Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PAULA NATÉRCIA ROCHA | ||
Descritores: | CONFISSÃO INTEGRAL E SEM RESERVAS CASO JULGADO | ||
Nº do Documento: | RP20240619379/20.8GAVCD.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/19/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO. | ||
Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇAO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - Ao confessar integralmente os factos, o arguido aceita o teor da acusação e que sejam dados como provados todos os factos nela constantes, em conformidade com o teor da alínea a) do n.º 2 do art.º 344.º do Código de Processo Penal, pois sendo sem reservas a confissão não admite condições ou alterações aos factos admitidos, tal como constam da acusação/pronúncia. II - No caso em apreço, verifica-se que o recorrente pretende por em crise declaração em ata a fazer menção da confissão e o despacho que a julgou válida, em relação aos quais não reagiu, apesar de estar presente quando tiveram lugar. III - Ora, o despacho judicial que declara verificada confissão integral e sem reservas e determina o efeito de renúncia à produção de prova consignado na al. a) do n.º 2 do art.º 344.º do Cód. Proc. Penal, forma caso julgado quanto a essa questão. IV - Assim, formando-se caso julgado nesse domínio, encontra-se impedida a discussão posterior da verificação de confissão e da decidida renúncia à produção de prova, nos termos do art.º 344.º, n.º 2, al. a) do Cód. Proc. Penal (cf. neste sentido Ac. da RG de 16/11/2009, processo 464/07.1GTVCT, in www.dgsi.pt). (da inteira responsabilidade da relatora) | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 379/20.8GAVCD.P1 Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Vila do Conde J2 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: I. Relatório: No âmbito do Processo Comum Singular n.º 379/20.8GAVCD a correr termos no Juízo Local Criminal de Vila do Conde – J2 foi julgado o arguido AA, tendo sido decidido: 1. Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nº 1, al. b) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, na pena de dois anos e dois meses de prisão. 2. Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86.º, n.º 1 alínea c), da Lei 5/2006 de 23/2, na pena de 100 (cem) dias de multa á taxa diária de €6,00 (seis euros) perfazendo a quantia total de € 600,00 (seiscentos euros). 3. Suspender a execução da pena de prisão aplicada em 1., pelo período de dois anos e dois meses, nos termos do disposto no artigo 50.º, nº 1 e 5, do Código Penal, sujeitando a suspensão a regime de prova segundo plano de a determinar pelos competentes serviços de reinserção social tendo o plano de reinserção social, a elaborar pelos serviços de reinserção social competentes, entre os que esta entidade entender convenientes, os objetivos, desideratos e deveres supra referidos e subordinado ao cumprimento pelo arguido do: a) programa de aquisição de competências pessoais e sociais, direcionado aos indivíduos condenados pela prática do crime de violência doméstica (Programa para Agressores de Violência Doméstica-PAVD./programa CONTIGO ou outros) a elaborar pela DGRSP (art.º 52.º n.º 1 al. b) do Código Penal) que ajudem o arguido a viver de acordo com o direito e pautando, quiçá, o seu comportamento por formas mais responsáveis de vivência familiar; b) à proibição de contactos com a vítima - incluindo e a proibição de aceder ou de aproximar-se da sua residência e/ou local de trabalho com exceção dos necessários que se relacionem com as responsabilidades parentais da filha em comum. 4. Não aplicar as penas acessórias previstas no artigo 152.º, n.ºs 4, 5 uma vez que o cumprimento do conteúdo sancionatório dos nºs 4 e 5 foi plasmado como condição para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada. 5. Não aplicar a pena acessória prevista no artigo 152.º, n.º 6, de interditação do exercício de responsabilidades parentais do progenitor, o ora arguido. 6. Arbitrar indemnização civil à ofendida e, em consequência, condenar o arguido no pagamento em singelo da quantia de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros) a título de danos não patrimoniais, que deve ser depositada à ordem do Tribunal em depósito autónomo à solicitação da ofendida. 7. Condenar ainda o arguido ao pagamento de 2 UC´s de taxa de justiça, (art.º 513.º n.º 1 do CPP e art.º 8.º n.º 9 do R.C.P. com referência à tabela III deste diploma legal) e nas demais custas do processo penal (artigos 513º e 514º n.º 1 do Código de Processo Penal), reduzida a metade por força da confissão. 8. Declarar perdidos a favor do Estado, conforme disposto no artigo 109.º, nºs 1 e 3 do CP, os seguintes objetos: uma pistola, marca Tangfolio, modelo “GT 28 A Salve”, originalmente construída para deflagrar munições de alarme, transformada mecanicamente de modo a poder disparar munições de calibre 6.35; - Quatro munições de calibre 6,35 e ainda sete munições de calibre 7,65 e uma munição de calibre 7,62mm e um punhal e respetivo colder, com 29 cm de comprimento total e 16 cm de lâmina Desta decisão veio o arguido interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões: I. Não se conforma o arguido com a matéria de facto considerada provada pelo tribunal a quo, no sentido em que ao contrário do alegado: II. Vem o arguido AA, condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e nº 2 al. a) do Código Penal, na pena de dois anos e dois meses de prisão; e III. de um crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86º, n.