Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1957/22.1T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
CONFISSÃO FICTA
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RP202406061957/22.1T8AVR.P1
Data do Acordão: 06/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Um documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, e não se o pagamento declarado foi efectivamente recebido.
II - Quando se declara que ocorreu o pagamento de tornas, tal facto constituiu uma forma extra-judicial de confissão, cuja falsidade pode ser demonstrada.
III - Essa demonstração é valida e eficaz se, por força do desentranhamento da contestação, todos os factos alegados foram declarados provados por confissão ficta.
IV - Esta, assume, neste caso, a natureza de uma confissão judicial relevante e eficaz que logra demonstrar que a declaração de quitação não era verdadeira.
V - Nas acções não contestadas as regras de direito probatório devem ser ponderadas na fase da fixação dos factos, pelo que tendo sido proferido despacho a julgar os mesmos provados, formou-se caso julgado formal sobre essa questão no processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 1937/22.1T8AVR.P1

Sumário:

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1. Relatório

AA, residentes na Rua ..., ..., ..., Viseu, intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra BB, residente na Rua ..., ..., Aveiro, pedindo a condenação deste a pagar à A.:

a) a quantia que lhe é devida, a título de tornas pela partilha outorgada a 22/02/2018, no montante de € 56.339,36;

b) a quantia de € 1.000,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos;

c) juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento.

Articula, para o efeito, que contraiu casamento com o R. em 18/10/1997, tendo este casamento sido dissolvido por divórcio por mútuo consentimento por decisão proferida em 22/02/2018, e nesta data transitada, no Processo de Divórcio e Separação de Pessoas e Bens por Mútuo Consentimento que, sob o nº ..., correu termos na Conservatória do Registo Civil de Viseu. A 22/02/2018 foi realizada a partilha dos bens do dissolvido casal formado pelos aqui A. e R., tendo este tornas a devolver à A. no valor de € 56.339,36. Foi declarado pelos ora A. e R., no ato de partilha, que “o valor das tornas foi pago pelo partilhante BB, em 22 de Fevereiro de 2018, através do cheque nº ..., sacado sobre o Banco 1..., S.A., à partilhante AA”. Nem no momento da outorga da partilha nem em momento posterior o R. pagou à A., por qualquer meio, a quantia a esta devida a título de tornas. A A. apenas declarou falsamente que o valor das tornas lhe foi pago pelo R. nessa data porque este lhe pediu para o fazer, alegando não ter disponibilidades económicas naquela data para realizar tal pagamento e comprometendo-se a efetuar o pagamento à Autora de tal quantia posteriormente, sempre até ao momento em que o R. lograsse vender o dito imóvel que lhe foi adjudicado na partilha.

O Réu contestou mas esse articulado foi mandada desentranhar, por despacho proferido a 19/09/2022, por não ter sido apresentada tempestivamente.

Foi proferido despacho, a 09/11/2022, o qual transitou em julgado em se considerou confessados todos os factos articulados, por o Réu não ter contestado tempestivamente a presente ação, ao abrigo do disposto no art. 567.º, nº 1, do CPC.


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A A., por requerimento de 24/10/2023, veio desistir do pedido de condenação do R. no pagamento da quantia de € 1.000,00 a título de danos não patrimoniais por ela sofridos.

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O R. veio defender, por requerimento de 30/10/2023, que, não tendo sido pedida pela A. nem a nulidade nem a anulação da sua (da A.) declaração confessória, esta mantém a sua validade. E, consequentemente, o R. não pode ser condenado no pagamento das tornas. A A., devidamente notificada, veio requerer, por requerimento de 03/11/2023, a sua notificação para corrigir o pedido que formulou em conformidade com a matéria de facto e o direito alegados em sede de petição inicial, sendo que, nos termos do art. 265.º, nº 2, do CPC.

Foi proferido despacho, a 20/11/2023, que indeferiu o pedido da A..

Mais tarde foi proferido saneador sentença que julgou a acção improcedente.

Inconformado veio a autora interpor dois recursos. O primeiro relativo ao requerimento formulado em 30.10.23, e o segundo relativamente à sentença proferida.

Esses recursos foram admitidos como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo.


