Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
918/23.2T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: LITISPENDÊNCIA
EXCEÇÃO
ARGUIÇÃO
Nº do Documento: RP20240618918/23.2T8AMT.P1
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A litispendência entre um pedido formulado numa acção e o mesmo pedido formulado numa outra acção por via reconvencional, verificando-se os demais caracteres desta excepção dilatória, deve ser oposta na causa em que o demandado é citado/notificado em último lugar.
II - A precedência da citação/notificação deve averiguar-se em relação aos concretos pedidos que são repetidos, e não em atenção a outros que tenham sido cumulativamente ou reciprocamente formulados e relativamente aos quais se não verifiquem os pressupostos da excepção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. Nº 918/23.2T8AMT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Local Cível de Amarante



REL. N.º 879
Juiz Desembargador Relator: Rui Moreira
1º Adjunto: Juiz Desembargador Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Márcia Portela


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


1 – RELATÓRIO

AA intentou acção em processo comum contra BB e mulher CC, tendo estes, na contestação, arguido a excepção de litispendência, por referência a outra acção por eles intentada contra a aqui autora, que corre termos nos Juízos Centrais Cíveis de Penafiel, J1, sob o n.º 997/23.2T8PNF- Juiz 1.
A excepção foi julgada, tendo o tribunal proferido sentença que considerou serem as mesmas as partes, a causa de pedir (um contrato entre ambas celebrado) e o pedido, já que o pedido desta acção e o pedido reconvencional naquela outra acção são idênticos. Em conclusão, absolveu os RR. da presente instância.
É contra esta decisão que vem oposto o presente recurso, que a autora termina formulando as seguintes conclusões:
I-A douta sentença, objecto do presente recurso, não pode manter-se, pois, não consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub judice das normas legais e dos princípios jurídicos competentes.
II- Pela douta sentença ora recorrida, e para o que interessa para o presente recurso, resulta dos presentes autos que o Tribunal a quo julgou procedente a exceção de litispendência alegada pelos Recorridos em sede de Contestação, decidindo que se verificavam os requisitos daquela, e que, existindo duas ações com o mesmo pedido, aquela exceção ocorria no processo apresentado em segundo lugar, considerando como tal o processo sub judice, com fundamento no artigo 577º, al. i), e nos artigos 580º a 582º, todos do CPC.
III- A Recorrente não se conforma com tal decisão, porquanto, o Tribunal a quo parte de um erro de facto (error facti), ao considerar que aquela apresentou pedido reconvencional no processo que corre seus termos sob o nº 997/23.2T8PNF, do Juízo Central Cível de Penafiel-Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, o qual, alegadamente seria similar ao seu pedido no processo sub judice, o que não sucedeu, concluindo pela existência de identidade de pedidos e, consequentemente, pela existência da exceção de litispendência.
IV- E incorre, ainda, a douta sentença recorrida em erro de direito (error júris), na medida em que considera ter sido no processo sub judice que a Recorrente foi citada antes de os Recorridos para as respetivas ações, descurando a citação destes para o procedimento cautelar prévio à ação intentada por aquela, que correu seus termos sob o processo nº 197/23.1T8AMT, no Juízo Local Cível de Amarante, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este.
V- Dos factos, resulta, pois, que a Recorrente, com base no contrato promessa de constituição de direito de uso e habitação, veio intentar a presente ação, na sequência de procedimento cautelar para restituição provisória de posse, onde peticiona que seja proferida decisão judicial constitutiva do seu direito de uso e habitação sobre o prédio identificado no artigo 2º da Petição Inicial e que os Recorridos lhe restituam todos os bens que lhe retiraram, e que se encontra impedida de usufruir, ou, em contrapartida, o respetivo valor, a liquidar em execução de sentença, e uma indemnização por danos morais nunca inferior a € 3.000,00.
VI- Na pendência do procedimento cautelar, após terem sido citados (em 09/02/2023) e deduzido oposição, os Recorridos vieram apresentar ação judicial contra a Recorrente, no dia 31/03/2023, que corre seus termos sob o processo nº 997/23.2T8PNF, do Juízo Central Cível de Penafiel- Juiz 1, do Tribunal da Comarca do Porto Este, e para a qual foi citada no dia 12/05/2023, isto é, em momento posterior à sentença proferida no âmbito do procedimento cautelar, que ocorreu no dia 02/05/2023.
