Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JUDITE PIRES | ||
Descritores: | PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO COBERTURA INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA E DO JOVEM INTERVENÇÃO JUDICIAL | ||
Nº do Documento: | RP2024071712005/22.6T8PRT-C.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/17/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - O tribunal deve assumir a defesa do interesse superior da criança e do jovem, tal como lho confia o artigo 4º, a), da LPCJP, fazendo-o prevalecer sobre quaisquer outros interesses envolvidos, atendendo prioritariamente aos interesses da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto. II - A intervenção judicial deve ser a necessária e adequada à situação de perigo que a criança ou o jovem se encontrem. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 12005/22.6T8PRT-C.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo de Família e Menores... – Juiz 3
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO O Ministério Público junto do Juízo de Família e Menores de Coimbra, nos termos dos artigos 3.º, 11.º, n.º 1, alínea f), 34.º, alíneas a) e b), 35.º, 72.º, 73.º, 105.º, n.º 1, todos da Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo), instaurou processo de promoção e protecção relativamente à menor AA, nascida no dia ../../2016 e residente na Rua ..., ..., pedindo, a final, que: - Se solicite à Segurança Social a elaboração de relatório social acerca da situação do menor e dos seus progenitores, bem como parecer acerca da medida de promoção e proteção que melhor satisfaça os seus direitos e interesses; - Se solicite ao inquérito ../24.7T9CBR, do DIAP de Coimbra, autorização para o seu acompanhamento; - Se pondere a apensação destes autos ao de Regulação das Responsabilidades Parentais n.º 12005/22.6T8PRT, do Juízo de Família e Menores …. Alega, para tanto, que a menor, filha de BB e de CC, foi, através da progenitora, sinalizada à CPCJ ..., a 22.02.2024, à qual foi reportada alegada exposição da menor AA a abuso sexual por parte do progenitor, junto de quem a residência se acha fixada. A CPCJ suscitou, com fundamento no artigo 11.º, n.º 2, da LPCJP, a intervenção judicial, resultando dos elementos remetidos a tribunal pela CPCJ: 1) Corre processo de Regulação das Responsabilidades Parentais no Juízo de Família e Menores… – Processo 12005/22.6T8PRT, tendo sido, em 03.10.2023, provisoriamente fixada a residência da AA com o pai, podendo a mãe conviver com a criança com a supervisão da Segurança Social. Não existe ainda decisão definitiva; 2) Existe uma declaração assinada por DD, amiga do pai, onde discrimina factos assistidos nas videochamadas entre a AA e a progenitora. Conclui, a declarante, que “se verifica um padrão comunicacional disfuncional entre ambas”, “o diálogo entre ambas é evasivo e há uma aparente ausência de conteúdo”; “BB é, geralmente, muito pouco recetiva às interações (e.g. brincadeiras) de AA”; “tendência de BB para relembrar AA do contexto britânico, desqualificando o contexto português”; “BB critica com frequência muito significativa a filha, nas demais dimensões da vida da criança”; a AA adota, durante a chamada “comportamentos estereotipados (e.g., bater repetidamente com objetos no rosto), defensivos (e.g. esconder-se debaixo de uma cadeira) e de autorregulação disfuncional (e.g. chuchar no dedo), e respostas emocionais exacerbadas (e.g. choro; ansiedade; gritos)”; 3) Consta uma informação clínica urgente, datada de 23.02.2024, elaborada por Psicólogas Clínicas que acompanham a menor, na qual é descrito que esta, na última visita à mãe na Segurança Social, terá ido com ela à casa de banho, por três vezes e que, na última vez, a progenitora lhe deu instruções para que escrevesse uma carta, sendo que era a mãe quem dizia as coisas e ela escrevia, mas que sabia que essas coisas não eram verdade. Mais consta dessa informação que, enquanto a criança revelava estes acontecimentos, “o seu corpo estava tenso, ficando imóvel, as mãos geladas e com um olhar pávido e sem expressão”; 4) Da informação escolar, de 04.03.2024, pode ler-se que: “A docente evidencia a noção muito realista que a AA tem do processo de divórcio, pois utiliza vocabulário muito claro e preciso de tudo o que está a acontecer à sua volta. A AA diz que se sente um “peluche que os pais puxam para cada lado”, diz que os adultos estão a medir forças e que precisa de alguém para ser a sua voz, alguém que consiga através de provas dizer o que é a melhor decisão para ela. A AA sente muita pressão para