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2.1. A apelante apresentou as suas conclusões, cujo teor integral se dá por reproduzido e se resumem nos seguintes termos:

(…) 1. nos artigos 26.º a 51.º da PI, alegou, a título principal, que a declaração por si emitida se trata de declaração de quitação e não de uma declaração confessória e, mesmo que assim se não entendesse, mais alegou a Autora que, contrariamente ao por si declarado na escritura de partilha, não se verificou o pagamento das tornas que lhe são devidas, peticionando a Autora a final, correctamente, em conformidade com esta parte principal da causa de pedir, a condenação do Réu no pagamento das tornas devidas;

2. Tal documento autêntico não faz prova daqueles factos que constituem objecto de declarações de ciência produzidas perante a autoridade, como é o caso, por exemplo, da entrega, antes da escritura, do preço da compra e venda pelo comprador ao vendedor (v. Lebre de Freitas, Código Civil anotado, Volume I, págs. 459-460).

16.ª Não pode, assim, o documento autêntico, no caso concreto, fazer prova plena da existência de qualquer pagamento de tornas, que não foi directamente percepcionado pela Senhora Conservadora do Registo Civil; o dito documento autêntico de partilha não prova que seja verdadeira a declaração da Autora de que “o valor das tornas foi pago pelo partilhante BB, em 22 de Fevereiro de 2018, através do cheque nº ..., sacado sobre o Banco 1..., S.A.”; se o mesmo faz prova plena da realidade de afirmação da Autora, já não o faz da realidade do pagamento das tornas.

22.ª Pelo que, provado que o cumprimento/pagamento das tornas não ocorreu, tinha a dívida do Réu de subsistir inexoravelmente, pelo que não pode o Recorrido deixar de ser condenado a pagar à Recorrente a quantia devida a título de tornas que decorre do documento de partilha, acrescida dos juros de mora à taxa legal.

24.ª Acresce ainda que, mesmo que se considerasse tratar-se de uma verdadeira declaração confessória – hipótese que se coloca por mero dever de patrocínio -, também mal andou o Tribunal a quo, nas duas decisões recorridas, ao entender que o confitente não pode impugnar a confissão produzida alegando e provando que o facto confessado não é verdadeiro, e também ao considerar que, para destruir a força probatória da confissão, terá sempre de se alegar e provar o erro ou outro vício de vontade.

25.ª Com efeito, contrariamente ao entendimento constante das duas decisões recorridas, sendo certo que o artigo 358.º, n.º 2, do Código Civil confere força probatória plena à confissão extrajudicial escrita dirigida à parte contrária que conste de documento autêntico, pode essa prova ser contrariada - para além da prova da falta ou de um vício da vontade na emissão dessa declaração -, demonstrando-se não ser verdadeiro o facto confessado, divergindo a jurisprudência apenas quanto aos meios de prova admitidos para o efeito (v. neste sentido o ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA de 10.11.202213).

30.ª Tal como consta dos factos assentes, já se encontra provado que o pagamento das tornas não foi realizado pelo Recorrido - consideraram-se confessados todos os factos articulados pela Recorrente na PI, acrescendo que o Banco 1... confirmou que o cheque mencionado na escritura não foi descontado/apresentado a pagamento, existindo, assim, também prova documental, pelo que, mesmo na perspectiva daquela parte da jurisprudência que sufraga um entendimento mais restritivo, a prova encontra-se feita.

(…) 2.ª Acresce que, mesmo que se considerasse necessária a produção de mais prova – o que não se admite e apenas se equaciona por mero dever de patrocínio – sempre se deveria ter determinado o prosseguimento dos autos, com vista à prestação de depoimento de parte do Recorrido (que pode conduzir a uma confissão judicial), à prestação de declarações de parte da Recorrente e à prestação de depoimentos testemunhais, prova essa também requerida pela aqui Recorrente.

Sem prescindir de tudo quanto supra alegado, desenvolveu-se no ponto G. das presentes alegações a 2.ª parte da respectiva fundamentação, respeitante ao segundo segmento/parte de ambas as decisões recorridas, em que se considerou – erroneamente - que o pedido formulado pela Recorrente não poderia ser corrigido por se considerar – erroneamente – que a Autora não se limitou a ampliar o pedido feito na petição, pretendendo, ao invés, uma alteração radical do pedido e da causa de pedir.

