Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2240/24.8T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
FIXAÇÃO DE MEDIDAS
Nº do Documento: RP202409092240/24.8T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em processo especial de acompanhamento de maiores o Tribunal pode fixar, com recurso a critérios de conveniência e oportunidade, medidas diferentes das pedidas, não estando sujeito a “critérios de legalidade estrita”.
II - Todavia, a necessidade de acompanhamento deve restringir-se às necessidades decorrentes das limitações do requerido em cada momento, devendo a limitação dos direitos pessoais a que alude o artigo 147º do Código Civil ser excecional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 2240/24.8T8PRT.P1, Juízo Local Cível do Porto, Juiz 1.

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeiro adjunto: Manuel Fernandes

Segundo adjunto: Carlos Gil

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1. Em 31-01-2024 o Ministério Público intentou ação especial de acompanhamento de maior a favor de AA, pedindo que lhe fosse aplicada medida de acompanhamento de representação especial para a prática dos seguintes atos:

- Assistência e supervisão das atividades da vida pessoal quotidiana da beneficiária, dentro de um círculo de autonomia pessoal compatível com as suas capacidades naturais em cada momento, justificando-se, no caso em concreto, supervisionar e assegurar: os cuidados de alimentação e higiene da beneficiária; providenciar pelo acompanhamento médico que se revelar adequado para o equilíbrio, bem-estar e saúde da beneficiária, bem como, pelo adequado cumprimento da medicação prescrita;

- Apoio à tomada de decisão quanto à fixação da residência e tratamento clínico, designadamente quanto à marcação e comparência a consultas médicas, toma de medicação e adesão às terapêuticas prescritas.

2. Depois de citada pessoalmente a Requerida, foi determinada a realização de perícia médico legal às suas capacidades, que foi, depois, dada sem efeito uma vez que havia sido junto relatório pericial à petição inicial.

3. Citada a patrona nomeada à Requerida, a mesma apresentou contestação pugnando pela não aplicação da medida para o que alegou que a sua patologia se encontra medicamente controlada.

4. Foi realizada a audição da requerida em 17-06-2024 de que resultou, como consta da respetiva ata, que a Beneficiária:

“- sabe o seu nome completo e demonstrou estar situada no espaço e no tempo;

- demonstrou conhecer o dinheiro e não revelou dificuldades com a sua gestão;

- ignora a identidade das principais figuras do Estado português;

- a respeito da presente diligência, considera que “o pior já passou” e que “isso não se vai repetir”; pese embora as diversas insistências, não concretizou o que (lhe) aconteceu, dizendo apenas que “bati no fundo”; acrescenta, com evidente emoção, que já se levantou e que teve a ajuda de Deus, afirmação que repetiu por diversas vezes ao longo da sua audição;

- não obstante, afirmou e reiterou que não precisa de ajuda, já que resolve tudo sozinha e com a ajuda de Deus, não precisando por isso da ajuda da sua irmã; instada, não soube dizer que medicação toma;

- inquirida a respeito do modo como ocupa os seus tempos livres, disse que frequenta, por três vezes por semana, a ....”.

5. Em 11-07-2024 foi proferida sentença pela qual se decidiu:

a) Institui-se a favor de AA, nascida a ../../1960, na freguesia ..., concelho do Porto, titular do Cartão de Cidadão nº ..., a medida de acompanhamento de representação especial;

b) Restringe-se à Benificiária AA, em ordem à sua proteção, o direito para contrair casamento, para constituição de união de facto, de escolher profissão, de testar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio ou residência, consentir ou recusar tratamento médico ou outras intervenções no domínio da saúde, bem como a celebração de negócios da vida corrente e o exercício dos direitos pessoais, previstos no artigo 5º, nº 3 da Lei de Saúde Mental e confere-se à acompanhante legitimidade para requerer as providências previstas no artigo 13º da Lei de Saúde Mental;

c) Nomeia-se como acompanhante BB, irmã da Beneficiária, titular do Cartão de Cidadão ... e residente na rua ..., nº ..., 3º frente, ... – cfr. artigo 143º, nº 2, alínea i) do Código Civil;

d) Consigna-se:

- que para os efeitos do disposto no artigo 2189º, alínea b) do Código Civil, a Beneficiária é incapaz de testar;

- que para os efeitos do disposto no artigo 1601º, alínea b) do Código Civil, a presente decisão constitui impedimento dirimente absoluto;

- que para os efeitos do disposto no artigo 2º, alínea b) da Lei nº 7/2001, de 11 de maio, a presente decisão impede a atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto”.