agradar aos pais e não quer desiludir ninguém e diz que, às vezes, a levam a fazer coisas que sabe não estarem corretas. Contou especificamente, num encontro com a mãe na Segurança Social, foi com esta à casa de banho sozinha e que, ao ouvido, a mãe lhe pediu para dizer aquelas coisas, mas não tendo coragem para falar, pediu um papel e escreveu. Este episódio perturbou-a de forma muito significativa e a menina sente que esta atitude poderá ter um efeito muito negativo e prejudicial na sua vida. A AA necessita de estabilidade, precisa que os adultos ouçam as suas vontades, precisa de validação e de ser valorizada e respeitada enquanto criança”; 5) Consta o despacho de arquivamento e a decisão instrutória de não pronúncia de uma queixa feita pela progenitora contra o pai por alegado abuso sexual deste na pessoa da filha (Inquérito e instrução n.º …/22.3KRLSB); 6) Informação da Segurança Social no âmbito dos convívios supervisionados com a progenitora, podendo ler-se que: “tem sido percetível a ausência de comunicação funcional entre os pais”; “a mãe projeta um elevado grau de desconfiança relativamente à figura parental masculina e respetiva família alargada, mantendo-se centrada nas questões que deram origem à queixa crime por ela apresentada no DIAP, considerando que a filha está em perigo junto do pai”; “o pai, por sua vez, traça uma imagem negativa da mãe, considera-a uma pessoa emocionalmente instável que manipula a filha, denegrindo a família paterna, o que provoca a regressão na criança, nomeadamente na escola”; “no atual contexto de conflito parental e posições extremadas assumidas por cada um dos pais, esta criança é triangulada no conflito, dando sinais claros de sofrimento emocional”; “por todos os sinais manifestados pela AA nos diferentes contextos, entendemos que a mesma necessita de intervenção urgente”; 7) Consta dos autos um relatório de intervenção psicológica, datado de 16.02.2024, onde se destacam como fatores de risco para a estabilidade emocional e desenvolvimento da AA, “a exposição a narrativas de vitimização sem evidências identificadas pelos serviços competentes, a separação do casal parental, agitação psicomotora compatível com estado de ansiedade, alterações higiene do sono, vinculação insegura ambivalente face à mãe, duração de videochamadas desadequada com a faixa etária da criança e as alegadas conversas que a progenitora terá com a criança durante as ambas visitas (presenciais e videochamadas)”; 8) O progenitor apresentou queixa-crime contra a progenitora no dia 11.03.2024, dando origem ao inquérito …/24.7T9CBR do DIAP de Coimbra, tendo sido denunciados factos que, abstratamente, se entendeu configurarem a prática de um crime de violência doméstica contra a menina AA. Instruídos os autos com junção do relatório elaborado pelo ISS, e tendo-se procedido à audição dos progenitores e da criança, esta através da técnica que colabora com o tribunal, foi emitido parecer pelo Ministério Público no sentido do arquivamento dos autos. Seguidamente, foi proferida decisão que, por entender, ser inútil a intervenção judicial em sede de promoção e proteção, determinou o arquivamento dos autos. O progenitor CC, não se conformando com tal decisão dela veio interpor recurso de apelação, admitido por despacho de 8.07.2024, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões: I. O presente recurso tem por objeto a discordância com o despacho judicial, datado de 22-05-2024 (ref.ª 460340644), o qual declarou encerrada a instrução e, ao julgar inútil a intervenção em sede de promoção e proteção, decidiu o arquivamento dos autos. II. Versando o recurso sobre matéria de direito, cumpre-se o disposto no artigo 639.º, n.º 2, al. a) e b), do CPC: a norma jurídica violada pelo Tribunal a quo foi a p. no artigo 111.º, da LPCJP; a menor a proteger encontra-se em perigo devido ao elevado grau de conflito entre os progenitores; tal se consigna no despacho recorrido pelo Tribunal a quo; sendo a norma fundamento jurídico para a decisão, se “o juiz decide o arquivamento do processo quando concluir que, em virtude de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir, se tornou desnecessária a aplicação de medida de promoção e proteção”, jamais lograria ter sido aplicada a norma jurídica no sentido que se aplicou, porquanto a matéria fático-processual dada como provada na decisão justifica a própria existência de perigo e noção de risco para a menor; no caso, a norma jurídica ao ser corretamente aplicada de todo permitiria o arquivamento com o encerramento da instrução. III. Para a situação de