VII – No âmbito do processo sub judice, os Recorridos apresentaram contestação e reconvenção, peticionando que seja declarado: resolvido e extinto o contrato promessa de uso e habitação; abusiva e ilegal a ocupação da ré, ora Recorrente; a sua condenação a desocupar e restituir o imóvel objeto dos autos e a indemnizar os Recorridos numa quantia diária de € 50,00.
VIII- Por seu lado, a Recorrente, citada para o processo nº 997/23.2T8PNF, que corre seus termos no Juiz 1, do Juízo Central Cível de Penafiel, não deduziu reconvenção naquele processo, uma vez que já tinha apresentado a presente ação, considerando tal não se justificar, face à pretensão formulada nos autos.
IX- Contudo, o tribunal a quo, erradamente, partiu do pressuposto que a Recorrente tinha deduzido pedido reconvencional no âmbito do processo nº 997/23.2T8PNF: “Como se vê do cotejo do pedido reconvencional nesta acção 918/23.2T8AMT e, do pedido reconvencional na acção de Penafiel 997/23.2T8PNF, existe rigorosa similitude de pedidos, sendo certo que só após decisão sobre nulidade do contrato-promessa e consequente a reivindicação do prédio pelos autores se pode apreciar o pedido de execução específica do contrato-promessa, formulado como pedido nesta acção.
Como assim a autora não formulou oposição à excepção de litispendência.”
Tal erro condicionou a decisão proferida pelo tribunal a quo, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
X- Como decorre dos respetivos processos, o pedido formulado pelos Recorridos no processo nº 997/23.2 T8PNF é absolutamente distinto, e diametralmente oposto, ao pedido da Recorrente no processo sub judice, porquanto, naquele é peticionado que seja declarado: resolvido e extinto o contrato promessa de uso e habitação; abusiva e ilegal a ocupação da ré, ora Recorrente; a sua condenação a desocupar e restituir o imóvel objeto dos autos e a indemnizar os Recorridos numa quantia diária de € 50,00, e neste o pedido formulado pela Recorrente é que o tribunal a quo profira sentença que: produza os efeitos da declaração negocial dos réus/recorridos no sentido de ser constituído a favor daquela o direito de uso e habitação, com carácter vitalício, sobre o rés-do-chão do imóvel objeto dos autos; condene os Recorridos a restituir todos os bens móveis subtraíram àquela, ou, em sua substituição, o valor dos mesmos; condene os Recorridos a pagar uma indemnização à Recorrente por danos morais de valor nunca inferior a € 3.000,00.
XI- Na hipótese, meramente académica, de proceder a decisão proferida pelo tribunal a quo, a Autora/Recorrente ficaria desprovida de qualquer proteção quanto ao seu pedido, uma vez que não deduziu reconvenção no processo nº 997/23.2T8PNF, não sendo nunca avaliado o pedido por si formulado, nem sendo possível obter uma decisão sobre a sua pretensão, numa clara violação dos seus direitos constitucionalmente consagrados de acesso ao direito e à justiça e de igualdade das partes – artigos 2º e 4º do CPC e 13º e 20º da CRP.
XII- Por outro lado, continuando no campo das hipóteses meramente académicas, se os Recorridos obtivessem ganho de causa na ação que corre seus termos sob o processo nº 997/23.2T8PNF, do Juízo Central Cível de Penafiel, a Recorrente teria de intentar nova ação, correndo o risco de o tribunal, onde decorresse tal processo, vir a considerar a existência de caso julgado.
XIII- O tribunal a quo frisa que a Recorrente não se pronunciou quanto à alegada exceção da litispendência, contudo tal facto não pode ser considerado como fundamento para a dar como provada, uma vez que aquela é do conhecimento oficioso, e ser notória a manifesta discrepância de pedidos.
XIV- Pelo que, face à incontestável diferença dos pedidos, não existe qualquer perigo de repetição ou contradição de decisões.
XV- Sem prescindir, do que supra se expendeu, e no que respeita ao presente recurso, nunca o tribunal a quo deveria considerar a ocorrência da exceção de litispendência no processo sub judice, na medida em que a Recorrente intentou providência cautelar de restituição provisória da posse, como preliminar de ação a intentar (a presente acção), contra os Réus BB e CC, no dia 02/02/2023, que assumiu o número de processo 197/23.1T8AMT, a qual se encontra apensa ao processo sub judice.
XVI- Assim:
- o procedimento cautelar intentado pela Recorrente deu entrada em juízo no dia 02/02/2023;
- os Recorridos foram citados para o procedimento cautelar no dia 09/02/2023;
- os Recorridos deduziram Oposição ao procedimento cautelar no dia 22/02/2023;
- na pendência do procedimento cautelar, no dia 31/03/2023, os Recorridos deram entrada da ação contra a Recorrente que corre seus termos sob o processo nº 997//23.2T8PNF, no Juízo Central Cível de Penafiel – Juiz 1;
- a sentença do procedimento cautelar foi proferida no dia 02/05/2023, pela qual os réus foram obrigados à “restituição provisória do rés-do-chão do prédio, devendo os requeridos abster-se de qualquer acto impeditivo de acesso ao logradouro e ao rés-do-chão, restabelecendo o fornecimento de água e luz, ou, permitindo que a requerente o faça a suas expensas, numa ligação autónoma para a zona objecto do contrato-promessa.”
- a Recorrente foi citada para aquela ação no dia 12/05/2023;
- a Recorrente intentou a ação principal, subsequente ao decretamento do procedimento cautelar, no dia 28/06/2023;
- os Recorridos foram citados para esta ação no dia 03/07/2023.
XVII- Nos termos do disposto no art. 366º, nº 7 do CPC, “Se a ação for proposta depois do réu ter sido citado no procedimento cautelar, a proposição produz efeitos contra ele desde a apresentação da petição inicial”, sendo que, no caso sub judice, os efeitos da citação dos Recorridos retroagem à data de 09/02/2023, por terem sido citados para o procedimento cautelar nessa data, ou seja, antes da Recorrente, em relação às ações propostas pelas partes.
XVIII- E como salientado pelo tribunal a quo, a litispendência deve ser deduzida na ação proposta em segundo lugar, considerando-se proposta em segundo lugar a ação para a qual a Recorrente foi citada posteriormente, ou seja, a ação que foi proposta pelos Recorridos e que corre termos sob o processo nº 997/23.2T8PNF – cfr. artigo 582º, nºs 1 e 2 do CPC -, sendo certo que, com a citação para o procedimento cautelar de restituição de posse, os Recorridos tomaram imediatamente conhecimento da intenção da Recorrente de propor contra eles a subsequente ação e os respetivos fundamentos, tanto assim que deduziram Oposição.
Neste sentido, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo nº 301/13.8TBTMC.G1, de 10 de setembro de 2015, em que foi Relator o Excelentíssimo Senhor Desembargador Heitor Gonçalves, o qual considera tratar-se “dum desvio à regra geral de que só a partir da citação para a acção é que se projectam sobre o réu os efeitos previstos no artigo 564º. É que, com a sua audiência no processo preventivo, o réu toma conhecimento da intenção do demandante de propor contra ele a acção subsequente.”
XIX- Ao julgar procedente a exceção de litispendência, por considerar existirem dois pedidos reconvencionais, o dos Recorridos, no processo sub judice, e o da Recorrente, no processo nº 997/23.2T8PNF, o tribunal a quo incorre em erro de julgamento, quer em erro de facto (error facti), pois que esta não deduziu reconvenção aqueles autos, e não existe similitude de pedidos, ao contrário do decidido pela douta sentença ora recorrida; e em erro de direito (error juris), ao considerar que a Recorrente foi citada em primeiro lugar para a ação interposta pelos Recorridos (processo nº 997/23.2T8PNF), e não o inverso. Pelo que, a existir litispendência, a mesma sempre ocorreria no processo nº 997/23.2 T8PNF, e não no processo sub judice.
XX- Nesta senda, o tribunal a quo faz uma incorreta aplicação e interpretação das normas, designadamente, do disposto nos artigos 366º, nº 7, 564º, 580º a 582º do CPC, e viola o princípio da descoberta da verdade material, e os direitos constitucionais de acesso ao direito e à justiça e de igualdade das partes, previsto nos artigos 13º e 20º, da CRP, e 2º e 4º do CPC.
XXI- Assim, pugna-se pela alteração da douta sentença no sentido ser julgada improcedente a exceção de litispendência alegada pelos Recorridos.
Termos em que, e nos melhores de direito aplicáveis, deverá a presente sentença ser substituída por outra que considere improcedente a exceção de litispendência alegada pelos Recorridos, por não se verificarem reunidos os requisitos para o efeito.
Assim se fará, como sempre inteira JUSTIÇA.
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Os recorridos ofereceram resposta ao recurso, concordando com a decisão recorrida e defendendo a sua confirmação.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Cumpre apreciá-lo.

