Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
895/22.7T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
FACTOS MATERIAIS
JUÍZOS VALORATIVOS
Nº do Documento: RP20240710895/22.7T8PRD.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras “questões” de que o tribunal tem o dever de conhecer sob pena de omissão de pronúncia (artigo 615.º, nº 1 al. d) do CPCivil.
II - As referidas questões não se confundem com “factos”, já que eles não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do citado normativo, antes se reconduzem a erros de julgamento.
III - Só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objeto de prova.
IV - No âmbito da vigência do atual CPC, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 895/22.7T8PRD.P1 - Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este-Juízo Local Cível de Marco de Canaveses-J2

Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Drª. Eugénia Marinho da Cunha
2º Adjunto Des. Drª Maria Fernandes de Almeida

5ª Secção




Sumário:
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I - RELATÓRIO


Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


Os autores AA, e BB, ambos residentes na ..., n.º ..., ..., ... vieram propor ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra a Ré CC, residente na Rua ..., ... ..., ..., pedindo que seja a mesma condenada na restituição do valor de €23.000,00 (vinte e três mil euros), referente à quantia que lhe mutuaram, acrescida dos juros moratórios.
Alegam em resumo que em consequência do vínculo de amizade existente, respetivamente, entre o pai do autor e o pai da ré, este último, pessoalmente, pediu ao autor que emprestasse à Ré sua filha, a quantia de €23.000,00, com a finalidade de liquidar uma dívida existente num litígio judicial pendente, com a ex-mulher do irmão.
Assim sendo, no dia 10 de outubro de 2017, após um prévio encontro para jantar em casa dos autores com a ré, os primeiros efetuaram duas transferências para o IBAN da ré, na supracitada quantia, tendo ficado acordado que esse montante seria restituído, no prazo máximo de 3 a 4 meses, ou seja, no limite a 9 de fevereiro de 2018 o que até não sucedeu.
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A Ré, citada, deduziu contestação, impugnando os factos alegados, referindo que foi o autor que junto de seu pai havia contraído um empréstimo como resulta dos documentos juntos e que nunca tais quantias acumuladas no tempo foram pagas.
Ora, perante tal incumprimento e sabendo o pai da ré que o autor vivia numa situação financeira desafogada, interpelou-o para que ele procedesse ao pagamento das quantias emprestadas e tuteladas por letras e cheques, acordando um valor de tal débito, na supra aludida quantia, não obstante, tivesse reconhecido que a sua filha estava de facto necessitada de tal quantia.
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A final foi proferida decisão do seguinte teor:
Em conformidade com o acima exposto, julgo totalmente procedente, por provada a presente ação e, por consequência, declaro nulo o contrato de mútuo celebrado entre as partes, por verificado o vício de forma, condenando a ré CC, a restituir aos autores o capital mutuado de €23.000,00 (vinte e três mil euros), acrescida de juros de mora contados à taxa legal a partir da data da interpelação (03.12.2021), em conformidade com o previsto no artigo 289.º, nºs. 1 e 3 do CCivil.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Ré interpor o presente recurso concluindo da seguinte forma:
1ª Omissão de pronúncia: O tribunal “a quo”, fez tabua rasa, ou melhor não se pronunciou relativamente aos títulos executivos e documentos, não analisando o seu conteúdo e as obrigações que eles estampavam, bem como quem, estava adstrito a tais obrigações, de per si, omitiu tal obrigação limitando-se a tecer comentários e uma posição apaixonada e parcial de tais documentos, que aqui se passa a transcrever,