perigo, por sanar, concorrem fatores de risco, a título exemplar a exposição da menor a situações de violência psicológica; com reconhecimento pela própria de situações em que foi exposta ao conflito; ostentação de sentimentos de tristeza e conflito de lealdade; relato de conversas da progenitora quanto a episódios que envolvem o Tribunal e os comentários depreciativos da progenitora sobre o progenitor. IV. Em ordem a mitigar ou erradicar a fonte de perigo para a menor, o Tribunal a quo entendeu que a medida de promoção e proteção aplicável ao caso seria a de apoio junto do progenitor, já que carece de consentimento a intervenção e a progenitora não o deu. V. Fundou o Tribunal a quo a íntima convicção de que, na ausência de consentimento da progenitora, o perigo para a menor seria insolúvel, pese embora inexistam elementos instrutórios que permitam retirar a conclusão – a da medida de apoio junto do progenitor ser inábil à diminuição ou remoção da situação de perigo. VI. Sendo certo que a assessoria técnica manifestou as suas propostas como sendo de aplicação conjunta e simultânea a ambos os progenitores, não existe um elemento que permita concluir pela inutilidade e insucesso da aplicação de medida de apoio junto do progenitor; antes é o próprio Tribunal a quo que, além dos ensinamentos recebidos por técnicos das ciências auxiliares do Direito, desvirtua a medida que o regime jurídico previsto na LPCJP privilegia nas suas potencialidades. VII. A conclusão de que “o conflito entre os progenitores” apenas poderia ser debelado caso ambos aderissem à intervenção terapêutica não decorre quer das declarações da Psicóloga (que procedeu à audição da menor), quer dos relatórios subscritos pelo ISS., que a intervenção nesta sede seria infértil e/ou votada ao insucesso; havendo uma preferência pela aplicação conjunta da medida, não é diretamente proporcional que aplicação singular seja fracassada, sendo que o julgador não domina a área da Psicologia para chegar – sem elementos instrutórios – a tal desiderato. VIII. Também em sentido que se discorda, na Promoção do Ministério Público (fls. 229 e ss.) defende-se que o conflito parental causador da situação de perigo só poderia ser mitigado ou extinto através da “medida de apoio junto dos pais”, porque “só poderia ser inscrita [cláusula] por acordo e seria a de os pais aceitarem submeter- se a acompanhamento mútuo” (fl. 230), sustentando que a Dr.ª EE (Psicóloga) terá explicado que não faria sentido o acompanhamento apenas ao progenitor; e, de forma equivalente, vai o despacho de arquivamento “tal intervenção, sem adesão de ambos os progenitores, estaria votada ao insucesso”. IX. Pelo contrário, não existe uma passagem nos autos recorridos em que, por banda dos pareceres da Psicóloga ou da equipa do ISS., se dê cobro à falta de sentido da opção alternativa de emprego da medida de apoio junto do pai. X. No que briga com este ponto, para aplicar medida de promoção, com a oposição da progenitora à intervenção, recusando-a, é caso para os autos seguirem, de imediato, para debate judicial: finda a fase de instrução, (a) persistindo a situação de perigo para a menor os autos não podiam ser arquivados; (b) na ausência de consentimento da progenitora, frustrou-se a decisão negociada por via de acordo; (c) só remanescendo o caminho de decidir pelo debate judicial, ao abrigo do disposto nos termos dos artigos 110.º, al. c) e 114.º, ambos da LPCJP. XI. São diversas as circunstâncias que impõem a realização de debate judicial no caso, não tendo sido objetado pela douta assessoria técnica que o sistema protetivo de menores vigente no sistema jurídico português seria incapaz de oferecer solução apta a, pelo menos, afastar a situação de perigo. XII. Em suma, o Tribunal a quo, sem instrução para o efeito (diga-se, prova), quis arquivar o processo, mesmo admitindo que a menor está refém da problemática que obsta ao seu bem-estar psíquico e ao desejado progresso, o que, concessa venia, é inadmissível. XIII. De outro turno, pôs-se visível a falta de articulação que tanto o Ministério Público como o Tribunal a quo promoveram entre os autos de Promoção e Proteção e os de RERP, o que redundou na sua posição de falta de utilidade dos autos. XIV. Não obstante os cuidados que se requerem na tramitação a dar aos autos, o Ministério Público incorreu em erro flagrante ao defender que as todas as propostas de intervenção protetiva chanceladas pela assessoria técnica não haveriam de se aplicar: (a) a intervenção psicoterapêutica junto dos progenitores implicaria a anuência de ambos (o que não se sucedeu); (b) a intervenção psicoterapêutica da AA já estava a salvo pelo progenitor; e (c) o exame forense de avaliação psiquiátrica aos progenitores estaria assegurado no âmbito da RERP; entendimento sufragado pelo Tribunal a quo. XV. Na verdade, na RERP o Tribunal a quo determinou a realização de perícias, estas na especialidade de Psicologia Forense, tal como se vislumbra pelo seu objeto, e as quais se encontram a decorrer (vd. a título exemplar Not. Parte p/Exame Médico Carta Reg., 20-11-2023, ref.