40.ª Ora, desde logo, conforme visto, em momento algum a Recorrente alterou a causa de pedir que, a título principal e a título subsidiário, invocou na PI (respectivamente, nos artigos 1.º a 25.º, 26.º a 51.º, 63.º, 64.º da PI e nos artigos 1.º a 25.º, 52.º a 64.º da PI); e, no que respeita ao peticionado a final pela Autora, dúvidas não podem permanecer quanto à conformidade existente entre a causa de pedir invocada a título principal nos artigos 1.º a 25.º, 26.º a 51.º, 63.º, 64.º da PI (e supra desenvolvida no Ponto F. das presentes alegações) e o pedido formulado pela Autora de condenação do Réu a pagar à Autora a quantia que lhe é devida, a título de tornas pela partilha outorgada em 22.02.2018.


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2.2. O apelado apresentou contra-alegações, cujo restante teor se dá por reproduzido e se resumem nos seguintes termos:

(…)

1. A declaração feita pela Recorrente no documento de partilha, conforme resulta do facto provado nº 5 é uma confissão extrajudicial feita em documento autêntico, por importar o reconhecimento de um facto que é desfavorável à Apelante e que favorece a parte contrária. (Neste sentido, entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 17/12/2015, proferido no processo 940/10.9TVPRT.P1.S1 e de 09/07/2014, proferido no processo 28252/10.0T2SNT.L1.S1; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 31/05/2016, proferido no processo 19/14.4T8SAT.C1 e Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 14/09/2017, proferido no processo 51/14.8T8VFL.G1 e de 14/09/2017, proferido no processo 51/14.8T8VFL.G1).

7. Em regra, a quitação envolve a confissão do pagamento e apenas excepcionalmente pode admitir-se que assim não seja, mas nestes casos terão de resultar provados factos que comprovem que a intenção da Autora não foi produzir uma confissão de pagamento o que não aconteceu no caso concreto, sob pena de fazer perigar o princípio da segurança jurídica,

8. Não é despiciendo atentar nos factos provados 3 e 8, de onde resulta que as tornas tiveram origem na partilha subsequente ao divórcio da Recorrente e Recorrido que ocorreu em 22/02/2018 e que em 03/09/2018 já as partes se haviam reconciliado e contraído novo casamento.

9. A força probatória da declaração confessória é fixada pelo art.º 358.º, nº 2, do C. Civil: considera-se provada nos termos aplicáveis ao documento de que consta (força probatória formal); e, tendo sido feita à parte contrária reveste-se de força probatória plena contra o confitente (força probatória material).

10. Decorre do artigo 359º, nos 1 e 2 do Código Civil que o confitente não pode impugnar a confissão produzida alegando e provando simplesmente que o facto confessado não é verdadeiro: para destruir a força probatória da confissão terá que alegar e provar o erro ou outro vício de que tenha sido vítima.

11. A prova de inveracidade da declaração de recebimento integral do preço pode ser feita no âmbito de uma acção em que seja invocada a falsidade da escritura ou a nulidade e/ou anulabilidade da confissão, designadamente com base na existência de falta ou vícios na formação da vontade.

12. A Apelante, conforme resulta da fundamentação da decisão em crise, não pediu nem a declaração de nulidade nem a anulação da declaração confessória, o que significa que esta confissão é válida e eficaz e assim se manterá enquanto não for invalidada, pelo que não pode o Apelado ser condenado no pagamento de tornas.

13. De acordo com os factos provados não foi feita prova que não ocorreu o pagamento declarado no documento de partilha, mas tão só que o cheque que aquela confessou ter recebido para pagamento de tornas do divórcio (a que se seguiu novo casamento menos de 7 meses depois) não foi apresentado a pagamento.

14. Não pode ser atendida a pretensão da Apelante no sentido de ser convidada a corrigir o pedido formulado pois este que deixaria de ser de simples condenação para ser o de invalidade da confissão, por falsidade desta; o de condenação seria simples consequência.

15. Os princípios do dispositivo e do pedido exigem uma correspondência entre o pedido deduzido pelo Autor e a decisão do Tribunal, pelo que, ao proferir decisão, está vinculado às consequências que o Autor requereu expressamente no pedido, não cabendo ao Tribunal ponderar se convinha ao Autor um outro pedido, visto que é ao Autor que incumbe o direito e o ónus de formular o pedido, definindo a sua pretensão, requerendo o efeito jurídico que pretende obter com a acção.