II - O recurso:

É desta sentença que recorre o Ministério Público, pretendendo a sua revogação na parte em que restringe os direitos pessoais da Requerida ou, caso assim não se entenda, se declare nula a sentença por falta de fundamentação de facto.

Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

“1.Em causa no recurso está o segmento da sentença proferida, no âmbito do processo especial de acompanhamento de maior em benefício de AA, que decidiu restringir o direito daquele de “contrair casamento, para constituição de união de facto, de escolher profissão, de testar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio ou residência, consentir ou recusar tratamento médico ou outras intervenções no domínio da saúde, (…).”

2.Não está em causa a necessidade da aplicação da medida de acompanhamento de maior, mas antes a adequação das restrições de natureza pessoal às condições concretas da beneficiária e à sua autonomia e liberdade.

3.Está em causa o disposto no artigo 147.º, n.º 1, do Código Civil que estabelece, como regra geral, o livre exercício dos direitos pessoais pelo maior acompanhado.

4.Com interesse para tal decisão resultou, das diligências instrutórias realizadas, provado que a requerida (…).

5.Ora, dos factos dados como provados não resulta, nem da fundamentação, que a requerido se encontre incapaz de compreender e exercer os direitos e deveres que lhe foram coartados.

6. Pelo contrário, do relatório pericial, resulta que a requerida “tem reserva cognitiva suficiente para uma vida independente, exceto nos episódios de descompensação psicopatológica, alturas em que o exercício objetivo desta reserva fica limitado pela doença psiquiátrica”.

7. Resulta, ainda, que “pese embora as descritas limitações, que a tornam parcialmente dependente de terceiros para cuidar de si e para algumas atividades da vida diária, não apresenta, em termos cognitivos, limitações relevantes, encontrando-se lúcida, orientada e consciente.”

8. Mostra-se ainda incongruente que tenha sido aplicada a medida de representação especial para apoio à tomada de decisão quanto à fixação da residência e, por outro lado, que se tenha restringido tal direito.

9. Incompreensível, ainda, que a requerida não consiga decidir sobre a prática, no seu corpo, dos atos de saúde descritos na Lei de Saúde Mental, de que foi inibida, mas cuja decisão se encontra autorizada, de um modo geral, a portadores de doença mental.

10.Na verdade, o Regime Jurídico de Acompanhamento a Maior Acompanhado, instituído pela Lei 49/2018 de 14 de agosto tem como objetivo, plasmado no n.º 1, do artigo 140º do Código Civil, o bem-estar do acompanhado e a sua recuperação, em pleno exercício de todos os seus direitos, conferindo, desse modo, ao acompanhado poder de se autodeterminar na sua esfera pessoal.

11.Para além de que, alguns daqueles direitos pessoais que a requerido viu serem-lhe restringidos, encontram proteção constitucional, nos artigos 36º, n.º 1, 44º, 47º e 67º, da Constituição da República Portuguesa.

12.Concluindo-se, assim, ser inadequada e desajustada à concreta situação da requerida a restrição dos mencionados direitos pessoais.

13.À cautela, para a hipótese de assim não se entender, revogando-se, nessa parte, a sentença recorrida, cumpre dizer que a restrição imposta aos direitos pessoais da requerida, alguns dos quais constitucionalmente protegidos, impunha que tal decisão tivesse sido devidamente fundamentada, o que no caso concreto não aconteceu.

14.Na verdade, de acordo com o disposto nos artigos 154º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, as decisões judiciais devem ser fundamentadas para que as partes possam conhecer a sua base fáctico-jurídica, tendo-se limitado o Tribunal, neste caso, a dizer, de forma meramente conclusiva, que “dada a sua situação clínica e psíquica, a Beneficiária não tem capacidade para entender o alcance dos atos de casamento e testamento, constituição de união de facto, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio ou residência, consentir ou recusar tratamento médico ou outras intervenções no domínio da saúde, pelo que em ordem à sua proteção, impõe-se restringir tais direitos pessoais” e, ainda, no dispositivo “….e o exercício dos direitos pessoais previstos no artigo 5.º, n.º 3, da Lei de Saúde Mental e confere-se à acompanhante legitimidade para requerer as providências previstas no artigo 13º da ei de Saúde Mental.”

