-se à jaula para brincar com os canídeos.
- Em hora não concretamente apurada, mas naquela manhã, o A. contactou, telefonicamente, CC, no sentido de lhe informar que já se encontrava à porta da residência da R.
- Pouco tempo depois, CC abriu o portão ao A. e, quando este se encontrava a verificar o automatismo do portão de entrada, os dois canídeos surgiram a correr, em direção ao A., tendo um deles, ..., mordido a perna esquerda deste.
- Aquando da sua saída da jaula, CC não se assegurou que os mecanismos de fecho da jaula se encontravam devidamente cerrados, o que permitiu que os canídeos se tivessem soltado” (cf. ponto 1. a 11. dos factos provados).
 É, pois, perante este quadro factual que há que apurar se a atuação ilícita do CC se podia situar, ou não, no âmbito do exercício das suas funções de comissário (partindo do princípio que existia entre ele e a Ré uma relação de comissão o que, como supra se afirmou, aderindo aos fundamentos exarados a esse propósito não decisão recorrida, tal não acontece), com a consequência de a Ré/apelada, comitente, poder ser responsabilizada pelos atos por ele praticados.
Ora, dúvidas não existem de que, no momento em que os factos ocorreram (mordedura do apelante pelos canídeos) o mencionado CC estava a concretizar, juntamente com o serralheiro, a tarefa que lhe havia sido solicitada pela Ré/apelada, qual seja, o arranjo do portão automático da sua casa.
Acontece que, quando o referido CC, pouco antes de o Autor/apelante chegar, se deslocou à jaula para brincar com os canídeos e quando saiu da mesma não se assegurou que os mecanismos de fecho da mesma se encontravam devidamente cerrados, o que permitiu que os canídeos se tivessem soltado e, consequentemente, atacado o apelante, não atuou no âmbito da tarefa que lhe havia sido solicitada pela Ré/apelada, não tendo tal ato qualquer relação de causalidade adequada com aquela tarefa.
É, portanto, um ato que só um nexo temporal e local o liga à citada tarefa e, portanto, claramente fora do seu âmbito.
Trata-se, enfim, de ato que, praticado no lugar e no tempo em que era executada a tarefa (arranjo do portão automático), nada, no entanto, tinha a ver com a concretização e execução da mesma.
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Diante do exposto, mesmo considerando que entre a Ré/apelada e o citado CC se estabeleceu uma relação de comissão (o que não sucedeu, como decidido) nunca aquela poderia ser responsabilizada pelo ato praticado por este, porque praticado fora da tarefa para a qual havia sido incumbido, pois que, não obstante o falado nexo temporal e local, não nos parece que se pudesse dizer que se estava, efetivamente, perante factos ilícitos praticados no seu exercício ou por causa do seu exercício.
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Improcedem, desta forma, as conclusões XXXV a LXIII formuladas pelo apelante.
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3- A questão da interpretação e aplicação da norma do artigo 502.º do CCivil.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento de que o quadro factual que nos autos se mostra provado não é subsumível à factie species do artigo 502.º do CCivil.
Desse entendimento dissente o apelante, alegando que Ré/apelada era a proprietária dos canídeos, pelo que retirava as vantagens inerentes a tal propriedade, e considerando que os canídeos eram de grande porte, de raça Serra da Estrela, a produção dos danos sofridos pelo Autor em consequência da mordedura, insere-se no especial perigo da utilização dos animais, sendo que a responsabilidade objetiva não implica que haja culpa por parte da Ré/apelada, não sendo relevante que a mordedura se tenha devido a descuido por parte de CC.
Quid iuris?
Preceitua o citado normativo que: “Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização”.
Prevê-se, portanto, no transcrito inciso, a responsabilidade objetiva daquele que, por ser proprietário, usufrutuário, ou possuidor de um animal, isto é, aquele que o utiliza em seu proveito,–e considerando que os animais, como seres irracionais que são, constituem quase sempre uma fonte de perigos–deve suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua utilização.
Ora, não se dúvida de que a responsabilidade objetiva prescinde da culpa do agente neste caso da Ré/apelada.
Todavia, a responsabilidade prevista no art. 502º pode ser afastada se resultar demonstrada a culpa do lesado[35], ou a culpa de terceiro na ocorrência do facto.[36]/[37]
Sob este conspecto escreveu-se na decisão recorrida:
“Resultando da instrução da causa que o ataque de cão que veio a suceder e a vitimizar o A. apenas se proporcionou por incúria de pessoa que nenhum título detém sobre os cães, que não os utiliza, que não os detém (senão momentaneamente), e que não cuidou de confirmar se os canídeos se mostram adequadamente fechados dentro da sua jaula, então nenhuma responsabilidade se pode assacar à R.