ª 454123818; Not. Parte p/Exame Médico Carta Reg., de 20-11-2023, ref.ª 454125639 dos autos principais). XVI. Enquanto as perícias psicológicas são aplicadas para avaliação das competências parentais dos progenitores e da relação que têm com o menor, as perícias psiquiátricas centram-se na avaliação da presença ou não de psicopatologia, funcionando ambas como meios avaliativos e fontes essenciais para a decisão definitiva e respetiva fundamentação, mas com objetivos distintos. XVII. Assim, a proposta da assessoria técnica ao Tribunal a quo para que na intervenção se diligenciasse por “exame forense de avaliação psiquiátrica a ambos os progenitores” (p. 5 do Parecer da Informação Social, fls. 218 e ss.) não terá sido ao acaso, é clara e concisa, e não está acautelada no âmbito da RERP, o que justifica, por si só, a utilidade e pendência do processo. XVIII. Razões pelas quais, dever-se-á entender o recurso procedente, e em consequência, o despacho recorrido de arquivamento ser reparado, por ser contrário à lei, à prova reunida que não permite, pelas regras da experiência e da ciência comum, concluir da forma que aqui se opôs. Termos em que, deve o recurso merecer provimento, com todas as legais consequências, e as razões acima aduzidas, ser a decisão de arquivamento substituída por outra que: (a) ordene a realização de perícias médico-legais, na especialidade de Psiquiatria Forense, a ambos os progenitores; e, após, (b) declare encerrada a instrução, diligenciando por aprazar o debate judicial, nos termos do artigo 114.º, da LPCJP”. Apenas Ministério Público contra-alegou, argumentando no sentido da improcedência do recurso.
II. OBJECTO DO RECURSO A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito. B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se existe fundamento para o decretado arquivamento do processo de promoção e protecção.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO. A decisão recorrida fundamentou-se no seguinte quadro fáctico que teve por assente: - por despacho de 20/06/2023, foi determinado o arquivamento do inquérito iniciado com base na denúncia feita pela progenitora de que numa ida à casa de banho a criança pegou no pénis do pai e o pai deixou (cfr despacho de 20/06/2023, junto aos presentes autos); - em 12/03/2024 foi proferido despacho de não pronúncia relativamente aos mesmos factos (cfr despacho de 12/03/2024, junto aos presentes autos); - por despacho de 03/10/2023 foram reguladas provisoriamente as responsabilidades parentais referentes à criança, tendo a sua residência sido fixada junto do pai e determinada a realização de convívios supervisionados com a mãe, regime que se mantém em vigor (cfr despacho constante do processo principal); - a AA mostra-se muito consciente da relação conflituosa entre os progenitores, identificando situações em que foi exposta ao conflito; - evidencia uma relação positiva quer com o pai, quer com a mãe; - revela uma adaptação positiva à vivência no agregado familiar paterno, onde demonstra estar bem inserida; - está bem adaptada à escola que frequenta, mantendo boa relação com pares e adultos; - é assídua e pontual, faz-se acompanhar do material necessário e apresenta-se com aspecto higienizado e vestuário adequado; - manifesta uma relação positiva e gratificante com a mãe; - evidencia sentimentos de tristeza e conflito de lealdade, pois sente necessidade de agradar a ambos os progenitores; - a mãe alude, em conversa com a AA, a episódios ocorridos no Tribunal e insistiu com a criança para falar mal do pai, o que causou desconforto à criança; - a AA não evidencia sintomatologia associada a situações de cariz sexual nem negligência em relação aos cuidados que lhe são prestados; - o pai aparenta exercer a função parental, a prestação de cuidados e a disciplina de forma adequada; - a AA beneficia de apoio psicológico, sentindo-se motivada pelo mesmo; - a progenitora recusa qualquer intervenção psicoterapêutica a levar a cabo junto dos progenitores com o intuito de minimizar o conflito parental, a qual o progenitor aceitou.