15. Ignorando-se, totalmente, o que resultou da factualidade provada.

16.Sem qualquer explicitação sobre os motivos que permitiram chegar à conclusão da necessidade de restringir o requerido AA do exercício de tais direitos.

17.A douta sentença recorrida violou, assim, as normas dos artigos 140º, 145º e 147º do Código Civil, 154º e 607º do Código de Processo Civil, 36º, 44º, 47º, 67º e 205º da Constituição da República Portuguesa e 5º, 7º a 9º, da Lei de Saúde Mental, na redação introduzida pela Lei n.º 35/2023, de 21 de julho.

Pelo exposto, requer se julgue procedente o recurso, revogando-se parcialmente a sentença recorrida na parte que restringe os direitos pessoais da requerida ou, caso assim não se entenda, se declare a nulidade da sentença, ao abrigo do artigo 615º, n.º 1,

alínea b), do Código de Processo Civil.”


*

III – Questões a resolver:
Em face das conclusões do Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
a) Apurar se há fundamento para restringir à beneficiária os direitos a contrair casamento, para constituição de união de facto, de escolher profissão, de testar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio ou residência, consentir ou recusar tratamento médico ou outras intervenções no domínio da saúde (…).”;
b) Em caso afirmativo, aferir se a sentença é nula por falta de fundamentação de facto e de direito.

IV – Fundamentação:

Foram os seguintes os factos selecionados pelo tribunal a quo como relevantes para a decisão da causa:

“1. A Beneficiária AA nasceu a ../../1960, na freguesia ..., concelho do Porto.

2. É solteira, não tem filhos e reside sozinha.

3. Tem duas irmãs, CC e BB.

4. Padece, desde pelo menos 2015, de perturbação afetiva bipolar.

5. Já sofreu vários internamentos por episódios depressivos major e um por episódio maníaco.

6. É acompanhada no hospital ....

7. Pode ler-se no relatório de perícia de avaliação neuropsicológica forense complementar, elaborado em novembro de 2023 pelo hospital ... que “está a condicionar um comprometimento cognitivo adquirido. Na avaliação psicológica a examinada evidenciou, também, sintomas ao nível das subescalas de ideação paranoide, psicoticismo, sensibilidade interpessoal e obsessivo-compulsiva”.

8. “Tem reserva cognitiva suficiente para uma vida independente, exceto nos episódios de descompensação psicopatológica, alturas em que o exercício objetivo desta reserva fica limitado pela doença psiquiátrica”.

9. “Necessita de supervisão e apoio diários para a toma de medicação. Nos episódios de descompensação psicótica, a examinada necessita de apoio para se autocuidar e gerir a sua vida de uma forma global”.

10. Pese embora as descritas limitações, que a tornam parcialmente dependente de terceiros para cuidar de si e para algumas atividades da vida diária, não apresenta, em termos cognitivos, limitações relevantes, encontrando-se lúcida, orientada e consciente.

11. Porém, quando o seu estado psicopatológico descompensa, fica incapaz de cuidar e gerir a sua vida globalmente, desde os cuidados básicos, como a higiene e alimentação, até colocar em risco a sua própria vida.

12. Sendo que, nesses momentos de descompensação, tende a isolar-se, a resistir à ajuda e cuidados de terceiros, o que agudiza o seu estado clínico e torna difícil o acesso ao tratamento necessário.

13. Por outro lado, as suas recaídas tendem a ser justificadas pelo abandono terapêutico, carecendo, por isso, de supervisão na toma da medicação.

14. Aufere pensão de invalidez, no montante de € 402,32/mês.

15. Não tem bens imóveis e reside em casa arrendada.

16. Não há notícia que tenha outorgado testamento vital, ou mandato para a gestão dos seus interesses.”


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2 – Cabe agora apreciar se há fundamento para restringir à beneficiária os direitos “a contrair casamento, para constituição de união de facto, de escolher profissão, de testar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio ou residência, consentir ou recusar tratamento médico ou outras intervenções no domínio da saúde, (…).”.
Da matéria de facto provada resulta que a Beneficiária, ora com 64 anos de idade, solteira e sem filhos, reside sozinha e padece, desde pelo menos 2015, de perturbação afetiva bipolar tendo já sofrido internamentos por episódios depressivos e por um episódio maníaco. É acompanhada medicamente e tem capacidade cognitiva bastante para manter uma vida independente com exceção dos momentos em que está em descompensação psicopatológica, em que necessita de apoio para se auto cuidar e gerir a sua vida. Fora desses episódios a Beneficiária apenas necessita de apoio para a toma de medicação. A mesma apresenta-se lúcida, orientada e consciente e nos momentos de descompensação tende a isolar-se e a resistir aos cuidados e ajuda de terceiros.
Do que vai exposto resulta que a Beneficiária tem, globalmente, capacidade para gerir a sua vida quotidiana de forma independente, sofrendo de doença para que precisa de toma de medicação cuja falta lhe determina períodos de depressão/ideação paranoide.