º 1 c), da Lei n.º 5/2006 de 23/2, na pena de 100 (cem) dias de multa á taxa diária de €6,00 (seis euros) perfazendo a quantia total de €600,00 (seiscentos euros). IV. Não podiam ter sido dados como provados os factos constantes dos nºs 5), 9), 10) e 11) da “fundamentação de facto” da sentença por total ausência de prova quanto aos mesmos. V. Nos termos do disposto na al. a), do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, o recorrente considera que o tribunal julgou incorretamente, ao dar por provados, os factos constantes dos nºs 5), 9), 10) e 11) da “fundamentação de facto” da sentença. VI. Deste modo, o recorrente ver alterada a matéria de facto dada como assente no facto provado: - no número 5: “Nessas alturas, cuja frequência não se conseguiu apurar em concreto, mas que será, pelo menos, semanal, o arguido dirigia-se à sua ex companheira, com foros de seriedade e dizia: “Eu parto isto tudo. Se não fosses mulher, em vez de partir a mesa, era a ti que te partia.” - no número 9: “O arguido acabou por deixar o local, ficando a sua filha menor com um indivíduo desconhecido da vítima.” - no número 10: “Depois disso, o arguido partiu alguns objetos, e apoderou-se de um punhal, que colocou à cintura.” - no número 11: “No dia 05 de agosto de 2020, pelas 19h30, o arguido procurou entrar na residência da vítima, partindo o vidro de entrada.” VII. No facto provado n.º 5, diz que o arguido se dirigia à sua ex-companheira e dizia: “Eu parto isto tudo. Se não fosses mulher, em vez de partir a mesa, era a ti que te partia.” VIII. A este propósito, poderemos ver no depoimento do arguido, no pretérito dia 06 de dezembro de 2023, em sede de audiência de julgamento: - (11:25) Sra. Juíza: Aqui, diz aqui na acusação que o senhor se dirigia a ela, à dona BB e que lhe dizia: “Eu parto isto tudo. Se não fosses mulher, em vez de partir a mesa, era a ti que te partia.” - (11:36) arguido AA: mentira, nunca usei essas palavras doutora, nunca usei esse palavreado. IX. No que respeita ao facto provado n.º 9 o arguido conhecia a pessoa com quem deixou a sua filha, era seu amigo e não um desconhecido. X. No depoimento do arguido, no pretérito dia 06 de dezembro de 2023, em sede de audiência de julgamento foi dito o seguinte: - (14:30) Sra. Juíza: quando o senhor diz que ele pegou nela, foi o seu amigo, não é? Ele, o seu amigo? e nessa altura foi a sua companheira na altura, a dona BB entrou e viu isso. - (11:36) arguido AA: sim, sim. XI. No que concerne ao facto provado n.º 10 o arguido foi claro ao afirmar que era mentira, o punhal era guardado pela sua ex companheira: XII. A este propósito, poderemos ver no depoimento do arguido, no pretérito dia 06 de dezembro de 2023, em sede de audiência de julgamento: - (19:37) Sra. Juíza: pertencia a si, mas era ela que se encarregou de guardar sempre isso, é isso? Pronto tudo bem. - (19:36) arguido AA: Sim. XIII. Relativamente ao facto provado n.º 11, o arguido negou a situação: - (20:00) Sra. Juíza: Diz aqui o senhor tornou no dia 05 de agosto de 2020, pelas 19h30, sete e meia da tarde, o arguido procurou entrar na residência da vítima, partindo o vidro de entrada. É verdade ou é mentira? - (20:09) arguido AA: Mentira. - (20:10) Sra. Juíza: Não é verdade. - (20:14) arguido AA: Nunca parti vidro nenhum. XIV. O Tribunal não valorou as declarações do arguido, prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento. XV. Não ficou demonstrado que o arguido tenha agredido verbal, psicológica e fisicamente a ofendida, sua ex companheira. XVI. A conduta do arguido não é ilegal, nem ilícita, nem criminosa. XVII. O tipo subjetivo do crime de violência doméstica exige o dolo, em qualquer das suas modalidades - cfr. artigo 14.º do Código Penal. XVIII. As condutas descritas na acusação se não traduzem, na molestação, humilhação, enfim, os maus tratos físicos e psíquicos tipificados na lei. XIX. O arguido, com as suas condutas, não preencheu os elementos objetivos do tipo previsto no artigo 152.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, al. a), do Código Penal. XX. Ao nível subjetivo, não se conclui que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de maltratar física e psicologicamente a sua ex companheira, ofendendo-a na respetiva honra e consideração bem como a sua autodeterminação. XXI. O arguido não violou os deveres de respeito que devia para com a ofendida. XXII. É errado afirmar-se que o impetrante adotou um comportamento criminoso, tendo falhado quer a investigação, quer a prova em audiência final de julgamento, em apurar se aquele teve participação nos factos que lhes são imputados ou sequer se o crime foi consumado. XXIII. Acresce que, cabe ao Estado, representado pelo Ministério Público, o exercício da ação penal, e estabelecendo a lei o princípio “in dubio pro reo”, não é ao arguido que cumpre provar que não foi responsável. XXIV. Cabe à entidade com competência para promover a acusação demonstrar a real atuação do arguido, o que, salvo devido respeito, não logrou. XXV. O sucesso na condução da ação penal está intrinsecamente ligado à qualidade e ao rigor da investigação criminal XXVI. A investigação criminal, longe de ser predominantemente acusatória, deve ser orientada por princípios de competência e imparcialidade, com o objetivo de descobrir a verdade dos fatos e promover a busca pela justiça XXVII. Aqui chegados, conclui-se que é um erro imputar-se ao impetrante o crime de violência doméstica. XXVIII. O arguido agiu sem dolo ou negligência, pelo não deve ser sujeito a qualquer censura penal. XXIX. Ao decidir como decidiu o Tribunal violou o princípio “in dúbio pro reo”. XXX. Pelo que, atenta a total ausência de factos que possam integrar o tipo legal do crime em causa, deve o arguido ser absolvido do crime de violência doméstica. XXXI. Subsidiariamente e que por mera cautela de patrocínio se peticiona: a conduta do arguido não preenche a previsão do artigo 152.