Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
107/21.0T8ETR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: RESPONSABILIDADE POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
MANOBRA DE ULTRAPASSAGEM
INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RP20240617107/21.0T8ETR.P1
Data do Acordão: 06/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Encontrando-se o lesado a efetuar manobra de ultrapassagem junto a entroncamento em estrada por si conhecida e que acabara de percorrer em sentido contrário, a sua conduta é ilícita e culposa, não estando a ilicitude ou a culpa afastadas pelo facto de não estar sinalizada na via a aproximação a tal entroncamento.
II - Vindo o mesmo a embater em veículo que seguia à sua frente no mesmo sentido, em fila de trânsito em marcha lenta e que iniciara a manobra de mudança direção à esquerda depois de se aproximar do eixo da via e de sinalizar tal manobra com sinal luminoso, a violação pelo lesado da proibição de ultrapassagem é causal do acidente não podendo o mesmo ser imputado exclusivamente ao outro condutor, sendo justificado concluir pela concorrência da culpa do lesado para a ocorrência dos danos.
III - É justificada a atribuição de uma indemnização de 150.000€ para ressarcimento dos danos não patrimoniais a um lesado com 21 anos à data do acidente que: ficou com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 78 pontos; tem a sua locomoção limitada o uso de cadeira de rodas; dano estético de grau seis; teve repercussão nas atividades de lazer e desportivas de grau 5; se encontra totalmente incapaz de obter qualquer gratificação sexual; está incapacitado de exercer profissão que demande o uso do corpo, sendo que não estava habilitado para outra; ficou definitivamente dependente da ajuda de terceiros e de recurso a médicos, tratamentos e à toma de medicamentos; tem necessidade permanente de uso de sonda vesical acoplada a saco coletor; sofreu défice funcional temporário total foi fixado em 792 dias; sofreu quantum doloris de grau 6..
IV - O valor da compensação que vem sendo fixada pelo dano da perda da vida não constitui necessariamente um limite intransponível na fixação de danos não patrimoniais por lesões que não tenham determinado a morte do lesado. Em inúmeros casos a sobrevida que é permitida a alguns sinistrados acarreta um tal grau de sofrimento que deve considerar-se merecedora de compensação superior à devida pelo dano que poderia advir da morte imediata.
V - A tendência de aumento da idade de reforma (que tem seguido um critério de “indexação” ao aumento da esperança média de vida) e a circunstância, do conhecimento comum, de que os salários baixos e o aumento do custo de vida são frequentemente causa do prolongamento da atividade laboral para além da reforma, justificam que se considere, um período de atividade laboral previsível até, pelo menos, aos 70 anos de idade do lesado para alguém que já iniciara a atividade laboral aos 21 anos como servente de serralheiro. É, aliás, essa a idade a que o legislador manda atender no artigo 7º, número 1 b) da Portaria 377/2008 de 26 de maio destinada à elaboração de proposta razoável pelas seguradoras.
VI - O cálculo da indemnização devida para o dano decorrente da necessidade de ajuda de terceira pessoa deve ter em conta: - o número de dias em que tal ajuda é necessária e, se for diária, que todos os trabalhadores têm direito a descanso semanal e a férias pelo que pode ser necessária a contratação de mais do que uma pessoa para tal tarefa; - o tempo estimado da necessidade em número de horas; - o número de anos pelo qual tal ajuda se pode prever que será necessária; - o valor da retribuição mínima; - o valor das contribuições para a segurança social a que o empregador está obrigado; - o valor do prémio anual do seguro obrigatório de acidentes de trabalho que o empregador está obrigado a celebrar; e, o aumento previsível dessas obrigações pecuniárias ao longo dos anos.

(da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 107/21.0T8ETR,

Juízo Central Cível de Aveiro, Juiz 1

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeiro adjunto: José Eusébio Almeida

Segunda adjunta: Anabela Mendes Morais

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:


1. Em 16-12-2021 AA intentou ação a seguir a forma de processo comum contra A... – companhia de Seguros de Ramos Reais S.A., pedindo a sua condenação no pagamento de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que diz ter sofrido em consequência de acidente de viação cuja ocorrência imputa ao condutor de veículo automóvel cujo contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel foi celebrado pela Ré, liquidando parte dessa indemnização (num total de 32.407,26 €) e relegando para incidente ulterior o apuramento do valor necessário ao ressarcimento de danos futuros com tratamentos médicos, medicação, consultas e deslocações para as mesmas e com ajuda de terceira pessoa.
2. A Ré contestou impugnando quer a versão do acidente que o Autor trouxera aos autos – e imputando a sua ocorrência ao próprio lesado -, quer os danos por ele descritos.
3. A 27-04-2021 foi proferido despacho a convidar o Autor a indicar o valor provável da indemnização a liquidar posteriormente, ao que o mesmo acedeu tendo indicado um valor indemnizatório total de 1.288.012,26 €.
4. Em conformidade, o juízo local de Estarreja foi julgado incompetente e foi determinada a remessa dos autos ao juízo central cível de Aveiro, por decisão de 26-05-2021.
5. Citado, o Instituto de Segurança Social, Instituto Público veio deduzir pedido de reembolso de 12.188,45€ pagos ao lesado a título de baixa médica subsidiada de 07-07-2019 a 16-09-2019 e de 18-09-2019 a 10-10-2021.
6. A Ré opôs-se nos termos já expressos na contestação e, ainda, alegando desconhecer os alegados pagamentos.
7. Em 26-10-2021 foi proferido despacho saneador em que se afirmou a validade e regularidade da instância e se fixaram o objeto do litígio e os temas da prova bem como foram admitidos os meios de prova requeridos.
8. Realizada perícia médico-legal, foi designada data para a audiência de julgamento após o que foi admitida a apensação aos autos de processo comum intentado pelo Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – ... contra a aqui Ré com vista ao pagamento de 66.867,50€ que o mesmo despendeu com assistência hospitalar ao sinistrado.
9. Em 01-09-2023, o mesmo veio a aumentar tal pedido, por via de articulado superveniente, para o montante total de 82.902,80€.
10. A 08-09-2023, também o Instituto de Segurança Social, Instituto Público veio ampliar o seu pedido para a quantia de 16.446,72€
11. A audiência de julgamento iniciou-se em 07-09-2023, com inspeção ao local e terminou em 06-11-2023.
12. A 30-12-2023 foi proferida sentença cujo segmento decisório tem o seguinte teor:

“Julgo, pelo exposto, a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condeno a Ré a pagar:

I – ao A. :

a) a quantia de €295.644,40, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento;

b) a quantia de €19.500,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da prolação da presente sentença e até integral pagamento;

c) relega-se para incidente de liquidação as indemnizações respeitantes às despesas com ajudas medicamentosas, tratamentos técnicos regulares e ajudas técnicas referidas em 62 – a), b) e c) dos Factos Provados;

II – ao Instituto da Segurança Social, IP, a quantia de €4.934,01, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento;

III – ao CMRRC – ... a quantia de €24.870,84, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento.