Foram essa doença e a consequente necessidade de apoio da Beneficiária para a toma da medicação/acompanhamento médico que determinaram a propositura da ação pelo Ministério Público que alegou as limitações da Requerida, sustentando que as recaídas da mesma tendem a decorrer do abandono terapêutico. Com base nessas alegações foi pedida a aplicação de medida de acompanhamento para a prática dos seguintes atos: “Assistência e supervisão das atividades da vida pessoal quotidiana da beneficiária, dentro de um círculo de autonomia pessoal compatível com as suas capacidades naturais em cada momento, justificando-se, no caso em concreto, supervisionar e assegurar: os cuidados de alimentação e higiene da beneficiária; providenciar pela acompanhamento médico que se revelar adequado para o equilíbrio, bem-estar e saúde da beneficiária, bem como, pelo adequado cumprimento da medicação prescrita; Apoio à tomada de decisão quanto à fixação da residência e tratamento clínico, designadamente quanto à marcação e comparência a consultas médicas, toma de medicação e adesão às terapêuticas prescritas”.

O Tribunal a quo fundamentou a aplicação da medida objeto de recurso da seguinte forma:“Importa, agora, definir se devem ser restritos os direitos pessoais da Beneficiária, a que se referem os nºs 1 e 2 do artigo 147º do Código Civil.

Neste contexto, dada a sua situação clínica e psíquica, a Beneficiária não tem capacidade para entender o alcance dos atos de casamento e testamento, constituição de união de facto, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio ou residência, consentir ou recusar tratamento médico ou outras intervenções no domínio da saúde, pelo que em ordem à sua proteção, impõe-se restringir tais direitos pessoais, bem como a celebração de negócios da vida corrente.”

Nos processos de jurisdição voluntária, como é o presente, pode a medida aplicada diferir da requerida, devendo ser tido em conta o “Predomínio da conveniência sobre a legalidade” bem como o “Predomínio, quanto ao objeto do processo, do princípio do inquisitório sobre o dispositivo[1]. Confere-se ao Tribunal o dever de investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes de modo a que possa adotar “em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” – cfr. artigos 986º, número 2 e 987º do Código de Processo Civil, aplicáveis por força da remissão prevista no artigo 891º, número 1 do mesmo diploma.

Assim, podia o Tribunal ter aplicado medida diversa da requerida, com base nos referidos dispositivos e atento, ainda, o previsto no artigo 145º, número 2 do Código Civil que também estatui expressamente que o tribunal possa cometer ao acompanhante os regimes ali previstos em “(…) função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido”.

Sucede que do elenco dos factos provados não resulta fundamento bastante para a extensão da limitação dos direitos pessoais da Beneficiária que foi aplicada.

De facto, além da necessidade de apoio na toma da medicação/acompanhamento e aconselhamento no que tange aos tratamentos médicos, não se provou que a Requerida tenha limitações significativas que a impeçam de tomar decisões pessoais como as de casar ou constituir união de facto, de exercer uma profissão, de testar, de se deslocar no país ou no estrangeiro ou de fixar domicílio, nem que não esteja capaz de celebrar os negócios da vida corrente. Pelo contrário, a mesma tem autonomia de vida, residindo sozinha em casa arrendada, aufere e gere a sua pensão e apenas manifesta dificuldade em manter de forma perene a medicação que a sua patologia demanda. A não continuidade dos seus tratamentos, como se provou, tem sido a causa das suas recaídas que, em momentos mais agudos da sintomatologia decorrente da sua doença, conduzem a períodos de incapacidade para gerir globalmente a sua vida e põem em risco a mesma. É nesses momentos de “descompensação”, como se provou, que a Beneficiária tende a isolar-se, a recusar acompanhamento e tratamento. Todavia, a mesma não apresenta, em termos cognitivos, limitações relevantes, encontrando-se lúcida, orientada e consciente.