16. A Apelante não pediu que a confissão fosse declara nula ou anulada, para que pudesse ver (eventualmente) proceder a condenação do Apelado no pagamento das tornas, pelo que, considerando que o Tribunal está vinculado, nos termos do artigo 609º do Código de Processo Civil, ao que é pedido pelas partes e não sendo admissível a alteração da causa de pedir, se decidisse em sentido diverso, a sentença estaria ferida de nulidade, por condenar em objecto diverso do pedido.

17. O dever de gestão processual está subordinado ao cumprimento dos princípios estruturantes do processo civil, não podendo em circunstância alguma o Tribunal substituir-se às partes escudando-se no cumprimento deste dever.

18. A Apelante alega em súmula que a confissão que proferiu e que consta do número 5 dos factos provados é falsa, existindo uma divergência intencional entre a declaração e a sua vontade real, mas não resultam factos provados ocorridos antes e no momento da celebração escritura pública que permitam concluir estar-se efectivamente perante uma declaração não séria.

19. A Apelante afirma que declarou ter recebido as tornas, apesar de não as ter recebido até àquela data, mas porque esperava vir a recebê-las em momento posterior quando a situação económica do Apelado melhorasse, pelo que não se trata da emissão de uma qualquer declaração não séria, por brincadeira ou jocosa, nem patentemente não séria.


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3. Questões a decidir

1. Em primeiro lugar, determinar se a questão suscitada pelo apelado nas suas alegações (nulidade da confissão) tem relevância jurídica ou apenas probatória.

2. Depois, face a essa questão verificar, face aos factos provados (não impugnados por qualquer uma das partes), se o valor dessa confissão foi ou não ilidido.

3. Por fim, face a essa conclusão, verificar se o pedido principal formulado pela apelante pode ou não proceder.

4. Caso seja necessário, apreciar, por fim, se o despacho relativo à ampliação do pedido deve ou não ser alterado.

4.Pretendeu o réu/apelado que nunca poderia ser determinada a procedência do pedido formulado, pois, não foi pedida a nulidade da declaração confessória.

As posteriores decisões nos autos adoptaram esta tese.

Note-se, porém, que a mesma radica, salvo o devido respeito, em premissas e conclusões erróneas.

Desde logo, estamos perante uma declaração confessória que faz parte de um documento autêntico.

Como é evidente a veracidade dessa declaração (recebimento de tornas) não faz parte da percepção directa do Ex.mo Sr. Notário que certificou apenas que, naquela hora e local, a mesma foi efectuada.

Por isso, estamos perante a previsão do art. 371º, do CC nos termos do qual “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (…)”.

Porque, “o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. Dito doutro modo: o documento autêntico não fia, por exemplo, a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram[1].

A ser assim a questão diz respeito à relevância, conteúdo e ilisão da confissão realizada extra-judicialmente num documento autêntico.

Isto, porque a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária” (Art. 352º, do CC);

E, “A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena” (art. 358º, nº2, do CC).

Mas, nos termos do art. 347º, do CC sob a epígrafe (Modo de contrariar a prova legal plena): “A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei”.

Resulta, dessas normas que poderia a apelante demonstrar que a sua declaração confessória é falsa ou que a mesma padeceu de vícios da vontade (artºs 372º, nº 1 e 359º do CCiv), sem que, note-se seja necessário formular um pedido autónomo.

Com efeito, a questão diz respeito à prova a produzir e não à necessidade de efectuar qualquer tipo de pedido processual autónomo.

Ora, in casu conforme resulta do art. 9º, da petição que foi claramente alegada que essa declaração era falsa.[2]

É certo que nessa demonstração a parte estava limitada nos meios de prova a utilizar, que excluem a utilização da prova testemunhal - artº 393º, nº 2, do CC e presunções judiciais (art. 351º, nº1, do CC).[3]

Mas, neste caso esses factos estão demonstrados através da confissão judicial efectuada pelo réu apelante que não contestou tempestivamente e assim os confessou.