º, n.º 2 alínea a) do Código Penal, porque efetivamente não existiu qualquer prática contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da ofendida. XXXII. Termos em que não pode o arguido ser condenado com a agravação do artigo 152.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, alterando-se a pena e a sua medida em conformidade com o disposto no artigo 152.º, n.º 1 alínea a) do Código Penal e de acordo com os critérios do artigo 70º e 71º do mesmo código. Termina pedindo seja julgado provido o recurso apresentado, e em consequência, seja revogada a sentença recorrida nos termos propugnados no recurso. A este recurso respondeu o Ministério Público, conforme consta dos autos, que aqui se reproduz de forma sintética: - Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, são as seguintes as questões a apreciar e decidir: a) Da Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento: Conforme resulta da motivação da sentença sub judice (…) para dar como provado os factos elencados em 1) a 16) dos fatos provados, o tribunal teve em conta a confissão integral e sem reservas produzida pelo arguido, e tendo-o feito depois de ter começado a prestar declarações e indagado sobre se o fazia de forma livre, integral, sem reservas e sem se sentir coagido, respondeu afirmativamente, importando referir que, o tribunal, não tinha qualquer convicção prévia formada ou intima em relação à matéria a decidir ou à pessoa do arguido. De referir que, conjugadamente com a confissão do arguido, e apreciadas criticamente, o tribunal teve em conta a certidão de fls. 19 e ss., o auto de notícia de fls. 80 e ss., o aditamento de fls. 145 e ss., o auto de notícia de fls. 61 e ss., o auto de apreensão de fls. 90 a 94., o relatório fotográfico de fls. 95 a 96, e os autos de exame direto de fls. 97 e 98 e exame de fls. 125 a 129. Efetivamente, não obstante o Recorrente alegar que não deveriam ser dados como provados os factos constantes dos nºs 5), 9), 10) e 11) da “fundamentação de facto” da sentença por total ausência de prova quanto aos mesmos, transcrevendo as declarações que começou por prestar em audiência de julgamento, olvida que num segundo momento e, após o seu Ilustre Mandatário anunciar que o mesmo pretendia, afinal, confessar os factos integralmente e sem reservas, o mesmo instado sobre se o pretendia fazer e se o fazia de forma livre e espontânea respondeu afirmativamente – cfr. minuto00:00 a 00:44, sendo que não foi deduzida qualquer oposição a que a mesma fosse considerada, com todas as consequências processuais daí resultantes, renunciando o Tribunal à produção da demais prova. Ao confessar integralmente os factos, o arguido aceita o teor da acusação e que sejam dados como provados todos os factos nela constantes, em conformidade com o teor da alínea a) do n.º 2 do art. 344.º do Código de Processo Penal, pois sendo sem reservas a confissão não admite condições ou alterações aos factos admitidos, tal como constam da acusação. Tendo confessado integralmente e sem reservas os factos não é possível, em sede de recurso, pôr em causa a matéria de facto fixada em consonância com o que constava da acusação, quando o arguido não impugnou, no momento próprio, o despacho que assim o considerou, antes dando o seu acordo. Em face do que deverá ser julgado improcedente o recurso nesta parte. b) Do não preenchimento dos elementos (objetivo e subjetivo) do crime de violência doméstica: No entendimento dominante da doutrina, que seguimos, o crime de violência doméstica tutela a saúde física, psíquica, mental e moral. O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio, pois só pode ser cometido por quem possui determinada qualidade ou sobre quem recaia um dever especial, habitual, pois pressupõe a prática reiterada da mesma ação, sem prejuízo de a lei admitir o preenchimento do tipo com uma conduta única, e, dada a sua composição ‘poliédrica’, umas vezes de resultado, outras de mera atividade, umas vezes de dano, quanto ao bem jurídico, outras de perigo. Devem ser incluídas no conceito de maus tratos físicos todas as condutas agressivas que visem atingir diretamente o corpo da vítima, v.g., bofetadas, murros, pontapés, joelhadas, puxões de cabelos, empurrões, apertões de partes do corpo e pancadas ou golpes desferidos com objetos, ações normalmente preenchedoras do tipo do crime de ofensa à integridade física, e no conceito de maus tratos psíquicos as injúrias, as críticas destrutivas e/ou vexatórias, as ameaças, as privações da liberdade, as restrições, as perseguições e as esperas não consentidas. A qualificação de uma conduta como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um determinado tipo de ilícito, designadamente uma ofensa à integridade física, da mesma forma que a aptidão de determinada ação para preencher este tipo legal não significa, per se, a verificação do crime de violência doméstica, tudo dependendo da «respetiva situação ambiente e da imagem global do facto. O preenchimento