Ao ter aberto a jaula que se encontrava encerrada por cuidado e diligência da R., dona dos cães, e ao não se ter assegurado que os mecanismos de fecho da jaula se encontravam devidamente cerrados, assim permitindo que os ditos canídeos se tivessem soltado, CC deu causa a que os cães tivessem na disponibilidade de alcançar o A., assim o mordendo.
Trata-se de uma causa exógena e excecional provocada por um terceiro, que permitiu expor o A. ao perigo inerente à utilização dos cães que corre por conta da A., uma vez que tal perigo se mostrava devidamente acautelado pelo encerramento daqueles em jaula.
Seria iníquo responsabilizar a R. por uma fonte de perigos que a mesma acautelou e, de certo modo, debelou, e ao que o A. apenas foi exposto por ato voluntário e negligente de terceiro”.
Nada temos a censurar ao assim decidido por se mostrar inteiramente correta a subsunção jurídica do quadro factual que nos autos resultou provado.
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Improcede, assim, as conclusões XLIV a XLVII formulada pelo apelante.
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4- A questão da violação da norma do artigo 493.º do CCivil.
 Alega o apelante que a título subsidiário, sempre haveria que judiciar-se pela condenação da Ré pelo incumprimento do dever de vigilância que sobre si impendia, tendo o Tribunal transgredido a norma jurídica constante do artigo 493.º, n.º 1 do CCivil.
Como se extrai da petição inicial o apelante invoca o artigo 493.º, nº 1 do CCivil, para integrar o primeiro dos requisitos da relação de comissão que alegou existir entre a Ré/apelada e o CC.
Na verdade, alega:
 “35. Atendendo aos factos supra expostos, sobre o comissário–o Sr. CC–incide uma obrigação de indemnização (cfr. art.º 562.º, do Código Civil), por conta do instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos, na modalidade de danos causados por coisas, animais ou atividades, conforme o plasmado pelo n.º 1, do art.º 493.º, do Código Civil, desde que para isso estejam preenchidos, cumulativamente, os seguintes pressupostos:
a. A prática de um facto voluntário por parte do comissário;
b. A existência de ilicitude, ou seja, a violação do direito de outra, neste caso, do Autor;
c. A existência de um nexo de imputação do facto ao comissário, mediante dolo ou mera culpa;
d. A existência de um dano causado ao lesado, o aqui Autor;
e. A existência de um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo comissário e o dano causado.
Neste seguimento,
36. No que diz respeito ao primeiro pressuposto, é por mais evidente que existiu a prática de um facto voluntário por parte do comissário.
37. Preceitua o n.º 1, do art.º 493.º, do Código Civil, que: “1 – Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem.”
38. Considerando o supra exposto, o comissário omitiu um dever de cuidado e vigia a que estava adstrito, porquanto não verificou se a jaula de proteção, onde se encontravam os canídeos, se encontrava devidamente fechada e, deste modo, estes se encontravam impossibilitados de sair da mesma,
39. Pelo que se encontra preenchido este primeiro pressuposto”.
Ora, em sede recursiva o apelante situa a invocação do mencionado inciso noutro âmbito, ou seja, como acima se referiu, de que a título subsidiário sempre haveria que judiciar-se pela condenação da Ré pelo incumprimento do dever de vigilância que sobre si impendia.
Como se torna evidente a aplicação do citado artigo 493.º, nº 1 para, a título subsidiário, se proferir condenação a responsabilizar a Ré pelos danos sofridos pelo apelante, envolve uma questão nova, de cujo conhecimento está este tribunal impedido.
Efetivamente, como supra se consignou, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”-artigo 608.º, nº 2 do CPCivil.
A problemática prende-se com a delimitação do objeto do recurso, ou seja, com os poderes do Tribunal da Relação na apreciação dos recursos de apelação.
Conforme sinteticamente refere Castro Mendes[38], em relação ao objeto do recurso, duas soluções são possíveis.
Primeira: entender-se que o “Objeto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida.”
Segunda: defender-se que o “Objeto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que “ex lege” devia ser proferida.”
A primeira hipótese remete para um sistema de reexame, que permite ao tribunal superior a reapreciação da questão decidenda pelo tribunal a quo, isto é, permite um novo julgamento, eventualmente com recurso a factos novos e novas provas; enquanto o segundo caracteriza um sistema de revisão ou de reponderação, o qual apenas possibilita o controlo da sentença recorrida, ou seja, apenas permite aferir se a decisão é justa ou injusta, considerando os dados fácticos e a lei aplicável, tal como o juiz da 1.ª instância possuía no momento em que proferiu a decisão.