Absolve-se a Ré dos restantes pedidos deduzidos.

Custas por A. e Ré Seguradora na proporção de vencido, quanto aos pedidos formulados por esta, que se fixam provisoriamente na proporção de 3/4 para o A. e 1/4 para a Ré.

Custas pelo A. CMRRC e pela Ré Seguradora, na proporção de vencido, quanto ao pedido formulado por aquele.

Custas pelo ISS e pela Ré Seguradora, na proporção de vencido, quanto ao pedido formulado por aquele.”

I - O recurso:

É desta sentença que recorrem Autor e Ré, pretendendo:

1 - o Autor que seja atribuída total responsabilidade pela ocorrência do acidente ao condutor do veículo seguro na Ré ou, assim não se entendendo, pelo menos alterada a proporção relativa do contributo de cada condutor para aquele acidente que foi fixada em sentença e, ainda, pedindo a alteração do valor fixados a título de indemnização dos danos não patrimoniais para o montante de 300.000 €;

2 - a Ré pretendendo a redução dos valores arbitrados para indemnização dos danos patrimoniais futuros decorrentes da perda de rendimentos e do pagamento de ajuda a terceira pessoa.

Para tanto, alegam o que sumariam da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

O Autor:

“1 – (…)

2 - O presente recurso a V. Exas., versa exclusivamente sobre matéria de direito, consubstanciado numa uma errada subsunção jurídica do quadro factual que resultou provado nos autos, ou seja, erro de aplicação das normas aos factos e, por isso, o desfecho da acção não deveria ter sido o decidido, e ainda na falta na fundamentação factual de um acervo de factos que suportem a subsunção jurídica que o tribunal recorrido fez, tendo como “thema decidendum” a determinação da culpa (e da respetiva graduação), das partes envolvidas no sinistro.

I - Da Culpa na produção do sinistro - a alegada violação do artigo 41º nº1 alínea c) do C.E.

3 - O autor não realizou qualquer manobra proibida, designadamente a proibição de ultrapassar em entroncamento.

4 – Do elenco dos factos provados não se retira que na via onde se deu a produção do sinistro, o autor estivesse impedido de ultrapassar – vide factos provados 12, 13, 14 e 16.

5 - Se é certa a existência do entroncamento naquela via (facto provado 15) ao longo do troço onde ocorreu o acidente não existe sinalização, indicativa aos condutores que circulam na EN nº ..., de qualquer entroncamento que dê acesso à Rua ..., seja ela vertical ou marcada no solo. – facto provado 16.

6 - A EN ..., no local onde ocorreu o acidente, está separada em duas hemifaixas, separadas por uma linha longitudinal descontínua bem visível no pavimento, apresenta um traçado reto, com boa visibilidade, 6,90 metros de largura (3,45 metros cada hemifaixa), com pavimento asfaltado, o qual, na altura do acidente, se encontrava seco e em bom estado de conservação – facto provado 12.

7 - A prescrição da marca rodoviária (linha longitudinal descontínua bem visível no pavimento), conjugada com a ausência de qualquer sinalização vertical, rodoviária ou outra a indicar aproximação de entroncamento no local, demonstra ser permitido ultrapassar na onde se deu o acidente.

8 - Ainda que estivéssemos perante um non liquet acerca de tais elementos, designadamente sobre a existência de sinalização da existência de entroncamento (que como se viu, provou-se não existir) essa eventualidade só poderia actuar em benefício do autor.

9 - Porque o autor não realizou qualquer manobra proibida nem violou qualquer normativo legal ínsito no C.E., não lhe pode ser assacada qualquer responsabilidade pela produção do acidente.

10 – A responsabilidade pela produção do acidente tem de ser imputada, em exclusivo ao condutor do veículo ..-..-TB.

11 – Ao efectuar uma manobra de mudança de direcção para a esquerda por forma que da sua realização não resultasse perigo ou embaraço para o trânsito – vide alínea e) do elenco dos factos não provados, o condutor do ..-..-TB violou de forma manifesta o artigo 35º do Código da Estrada.

12 - Provou-se que o local onde ocorreu o acidente apresenta um traçado reto, com boa visibilidade, apresentando a EN ..., atento o sentido... –..., uma reta de cerca de 300 metros até ao entroncamento com a Rua .... O motociclo conduzido pelo A. era avistável pelo condutor do veículo de matrícula ..-..-TB, através do seu espelho retrovisor esquerdo, a mais de 100 metros de distância do local onde se deu o embate. E o acidente ocorreu pouco depois de o condutor do veículo de matrícula ..-..-TB ter iniciado a manobra, uma vez que apenas a parte da frente e a porta do condutor deste veículo se encontravam na hemifaixa esquerda, tendo o motociclo embateu na porta dianteira esquerda e na roda dianteira esquerda do veículo ligeiro de passageiros. Assim sendo, devia ter-se apercebido da ultrapassagem do motociclo e aguardado que a mesma se efetuasse como podia e devia um condutor avisado.

13º- A este respeito a testemunha BB referiu o seguinte, (Cfr. reduzido a escrito na sentença) “Conseguiu ouvir o barulho da moto a uma distância grande. A moto fazia muito barulho. Primeiro até ouviu o barulho e depois é que viu a moto. A testemunha não viraria à esquerda, depois de ouvir a moto”.

14º- Por sua vez a testemunha CC (condutor do ..-..-TB) disse o seguinte (Cfr. reduzido a escrito na sentença) “Eram motorizadas antigas de passeio que fazem barulho. Estava bom tempo e levava os vidros de trás do carro abertos. (…) conseguia ver 100 metros para trás do local do acidente.”

15 – Nos termos do artigo 44º do Código da Estrada “O condutor que pretenda mudar de direção para a esquerda deve aproximar-se, com a necessária antecedência e o mais possível, do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afeta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e efetuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação.”

16 - Infere-se assim com total segurança que o condutor do veículo ..-..-TB, ao realizar a manobra de mudança de direcção à esquerda, embora precedendo tal manobra de alguns dos cuidados exigidos pelas regras estradais, – acionou o pisca que sinaliza a intenção de realizar essa manobra e aproximou-se do eixo da via - realizou-a com inobservância de outros deveres de cuidado que deveria ter respeitado.

17 - Não logrou o condutor do ..-..-TB provar que se aproximou do eixo da via com a antecedência necessária, provando-se apenas que se aproximou do eixo da via antes do entroncamento sem ter sido demonstrado com que antecedência o fez.

18 - Ao invés, resultou provado que o acidente ocorreu pouco depois de o ..-..-TB ter iniciado a mudança de direcção à esquerda.