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO. Segundo o n.º 1 do artigo 1878.º do Código Civil, “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”. Deste preceito decorre que as responsabilidades parentais devem ser exercidas na prossecução do “interesse dos filhos”, e nos casos em que é demandada a intervenção do poder judicial, este deve decidir assegurando igualmente o interesse do menor, ainda que o faça em prejuízo dos pais ou de terceiros[1]. Tal entendimento ancora-se ainda no que dispõe o artigo 3.º, n.º 1 da Convenção Sobre o Direito da Criança, de 1989, quando determina: “todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança”. Esta é reconhecida, sem dúvida, como um verdadeiro sujeito de direitos, pelo que todas as decisões que a envolvam devem sempre ser norteadas em ordem à satisfação do seu interesse. E de tal forma assim é que conceitos e expressões como “poder paternal”[2] foram banidos com a Lei n.º 61/2008, que introduziu importantes alterações ao Código Civil, para serem substituídos pela expressão “responsabilidade parentais”[3], que melhor se adequa ao ordenamento jurídico que encara a criança como verdadeiro sujeito de direitos e destaca a natureza funcional deste instituto, concebido como conjunto de poderes-deveres, de exercício vinculado no interesse do filho. Outros países europeus substituíram nas respectivas ordens jurídicas internas expressões equivalentes ao “poder paternal” por expressões próximas da terminologia adoptada pela ordem jurídica portuguesa, fazendo notar Jean Carbonnier[4] que não se tratou de uma simples mudança de palavras, passando a autoridade a ser exercida para protecção dos interesses da criança, sendo igualmente exercida pelo pai e pela mãe. As responsabilidades parentais constituem uma resposta, a dar por quem está mais próximo da criança e por isso também melhor habilitado a conhecer as suas necessidades, a uma situação de imaturidade (física, emocional, psíquica) decorrente da menoridade. Cabe, assim, aos pais, em primeira linha, desempenhar esse papel protectivo, exercendo os poderes funcionais que integram as responsabilidades parentais, zelando pelo desenvolvimento integral da criança, proporcionando-lhe alimentação, afecto, condições de saúde, de educação, de segurança, promovendo a sua autonomia e independência. Quando as responsabilidades parentais não são exercidas no interesse dos filhos, porque os pais não querem, ou são incapazes de fazê-lo, deve o poder judicial intervir de forma activa, tomando as medidas adequadas à tutela do interesse da criança. Como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra 03.05.2006[5], “quando os pais não cumprem com tais deveres fundamentais, a ordem jurídica confere às crianças, enquanto sujeitas de direito, mecanismos de protecção, podendo os filhos deles serem separados, como determina o n.º 6 do art.36 da CRP”. Segundo Filipa Daniela Ramos de Carvalho[6], “o interesse do menor, embora se consubstancie numa dificuldade prática acrescida, resultante da indeterminação do critério, absorve ou deve absorver todas as orientações vertidas no Código Civil, nomeadamente os artigos 1878º (segurança, saúde, sustento e autonomia do menor), 1885º, nº1 (desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos), 1878º, nº2 (opinião dos filhos). Outrossim, a natureza dos processos de regulação das responsabilidades parentais como processos de jurisdição voluntária atribuem ao juiz um papel fundamental na adequação, in casu, das orientações legais sobre o conteúdo do exercício das responsabilidades parentais e o critério do interesse do menor”, que, assim, conclui: “Deste modo, é da intercepção entre as orientações legais e das orientações jurisprudenciais que se alcança, paulatinamente, um conteúdo do conceito indeterminado em questão”. Refere o Acórdão da Relação do Porto, de 06.03.2012,[7] que “o interesse da criança ou jovem deve ser realizado na medida do possível no seio do seu grupo familiar. Porém, em caso de colisão, sempre sobrelevará o interesse em se alcançar a plena maturidade física e intelectual da criança/jovem, ainda que, o interesse de manter a criança/jovem no agregado familiar seja postergado (…). O tribunal deve assumir a defesa do interesse superior da criança e do jovem, tal como lho confia o artigo 4º, a), LPCJP, fazendo-o prevalecer sobre quaisquer outros interesses envolvidos, atendendo “prioritariamente aos interesses da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”. Dispõe o nº 1 do artigo 3.