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2 - FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, identificam-se duas questões:
- indagar da identidade de pedidos, como fundamento da conclusão pela litispendência;
- averiguar, sendo caso de litispendência, qual das acções tem precedência sobre a outra (esta ou a 997/23.2T8PNF), em atenção ao facto de a presente acção ter sido precedida pela propositura de uma providência cautelar.
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Como se sabe, a litispendência tende a prevenir que dois processos, entre as mesmas partes e com o mesmo objecto, pendentes em simultâneo, possam ter decisões contraditórias.
Assim o define o art. 580º, nº 1 do CPC: Artigo 580.º: “As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência”
A repetição da causa, define o nº 1 do art. 281º do CPC, supõe uma tripla identidade: sujeitos, pedido e causa de pedir.
No caso, é incontroversa a identidade dos sujeitos, numa e noutra acção, bem como da causa de pedir. Esta é integrada, em cada uma das acções, por um contrato promessa de uso e habitação celebrado entre os réus e a autora e pela ocupação que esta vem fazendo do prédio a que respeita o contrato.
Pelo contrário, é controverso se ocorre uma identidade de pedidos, que permita, a final, a conclusão pela repetição das causas.
A - Nesta acção 918 a autora pede:
1 - a execução específica do contrato-promessa, ou seja, uma de sentença que produza os efeitos da declaração negocial dos réus no sentido de ser constituído a seu favor o direito de uso e habitação, com carácter vitalício.
2 - que os Recorridos lhe restituam todos os bens que lhe retiraram, e que se encontra impedida de usufruir, ou, em contrapartida, o respetivo valor, a liquidar em execução de sentença, e uma indemnização por danos morais nunca inferior a € 3.000,00.
Por sua vez, em reconvenção, os RR. pedem:
3 – que seja declarado resolvido, ou nulo, o mesmo contrato-promessa de uso e habitação celebrado entre os réus e a autora, declarando-se abusiva e ilegal a ocupação que autora faz da parte do prédio que ocupa, condenando-se esta a restitui-lo aos réus, bem como a pagar-lhes a quantia diária de €50 euros, acrescida dos respectivos juros moratórios, a contar da data da citação até efectiva entrega do mesmo, bem como, a reparar todos os danos causados;
Na acção 997, os RR. pedem a condenação da autora:
4 – a ver declarado resolvido, por sentença que confirme a validade da resolução operada por notificação judicial avulsa, aquele mesmo contrato-promessa de constituição de direito de uso e habitação.
5 - a desocupar e restituir o imóvel objeto dos autos
6 - a indemnizar os Recorridos numa quantia diária de € 50,00, acrescida dos respectivos juros moratórios, a contar da data da citação até efectiva entrega do imóvel.
Nessa acção 997, não foi deduzido qualquer pedido reconvencional, pela ali ré e aqui autora.
Afirmou o tribunal de 1ª instância, na sentença em crise: “Como se vê do cotejo do pedido reconvencional nesta acção 918/23.2T8AMT e, do pedido reconvencional na acção de Penafiel 997/23.2T8PNF, existe rigorosa similitude de pedidos, sendo certo que só após decisão sobre nulidade do contrato-promessa e consequente a reivindicação do prédio pelos autores se pode apreciar o pedido de execução específica do contrato-promessa, formulado como pedido nesta acção."
Desta asserção resultam dois elementos diferentes:
-por um lado, há uma identidade apenas entre o pedido reconvencional dos RR. nesta acção e o pedido que deduziram na acção 997;
- por outro lado, há uma precedência lógica entre o pedido de reconhecimento de nulidade ou de resolução do contrato promessa deduzido pelos aqui RR. na acção 997 e o pedido de execução específica formulado pela A. nesta acção 918.
Daquele primeiro elemento, logo resulta que não pode extinguir-se a instância, designadamente por litispendência, nesta acção 918, sob pena de os pedidos da autora referentes a restituição de bens e a indemnização por danos morais (identificados supra sob o nº 2) jamais serem apreciados.
Do segundo elemento, o que sobressai é que o pedido de execução específica do contrato- promessa não se confunde com o do pedido de declaração de nulidade ou resolução desse mesmo contrato, apenas ficando dependente da sua decisão negativa. Ou seja, a pretensão de execução específica só deverá ser apreciada se improceder o pedido dos reconvintes – repetido na acção 997 – tendente ao reconhecimento da extinção do contrato. Como é óbvio, se o contrato for tido por nulo ou declarado resolvido, prejudicada fica a sua execução específica.
Porém, o que não pode é desde já e no desconhecimento, ainda, da validade desse contrato, concluir-se pela não apreciação dos pedidos da autora, como decorre da extinção da instância, com absolvição dos RR., como foi decretado.