19 – O elenco dos factos provados conjugado com os factos não provados permite concluir que face à realização imprudente da manobra de mudança de direção por parte do condutor do ..-..-TB, o autor, condutor do motociclo não poderia ter evitado o embate, ainda que tivesse agido com a prudência que é exigida a qualquer condutor, designadamente, em teoria, reduzindo a velocidade a que seguia ou desviando a trajetória – note-se que não se provou a que velocidade seguia o motociclo conduzido pelo autor.

20 - Temos, uma zona de penumbra no filme do acidente decorrente da falta de prova quanto à velocidade a que circulava o motociclo do autor e a antecedência com que o condutor do ..-..-TB se aproximou do eixo da via e sinalizou a manobra que impede de efetuar um juízo de culpa sobre a conduta do condutor do ciclomotor causal do acidente.

21 - Extrai-se da factualidade provada, que o condutor do veículo ..-..-TB violou os comandos legais ínsitos no nº1 do artigo 35º e nº1 do artigo 44º do Código da Estrada.

22 - Ao não adequar a sua conduta às exigências daqueles normativos legais, é esta merecedora de um juízo de censura sobre o seu comportamento que integra a violação de regras estradais e que impõe a conclusão de que a conduta do veículo ..-..-TB foi determinante e causa exclusiva na produção do acidente dos autos.

II - Da alegada violação do artigo 24º nº1 alínea c) do C.E.

23 – Considerou a meritíssima Juíza ad quo que o autor circulava a velocidade desaconselhada para as circunstâncias “(…) como se colige das distâncias a que foram projetados ele e o motociclo.” socorrendo-se de uma presunção judicial prevista no artigo 351º do Código Civil.

24 - Não consta nos autos qualquer elemento probatório do qual se possa extrair qual era a velocidade concreta a que o motociclo conduzido pelo autor circulava antes do sinistro, tanto assim que se deu como não provado que “o ora A. conduzia completamente distraído a mais de 90 Km/hora” – vide alínea g) do elenco dos factos não provados.

25 - Resulta do nº 1 do artº 24 do C. E. que “ - O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”

26 - Salvo o devido respeito a presunção retirada da matéria factual pela meritíssima Juíza, de que o autor circulava com velocidade desaconselhada para a circunstância, padece de manifesta ilogicidade, atentos os factos provados em 12, 13 e 20.

27 - No quadro de um acidente de viação, em que é interveniente um motociclo e um veículo ligeiro, há que atender às condições intrínsecas dos veículos intervenientes – designadamente, massa física, o peso, o volume e a dimensão dos veículos em causa.

28 - Resulta da lógica e das regras da experiência comum, que ante o embate de um motociclo e um veículo ligeiro, o motociclo será sempre projectado do local do acidente face à diferença de peso e volume dos veículos.

29 - Por sua vez, o condutor do motociclo ao embater será sempre impelido para o solo, e aí impulsionado em movimento de arrasto, afastando-se do local de embate.

30 – O acidente ocorreu pouco depois de o condutor do veículo de matrícula ..-..-TB ter iniciado a manobra de direcção, o que impediu o autor de realizar qualquer tentativa de travagem ou manobra evasiva ou deter a marcha no espaço livre e visível à sua frente, pelo que as distâncias a que o motociclo e o autor se imobilizaram em relação ao local do embate, embora não despiciendas, não são de relevância tal que permitam concluir que o autor conduzisse a velocidade desadequada.

31 – Os factos provados não permitem responder afirmativamente que se o condutor do motociclo circulasse a velocidade inferior àquela a que circulava – que, reitera-se, não se provou – as distâncias a que ele e o motociclo foram projectados seriam inferiores.

32 - A velocidade a que o autor circulava, que como se disse não foi determinada, não foi a natural consequência, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, da distância a que ele e o motociclo forma projectados em razão do embate.

33 - Pelo que deve a presunção a que a meritíssima Juíza ad quo lançou mão se ter por afastada.

34 - Face à inexistência da violação de qualquer norma legal ínsita no Código da Estrada por parte do autor, tem a responsabilidade pela eclosão do sinistro ser assacada em exclusividade ao condutor do ..-..-TB.

III – Da graduação de culpas

35 - Sem prejuízo de tudo quanto já alegado quanto à exclusiva responsabilidade do condutor do veículo ..-..-TB na produção do sinistro, entendendo-se ser de imputar a responsabilidade a ambos os condutores, o que não se concede e apenas por zeloso dever de patrocínio se refere;

36 - Andou mal a douta sentença de que se recorre ao graduar a culpa no acidente em 70% para o A. e 30% para o condutor do veículo de matrícula ..-..-TB.”

37 - O condutor do ..-..-TB efetuou uma manobra de mudança de direção para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, para a Rua ... – facto provado 21 - e sem previamente se certificar, que o fazia em segurança e sem perigo de colidir com os veículos que circulavam à sua retaguarda – alínea e) do elenco dos factos não provados.

38 - Ao agir como descrito, ou seja, ao efetuar uma manobra de mudança de direção para a esquerda, e sem previamente se certificar que o fazia em segurança e sem perigo de colidir com os veículos que circulavam à sua retaguarda – vide alínea e) dos factos não provados - quando o motociclo era avistável pelo condutor do veículo de matrícula ..-..-TB através do seu espelho retrovisor esquerdo, a mais de 100 metros de distância do local onde se deu o embate – vide facto provado 25 – o condutor do ..-..-TB violou o dever objetivo de cuidado, pelo que a sua atuação merece censura ético-jurídica.

39 - O condutor que vira para a esquerda é normalmente o único que poderá evitar o acidente - se olhar para trás (ou para o retrovisor) imediatamente antes de virar (Cfr. Eurico Heitor Consciência, Sobre Acidentes de Viação e Seguro Automóvel, 2.ª ed., 2002, p. 132-133).”

40 - O conflito entre a ultrapassagem e a manobra de mudança de direcção deverá ser resolvido a favor do primeiro que iniciou uma dessas manobras”. A este propósito escreveu-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 13-11-2007 (texto acessível na Internet, através de http://www.dgsi.pt):

41 - No caso em apreço, encontra-se demonstrado que o condutor ..-..-TB, sem se certificar previamente da segurança da manobra, iniciou a mudança de direcção para a esquerda e mudou de direcção para a esquerda no momento em que estava a ser ultrapassado, veja-se a este respeito o que diz a douta sentença recorrida “E o acidente ocorreu pouco depois de o condutor do veículo de matrícula ..-..-TB ter iniciado a manobra, uma vez que apenas a parte da frente e a porta do condutor deste veículo se encontravam na hemifaixa esquerda, tendo o motociclo embateu na porta dianteira esquerda e na roda dianteira esquerda do veículo ligeiro de passageiros” violando, desde logo, o dever geral de cuidado que lhe impunha certificar-se previamente da segurança de tal manobra e abster-se de a efectuar se da mesma resultasse o perigo de acidente;

42 - Significa isto que o referido critério temporal permite imputar-lhe responsabilidade pela eclosão do acidente; a obrigação de certificação prévia da segurança da manobra parece consagrar o dever de aproveitamento da última oportunidade (the last clear chance ...) de evitar o acidente.