do conceito de mau trato não exige que a concreta conduta violenta se traduza numa lesão grave ou num tratamento cruel ou brutal. A violência doméstica não deve ser entendida como o mero somatório das ações violentas, típicas ou atípicas, praticadas pelo agente contra a vítima, mas antes o que desse conjunto de ações, globalmente considerado, resulta e a sua aptidão para afetar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por essa via, a sua dignidade. A reiteração não é elemento imprescindível ao preenchimento do tipo objetivo da violência doméstica, embora seja pressuposta como conduta ‘norma’, e daí que o crime seja qualificado como crime habitual. A execução é reiterada quando cada ato concreto, cada conduta parcelar, realiza parcialmente o evento, constituindo o somatório dos eventos parciais, o resultado, o evento unitário, o crime único. A reiteração traduz um estado de agressão permanente, não no sentido de que as condutas violentas sejam constantes, mas no sentido de que traduzem o comportamento padrão do agressor, através do qual se revela a relação de sobreposição do agente sobre a vítima, proporcionada pelo ambiente familiar ou de proximidade social, da qual resulta um tratamento incompatível com a sua dignidade. No caso dos autos, atentos os factos dados como provados, dúvidas não temos de que estamos diante de um contexto global de com comportamentos violentos, perturbadores e vexatórios É certo que a violência psicológica, empregue é, digamos assim, de baixa intensidade, mas não deixa, na verdade, de ser violência, vindo a sua repetição, na vertente psicológica, a definir um padrão de conduta por parte do arguido, consubstanciando o supra, referido estado de agressão permanente, revelador da relação de sobreposição que este passou a exercer sobre a ofendida da qual resultou para a vítima um tratamento atentatório da dignidade da sua pessoa. Estão, pois, preenchidos os elementos do tipo, objetivo e subjetivo, do crime de violência doméstica. No mais, atentos os factos dados como provados nos pontos 6) a 10) da sentença sub judice mostra-se acertada a qualificação jurídica dos factos com a agravação do artigo 152.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, alterando-se a pena e a sua medida em conformidade com o disposto no artigo 152.º, n.º 1 alínea a) do Código Penal e de acordo com os critérios do artigo 70º e 71º do mesmo código. Deverá ser, pois, improcedente o recurso, devendo manter-se inalterada a matéria de facto assente, assim como a qualificação jurídica dos factos. Termina pedindo seja negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, seja mantida a sentença recorrida. Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, e que se encontra nos autos, pugna pela improcedência do recurso. Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada veio a ser acrescentado de relevante no processo. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito. II- Fundamentação: 1.1. São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal de 1ª Instância: Da acusação publica 1) O arguido viveu com a vítima CC uma relação amorosa, como se de marido e mulher se tratassem, durante 08 anos, até ../../2020, altura em que se separaram. 2) Dessa união nasceu DD a 18 de Maio de 2012. 3) Desde a data da separação do casal, a vítima ficou a residir na casa de morada de família. 4) Contudo, aproveitando-se da circunstância de aquela habitação ainda pertencer aos dois, o arguido aparecia por lá, sem avisar, deixando a vítima em sobressalto. 5) Nessas alturas, cuja frequência não se conseguiu apurar em concreto, mas que será, pelo menos, semanal, o arguido dirigia-se à sua ex-companheira, com foros de seriedade e dizia: “Eu parto isto tudo. Se não fosses mulher, em vez de partir a mesa, era a ti que te partia.” 6) Em data não concretamente apurada, do mês de dezembro de 2019, o arguido dirigiu-se a casa da vítima, juntamente com a sua filha DD. 7) O arguido encontrava-se embriagado e, na entrada da residência da vítima, partiu um número não concretamente apurado de garrafas de vinho. 8) Depois, o arguido deslocou-se para o interior da residência, e partiu uma série de objetos que pertenciam à ofendida. 9) O arguido acabou por deixar o local, ficando a sua filha menor com um indivíduo desconhecido da vítima. 10) Depois disso, o arguido partiu alguns objetos, e apoderou-se de um punhal, que colocou à cintura. 11) No dia 05 de agosto de 2020, pelas 19h30, o arguido procurou entrar na residência da vítima, partindo o vidro de entrada. 12) No dia 27 de outubro de 2020 o arguido guardava, no interior da sua residência sita na Rua ..., em Vila do Conde: - uma pistola, marca Tangfolio, modelo “GT 28 A Salve”, originalmente construída para deflagrar munições de alarme, transformada mecanicamente de modo a poder disparar munições de calibre 6.35. - Quatro munições de calibre 6,35 e ainda sete munições de calibre 7,65 e uma munição de calibre 7,62mm. 13) Guardava ainda um punhal e respetivo colder, com 29 cm de comprimento total e 16 cm de lâmina. 