2ª A omissão de pronúncia tem como consequência a nulidade da sentença, nos termos do artigo 615º, n.º 1, al. d) do CPC
3ª Com a postura evidenciada e vertida na sentença violou o tribunal a “quo” o principio do juiz natural, conforme o elencado na sentença e aqui transcrito: “Aliás, a junção dos cheques e demais títulos revela a forma ardilosa com que a ré elaborou uma versão dos factos parcial, deturpada e ignóbil, tendo em conta que, em momento algum, das declarações que prestou a ré negou o encontro entre o seu falecido pai e o Autor, nem a ida para jantar a casa dos autores, violando assim pelo menos o artigo 32º, nº9 da CRP.
4ª Sem prescindir, deveria o tribunal ter dado provado os factos, vertidos em 3,4,5,6 e 8 da contestação; pelo cotejo dos depoimentos do autor e da ré, e das declarações da testemunha e mãe da ré DD
5ª Com tal, incorreu o tribunal na violação dos princípios da livre apreciação da prova, da imediação e da oralidade.
6ª E por via disso entronca no erro da apreciação da prova, conforme o plasmado no artigo 674º, nº1º do CPC e 615º do mesmo diploma legal.
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Devidamente notificados contra-alegaram os Autores concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPCivil.
No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se a decisão padece de nulidade por omissão de pronúncia;
b)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
c)- decidir em conformidade em função do julgamento da impugnação da matéria de facto.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1). No dia 06 de outubro de 2017, no café sito em ..., no edifício “...”, denominado por “...”, o pai da Ré, EE, pediu ao Autor que emprestasse à sua filha CC, a quantia de € 23.000,00 (vinte e três mil euros), por à data estar necessitar transitoriamente dela para libertar ónus que impendiam sobre uns imóveis num litígio judicial pendente.
2). O referido EE garantiu ao Autor que a Ré devolveria esse montante, estabelecendo para tal um prazo de 3 (três) a 4 (quatro) meses, revelando que a Ré iria lhe restituir esse montante assim que concretizasse a venda dos referidos imóveis.
3). O pai da Ré, EE, confidenciou ao Autor que a sua filha estaria perante uma situação bastante delicada e urgente.
4). O Autor, que não detinha a aludida quantia, no imediato, conversou com a sua mulher e juntos prontificaram-se a ajudar a Ré.
5). No dia seguinte, 07 de outubro de 2017, e de modo a oficializar este pedido, a Ré jantou em casa dos Autores, confessando que estava muito angustiada, pois, precisava desta quantia disponível até ao dia 12 de outubro de 2017, dia em que se encontrava agendada uma diligência judicial.
6). Os Autores mobilizaram os esforços necessários e, no dia 10 de outubro de 2017, efetuaram duas transferências bancárias para o IBAN da Ré, perfazendo o total de €23.000,00 (vinte e três mil euros), acordando com a Ré que esta restituiria o referido montante num prazo máximo de 3 a 4 meses a contar desde desta data, ou seja, até ao prazo máximo de 09 de fevereiro de 2018.
7). Em 9 de Fevereiro de 2018, a quantia referida 6) ainda permanecia em débito e sem que a Ré a tivesse restituído aos Autores, furtando-se aos contactos telefónicos do Autor.
8). O Autor teve conhecimento, que a quantia mutuada seria utilizada em sede de um litígio judicial que a Ré teria com a ex-mulher do seu irmão, FF, litígio esse que tinha como base uma ação declarativa, supostamente referente a uma dívida de alimentos a menores, que ulteriormente terá originado um processo executivo n.º 771/13.4TBPFR, correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo de Execução de Lousada–Juiz 1.
9). O Autor averiguou que, a Ré e o seu já falecido, irmão, ex-marido da FF, eram comproprietários em prédios penhorados por esta última, tendo sido esta notificada da venda dos mesmos na qualidade de preferente, ocupando no processo a posição processual de Interveniente Acidental.