Os regimes de acompanhamento previstos no artigo 145º, número 2 do Código Civil podem ser aplicados isoladamente ou em conjunto e, no que tange ao atos de representação ou de autorização prévia por banda do acompanhante, os mesmos devem ser expressamente indicados ou, pelo menos, devem ser fixadas as categorias de atos para que se torna necessária a representação ou autorização prévia.

No caso dos direitos pessoais e dos negócios da vida corrente prevê o artigo 147º do Código Civil que os mesmos “são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário”. Entre os direitos legalmente classificados como pessoais estão os de casar ou constituir união de facto, o de escolher profissão e de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência e de testar, como resulta do número 2 do mesmo preceito (para referir apenas aqueles que sofreram limitação por via da sentença recorrida).

Ora, provado que a Beneficiária tem capacidade e autonomia para gerir a sua vida quotidiana, auferindo rendimentos e usando-os para as despesas do dia a dia e para pagamento da renda da sua habitação, que não tem limitação cognitiva e que a sua doença é suscetível de controlo medicamentoso, não se vislumbra fundamento de facto para retirar à Requerida o direito de livremente testar, casar ou unir-se de facto, mudar de residência ou deslocar-se no ou fora do país ou para lhe restringir o direito de consentir ou recusar tratamento médico ou para celebrar negócios da sua vida corrente.

Como bem salientado pelo Recorrente, os direitos pessoais que a sentença restringiu à Beneficiária da medida são constitucionalmente protegidos nos artigos 36º, n.º 1, 44º, 47º e 67º, da Constituição da República Portuguesa.

Dos já citados artigos 145º e 147º do Código Civil resulta que as restrições aos direitos do beneficiário das medidas ali previstas são de natureza excecional, devendo limitar-se ao estritamente necessário.

O que vai de encontro ao fito do regime de acompanhamento que o artigo 140º do mesmo Diploma, sob a epígrafe “Objetivo e Supletividade” enuncia da seguinte forma: “1. O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença. 2 - A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.”

De acordo com Exposição de Motivos da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto[2], “as diferentes situações de incapacidade, com graus diferenciados de dependência, carecem de respostas e de apoios distintos”, pretendendo-se manter e preservar a máxima capacidade do beneficiário.

O artigo 145º, número 1 do Código Civil refere que o acompanhamento se limita ao necessário e, como decorre do já referido artigo 140º tem como objetivo o de assegurar o bem-estar, a recuperação, o pleno exercício de todos os direitos e o cumprimento dos deveres do maior acompanhado. O legislador manifestou, ainda, o princípio da subsidiariedade no decretamento das medidas de acompanhamento no número 2 do mencionado artigo 140º do Código Civil[3].

O artigo 9º, número 1 da Lei 35/2023 de 21 de julho, (Lei da Saúde Mental) prevê que o maior acompanhado seja apoiado ou representado nos termos da decisão judicial de acompanhamento dele decorrendo que a medida de acompanhamento possa restringir-se a apoio junto do beneficiário.

Um dos objetivos da referida lei, o primeiro, aliás, dos que é enumerado no seu artigo 5º, é o de “promover a titularidade efetiva dos direitos fundamentais das pessoas com necessidades de cuidados de saúde mental”.

A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 71º, refere-se expressamente às pessoas com deficiência: “Os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados (…)” ali se obrigando o Estado a criar condições para a salvaguarda e efetivação desses direitos.

Ora, as medidas aplicadas na decisão recorrida coartaram totalmente os direitos da Beneficiária que ali se elencam tendo, quanto aos mesmos, sido conferido à acompanhante o dever de sua representação especial e de tomada dessas decisões em substituição da Beneficiária.

A medida de representação não é a única disponível no elenco, não taxativo, do artigo 145º do Código Civil. Como salientado por Maria dos Prazeres Beleza[4], as medidas de acompanhamento “Podem traduzir-se em representação ou em assistência, ou em “intervenções de outro tipo”, que a sentença determine (145.º), totais ou parciais”.

No caso, o elenco de factos provados dá conta de uma situação de doença cuja sintomatologia é tratada por via da toma de medicamentos e não revela que a Requerida tenha défice cognitivo. A mesma reside sozinha e gere a sua pessoa e bens de forma autónoma. A sua necessidade de acompanhamento deve, pois, restringir-se às necessidades decorrentes das suas limitações que consistem na dificuldade de manter o tratamento e que conduzem a fases de maior descompensação na doença e à dificuldade de gestão do seu quotidiano quando se encontra nessas fases mais agudas da sua doença.