Nos termos do art. 356º, do CC “1. A confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual, ou em qualquer outro acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado”.

Neste caso, note-se procuração outorgada pelo réu concede poderes especiais de desistir e transigir.

Portanto, a admissão ficta dos factos alegados pela autora “tem força probatória plena contra o confitente” (art. 358º, nº1, do CC).

E, se assim é, teremos de considerar estar demonstrado que a autora logrou ilidir a prova plena resultante da sua anterior confissão do efectivo recebimento de tornas.

Note-se, que a tese segundo a qual o confissão não pode ser ilidida apenas pela demonstração da sua falsidade, sendo ainda exigível a demonstração de um erro na vontade declarante[4], não é sequer aplicável ao caso, face aos restantes factos alegados pela autora e que, também foram provados pela confissão ficta do apelado (arts. 55 e segs da pi).


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4.1. Do caso julgado formal

Acresce que, foi proferido um despacho, transitado em julgado e que por isso formou caso julgado formal no processo (art. 620, do CPC), que julgou provados todos os factos alegados pela autora, nos quais se incluiu, pois, que “nem no momento da outorga da partilha nem em momento posterior o Réu pagou à Autora, por qualquer outro meio, a referida quantia a esta devida a título de tornas” (art. 9).

Logo, por um lado, o tribunal a quo, ao voltar a discutir essa questão na sentença, desrespeitou o seu próprio despacho e violou o disposto no art. 620º, do CPC.

Depois, utilizou normas de direito probatório material, cujo escopo é a fixação dos factos provados, para substancialmente considerar improcedente a questão suscitada.

A questão probatória é a de determinar se a declaração de recebimento da quantia de tornas é falsa e se a autora logrou ou não ilidir a prova plena resultante da confissão extra-judicial.

A questão substancial é apenas, depois, a de verificar se as tornas foram ou não pagas e a autora tem direito a recebê-las.

Ou seja, nunca a apelada estaria obrigada a formular um pedido independente e autónomo de nulidade da declaração confessória, porque, esta depende, além do mais, dos requisitos do art. 359º, do CC, que in casu, podiam nem sequer ocorrer: “A confissão, judicial ou extrajudicial, pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão, se ainda não tiver caducado o direito de pedir a sua anulação”.

Estaria sim obrigada a ilidir a presunção plena.

Ora, esse facto repetimos, foi demonstrado através da confissão ficta que é, em si mesmo, uma forma de confissão judicial[5], e que constituiu também uma prova legal plena[6], que, na modalidade usada nos autos é irretratável (art. 465º, nº1, do CPC).[7]

Acresce que no caso concreto, lendo o articulado mandado desentranhar apreendemos que, apesar do art. 9º da petição ter sido impugnado, a realidade é que no teor global da contestação desentranhada o réu admite e confessa que não pagou qualquer quantia de tornas, mas sim que estas teriam sido prescindidas pela AA.

Logo, teremos de concluir nos termos do artigo 347.º do CC, a apelante logrou ilidir a prova legal plena, pois, demostrou não ser verdadeiro o facto objecto da mesma. E, por isso:

a) estamos perante a ilisão da prova plena resultante da confissão extrajudicial

b) a falsidade da mesma foi tempestivamente alegada

c) e a demonstração dessa falsidade foi obtida através da confissão fica desse facto concreto que constituiu também uma forma de confissão judicial.

Acresce que, neste caso, mesmo tendo existido qualquer violação das regras de direito probatório, nenhuma das partes pôs em causa o despacho que declarou confessados os factos alegados, o qual formou, pois, caso julgado formal neste processo.

Concluímos assim que, inexiste em sede probatória qualquer fundamento para a que não se possa concluir que, in casu, a apelante logrou demonstrar a falsidade da sua anterior confissão extra-judicial, com base na confissão judicial efectuada pelo réu/apelado.


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5. Motivação de facto 

1 – A. e R. contraíram matrimónio um com o outro em 18/10/1997 – fls. 12v./13.

2 - Este casamento foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento, declarado por decisão proferida em 22/02/2018, nesta data transitada, no Processo de Divórcio e Separação de Pessoas e Bens por Mútuo Consentimento que, sob o nº ..., correu termos na Conservatória do Registo Civil de Viseu – fls. 12/13 e 13v./15.