º da LPCJP que “a intervenção para promoção dos direitos de protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo”. O n.º 2 do mesmo normativo descreve, a título exemplificativo, algumas das situações de perigo com as quais a criança ou o jovem se possa deparar, integrando-se nesse conceito normativo a situação em que “está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional” – alínea e). Como sublinha o acórdão da Relação de Coimbra de 22.05.2007[8], o conceito de perigo deve ser entendido como o risco actual ou iminente para a segurança, saúde, formação moral, educação e desenvolvimento do menor. E para Tomé d´Almeida Ramião[9], “O perigo a que se reporta este normativo traduz a existência de uma situação de facto que ameace a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança ou do jovem, não se exigindo a verificação da efectiva lesão da segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento. Basta, por isso, a criação de um real ou muito provável perigo, ainda longe do dano sério. E tem de ser actual, como decorre do art.º 111.º, onde se refere que se não subsistir a situação de perigo , o processo será arquivado”. Segundo o referido artigo 111.º, “O juiz decide o arquivamento do processo quando concluir que, em virtude de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir, se tornou desnecessária a aplicação de medida de promoção e proteção, podendo o mesmo processo ser reaberto se ocorrerem factos que justifiquem a referida aplicação”. O artigo 34.º da LPCJR define deste modo as finalidades das medidas de promoção dos direitos e de protecção das crianças e dos jovens em perigo: “a) Afastar o perigo em que estes se encontram; b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral; c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso”. No caso vertente, a intervenção judicial de protecção relativamente à menor AA foi, relembre-se, desencadeada na sequência de sinalização, por denúncia da sua progenitora, à CPCJ ... por alegada exposição da menor a situação de abuso sexual, quando esta se encontrava a residir com o seu progenitor. Por esses denunciados factos foi instaurado inquérito crime, no qual foi proferido despacho de arquivamento. Tendo ainda sido proferido despacho de não pronúncia relativamente aos mesmos factos, também nestes autos não se recolheu prova, sequer indiciária, da verificação dos mesmos. As responsabilidades parentais relativas à AA acham-se reguladas provisoriamente, tendo a sua residência sido fixada junto do pai e determinada a realização de convívios supervisionados com a mãe. A mesma revela uma adaptação positiva à vivência no agregado familiar paterno, onde demonstra estar bem inserida, achando-se bem adaptada à escola que frequenta, mantendo boa relação com pares e adultos. Beneficia de apoio psicológico, sentindo-se motivada pelo mesmo. Manifesta uma relação positiva e gratificante com a mãe. O progenitor aparenta exercer a função parental, a prestação de cuidados e a disciplina de forma adequada. Não obstante, os progenitores mantêm entre si intensa conflituosidade e a AA mostra-se muito consciente dessa relação conflituosa, identificando situações em que foi exposta ao conflito. Evidencia sentimentos de tristeza e conflito de lealdade, pois sente necessidade de agradar a ambos os progenitores. A mãe alude, em conversa com a AA, a episódios ocorridos no Tribunal e insistiu com a criança para falar mal do pai, o que causou desconforto à criança. Resulta do quadro factual descrito que estando a AA a residir com o progenitor, a quem foi confiada provisoriamente a 3.10.2023, cuja decisão foi confirmada por acórdão desta Relação e Secção, de 25.01.2024[10], constata-se que a nenhuma situação de perigo foi exposta a menor AA, para além da que resulta da beligerância exacerbada que os seus progenitores mantêm entre si e à qual, lamentavelmente, não têm sabido poupar a filha, que com ela é obrigada a confrontar-se e que, naturalmente, nela tem desencadeado sentimentos de