43 - O condutor do ..-..-TB omitiu, pois, as cautelas que lhe eram exigíveis para uma condução segura e com respeito pelos demais usuários da via.

44 - Podendo-se considerar (apenas por zeloso dever de patrocínio) que o autor violou também o dever de cuidado ao não ter previsto (dada a razão de ser da proibição de ultrapassagem num entroncamento) a possibilidade de o ..-..-TB, condutor do veículo que ultrapassava, efectuar, como efectivamente efectuou, a manobra de mudança de direcção para a esquerda no entroncamento por onde circulavam, contribuindo, assim, para a causação do sinistro.

45 - Contudo, o resultado, não pode deixar de ser imputado à conduta do ..-..-TB, já que ao não cumprir as referidas regras estradais (não realizar a manobra e mudança de direcção sem previamente se certificar de que o fazia em segurança e sem perigo de colidir com os veículos que circulavam à sua rectaguarda) criou e incrementou o risco de produção desse resultado concreto, que se veio a verificar.

46 - E esta notória maior contribuição do condutor do ..-..-TB, face ao incremento do risco de produção do resultado impõe uma graduação das culpas que deve ser de fixar em 80% para o condutor do ..-..-TB e 20% para o autor, condutor do motociclo, devendo em conformidade os montantes indemnizatórios serem ajustados a esta repartição do risco.

IV – Do montante fixado a título de danos não patrimoniais ao Autor

47 - Salvo o devido respeito, a indemnização fixada pelo Tribunal ad quo a título de indemnização por danos não patrimoniais no montante de €65.000,00, mostra-se desajustada face à gravidade e extensão dos danos que o autor teve e tem de suportar em consequência do acidente dos autos, face às concretas circunstâncias do caso, e bem assim quando confrontado com o sentido das decisões que vêm sendo proferidas pela nossa Jurisprudência em casos análogos.

48 - Com relevância para a fixação dos danos não patrimoniais sofridos pelo autor foram dados como provados os factos 30 a 70 do elenco dos factos provados.

49 - Compulsada a matéria factual dada como provada, resulta à saciedade que os danos não patrimoniais sofridos pelo autor são muito relevantes e dignos de uma compensação pecuniária expressiva.

50 - Na categoria de danos não patrimoniais compreendem-se todos aqueles que afectam a personalidade moral, nos seus valores específicos tais como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente.

51 - Os componentes de maior relevância do dano não patrimonial são:

- o dano estético: traduzido no prejuízo anatomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima – vide factos provados 50, 51, 52 e 59.

- o prejuízo de afirmação social: dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica); vide factos provados 42, 43, 47, 50, 51, 57, 58, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, e 68.

- o prejuízo da “saúde geral e da longevidade”: nele se destacam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida; vide factos provados 42, 43, 47, 50, 51, 57, 58, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, e 68, 69 e 70.

- o pretium juventutis: que compreende a frustração de viver em pleno a designada “primavera da vida”; vide factos provados 63, 64, 65, 66, 67, e 68, 69 e 70.

- e o pretium doloris - que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária. vide factos provados42, 43, 47, 50, 51, 56.

52 - É incontroverso que o autor sofreu, em consequência do acidente, das lesões corporais dele resultantes e das sequelas permanentes que o afectam, danos de natureza não patrimonial que, pela sua extensão e gravidade, indiscutivelmente reclamam e merecem tutela reparadora.

53 - Sendo expressivamente graves os danos em causa, designadamente pela sua repercussão - física, psicológica, sexual, familiar e social – na vida do autor, na quantificação dos mesmos deve ponderar-se o grau, intenso, de culpa do condutor do ..-..-TB, a idade do autor à data do evento lesante e a sua expectativa de vida, bem os valores arbitrados pelas instâncias superiores para situações similares.

54 - Deve ser arbitrado a título de indemnização por danos não patrimoniais o montante de €300.000,00, conforme peticionado na P.I., quantia que se mostra ajustada face à gravidade e extensão dos danos que o autor teve, tem e terá no remanescente da sua vida.

55 - Ao decidir como decidiu o Tribunal ad quo violou as normas ínsitas nos artigos 41º nº1 alínea c), 24º nº1 línea c), 35º e 44º todos do Código da estrada e no artigo 496º do Código de Processo Civil.”.

A Ré:

1.ª - O presente recurso visa a revogação da douta Sentença porquanto se discorda do montante das indemnizações fixadas ao Autor, a título de perda de capacidade de ganho,

resultante do Défice Funcional Permanente de 78 pontos, bem como pelo montante atribuído para a ajuda de terceira pessoa.

2.ª- A perda de capacidade de ganho representa uma consequência lógica da perda da capacidade de trabalho, ou seja quem ficou limitado na sua capacidade, também ficou limitado na sua capacidade de auferir proventos.

3.ª- Temos que analisar a previsível verificação de um dano futuro – a perda de rendimento resultante de sequelas físicas do acidente.

4.ª- O valor desse dano deve ser definido equitativamente - nº 3 do artº 566º do C. Civil.

5.ª- A indemnização deve ser calculada em atenção ao tempo provável de vida ativa do

lesado.

6.ª- Deve-se ter em conta rendimento habitual que o lesado, no momento do acidente, retirava da sua atividade profissional, bem como até quando será razoável considerar a perda de rendimento.

7.ª- Face à atual tendência para o aumento da idade da reforma, entende-se adequado considerar os 67 anos de idade.

8.ª- O Autor tinha 24 anos à data da alta clínica (06/09/2021 - pontos 30 e 53 dos factos

provados constantes da sentença recorrida), pelo que até aos 67 anos tinha mais 43 anos de vida ativa.

9.ª- O Autor vai receber de uma só vez a quantia que iria auferir de forma fracionada ao

longo de 43 anos, sendo legítimo esperar que se proceda à aplicação do capital agora fixado – aceitando-se uma taxa de juro na ordem de 4,5%, (Portaria nº 377/2008, de 26/05, na redação dada pela Portaria nº 679/2009, de 25/06, designadamente o fator de correção constante do anexo III).

10.ª- O Autor, à data da alta clínica, tinha 24 anos, auferia o salário mensal ilíquido de € 578,50, acrescido de subsídio de férias e de Natal e de €6,80 de subsídio de alimentação, ou seja o salário líquido de € 721,30/mês e ficou a padecer de uma Incapacidade Permanente de 78 pontos, que implica incapacidade para o exercício da sua atividade profissional habitual (servente metalúrgico), bem como de qualquer outra que requeira locomoção e/ou esforços físicos (pontos 57, 58, 71 e 72 dos factos provados).

11.ª- A Portaria 377/2008, de 26/05, no seu anexo III, propõe um fator de 24,936, quando são 43 anos que à vítima faltam para atingir a idade da reforma.