3 - No âmbito do referido processo nº 561/2018 foi realizada, em 22/02/2018, a partilha dos bens comuns do dissolvido casal formado pelos aqui A. e R., tendo sido relacionados os seguintes bens como bens comuns do dissolvido casal: A) Ativo: a) verba n.º 1: fração autónoma destinada a habitação designada pelas letras “BA-F”, correspondente ao segundo andar direito do bloco AF, com um compartimento amplo destinado a arrumos no sótão designado pela letra “F-Um”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito em ..., Rua ... ou Rua ..., freguesia e concelho de Viseu, descrito sob o n.º ... da extinta freguesia ... (...) na Conservatória do Registo Predial de Viseu, inscrito na matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial correspondente à fração autónoma de € 51.449,63 e com o valor atribuído para efeitos de partilha de € 51.449,63; b) verba n.º 2: prédio urbano destinado a habitação composto por casa com cave, rés-do-chão, andar e sótão, sito em ..., ..., freguesia ..., concelho de Viseu, descrito sob o n.º ... na Conservatória do Registo Predial de Viseu, inscrito na matriz sob o artigo ..., com o valo patrimonial € 101.190,00 e com o valor atribuído para efeitos de partilha de € 101.190,00. B) Passivo: Verba n.º 3: dívida resultante do empréstimo contraído junto da Banco 2..., S.A., garantido por hipoteca sobre a fração autónoma identificada na verba n.º 1, regista pela Ap. ... de 14/09/2017, no valor de € 62.938,35 – fls. 13v./15.

4 – Conferidos e aceites por A. e R. os valores do ativo (num total de € 152.639,63) e passivo (no valor de € 62.938,35) constantes da referida relação de bens, com um valor líquido a partilhar de € 89.701,28 e a meação de cada um dos ex-cônjuges no valor de € 44.850,64, os aqui A. e R. declararam acordar na partilha com o preenchimento dos quinhões/meações a ser efetuado pela seguinte forma: - adjudicação ao ora Réu BB do imóvel relacionada na verba n.º 2 do ativo, com o valor patrimonial e atribuído de € 101.190,00; - adjudicação à ora A. AA do imóvel relacionado na verba n.º 1 do ativo, com o valor patrimonial e atribuído de € 51.449,63, assim como do passivo relacionado na verba n.º 3 no valor de € 62.938,35; - tornas a devolver pelo ora R: € 56.339,36; - tornas a receber pela ora A.: € 56.339,36 – fls. 13v./15.

5 - Pelos partilhantes ora A. e R. foi declarado, no ato de partilha, que “o valor das tornas foi pago pelo partilhante BB, em 22 de Fevereiro de 2018, através do cheque nº ..., sacado sobre o Banco 1..., S.A., à partilhante AA” – fls. 13v./15.

6 - No seguimento da realização da referida partilha foi de imediato efetuado o registo dos atos relacionados com os imóveis indicados nas verbas n.º 1 e 2 – fls. 15.

7 – O cheque nº ..., sacado sobre o Banco 1..., S.A., não foi apresentado a pagamento – informação prestada pelo Banco 1... a 30/08/2023.

7ª-[8] Nem no momento da outorga da partilha nem em momento posterior o Réu pagou à Autora, por qualquer outro meio, a referida quantia a esta devida a título de tornas” (art. 9).

8 - Meses depois, em 03/09/2018, no seguimento da sua reconciliação, A. e R.

voltaram a contrair matrimónio um com o outro – fls. 13.

9 - Durante algum tempo, na constância deste segundo casamento de A. e R., a casa de morada de família esteve instalada no imóvel identificado em 3-A-b) dos Factos Provados que, na partilha dos bens comuns do seu primeiro casamento, havia sido adjudicado ao R..

10 - Por documento particular autenticado de compra e venda e mútuo com hipoteca, outorgado em de 14/02/2019, o R. BB declarou vender a CC e DD, que declararam comprar, pelo preço de € 145.000,00, o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o nº ..., com o registo de aquisição a seu favor, no estado de divorciado, pela inscrição Ap. ... de 2018/02/22 – fls. 15v./19.