Apesar de não existirem sistemas absolutamente “puros”, ou seja, que apenas apliquem um ou outro sistema “tout court”, a doutrina e a jurisprudência portuguesa têm entendido que “O direito português segue o modelo do recuso de revisão ou ponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseados nos factos alegados e nas provas produzidas perante este.”[39]
Por via disso, repetidamente os tribunais superiores têm afirmado que os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Por esse motivo, se entende que não é lícito invocar em sede de recurso questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido.
Esta regra decorre, designadamente, dos artigos 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2 e 5 do CPC, apenas excecionada quando a lei expressamente determine o contrário[40] ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso.[41]
A questão reside, pois, em saber o que se entende por questões de facto ou direito já submetidas à apreciação do tribunal recorrido.
É comum mencionar-se a este respeito que “questões” não são argumentos, raciocínios jurídicos ou juízos de valor expostos na defesa das teses controvertidas em litígio, reservando-se tal menção apenas para os fundamentos fáctico-jurídicos em que as partes assentaram as suas pretensões, ou seja, para as questões que na perspectiva substantiva apresentam pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Em relação à parte ativa, atender-se-á à causa de pedir e pedido e em relação à parte passiva, às exceções deduzidas.
É este, aliás, o raciocínio que subjaz à nulidade a que alude o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPCivil quando prescreve a obrigatoriedade do juiz se pronunciar sobre as questões colocadas à sua apreciação, como supra se referiu.
Tentando, agora, aplicar estes considerandos ao caso presente, verifica-se que o apelante nunca no processo aduziu tal questão, sendo que, se trata de questão que, na perspetiva substantiva, apresenta pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Estamos, assim, perante argumentação nova que nunca tinha sido defendida pela apelante, o que coloca o tribunal ad quem perante um novo julgamento, na medida em que este, na reponderação que iria fazer da decisão proferida, não se encontra em situação idêntica àquela em que se encontrou o juiz da 1.ª instância, sendo certo que se trata de questão que não é de conhecimento oficioso.
Como assim, nunca tal questão podia ser conhecida por este tribunal de recurso.
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Improcedem, desta forma, as conclusões XLIX a LV formuladas pelo apelante e, com elas, o respetivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelos apelantes (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 10 de julho de 2024.

Dr. Manuel Domingos Alves Fernandes

Drª. Maria Fernandes de Almeida

Drª. Eugénia Marinho da Cunha  




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[1] Como ensina o Conselheiro Amâncio Ferreira in Manual dos Recursos em Processo Civil”, 7ª Ed., págs. 172 e 173 “Expostas pelo recorrente, no corpo da alegação, as razões de facto e de direito da sua discordância com a decisão impugnada, deve ele, face à sua vinculação ao ónus de formular conclusões, terminar a sua minuta pela indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos, de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão”. Ou como diz Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 359, “As conclusões são “proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação”. Ora, nada disso fez o recorrente, que se limitou a reproduzir nas conclusões, excetuadas alterações pontuais, o corpo alegatório devidamente numerado. Aliás, diga-se, só não se rejeita o recurso porque o STJ vem entendendo, ao contrário do que defendemos, que isso não é motivo para tal.
[2] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[3] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[4] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Ac. Rel. Porto de 19 de setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[7] In Recursos em Processo Civil Novo Regime, 2.ª edição revista e actualizada pág. 297.
[8] A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”; Almedina, 5.ª edição, 169.
[9] Importa lembrar que no preâmbulo do Dec. Lei n.º 39/95, de 15 de fevereiro (pelo qual foi introduzido o segundo grau de jurisdição em matéria de facto) o legislador fez constar que um dos objetivos propostos era “facultar às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reação contra eventuais (…) erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito (…)” (negrito e sublinhados nossos).
[10] CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, pág. 599.
[11] Publicado no blog do IPPC, a 02/03/2023, sob Jurisprudência 2022 (133), ao ac. do TRC de 24/05/2022.
[12] Processo nº 4043/10.8TBVLG.P1.S1), consultável em www.dgsi.pt..
[13] Entre outros, os Acórdãos do STJ de 29/05/2014 (processo nº 1722/12.9TBBCL.G1.S1), de 07/03/2017 (processo nº 2772/10.5TBGMR-Q.G1.S1) e de 26/02/2019 (processo nº 4043/10.8TBVLG.P1.S1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[14] Processo nº 141/21.0YHLSB-A.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt..
[15] No mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de 19 de fevereiro de 2009, www.gsi.pt, proc. n.º 09B0081, de 3 de novembro de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 1628/15.0T8STR-A.S1, de 30 de Abril de 2020, ECLI:PT:Supremo Tribunal de Justiça:2020:257.17.8T8MNC.G1.S1, de de 21 de Junho de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 43/21.0YHLSB.L1-A.S1, ou de 29 de setembro de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 5138/05.5YXLSB-E.L1.S1
[16] Proc. 214/17.4T8MNC.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt..