tristeza e conflitos emocionais. Ora é, justamente, “a conflitualidade entre os progenitores, a dificuldade/ausência de comunicação e diálogo, bem como a ausência de cooperação”, que o referido acórdão desta Relação de 25.01.2024 já constatava, a única (e já, por si, demasiada) fonte de perigo para a menor AA, que se mantém refém da incompetência ou falta de vontade dos seus progenitores em sobreporem o bem estar - sobretudo psíquico e emocional - da filha às suas quezílias pessoais, indiferentes ao facto desta se sentir um “peluche que os pais puxam para cada lado”. Só dos progenitores depende a erradicação da situação de perigo que eles próprios criaram para a AA, preservando-a do cenário de conflito que não foi por ela gerado, mas com o qual é obrigada a debater-se e lhe vem causando evidente desgaste emocional. Das medidas de promoção e protecção tipificadas no artigo 35.º da LPCJP nenhuma delas se adequa é eliminação da situação de perigo a que se acha exposta a AA em resultado do comportamento desajustado dos seus progenitores. Tal como refere a decisão impugnada, “Em termos de medida de promoção e proteção, afigura-se-nos que, a ser aplicada medida, seria a de apoio junto do progenitor, uma vez que, por força do regime provisório fixada no processo principal a AA tem residência fixada junto do pai, tendo-se apurado uma boa adaptação a esse agregado familiar. Não se vislumbra, assim, qualquer motivo para aplicar medida que implicasse a sua alteração de residência, e muto menos para sujeitar a criança à medida de acolhimento residencial, conforme proposto pela progenitora, medida que se nos afigura, no caso, totalmente desadequada e desproporcional. No entanto, a aplicação de uma medida, por si só, não tem a virtualidade de sanar um problema”. E o problema subsistirá, independentemente da aplicação ou não de uma das referidas medidas, enquanto os pais persistirem em não colocar o superior interesse da filha acima das suas contendas pessoais. Por isso se entende que, nomeadamente face aos princípios orientadores da intervenção previstos no artigo 4.º da LPCJP, designadamente os constantes das suas alíneas d), e), f) e j), não se mostrando viável a aplicação de nenhuma medida de promoção e protecção em relação à menor AA, tanto mais que a progenitora recusou qualquer intervenção psicoterapêutica a levar a cabo junto dos progenitores com o intuito de minimizar o conflito parental, inviabilizando, deste modo, a implementação de cláusula de “intervenção junto dos progenitores com vista ao estabelecimento de uma parentalidade positiva”, justifica-se plenamente, sem recurso a outras diligências instrutórias, o arquivamento decretado pela decisão recorrida. Deve, como tal, manter-se tal decisão, assim improcedendo o recurso. * Síntese conclusiva: …………………... …………………... …………………...
* Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida. As custas da apelação são da responsabilidade do recorrente: artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. Notifique.
Porto, 17.07.2024 (em turno de férias) [Acórdão elaborado pela signatária com recurso a meios informáticos] Judite Pires José Eusébio Almeida Aristides Rodrigues de Almeida
_____________________ [1] Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, 19.04.88, C.J., tomo II, pág. 68. [2] Que, desde há muito, vinha suscitando várias críticas por lhe estar associada uma ideia de posse, de sujeição, de ascendência dos pais em relação aos filhos, tendo já em 1977 se discutido a possibilidade de alteração dessa designação. [3] Com o que Portugal passou a estar em conformidade com a Recomendação nº R (84) 4, e com a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança (1996). [4] “Droit Civil, La Famille, L´Enfant Le Couple”, 20ª ed., Presses Universitaires de France, 1999, pág. 93. [5] Processo nº 681/06, www.dgsi.pt. [6] “A (Síndrome de) Alienação Parental e o Exercício das Responsabilidades Parentais: Algumas Considerações”, Coimbra Editora, págs. [7] Processo nº 43/09.9TBCPV-A.P1, www.dgsi.pt. [8] Processo nº 289/07.4TBVNO.C1, www.dgsi.pt. [9] Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, 6,ª ed. actualizada e aumentada, “Quid Juris – Sociedade Editora”, pág. 27, 28. [10] Processo n.º 12005/22.6T8PRT-B.P1, www.dgsi.pt. |