14) Sabia o arguido que com a sua descrita conduta lesava a sua companheira e ex-companheira na saúde física e mental, como efetivamente lesou, que a afetava na capacidade de livremente se decidir e deslocar, que a fazia temer pela sua vida e integridade física, aumentando o ascendente que sobre aquela detinha, e ainda que a humilhava e atacava a sua dignidade e consideração pessoais e que perturbava o seu bem-estar no lar, como efetivamente veio a suceder, não se coibindo de adotar tais comportamentos no interior da residência da ofendida, o que quis. 15) O arguido quis guardar aqueles objetos, conhecendo a natureza dos mesmos e o carácter ilícito da sua detenção 16) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal. 17) O arguido não possui registados quaisquer antecedentes criminais. Das condições pessoais e socioeconómicas do arguido 18) O arguido cresceu no seio de uma família de origem piscatória, no seu percurso de vida exerceu atividade profissional regular e continuada na faina piscatória na qualidade de cozinheiro/pescador. 19) O arguido integra o agregado do pai, sexagenário, reformado, o qual também é constituído pelo irmão, de 36 anos, mestre de barco e a irmã, de 27 anos, funcionária do Burger King. 20) O arguido trabalha para um barco irlandês, no mar da Irlanda, onde fica longas temporadas, auferindo um vencimento de 2000 €. 21) Reside em casa, propriedade do pai, constituído por quatro quartos, com quintal, dotada de condições de habitabilidade. 22) O relacionamento intrafamiliar é caracterizado pelas interações positivas entre os seus membros, excetuando com o irmão, mestre de embarcação, pelo facto de não participar nas despesas do agregado, segundo referem o arguido e a irmã. 23) Subsistem dos rendimentos, no valor total de 1020€, contribuindo o arguido, quando está em Portugal, com cerca de 1000 € para as despesas correntes. 24) Apresentam despesas de consumos domésticos e telecomunicações no valor de 330 €. 25) O arguido contribui mensalmente a pensão de alimentos devida à sua filha, da relação que manteve com a ofendida, no valor de 150 € mais extras no valor mensal de € 100,00. 26) O arguido no seu quotidiano quando está em Portugal, no intervalo da faina piscatória, remete-se ao domicílio, confeciona as refeições para o pai e privilegia o convívio com a família e a filha. 27) O processo de promoção e proteção teve início na CPCJ ... em 2020, quando foi sinalizado pela autoridade policial, por alegada exposição do menor a situação de violência doméstica. Nesta sequência, foi aplicada a medida de promoção e proteção junto da mãe, que durante algum tempo não permitiu que o arguido visse a filha. Esta situação foi, entretanto, ultrapassada, tendo sido a medida arquivada no início de 2023, por inexistência de risco para a filha dos ex-cônjuges. 28) Decorrente deste processo não se registou qualquer alteração nos relacionamentos do arguido, a nível da sua família de origem, continuando a dispor do seu apoio e confiança. 29) Desde a existência deste processo e os contactos que mantêm são cordiais e circunscritos a questões relativas à filha de ambos. 30) Possui de habilitações literárias o 6ºano de escolaridade.. 2.2. São os seguintes os factos dados como não provados pelo Tribunal de 1ª Instância: Da discussão da causa não resultaram como não provados quaisquer factos. 2.3. É a seguinte a motivação da matéria de facto apresentada pelo Tribunal de 1.ª Instância: Como dispõe o artigo 127.º, do Código de Processo Penal, a prova é apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Significa este princípio que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo que se fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo. A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e conjugada da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e da prova documental junta aos autos. Assim, em obediência ao disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, importa indicar as provas que serviram para fundamentar a convicção do tribunal. Para dar como provado os factos elencados em 1) a 16) dos fatos provados, o tribunal teve em conta a confissão integral e sem reservas produzida pelo arguido, e tendo-o feito depois de ter começado a prestar declarações e indagado sobre se o fazia de forma livre, integral, sem reservas e sem se sentir coagido, respondeu afirmativamente, importando referir que, o tribunal, não tinha qualquer convicção prévia formada ou intima em relação à matéria a decidir ou à pessoa do arguido. De referir que, conjugadamente com a confissão do arguido, e apreciadas criticamente, o tribunal teve em conta a certidão de fls. 19 e ss., o auto de notícia de fls. 80 e ss., o aditamento de fls. 145 e ss., o auto de notícia de fls. 61 e ss., o auto de apreensão de fls. 90 a 94., o relatório fotográfico de fls. 95 a 96, e os autos de exame direto de fls. 97 e 98 e exame de fls. 125 a 129. Os elementos considerados provados e relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta do arguido foram considerados assentes em 14) a 16) não apenas pela confissão como a partir do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas supra, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum. Para determinação das condições pessoais, familiares e socio económicas do arguido dadas como provadas de 18) a 30) o tribunal considerou não só as declarações do arguido, já que, quanto a este aspeto, as mesmas se revelaram sinceras e, por isso, dignas de crédito, tanto mais que não contrariadas por qualquer prova, como o relatório para a determinação da medida da pena elaborado pela DGRSP e constante da refª 373308984. Pela análise do teor do certificado de registo criminal junto aos autos- cfr. refª 37338132 se considerou provada a inexistência de antecedentes criminais por parte do arguido [fato provado em 17)]. Fundamentos do recurso: Questões a decidir no recurso: É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção). As questões que importa conhecer: - se, no caso dos presentes autos, se impõe a modificação da decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, a qual foi impugnada por se entender incorretamente julgada, nomeadamente no que se refere aos pontos n.