Donde, o pretendido acompanhamento e supervisão da Requerida para as suas atividades quotidianas de forma assegurar o seu acompanhamento médico e medicamentoso e o apoio da mesma à tomada de decisões quanto aos tratamentos clínicos bastarão para assegurar a sua principal limitação.

A ocorrerem, não obstante esse acompanhamento, períodos mais agudos da sintomatologia associada à sua doença, afigura-se bastante e adequado fixar à acompanhante os deveres de supervisão e assistência da alimentação e higiene quotidianas da Requerida bem como a medida já aplicada – que não foi objeto deste recurso -, de lhe conferir legitimidade para requerer as providências requeridas no artigo 13º da Lei de Saúde Mental (que se refere à gestão do património de incapaz e ao regime aplicável a tal gestão impondo que dele seja dado imediato conhecimento ao Ministério Público).

Em conclusão, tendo em vista a supletividade e excecionalidade das medidas a aplicar e o imperativo legal de assegurar o bem-estar e a recuperação do acompanhado para o pleno exercício dos seus direitos entende-se excessiva e injustificada a medida adotada na parte em que restringiu os direitos da Beneficiária de “contrair casamento, para constituição de união de facto, de escolher profissão, de testar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio ou residência, consentir ou recusar tratamento médico ou outras intervenções no domínio da saúde, (…).”.

A situação clínica da mesma - com especial destaque para o facto de a sua doença ser suscetível de tratamento medicamentoso -, e as suas capacidades cognitivas não justificam que lhe sejam cerceados os direitos de tomada de decisão quanto às matérias elencadas no trecho decisório alvo de censura, estando a mesma capaz para gerir o seu quotidiano e património (em vida e/ou por disposições para depois da morte), bem como para decidir livremente sobre o local onde reside e as deslocações que faz.

Não se vê, também, na matéria de facto provada, qualquer razão para estender a limitação total dos seus direitos a decidir as questões relativas a tratamentos e intervenções médicas de tal modo que se dispense o seu consentimento a tais atos, sendo suficiente, face à atual situação da Beneficiária (e tendo em conta que a sua eventual alteração pode, a todo o tempo, motivar a alteração da medida a aplicar, nos termos dos artigos 149º, número 1 do Código Civil e 904º do Código de Processo Civil), a aplicação de medida de apoio à tomada dessas decisões.

Pelo que, na procedência total do recurso, será parcialmente revogada a sentença e alterado o regime de acompanhamento da Beneficiária, limitando-o nos termos propostos pelo Recorrente.


*

2 – Em face da procedência da apelação e visto que a arguição da nulidade da sentença foi evocada a título subsidiário, fica prejudicado o seu conhecimento.

V – Decisão:

Nestes termos, na procedência total do recurso, revoga-se a decisão recorrida substituindo-a pela seguinte:

Instituem-se a favor de AA, nascida a ../../1960, na freguesia ..., concelho do Porto, titular do Cartão de Cidadão número ..., as seguintes medidas de acompanhamento:

Conferem-se à acompanhante os deveres de:
i) assistência e supervisão das atividades da vida pessoal quotidiana da Beneficiária, quanto aos cuidados de alimentação e higiene;
ii) assistência e supervisão do cumprimento da medicação prescrita e do acompanhamento médico que se revelar adequado para o equilíbrio, bem-estar e saúde da Beneficiária;
iii) apoio à tomada de decisão quanto à fixação da residência e tratamento clínico, designadamente quanto à marcação e comparência a consultas médicas, toma de medicação e adesão às terapêuticas prescritas.

Mantendo-se inalterado o mais decidido.

Sem custas nos termos do previsto no artigo 4º, número 1 a) do Regulamento das Custas Processuais.


Porto, 9/9/2024
Ana Olívia Loureiro
Manuel Domingos Fernandes
Carlos Gil
_________________
[1] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, Volume I, página 7.
[2] Disponível em https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/s2a/13/03/070/2018-02-10/11?pgs=11-42&org=PLC.
[3] Onde estatuiu: “A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam”.
[4] Brevíssimas notas obre a criação do regime do maior acompanhado, em substituição dos regimes da interdição e da inabilitação, CEJ, fevereiro de 2019, disponível em: https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=_nsidISl_rE%3d&portalid=30.