12.ª- Defendemos que é correto fixar em € 250.000,00, o valor destinado a compensar a incapacidade permanente de que o Autor ficou a padecer.

13.ª- Nos termos da sentença recorrida, foi imputado ao Autor 70% de responsabilidade pela ocorrência do acidente, pelo que deve-lhe ser atribuído o montante de € 75.000,00 (€ 250.000,00 x 30%), valor ao qual deve ser deduzido o valor de € 4.258,27 que o Autor recebeu da Segurança Social, no período de 11/10/2021 a 06/07/2022 (ponto 75 dos factos provados), o que perfaz a importância de € 70.741,73.

14.ª- Quanto à necessidade de ajuda de terceira pessoa, ficou provado que:

“O A. necessita Ajuda de terceira pessoa: o A. requer de ajuda permanente de 3ª pessoa (de complemento), para a confeção de alimentos, higiene pessoal e vestir/despir da cintura para baixo (ponto 62, alínea e) dos factos provados).

15.ª- A douta sentença recorrida fixou o montante de €574.000,00, tendo em conta o valor mensal de €820,00, durante 8 horas/dia, por um período de 50 anos.

16.ª- O apoio de que o Autor necessita, por parte e terceira pessoa, não se justifica por um período de 8 horas/dia, sendo aceitável que, para essa ajuda, sejam consideradas 4 horas/dia.

17.ª- Não se deverá considerar que a necessidade de ajuda de terceira pessoa se irá prolongar durante 50 anos.

18.ª- Quem apresenta o quadro clínico de tetraplegia não tem mesma esperança de vida de uma pessoa que não padece dessa gravíssima sequela.

19.ª- As sequelas inerentes à situação de tetraplegia, dadas como provadas, nos pontos 32 a 62 da douta sentença recorrida, implicam que o Autor esteja numa situação de fragilidade física e psíquica.

20.º- É adequado considerar que o Autor vai necessitar da ajuda de terceira pessoa por mais 30 anos.

21.ª-A indemnização a fixar pela ajuda de terceira pessoa ascende a € 172.200,00 (€410,00 x 14 meses = € 5.740,00 x 30 anos = €172.200,00).

22.ª – O Autor só tem direito a 30% desse montante, pelo que o valor a fixar é de €51.660,00.”.


*

A Ré contra-alegou sustentando que a sentença recorrida fixou de forma correta a percentagem do contributo de cada um dos condutores para o acidente e que o valor arbitrado para ressarcimento dos danos não patrimoniais é o adequado.

III – Questões a resolver:

Em face das conclusões do Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
1) Se em face dos factos provados deve ser considerado que apenas o condutor do veículo seguro na Ré contribuiu para os danos sofridos pelo Autor ou, em aso negativo, se deve ser fixada em 80% a proporção do seu contributo para tal acidente;
2) Se deve ser aumentado o valor arbitrado na sentença para indemnização dos danos não patrimoniais sofrido pelo Autor em consequência do acidente;
3) Se deve ser reduzido o valor fixado para indemnização do dano futuro decorrente da perda de rendimentos do Autor;
4) Se deve ser reduzido o valor fixado para indemnização do dano que o Autor suporta e suportará com a contratação do auxílio de terceira pessoa.

IV – Fundamentação:

São os seguintes os factos julgados provados na sentença recorrida:

“1 - No dia 07/07/2019, pelas 11,30 horas, ao km 5,600 da EN nº ..., ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o motociclo, marca Yamaha, que apresentava na data e hora do acidente a chapa de matrícula LP-..-.., conduzido pelo A., e o veículo automóvel de marca Volkswagen, modelo ..., matrícula ..-..-TB, conduzido por CC, e propriedade de DD.

2 – No referido dia e hora, o A. participava em passeio de motociclos, ciclomotores e quadriciclos organizado pelo grupo “...”.

3 – E fazia parte da organização, pelo que, investido nas vestes de elemento organizador, cabia-lhe supervisionar o percurso, verificar se todos os elementos participantes tinham conhecimento do percurso, orientar e dar indicações aos elementos participantes.

4 – O A. vestia um colete amarelo refletor com os dizeres “organização”.

5 – O passeio tinha como percurso definido a saída na sede da APACDM de ..., paragem na ... para convívio, e regresso à sede da APACDM para almoço.

6 – O passeio do grupo “...” realizou-se com o conhecimento das Infraestruturas de Portugal, a quem foi solicitada autorização para o evento em causa.

7 – Foi solicitada à Guarda Nacional Republicana – Destacamento de Trânsito de Aveiro a disponibilização de dois elementos da GNR para fazerem o acompanhamento, supervisão e fiscalização do passeio, tendo todo o percurso sido escoltado por dois elementos da GNR.

8 – Sensivelmente a meio do percurso, encontrava-se definida uma pequena paragem do grupo participante na rotunda de acesso à ..., ..., ... e Zona Industrial ... e ..., a fim de reunir o pelotão de participantes e daí partir em conjunto em direção à ....

9 – A paragem do grupo de passeio nesta rotunda fez com que a circulação automóvel na EN nº ..., no sentido ... – ..., estivesse durante algum tempo parada, tendo sido gerada uma fila de trânsito com imobilização dos veículos naquela via.

10 – Após o grupo participante no passeio ter recomeçado a andar, o A. percorreu a EN ..., no sentido ..., no percurso que medeia entre a rotunda de acesso à ..., ..., ... e Zona Industrial ... e ..., e a rotunda imediatamente anterior, a fim de aferir se algum participante se encontrava atrasado ou perdido.

11 – O acidente ocorreu quando o A. regressava (sentido ... – ...) em direção à rotunda de acesso à ..., ..., ... e Zona Industrial ... e ....

12 – A EN ..., no local onde ocorreu o acidente, está separada em duas hemifaixas, separadas por uma linha longitudinal descontínua bem visível no pavimento, apresenta um traçado reto, com boa visibilidade, 6,90 metros de largura (3,45 metros cada hemifaixa), com pavimento asfaltado, o qual, na altura do acidente, se encontrava seco e em bom estado de conservação.

13 – No identificado troço de estrada o limite de velocidade geral é de 90 km/hora.

14 – A EN ..., atento o sentido ... – ..., apresenta uma reta de cerca de 300 metros até ao entroncamento com a Rua ....

15 – A Rua ..., ..., do lado esquerdo desta, atento o sentido ... – ....

16 – Ao longo do troço onde ocorreu o acidente não existe sinalização, indicativa aos condutores que circulam na EN nº ..., de qualquer entroncamento que dê acesso à Rua ..., seja ela vertical ou marcada no solo.

17 - A Rua ... tem cerca de 3,30 metros de largura.

18 – Existe um declive entre a EN nº ... e a Rua ..., situando-se esta num patamar inferior.