ºs 5), 9), 10) e 11) da matéria de facto provada; - se o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo; - se se encontram preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do tipo legal de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nº 1, al. b) e n.º 2 alínea a) do Código Penal. Vejamos. Para fundamentar o seu recurso, o recorrente alega que se impõe a modificação da decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, no que concerne aos pontos 5., 9., 10. e 11. dos factos provados, por entender incorretamente julgada, devendo tais factos serem considerados como não provados. Dos fundamentos do recurso depreende-se claramente que a discordância manifestada pelo recorrente diz respeito à impugnação da decisão sobre a matéria de facto (cf. artigo 412º, n.º 3 do CPP). A impugnação da matéria de facto prevista no art.º 412.º n.º 3 do Cód. Proc. Penal, consiste na apreciação, tal como sustentou o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 01.04.2019 (processo n.º 360/08-1.ª, disponível em www.dgsi.pt), “que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs3 e 4 do art.º 412º do C.P. Penal. A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412.º]”. Como salienta o STJ, no acórdão de 12.06.2008, Proc. nº 07P4375 (disponível in www.dgsi.pt) a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações: - a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam; - a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações; - a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita à indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso; - a que tem a ver com o facto de ao Tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b), do nº 3, do citado art.º 412º). Com efeito, no Acórdão da Relação de Évora, de 01.04.2019 (processo n.º 360/08-1.ª, www.dgsi.pt) sustentou-se «Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.». Como pode ler-se no Ac. do TRP de 17.09.2003 (processo 0312082, disponível em www.dgsi.pt) “(…) o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no artigo 127º do C.P.P. A decisão do Tribunal há de ser sempre uma “convicção pessoal” – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, ed. 1974, pág. 204). Daí que, de acordo com a jurisprudência, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo Tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras de experiência comum ou o princípio in dubio pro reo. Transpondo estas considerações para o caso em concreto, o recorrente sustenta que não podiam ter sido dados como provados os factos constantes dos nºs 5), 9), 10) e 11) dos factos provados por total ausência de prova quanto aos mesmos e por não ter valorado as declarações do arguido prestadas em sede de audiência de julgamento, fazendo menção das passagens do registo de prova em que o arguido nega o que consta dos pontos 5, 10 e 11 da matéria de facto e afirma ser seu amigo a pessoa que ficou com a sua filha, ao contrário do que consta no ponto 9 dos factos provados. De acordo com a motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida, o Tribunal, para dar como provados os factos descritos sob os pontos 1. a 16., teve em conta a confissão integral e sem reservas produzida pelo arguido em audiência, a qual ocorreu depois deste ter começado a prestar declarações, e foi considerada após o arguido ter respondido afirmativamente ao ser indagado sobre se o fazia de forma livre, integral, sem reservas e sem se sentir coagido. O Tribunal fez ainda menção expressa que não tinha qualquer convicção prévia formada ou intima em relação à matéria a decidir ou à pessoa do arguido. O Tribunal refere, ainda, que, para considerar provados os identificados factos, conjugadamente com a confissão do arguido, e apreciadas criticamente, teve em conta a certidão de fls. 19 e ss., o auto de notícia de fls. 80 e ss., o aditamento de fls. 145 e ss., o auto de notícia de fls. 61 e ss., o auto de apreensão de fls. 90 a 94., o relatório fotográfico de fls. 95 a 96, e os autos de exame direto de fls. 97 e 98 e exame de fls. 125 a 129 dos autos. Efetivamente, não obstante o recorrente alegar que não deveriam ser dados como provados os factos constantes dos nºs 5), 9), 10) e 11) da sentença por total ausência de prova quanto aos mesmos, transcrevendo as declarações que começou por prestar em audiência de julgamento, olvida que num segundo momento e, após o seu Ilustre Mandatário anunciar que o mesmo pretendia, afinal, confessar os factos integralmente e sem reservas, o mesmo instado sobre se o pretendia fazer e se o fazia de forma livre e espontânea respondeu afirmativamente – cfr. minuto 00:00 a 00:44, sendo que não foi deduzida qualquer oposição a que a mesma fosse considerada, com todas as consequências processuais daí resultantes, renunciando o Tribunal à produção da demais prova. Ora, ao confessar integralmente os factos, o arguido aceita o teor da acusação e que sejam dados como provados todos os factos nela constantes, em conformidade com o teor da alínea a) do n.º 2 do art.º 344.