10). A audiência do dia 12 de outubro de 2017 era uma diligência de abertura de propostas, no Juízo de Execução de Lousada.
11). Os Autores estão desde 27 de março de 2018 a tentar dialogar com a Ré, com vista a cobrar a quantia mutuada.
12). Em finais de maio e início de junho de 2020, o Autor encontrou a Ré no ..., e a mesma terá dito que afinal ainda não tinha usado o dinheiro.
13). No dia 03 de dezembro de 2021, os Autores remeteram carta registada com aviso de receção à Ré, estabelecendo um prazo razoável para que a mesma pudesse proceder ao pagamento da quantia de forma voluntária.
14). A Ré não só não procedeu a qualquer pagamento que fosse como nem de dignou a responder à aludida missiva.
15). Foi remetida à Ré uma segunda interpelação, datada de 25 de janeiro de 2022, agora, através da mandatária dos Autores, determinando novo prazo para pagamento da quantia em dívida.
16). A missiva suprarreferida foi respondida pelo Advogado da Ré, via e-mail, insinuando apenas que a Ré nada deve aos aqui Autores.
17). O Autor teve conhecimento que a quantia exequenda do processo executivo supramencionado apenas terá sido paga (pela aqui Ré) no final de 2021 (entre os meses de outubro a dezembro), pelo que a quantia mutuada nunca teve o destino que a Ré havia.
18). O EE reconheceu o facto da sua filha, aqui ré, estar necessitada de liquidez e este queria na qualidade de pai ajudar a filha.
19). Como o intuito era ajudar por banda do pai, a aqui ré, foi indicado o IBAN da sua conta. E para tal efetuadas as transferências no montante acordado,
20). A Ré que, na qualidade de filha, já há alguns anos a esta parte vem prestando todos os cuidados aos seu pais e acompanhamento.
Mais resultou provado:
21). O EE era primo do pai do autor que faleceu em 14/07/2006.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que no recurso vem colocada prende-se com:
a)- saber se a decisão padece de nulidade por omissão de pronúncia.
Nos termos do disposto da alínea d) do nº 1 do artigo 615.º do CPCivil a sentença é nula sempre que “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Estabelece-se nesta previsão legal a consequência jurídica pela infração ao disposto no artigo 608.º, nº 2, do mesmo diploma legal. Ou seja, a nulidade prevista na alínea d) está diretamente relacionada com o nº 2 do artigo 608.º, referido, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas, cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Conforme este princípio, cabe às partes alegar os factos que integram o direito que pretendem ver salvaguardado, impondo-se ao juiz o dever de fundamentar a sua decisão nesses factos e de resolver todas as questões por aquelas suscitadas, não podendo, por regra, ocupar-se de outras questões.
Mas, importa precisar o que deve entender-se por “questões” cujo conhecimento ou não conhecimento integra nulidade por excesso ou falta de pronúncia.
Como tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras “questões” de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade em causa.
Há, assim, que distinguir as verdadeiras questões dos meros “raciocínios, razões, argumentos ou considerações”, invocados pelas partes e de que o tribunal não tenha conhecido ou que o tribunal tenha aduzido sem invocação das partes.
Num caso como no outro não está em causa omissão ou excesso de pronúncia.
No que concerne à falta de pronúncia dizia Alberto dos Reis[1] que “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
Do que se conclui que apenas as questões essenciais, questões que decidem do mérito do pleito ou, convenhamos, de um problema de natureza processual relativo à validade dos pressupostos da instância, é que constituem os temas de que o julgador tem de conhecer, quando colocados pelas partes, ou não deve conhecer na hipótese inversa, sob pena de a sentença incorrer em nulidade por falta de pronúncia ou excesso de pronúncia.
Obviamente, sempre, salvaguardadas as situações onde seja admissível o conhecimento oficioso do tribunal.