[17] In “Manual de Processo Civil, 1984, pág. 697”.
[18] In “Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 577”.
[19] Proc. nº. 690/09), disponível em www.dgsi.pt..
[20] Proc. nº. 05B691), disponível, em www.dgsi.pt..
[21] Tal como bem se afirma na decisão recorrida “Não existe, em primeira linha, qualquer obrigação de cariz contratual que vinculasse CC, ex-companheiro da R., a contratar o A. para efetuar a reparação daquele portão. Não foi, assim, alegado, ou sequer apurado, que CC tivesse sido mandatado para aquele ato negocial, que ao mesmo não se obrigou. (…) A relação de proximidade existencial que entre os dois intercedera um dia não pode, sem mais, evidenciá-lo, até porque da lei, ou dos costumes, não resultam particulares deveres de proteção, apoio ou assistência que compelissem CC a sujeitar-se às instruções ou ordens da R. nesse sentido. (…) Assim, porquanto inexiste qualquer relação de dependência, quer situacional, emocional ou económica, que coloque a R. na posição de emitir ordens ou instruções a CC, inexiste igualmente relação de comissão entre ambos.”, sendo que, para esse efeito revela-se inócuo, dizer-se, como o faz o apelante que, havendo entre Ré e a testemunha CC, uma relação pessoal, nutrindo, pelo menos, laços de amizade, fruto do relacionamento amoroso anterior, sempre o próprio CC teria um interesse pessoal na realização do pedido da Ré, e sempre a Ré teria um interesse pessoal em solicitar o referido “favor” ou pedido a CC, em virtude dos estreitos laços que existiam, já que essa relação pessoal não preenche o requisito da subordinação e dependência subjacente ao referido instituto jurídico”.
[22] In Das Obrigações em Geral, I, 6ª ed. págs. 611 e 612.
[23] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1980, 207 e 208.
[24] Antunes Varela, ob., vol., e ed. cits, 611, nota 2.
[25] Pires de Lima e Antunes Varela, " Código Civil Anotado ", I, 4ª ed. (1987), com a colaboração de M. Henrique Mesquita, 509.
[26] Cfr. Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 5ª ed. (1991), 500.
[27] In Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, 1964, pág. 150 e seg.
[28] Obra citada, pág. 207.
[29] In A Parte Geral do Código Civil Português, 1992, pág. 395.
[30] Cf. Prof. Manuel de Andrade, idem, pág. 152, e Prof. Vaz Serra, BMJ nº 85, pág. 487 e seg..
[31]  Cf. Prof. Vaz Serra, idem, pág. 489.
[32] BMJ nº 413, pág. 456 e seg..
[33] In Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 509.
[34]  Profs. Pires de Lima e Antunes Varela In Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 509.
[35] Como escrevem Raul Guichard/Vítor Hugo Ventura, em Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em geral, UCE, pág. 396, “É da mais elementar justiça, com efeito, que aquele que utiliza o animal no seu interesse não responda naquelas situações em que é o comportamento culposo do lesado que está na origem do dano”.
[36] Pugnando este entendimento, Dário Martins de Almeida, no Manual dos acidentes de viação, 2ª ed., pág. 306, escreve que: “O artigo 505º não se refere à responsabilidade prevista no artigo 502º. Temos, porém, de convir que o caso de força maior estranho aos perigos do animal e o facto de terceiro que possa ser equiparado a esta são de molde a excluir a responsabilidade pelo risco. Esta conclusão está implícita nos próprios termos do artigo 502º e na sua razão de ser; e resulta da própria problemática do nexo de causalidade.”. Neste sentido vai, também, o Ac. da RC de 30.5.2000, Processo773/2000 (Joaquim Cravo), em www.dgsi.pt.
[37] Cfr. neste sentido, do TRL, de 10/04/2018, proc. n.º 2331/11.5TVLSB.L1-7, e de 26/09/2023, proc. n.º 1343/21.5T8SNT.L1-7; do TRG, de 15/10/2020, proc. n.º 1394/17.4T8GMR.G1; do TRC, de 17/01/2012, proc. n.º 1070/08.9TBGRD.C1
[38] Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, AAFDL, 1980, pág. 24. Veja-se, também, Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, AAFDL, 1982, pág. 172 e Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º. Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, pág. 7-8.
[39] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, 8.ª edição, pág. 147.
[40] Veja-se, assim, o disposto no artigo 665.º, n.º 2 do CPC que permite a supressão de um grau de jurisdição, desde que verificados os pressupostos ali mencionados.
[41] Conforme se alude expressamente na parte final do n.º 2 do artigo 608.º do CPC.