19 – Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1 dos Factos Provados, o veículo de matrícula ..-..-TB circulava em marcha lenta, a velocidade inferior a 50 km/hora, numa fila de trânsito.

20 – O condutor do veículo de matrícula ..-..-TB acionou o pisca-pisca esquerdo antes do entroncamento com a Rua ... e aproximou-se do eixo da via.

21 – O acidente ocorreu quando o A. ultrapassava os veículos que seguiam em marcha lenta, na hemifaixa direita, atento o sentido ... – ..., e o veículo de matrícula ..-..-TB efetuava manobra de mudança de direção à esquerda para aceder à Rua ....

22 – O acidente ocorreu na hemifaixa esquerda (sentido ... – ...), quando a parte da frente e a porta do condutor do veículo de matrícula ..-..-TB já se encontravam na hemifaixa esquerda.

23 – O motociclo embateu na porta dianteira esquerda e na roda dianteira esquerda do veículo de matrícula ..-..-TB.

24 – O A. foi projetado em resultado do embate mais de 30 metros e o motociclo foi projetado cerca de 20 metros.

25 – O motociclo conduzido pelo A. era avistável pelo condutor do veículo de matrícula ..-..-TB, através do seu espelho retrovisor esquerdo, a mais de 100 metros de distância do local onde se deu o embate.

26 – O A. conhecia o local do sinistro, sabendo que havia um entroncamento no local onde ocorreu o mesmo.

27 – O motociclo circulava sem seguro válido e eficaz.

28 – Foi elaborado o auto de notícia por falsificação ou contrafação, com o NUIPC 239/19.5GCETR por as características do veículo com a matrícula LP-..-.. não corresponderem com as do veículo interveniente no acidente.

29 – A responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-TB encontrava-se transferida, à data do acidente, para a Ré A..., Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A., por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...67 – fls. 76/76v..

30 – O A. nasceu a ../../1997.

31 – O A. foi assistido no local pelo INEM, e transportado para o CHBV, onde foi admitido no Serviço de Urgência vítima de acidente de moto por colisão contra um veículo, sendo portador de capacete.

32 - Apresentava-se à entrada com Escala Glasgow (EG) de 15, ligeiramente hipotenso, com escoriação e ferida no cotovelo esquerdo, escoriações e feridas na mão direita com ferida incisa profunda e deformação do 4º dedo, ferida no dorso do hallux do pé direito - todas as feridas conspurcadas com terra, bem como abrasões superficiais dorso-lombares.

33 - Referia dores cervicais e evidenciava paraplegia, com nível senso-motor pelos mamilos, razão pela qual foi submetido a TAC que revelou fratura-luxação C7-D1. Foi ainda submetido a radiografia da mão direita que revelou fratura exposta da falange proximal do 4º dedo.

34 - No mesmo dia foi transferido para o CHVNGE, onde foi submetido a TAC crânio-encefálica, que não evidenciou lesões traumáticas agudas.

35 - Foi intervencionado cirurgicamente, tendo-lhe sido efetuada descompressão de hematoma canalar C7-D1 (constatada lesão dural e secção parcial da medula a esse nível) e fixação da coluna cervical C4-D3, bem como osteossíntese com fios de Fios de Kirschner da fratura da falange proximal e tenorrafia do tendão extensor do 4º dedo da mão direita, e limpeza cirúrgica das feridas do dorso do pé direito.

36 - Evoluiu favoravelmente, movimentando espontaneamente ambos os membros superiores, com força muscular aparentemente preservada e simétrica, mantendo paraplegia com nível sensitivo de T5.

37 - Foi transferido para o CHBV no dia 11/07/2019, após contacto com o Serviço de Ortopedia.

38 - Em 11/07/2019 apresentou um quadro de pneumonia bilateral com insuficiência respiratória hipoxémica grave, com necessidade de entubação orotraqueal e ventilação mecânica.

39 - Nessa altura foi transferido para o Serviço de Medicina Intensiva (SMI) do CHUC. Foi extubado no dia 19/07/2019, tendo ainda cumprido antibioterapia empírica e posteriormente dirigida a Klebsiella pneumoniae responsável por quadro de traqueobronquite aguda.

40 - Após estabilização do quadro, foi transferido para o CHBV, em 26/07/2019, onde iniciou programa de reabilitação no Serviço de Ortopedia. Teve alta hospitalar em 14/10/2019.

41 - No dia 14/10/2019 foi internado no Serviço de Lesões Vertebro-Medulares do CMRRC-RP, apresentando quadro de tetraplegia ASIA NN C6. Durante o internamento verificou-se evolução favorável, com ganho de autonomia nas atividades de vida diária/condução de cadeira de rodas, bem como fortalecimento muscular e capacidade para a realização de esvaziamento vesical por autoalgaliação intermitente. Fez estudo vesicoesfincteriano, foi prescrito produtos de apoio e dado apoio para reconversão profissional.

42 – Teve alta do internamento no dia 21/03/2020, tendo consulta de seguimento agendada para o janeiro de 2021 e com a seguinte proposta de monitorização e tratamento: - Terapêutica: Darifenacina; Pantoprazol; Baclofeno; Pancreatina; Escitalopram; Lactulose; Tadafil; Senósido A+B; Bisacodilo.

- Necessidade de material para treino esfincteriano: sondas de autoalgaliação; sacos colectores de urina; pensos higiénicos masculinos/cueca fraldas para pequenas perdas.

- Recomendações: continuação de tratamentos de reabilitação em instituição da área de residência, para potenciação dos ganhos adquiridos; manter treino vesical e intestinal; realizar urocultura sempre que se verificar alteração das características da urina; realização anual de ecografia renal e vesical e bianual de estudo urodinâmico.

43 - A 29/06/2020, foi observado na consulta de LVM do CMRRC-RP. Mantinha o peso; treino intestinal efixa - flatulência mantida; sem lesões cutâneas; infeção urinaria há 1 semana; mantinha espasticidade - rigidez muscular; realizava fisioterapia 2 vezes por semana, com melhoria da espasticidade; aguarda fornecimento da cadeira de rodas manual; almofada ainda em bom estado; queixava-se de dor cervical – sem medicação. Ao exame físico: força muscular C5-D1 = 5/5, L2-S1 = 0/0; sensibilidade álgica mantida até C4 esquerda, abolida a partir C8; sensibilidade anal profunda abolida; contração anal voluntária ausente. Tetraplegia ASIA NN C7.

44 - Foi acompanhado em consultas de Medicina Física e Reabilitação, no CMM. No dia 11/11/2020, referia algumas queixas de cérvico-braquialgia esquerda, esporádica.

45 - Realizou RMN da coluna cervical (25/08/2020) e foi-lhe proposta eletromiografia por possível compromisso hérnia discal mediana em C3-C4, a obliterar o espaço subaracnoideu anterior e a indentar a medula.