Assim sendo, cumpre concluir que a solução declarada na sentença recorrida, identificando uma relação de litispendência total entre as duas acções e declarando extinta a instância, não pode ter-se por adequada.
Em todo o caso, em face da litispendência parcial, manifestamente existente em relação ao pedido da acção 997 e ao pedido reconvencional deduzido por CC e BB nesta acção 918, poderia absolver-se a autora da instância quanto a esse pedido reconvencional (cujo objecto haveria de ser conhecido na acção 997) e suspender-se a instância, em razão da pendência de causa prejudicial, quanto aos pedidos da autora (art. 272º, nº 1 do CPC).
Todavia, importa verificar, antes de ter tal solução como boa, se a litispendência pode ser declarada na presente acção ou se haveria de sê-lo na acção 997, como defende a apelante.
Dispõe o artigo 582.º do CPC que a litispendência deve ser deduzida na ação proposta em segundo lugar (nº 1) e que se considera proposta em segundo lugar a ação para a qual o réu foi citado posteriormente (nº2).
O tribunal considerou que a aqui autora foi citada para a acção 997, em 12/05/2023; e que só intentou esta acção 918 em 28/6/2023.
Mais resulta destes autos que os RR. foram citados para a acção por carta registada, tendo assinado os correspondentes avisos de recepção no dia 3/7/2023.
É certo, todavia, que a presente acção sucedeu a um procedimento cautelar instaurado pela autora contra os RR., em 2/2/2023, para o qual estes foram citados em 8/2/2023.
Dispõe, a este respeito, o nº 7 do art. 366º do CPC: Se a ação for proposta depois de o réu ter sido citado no procedimento cautelar, a proposição produz efeitos contra ele desde a apresentação da petição inicial.
Por referência a esta norma, defende a autora, ora apelante, que a propositura da procedimento cautelar e a citação dos RR. no âmbito desse processo (2/2/2023 e 8/2/2023) torna a respectiva citação precedente sobre a sua própria citação para a acção 997, que só ocorreu em 12/05/2023. E, assim, só nessa acção 997 pode ser oposta a excepção da litispendência.
A colocação do problema nestes termos esquece, porém, uma circunstância: é que, no caso, a litispendência ocorre não em relação a pedidos recíprocos, mas em função da repetição do mesmo pedido, por CC e BB, em dois processos distintos: num em sede de acção; noutro em sede de reconvenção.
Assim, a citação dos RR. para o procedimento cautelar e, depois, para a presente acção não tem por objecto o mesmo pedido em relação ao qual ocorre a litispendência. Pelo contrário, é alheio aos pedidos determinantes da litispendência. Com efeito, a identidade de pedidos ocorre porque o mesmo pedido foi formulado por BB e CC primeiro na acção 997 e, depois, por via reconvencional, nesta acção 918.
Na acção 997, como se referiu, a ali ré e aqui autora, AA, foi citada em 12/5/2023; nesta acção 918, a autora foi notificada do pedido reconvencional por via da notificação dirigida ao respectivo Mandatário, em 29/9/23.
Não cumpre considerar, nesta equação, a data em que os RR. BB e CC foram citados para esta acção, para contestar o pedido de execução específica ou o pedido indemnizatório formulados pela autora, pois não é em relação a esses que se verifica uma repetição.
Assim, óbvio se torna constatar que é nesta acção 918 que, em relação ao pedido reconvencional e só a ele, se verifica a excepção de litispendência, e só quanto a ele poderia ser verificada essa excepção, com a decorrente absolvição da reconvinda quanto à correspondente instância.
Esse não, é, todavia, o objecto deste recurso que, diferentemente, tem por objecto a decisão que absolveu os RR. da instância, por litispendência. E uma tal decisão, nesta instância, ainda que recaindo sobre uma questão passível de conhecimento oficioso, seria no imediato uma decisão surpresa, sobre uma questão nova, que nenhuma das partes colocou.
Assim, haverá este tribunal de recurso de se limitar a revogar a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento da instância, podendo depois o tribunal a quo, se o entender, verificar da litispendência entre o pedido reconvencional deduzido nesta acção e o pedido formulado pelos mesmos BB e CC na acção 997 (que é claramente anterior a esse pedido reconvencional), bem como de uma eventual relação de prejudicialidade entre essa acção e o objecto desta 918, que sempre continuará conformado pelos pedidos da autora,
Resta, nestes termos, concluir pelo provimento do recurso e, assim, pela revogação da decisão recorrida.

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Sumário:
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento à apelação sob apreciação, com o que revogam a decisão recorrida.

Custas pelos apelados.

Registe e notifique.







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Porto, 18 de Junho de 2024
Rui Moreira
Alberto Taveira
Márcia Portela