11 – O ora R. declarou já ter recebido o referido preço de € 145.000,00, tendo dado a respetiva quitação, e tendo o pagamento sido efetuado através de cheque bancário da Banco 2..., datado de 14.02.2019, com o n.º ..., à ordem do R. – fls. 16.

12 - A A. outorgou o mencionado título de compra e venda, “dando o legal consentimento à venda do imóvel ora identificado” – fls. 16.

13 - Após a venda do dito imóvel, A. e R. passaram a residir em Aveiro, na residência da mãe daquele, viúva.

14 - O segundo casamento de A. e R. foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 22/09/2021, transitada em julgado em 22/10/2021, no âmbito do processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge que, sob o nº 3623/20.8TAVR, correu termos no Juízo de Família e Menores de Aveiro – Juiz 2 – fls. 13 e fls. 19v./20v..


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6. Motivação Jurídica

A dívida resultante do pagamento de tornas é um encargo do interessado devedor, neste caso o apelante e segue o regime das obrigações contratuais[9].

Está demonstrado que esta não foi liquidada pelo apelado à apelante, e que a mesma se venceu.

Logo, a mesma é devida.

Acresce que a possibilidade de a mesma ser excutida nos autos de inventário em nada altera a natureza dessa obrigação pecuniária, nem, neste caso, poderia ser aplicável face à confissão do seu recebimento pela apelante.

Os juros são devidos desde o trânsito da partilha (art 1122º, nº3, do CPC) , mas neste caso foram pedidos apenas desde a citação, à taxa legal civil face a natureza da obrigação.

É, pois, procedente a apelação.


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7. Face ao exposto as restantes questões ficam prejudicadas.

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8. Deliberação

Pelo exposto, este tribunal colectivo julga a presente apelação procedente por provada e por via disso, revogando a decisão proferida, condena o apelado/réu a pagar à apelante/autora a quantia que lhe é devida, a título de tornas pela partilha outorgada em 22.02.2018, no montante de € 56.339,36 (cinquenta e seis mil trezentos e trinta e nove euros e trinta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora, desde a citação do Réu e até efectivo e integral pagamento, à taxa legal civil.

Custas a cargo do apelado porque decaiu inteiramente


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Porto, 6.6.2024
Paulo Duarte Teixeira
Ana Luísa Loureiro
António Paulo Vasconcelos
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[1] Entre vários, numa posição pacifica entre nós, Ac do STJ de 9.1.18, nº 8470/15.6T8CBR.C1 (Falcão de Magalhães). E, por elucidativo para este caso o Ac do STJ de 9-6-2005, nº Pº 05B1417, (Ferreira de Almeida): “o respectivo preço e pagamento só estarão cobertos pela força probatória plena do documento autêntico se o Notário tiver atestado esse facto através de percepção sua (directa), ou seja que tal pagamento haja sido feito na sua presença”.
[2] 9. E, de igual modo, nem no momento da outorga da partilha nem em momento posterior o Réu pagou à Autora, por qualquer outro meio, a referida quantia a esta devida a título de tornas. E, por exemplo, art. 64 da pi “Pelo que nada obsta a que este tribunal julgue e se pronuncie, nos termos peticionados pela Autora, considerando-se demonstrado, conforme a prova a produzir, que, não obstante o falsamente declarado pela Autora a pedido do Réu, este não pagou à Autora a quantia devida a título de tornas pela mencionada partilha”.
[3] Sintetizando a jurisprudência mais recente sobre esta questão Ac da RP de 7.3.23, 1330/19.3T8PRT.P1 (Artur Dionísio).
[4] Por mais recente Luís Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Almedina, p. 171 e segs.
[5] Ac do STJ de 11.11.2010, nº 1902/06.6TBVRL.P1.S1 (Álvaro Rodrigues).
[6] CASTRO MENDES, Do Conceito de Prova em Processo Civil, 1961, pág. 703; MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, págs. 142.
[7] Esta é qualificada como confissão judicial tácita (Alberto dos Reis, Cod. Proc. Civil anotado, vol. IV, 1981, p. 84).
[8] Facto aditado oficiosamente com base no despacho de 9.1.2022 e confissão ficta do art. 9 da pi.
[9] Ac do STJ de 23.01.2020 nº 798.18.0T8PNF.P1.S1, (MARIA DA GRAÇA TRIGO).