46 - À data da última observação na consulta de LVM do CMRRC-RP, em 06/09/2021, apresentava cicatrização da úlcera de pressão no calcâneo; lesões cutâneas por queda quando realizava passeio de bicicleta; sem infeções urinárias; treino intestinal regular; retomou atividade profissional; conseguiu ir ao mar em praia; era portador de cadeira de rodas, sem almofada anti-escara (porque o examinando não gostava); medicado com Darifenacina; Pantoprazol; Baclofeno; Pancreatina; Tadafil; Senósido A+B; Bisacodilo; mantinha espasticidade rigidez articular; força muscular 5/5 até D1, em L2-S1 0/0; sem alteração do tónus; clonus da articulação tibiotársica rapidamente esgotável; sensibilidade álgica mantida até C7 à esquerda e abolida a partir de C8; sensibilidade anal profunda abolida; contração anal voluntária ausente. Tetraplegia ASI A NN C7.

47 - De acordo com Atestado Médico de Incapacidade Multiuso “o utente é portador de deficiência que lhe confere incapacidade permanente global de 80%”.

48 - No âmbito da avaliação médico-legal em Direito Penal, efetuada ao examinando neste Gabinete Médico-Legal e Forense, foi submetido a exame complementar de Psiquiatria Forense, em 09/12/2021, de cujo Relatório se extraiu o seguinte:

a) A análise da história pessoal do examinando e dos dados psicopatológicos disponíveis sugere a existência de critérios necessários para a formulação do seguinte diagnóstico, de acordo com a Classificação Internacional de Doenças da organização Mundial de Saúde (CID-11): Perturbação de adaptação (6B43).

b) Não são conhecidos antecedentes psiquiátricos relevantes ao examinando previamente ao acidente, verificando-se a instalação de alterações psíquicas secundárias ao evento em apreço e suas consequências. Tal impacto está associado, de forma inequívoca, ao acidente descrito no processo.

49 – O A. sofreu um acidente de trabalho em 2017, de que resultou traumatismo crânioencefálico.

50 – O A. desloca-se permanentemente em cadeira de rodas.

51 –Apresenta as seguintes sequelas relacionáveis com o evento:

a) Exame neurológico:

- Consciente, orientado alopsiquicamente, no tempo e no espaço, e colaborante.

- Sem défices aparentes da memória anterógrada, para o evento e recente.

- Sem assimetria facial.

- Paresia dos membros superiores, com força muscular grau V/V para os músculos flexores e grau IV/V para os músculos extensores do membro superior esquerdo, com força muscular grau IV/V para os músculos flexores e grau IV/V para os músculos extensores do membro superior direito. Funcionalmente apresenta pinça da mão direita ineficaz, pinça da mão esquerda eficaz.

- Boa estabilidade do tronco.

- Plegia dos membros inferiores (paraplegia), com espasticidade muscular ligeira. - Sensibilidade termológica até D3-D4.

- Reflexos osteotendinosos dos membros hiperrefléxicos.

- Incontinência de esfíncteres.

b) Crânio:

- Cicatriz rosada, sensivelmente transversal, hipersensível à palpação, localizada maioritariamente à esquerda da linha sagital, medindo 7cm de comprimento por 0.5cm de maior largura.

c) Ráquis:

- Cicatriz nacarada, com vestígios de pontos de sutura, longitudinal e mediana, ligeiramente hipertrófica e hipersensível à palpação, estendendo-se desde a região occipital até à região vertebral dorsal, medindo 25cm de comprimento por 1cm de maior largura.

- Rigidez acentuada da coluna cervical, com dor nos movimentos de flexão, rotação e flexão lateral direitas-

d) Períneo:

- Presença de sonda vesical de longa duração, acoplada a saco coletor.

- Sem sinais de úlceras de pressão crónicas

e) Membro superior direito:

- Várias cicatrizes nacaradas, dispersas pela face dorsal da mão e dos dedos, a maior de caraterísticas cirúrgicas, transversal, circundando a falange proximal do 4º dedo, medindo 4.5cm de comprimento

- Encurtamento do 4º dedo, com engrossamento da falange proximal, sugestivo do calo ósseo, e rigidez acentuada da articulação interfalângica proximal

f) Membro inferior direito:

- Dois vestígios cicatriciais nacarados, supra-rotulianos, o superior linear com 5cm de comprimento e outro com 1.5cm de comprimento por 0.5cm de largura.

- Cicatriz nacarada, irregular, com vestígios de pontos de sutura, a nível da face dorsal do 1º metatarso, medindo 5.5cm de comprimento.

52 – O A. apresenta as seguintes sequelas sem relação com o evento:

Crânio: cicatriz rosada, curvilínea de concavidade superior, com alopecia subjacente, na transição das regiões parietais, medindo (depois de retificada) 6cm de comprimento por 0.5cm de maior largura, a qual segundo o examinando terá resultado do acidente de trabalho sofrido em 2017.

53 - A data da estabilização/consolidação médico-legal das lesões é fixável em 06/09/2021 (isto é, 792 dias após o evento traumático), tendo em conta a data da última consulta de Lesões Vertebro-Medulares do CMRRC-RP, em que se observou a estabilização do quadro neuro-motor e situacional com a retoma da atividade laboral

54 – O período de défice funcional temporário total é fixável num período de 792 dias.

55 – O período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável num período de 792 dias (entre 07/07/2019 e 06/09/2021).

56 – O quantum doloris é fixável no grau 6/7.

57 – O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 78 pontos.

58 – As sequelas de que o A. ficou a padecer são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, impeditivas da sua atividade profissional habitual (serralheiro civil), bem como de qualquer outra que requeira locomoção e/ou esforços físicos.

59 – Dano estético permanente: é fixável no grau 6/7, tendo em conta sequelas cicatriciais, a utilização de ajudas técnicas e de transferência e deslocação.

60 – Repercussão permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer: é fixável no grau 5/7.

61 – Repercussão permanente na atividade sexual: é fixável no grau 5/7, tendo em consideração a incapacidade do A. poder obter qualquer gratificação sexual.

62 – Dependências Permanentes de Ajudas: o A. necessita de:

a) Ajudas medicamentosas: o A. necessita regularmente da seguinte medicação e materiais de higiene:

- Laxantes: Dulcolax, Lactulose e Pursennide;

- Facilitadores e normalizadores da digestão: Pankreoflat;

- Antiácido gástrico: Pantoprazol 20mg;

- Incontinência urinária: Darifenacina;

- Ansiolítico: Escitalopram;

- Anti-espástico muscular: Baclofeno- Sondas vesicais de curta e longa duração.

b) Tratamentos médicos regulares: o A. deverá manter seguimento clínico em consultas de Neurocirurgia e de Medicina Física e Reabilitação. Deverão ser facultados os tratamentos regulares de Fisioterapia (cuja frequência e duração poderão ser estabelecidos pela especialidade de Medicina Física e de Reabilitação), tendo em conta os benefícios que os mesmos acarretam na circulação sanguínea, função cardíaca, função respiratória, função intestinal, função urinária, espasticidade muscular e mobilidade articular, do Examinando, prevenindo o despoletar de infeções, obstipação e tromboses venosas, bem como, o agravamento da espasticidade muscular e da rigidez articular.

c) Ajudas técnicas: o A. necessita de usar cadeira de rodas e elevador de transferência no veículo.

d) Adaptação do domicílio, do local de trabalho ou do veículo: atendendo a informação facultada, foram realizadas adaptações estruturais e de acesso no domicilio do examinando, que permitem uma maior autonomia e independência.

e) Ajuda de terceira pessoa: o A. requer de ajuda permanente de 3ª pessoa (de complemento), para a confeção de alimentos, higiene pessoal e vestir/despir da cintura para baixo.