Postos estes breves considerandos, revertamos ao caso concreto.

Sob este conspecto alega a apelante:

“O tribunal “a quo”, fez tabua rasa, ou melhor não se pronunciou relativamente aos títulos executivos e documentos, não analisando o seu conteúdo e as obrigações que eles estampavam, bem como quem, estava adstrito a tais obrigações, de per si, omitiu tal obrigação limitando-se a tecer comentários e uma posição apaixonada e parcial de tais documentos, que aqui se passa a transcrever, “Aliás, a junção dos cheques e demais títulos revela a forma ardilosa com que a ré elaborou uma versão dos factos parcial, deturpada e ignóbil, tendo em conta que, em momento algum, das declarações que prestou a ré negou o encontro entre o seu falecido pai e o Autor, nem a ida para jantar a casa dos autores” (negrito que corresponde à transcrição do vertido pelo tribunal recorrido na motivação da decisão da matéria de facto).

Mas que questão é que apelante colocou ao tribunal na sua contestação?

A resposta é simples: nenhuma.

Efetivamente, na referida peça a apelante limitou-se a impugnar os factos alegados pelos Autores, referindo que foram estes quem, ao longo dos anos, pediram ao seu pai (EE) vários empréstimos, ou seja, apresenta uma versão contrária dos factos alegados pelos Autores.

Ora, isso, não traduz qualquer questão nos moldes supra enunciados, contendendo apenas com julgamento da base factual alegada pelas partes, isto é, o tribunal recorrido produzida a prova, tem de julgar em conformidade, descriminando na sentença os factos provados e não provados, concluindo depois pela decisão final (cf. artigo 607.º, nºs 2, 3 e 4  do CPCivil) e, por conseguinte, era na fundamentação da sentença que o tribunal recorrido tinha que se pronunciar sobre a prova arrolada e produzida pelas partes tendo, aliás, sido aí que o tribunal a quo verteu a afirmação supra transcrita e que, diga-se nada tem que ver com a violação do juiz natural[2], como alega a apelante.

Portanto, o alegado pela Ré apelante pode consubstanciar erro de julgamento da matéria factual, traduzido na não valoração e análise critica da prova arrolada e produzida pela recorrente, mas não preenche a factie species da al. d) do nº 1 do citado artigo 615.º do CPCivil.

Como afirma Alberto dos Reis[3], “as questões essenciais também não se confundem com “factos”: “Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão”.

Neste mesmo sentido, decidiu o Ac. do STJ de 23/07/2017[4]: “I. O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC”.


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Como assim, não padece a sentença do invocado vício.

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Improcedem, desta forma, as conclusões 1ª a 3ª formuladas pela apelante.
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A segunda questão colocada no recurso prende-se com:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões a apelante impugna a decisão da matéria de facto, alegando que o tribunal recorrido devia ter dado como provados os artigos 3º, 4º, 5º, 6º e 8º da contestação.
Os referidos artigos têm, respetivamente, a seguinte redação:
“3º Na verdade; verdade essa que os autores não são alheios, e em todo o arrazoado vertido na petição inicial, inverteram a posição de devedores para credores,
4º Explicando, ao longo de muitos anos os autores foram contraindo empréstimos do pai da aqui ré, EE,
5º Empréstimos esses, desde tenra idade do aqui autor AA, nunca pagos e acumulados no tempo,
6º Perante tal incumprimento e sabendo o EE, pai da Ré, que o sobrinho vivia numa situação desafogada financeiramente, interpelou-o para que ele procedesse ao pagamento das quantias emprestadas e tuteladas por letras e cheques, acordando um valor de tal débito à míngua do real, mas cifrado em 23.000,00€ (vinte e três mil euros),
8º Assim, e no estreito cumprimento de tal, o autor efetivou as transferências juntas para cumprimento do acordado com o seu tio”.
Acontece que os artigos em causa não contêm verdadeiros factos, mas meras conclusões.
O artigo 607.º, nº 4 do CPCivil[5] dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.
Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência[6].
Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do coletivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito“.[7]
Portanto, não se suscitam, pois, dúvidas, que no atual regime processual, tal como no pretérito, na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito.
Impõe-se, deste modo, uma apreciação da matéria de facto fixada sob esta perspetiva, não se podendo incluir na mesma a valoração jurídica de factos, mas apenas as circunstâncias de vida subjacentes a essas valorações que as possam vir a sustentar, na apreciação jurídica que sobre as mesmas venha a ser realizada, integrando, já estas, matéria de direito.

Ora, a apelante nos indicados artigos da contestação faz afirmações genéricas e conclusivas.

Com efeito, não concretiza factualmente os montantes dos alegados mútuos, não os situa temporalmente, nada refere sobre o momento e a forma da sua restituição, aliás, nem apelante sabe o montante que devia ser restituído, pois que, à mingua do valor real, afirma situar-se nos €23.000,00 (montante, curiosamente, idêntico ao valor do mútuo, cuja restituição os Autores pedem), ou seja, não alega um continente factual que, uma vez provado, pudesse integrar a factie species do artigo 1142.º do CCivil.

Conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada.
Dito de outro modo, só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objeto de prova.[8]
 Segundo elucida Anselmo de Castro[9]são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos”, depois acrescentando que “só, (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objeto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”.
É que a apelante parece olvidar que:
- às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções, sendo que o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes (artigo 5.º do CPCivil;
- uma coisa são os factos qua tale, ou seja, acontecimentos concretos da natureza ou da vida das pessoas relevantes para o direito e, outra, os documentos, meios de prova dos factos, sendo certo que a decisão a proferir sobre a matéria de facto exclui a simples remissão para documentos desprovida de qualquer explicitação acerca do seu conteúdo que permita compreender o seu conteúdo real;
- os documentos não são factos, mas antes meios de prova dos factos que interessam à decisão da causa (artºs 341.º e 362.º do CCivil.).
Tudo para concluir que a apelante tinha que alegar factos e não fazer afirmações genéricas e conclusivas, sendo que, os documentos que juntou com a contestação não suprem essa falta de alegação.  

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Como assim, nunca os citados artigos da contestação podiam integrar a fundamentação factual.

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Improcedem, desta forma, as conclusões 4ª a 6ª formulada pela apelante e, com elas o respetivo recurso.

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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas da apelação pela apelante (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 10 de julho de 2024.

Dr. Manuel Domingos Fernandes

Drª. Eugénia Marinho da Cunha

Drª. Maria Fernandes de Almeida

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[1] In “Código de Processo Civil”, Anotado, Volume V, pág. 143.
[2] O princípio do juiz natural ou legal, segundo o qual “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior” (artigo 32.º, n.º 9 da CRP), o que proíbe é a escolha arbitrária de um juiz ou tribunal para resolver um processo ou determinado tipo de crimes, visando garantir a imparcialidade e independência dos juízes, os quais devem ser escolhidos de acordo com critérios objetivos e, assim, uma justiça penal independente e imparcial.
No processo civil, não que seja de excluir esse princípio, que não está contemplado em sede constitucional, mas também aí, mormente, a distribuição aleatória dos processos e a proibição de transferência abusiva dos magistrados encontram proteção enquanto exigência e postulado do direito a um processo justo, equitativo, e ao seu julgamento imparcial.
A não coincidência entre o Magistrado que preside à produção da prova e aquele que julga, pode resultar de motivos vários, sejam eles ligados ao cargo, a razões de saúde, transferência, sanção disciplinar ou promoção.
Relevante é que a descoincidência se fique a dever a motivos com suporte legal inerentes à organização e funcionamento da Magistratura, com apoio em normas gerais e abstratas e regulamentos dimanados dos órgãos jurídico-constitucionais competentes.
O processo civil proporciona meios para a assegurar a imparcialidade dos julgadores, ainda que com feição diferente da proteção constitucional a que nos referimos, mormente, nos seus arts. 115.º e 119.º e 124.º.
[3] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, 1984, p. 145
[4] Juiz Conselheiro Tomé Gomes, proc. nº 7095/10.7TBMTS.P1.S1 disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[5] No que diz respeito aos factos conclusivos cumpre observar que na elaboração do acórdão deve observar-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º CPCivil aplicáveis ex vi artigo 663.º, nº 2 do mesmo diploma legal.
[6] José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui pinto Código de Processo Civil–Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 606.
[7] Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Lda. 1985, pág. 648.
[8] Cfr. Acórdãos de 23/09/2009, Proc. n.º 238/06.7TTBGR.S1, Bravo Serra; e, mais recentemente, reiterando igual entendimento jurisprudencial: de 19.4.2012, Proc.º 30/08.4TTLSB.L1.S1, Pinto Hespanhol; de 23/05/2012, proc.º 240/10.4TTLMG.P1.S1, Sampaio Gomes; de 29/04/2015, Proc.º 306/12.6TTCVL.C1.S1, Fernandes da Silva; de 14/01/2015, Proc.º 488/11.4TTVFR.P1.S1, Fernandes da Silva; 14/01/2015, Proc.º 497/12.6TTVRL.P1.S1, Pinto Hespanhol; todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj.
[9]In Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, p. 268/269.