º do Código de Processo Penal, pois sendo sem reservas a confissão não admite condições ou alterações aos factos admitidos, tal como constam da acusação/pronúncia. No caso em apreço, verifica-se que o recorrente pretende por em crise declaração em ata a fazer menção da confissão e o despacho que a julgou válida, em relação aos quais não reagiu, apesar de estar presente quando tiveram lugar. Ora, o despacho judicial que declara verificada confissão integral e sem reservas e determina o efeito de renúncia à produção de prova consignado na al. a) do n.º 2 do art.º 344.º do Cód. Proc. Penal, forma caso julgado quanto a essa questão. Assim, formando-se caso julgado nesse domínio, encontra-se impedida a discussão posterior da verificação de confissão e da decidida renúncia à produção de prova, nos termos do art.º 344.º, n.º 2, al. a) do Cód. Proc. Penal (cf. neste sentido Ac. da RG de 16/11/2009, processo 464/07.1GTVCT, in www.dgsi.pt). No caso em análise, tendo o arguido confessado integralmente e sem reservas os factos não é possível, em sede de recurso, pôr em causa a matéria de facto fixada em consonância com o que constava da acusação, quando o arguido não impugnou, no momento próprio, o despacho que assim o considerou, antes dando o seu acordo. Para fundamentar o seu recurso, o recorrente também alega que ao nível subjetivo, não se poderá concluir que o arguido tenha agido deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de maltratar física e psicologicamente a sua ex companheira, ofendendo-a na respetiva honra e consideração bem como a sua autodeterminação. Não poderemos acompanhar a alegação do recorrente, não só pelas razões já expostas no que concerne à confissão integral e sem reservas, como também porque a convicção do Tribunal não tem necessariamente que se apoiar apenas em prova direta. Pode também apoiar-se em prova indireta. Na prova indireta o apuramento de factos que são imputados ao agente, infere-se dos meios de prova sempre à luz das regras da experiência comum, estribadas na lógica, como instrumentos que medem e confrontam probabilidades. Quer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, “a perceção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a perceção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79). Uma vez que em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (cf. artigo 125.º do Código de Processo Penal), delas (das provas admissíveis) não pode ser excluída a prova por presunções (prevista, como noção geral, no artigo 349.º do Código Civil, mas prestável e válida como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos no processo penal) em que se parte de um facto conhecido (o facto base, facto indiciante ou, simplesmente, indício) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum ou facto consequência) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro. Neste âmbito, importam as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção, que se encontram na base de qualquer juízo probatório. São meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção, que cedem por simples contraprova, ou seja, prova que origine a dúvida sobre a sua exatidão no caso concreto. Ora, no caso concreto, na sua motivação da decisão de facto o Tribunal refere expressamente que “Os elementos considerados provados e relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta do arguido foram considerados assentes em 14) a 16) não apenas pela confissão como a partir do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas supra, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum”. Analisada a referida motivação de facto concluímos que o processo de formação da convicção do Tribunal a quo explanado por este, nomeadamente quanto à intenção com que o arguido agiu, é perfeitamente coerente, dentro da confissão integral e sem reservas efetuada em audiência pelo arguido e não encerra qualquer erro manifesto, ditado em qualquer desconformidade na formulação lógica ou pelas regras da experiência comum. Não vislumbramos que haja sido formulado qualquer juízo destituído de razoabilidade e que contrarie os ditames da experiência comum, devendo deste modo improceder a impugnação movida à decisão a matéria de facto. Acresce que, mesmo na análise da prova indireta, o apuramento dos factos foi inferido dos meios de prova sempre à luz das regras da experiência comum, estribadas na lógica, como instrumentos que medem e confrontam probabilidades. Pelas razões apontadas, e porque é expressamente invocada, cumpre dizer que no caso dos autos não se vislumbra a apontada violação do princípio in dubio pro reo. Enquanto expressão, ao nível da apreciação da prova, do princípio político-jurídico da presunção de inocência, traduz-se o princípio em análise na imposição de que um non liquet, na questão da prova, tem que ser sempre valorado a favor do arguido. “No que se traduz que apenas pode haver condenação se se tiver alcandorado a verdade com um grau de certeza, para além de qualquer dúvida razoável, que, naturalmente, fica aquém da noção de qualquer sombra de dúvida” (Acórdão da Relação do Porto, de 28/10/2015, in http://www.dgsi.pt/jtrp). No entanto, como igualmente se refere no supra mencionado Aresto, a verificação deste vício, “pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador. A simples existência de versões díspares e até contraditórias sobre os factos relevantes não implica que se aplique, sem mais, o princípio in dubio pro reo”. Ora, no caso dos autos, ouvida a prova e lida a motivação da decisão de facto proferida, é notório que o Tribunal a quo não teve qualquer dúvida no que concerne à prática pelo arguido dos factos integrantes dos crimes pelos quais foi condenado, nem este Tribunal de recurso vislumbra que tenha existido a apontada violação do princípio in dúbio pro reo. A dúvida relevante de que cuidamos, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador, após a produção da prova, mas antes apenas a dúvida que este não logrou ultrapassar (Acórdão da Relação de Coimbra de 10/12/2014, in www.dgsi.pt/jtrc). Assim, sendo notório que o Tribunal a quo não ficou – e, diga-se, nem este Tribunal de recurso - com qualquer dúvida no que concerne à prática pelo arguido dos factos dados como provados, é patente que não ocorreu qualquer violação do princípio in dubio pro reo, que apenas se verificará quando o Tribunal, em caso de dúvida, decidir contra o arguido e, não, já, naquelas outras situações em que este, de acordo com a apreciação/valoração que faz da prova, entende que o tribunal deveria ter ficado na dúvida. Pelo exposto, também não pode operar o princípio “in dubio pro reo”, dado que nos parâmetros de convencimento probatório do Tribunal não se vislumbra qualquer panorama de dúvida que fragilizasse a decisão da matéria de facto. Não procede, assim, a impugnação da matéria de facto apresentada pelo recorrente, pois o Tribunal a quo interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum, não tendo extraído conclusões estranhas à confissão efetuada pelo arguido em audiência, não tendo, por isso, violado o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 127.º, do Cód. Proc. Penal ou o da presunção de inocência consagrado constitucionalmente. Acrescentamos nós, porque são de conhecimento oficioso, que a sentença recorrida, - do seu texto, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum - não padece dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal. Considerando tudo quanto se deixa exposto, teremos que concluir que é inoperante a impugnação da matéria de facto efetuada, razão pela qual improcede, nesta parte, o recurso apresentado pelo arguido. O arguido pedia a sua absolvição, alegando que não se encontram preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do tipo legal de crime de violência doméstica pelo qual foi condenado. O pressuposto nuclear da alegação do arguido neste ponto era a procedência das alterações a introduzir à decisão da matéria de facto provada propugnadas no recurso que apresentou, nomeadamente no que concerne à prática dos factos que lhe eram imputados. Contudo, as alterações propugnadas pelo arguido não procederam, tendo permanecido incólume a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida. Mas, mesmo que assim não se entendesse, como parece entender o recorrente quando alega que as condutas descritas na acusação não traduzem a molestação, humilhação, os maus tratos físicos e psíquicos tipificados na lei, sempre diremos que, concordando absolutamente com o referido na sentença recorrida, “(…). No presente caso, existiram apenas “maus-tratos psíquicos” atentos os factos provados descritos de 1) a 14), na vertente de ameaças contra a integridade física da ofendida e sobre os bens do casal (fato provado em 4), na concretização de atos perturbadores da paz da ex-parceira por não se conformar com o fim da relação ou com o fato de a ofendida ter ficado, depois da separação, a residir na casa que foi morada de família [fatos provados de 6) a 11)], aí se deslocando e partindo objetos, o vidro da entrada ou colocando o punhal á cintura, no domicílio comum que era naquelas ocasiões o domicílio da vítima, verificando-se, por isso, a agravação prevista no artigo 152.º, nº 2, do Código Penal. Também, praticando facto contra menor, sua filha, atuações que assumem particular relevo- designadamente deixando-a sozinha com um estranho, sendo passível de – e tendo mesmo logrado – provocar na ofendida/vitima sentimentos de humilhação e de vexame, medo e inquietação, porque idóneas para isso. Na verdade, estes factos, conjugados entre si, são os necessários para se considerar preenchido o crime de violência doméstica, por se tratar de atos praticados com reiteração, os quais ofenderam a ofendida na sua integridade psíquica. São atos que, ainda que considerados isoladamente, permitiriam a condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica. No presente caso, o arguido agiu com dolo direto, atentos os factos provados indicados nos pontos 14) a 16). Pelo exposto, não pode o arguido deixar de ser condenado pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, sendo certo que nenhuma causa de exclusão da culpa ou da ilicitude se apurou. (…)”. No mais, atentos os factos dados como provados nos pontos 6) a 10) da sentença recorrida mostra-se acertada a qualificação jurídica dos factos com a agravação do artigo 152.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal. Deste modo, nenhuma alteração se impõe fazer nesta parcela da sentença recorrida, sendo correta a subsunção jurídica dos factos efetuada pelo Tribunal a quo. Considerando tudo quanto se deixa exposto, é manifesto que o presente recurso improcede na sua totalidade. III. Decisão: Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso apresentado pelo arguido, mantendo a decisão recorrida na sua integralidade. Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 UC´s a taxa de justiça. Porto, 19 de junho de 2024 (Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários) Paula Natércia Rocha Raquel Lima Raúl Esteves |