63 – O A., á data do acidente, era um jovem dinâmico e trabalhador, alegre e bem-disposto.

64 – Mantinha uma vida social ativa, convivendo frequentemente com os amigos.

65 – Praticava, nos seus tempos livres, atividades desportivas, designadamente motociclismo e motocrosse.

66 – Era um entusiasta de motos e motociclismo participando frequentemente em atividades recreativas, nomeadamente com o “...”.

67 – O A. mantinha um relacionamento amoroso que terminou em consequência do acidente de que foi vítima e das sequelas que sofre e sofrerá ao longo de toda a sua vida.

68 – O A. tem a sua expetativa de vida encurtada.

69 – Vive em permanente estado de amargura, desespero e angústia, inconformado com a sua situação e perdeu a vontade de viver.

70 – Sofre de inquietude permanente, desconforto emocional e físico, desinteresse pelo relacionamento social, vivendo em estado de permanente tristeza e melancolia.

71 – O A., à data do acidente, era funcionário da sociedade B...., L.da, onde exercia as funções de servente metalúrgico – fls. 32.

72 – Auferia o salário mensal ilíquido de € 650,00 e líquido de €578,50, acrescido de subsídio de férias e de Natal e de € 6,80 de subsídio de alimentação por cada dia útil de trabalho – fls. 32v. e fls. 246/249v..

73 – O A., em consequência das lesões físicas que sofreu decorrentes do acidente, suportou as despesas médicas, medicamentosas, tratamentos médicos, material necessário à adaptação da sua residência e do seu veículo automóvel ao seu estado de tetraplegia, e cadeira de rodas, discriminadas no artigo 93.º da petição inicial, no valor total de € 16.796,26 – fls. 33/62.

74 – O Instituto da Segurança Social, IP, pagou ao A., a título de subsídio de doença em consequência das lesões resultantes do acidente descrito em 1 dos Factos Provados:

a) €12.188,45, no período de 07/07/2019 a 16/09/2019 e de 18/09/2019 a 10/10/2021 – fls. 99;

b) €4.258,27, no período de 11/10/2021 a 06/07/2022 – fls. 295.

75 – O Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – ... despendeu com a assistência médica que prestou ao ora A. em resultado das lesões que este sofreu no acidente de viação descrito em 1 dos Factos Provados, as seguintes quantias:

a) € 66.857,50, com a assistência prestada entre 14/10/2019 e 21/03/2020 e entre 29/06/2020 e 06/09/2021;

b) € 16.045,30, com a assistência prestada entre 03/02/2023 e 12/06/2023.


*

Foram julgados não provados os seguintes factos:

a) o veículo de matrícula ..-..-TB encontrava-se parado na fila de trânsito quando efetuou a manobra de mudança de direção à esquerda;

b) a circulação automóvel encontrava-se condicionada por ordem dos elementos da GNR na altura e local em que ocorreu o acidente;

c) o veículo de matrícula ..-..-TB iniciou a manobra de mudança de direção à esquerda quando o motociclo já o estava a ultrapassar;

d) o condutor do veículo de matrícula ..-..-TB não acionou o pisca do lado esquerdo;

e) o condutor do veículo de matrícula ..-..-TB verificou que não se vislumbrava nenhum veículo a ultrapassá-lo;

f) e descreveu uma trajetória perpendicular em relação ao eixo divisório da faixa de rodagem da EN nº ...;

g) o ora A. conduzia completamente distraído a mais de 90 km/hora;

h) o A. iniciou a manobra de ultrapassagem quando o veículo ..-..-TB já estava a iniciar a manobra de mudança de direção;

i) o local onde ocorreu o acidente configura-se como uma localidade e a velocidade máxima permitida é de 50 km/hora;

j) os veículos encontravam-se parados em fila de trânsito na hemifaixa direita (sentido ... – ...) quando o A. efetuou a manobra de ultrapassagem aos mesmos;

k) o A. acionou ou não o pisca do lado esquerdo do motociclo.


*

1 – A primeira questão a resolver, de acordo com a pretensão recursória do Autor, é de aferir quem foi o condutor responsável pela produção do acidente.

O Autor entende que a mesma é de imputar apenas ao condutor do veículo seguro na Ré e a sentença recorrida concluiu pela concorrência de culpas tendo fixado a proporção dos contributos do lesado e do veículo seguro na Ré em 70% e 30%, respetivamente.

O Autor alega que não violou qualquer norma legal, não se tendo apurado a que velocidade seguia, nem se podendo afirmar que o acidente se não daria da mesma forma caso ele circulasse a velocidade inferior.

A decisão recorrida fez a seguinte ponderação dos contributos relativos de cada um dos intervenientes para o acidente:

“A alínea c) do nº 1 do art. 41.º do C. Estrada estabelece que é proibida a ultrapassagem imediatamente antes e nos cruzamentos e entroncamentos.

O acidente ocorreu num entroncamento quando o A. ultrapassava os veículos que seguiam em marcha lenta, na hemifaixa direita, atento o sentido ... – ..., e o veículo de matrícula ..-..-TB (que seguia no referido sentido ... – ...) efetuava a manobra de mudança de direção à esquerda para aceder à Rua ....

Sendo assim, o ora A. teve culpa no desenrolar do acidente pois tentou a ultrapassagem do veículo de matrícula ..-..-TB num entroncamento, o que é proibido.

Mas não nos parece que a culpa seja de atribuir exclusivamente ao ora A..

Provou-se com efeito que o local onde ocorreu o acidente apresenta um traçado reto, com boa visibilidade, apresentando a EN ..., atento o sentido ... – ..., uma reta de cerca de 300 metros até ao entroncamento com a Rua .... O motociclo conduzido pelo A. era avistável pelo condutor do veículo de matrícula ..-..-TB, através do seu espelho retrovisor esquerdo, a mais de 100 metros de distância do local onde se deu o embate. E o acidente ocorreu pouco depois de o condutor do veículo de matrícula ..-..-TB ter iniciado a manobra, uma vez que apenas a parte da frente e a porta do condutor deste veículo se encontravam na hemifaixa esquerda, tendo o motociclo embateu na porta dianteira esquerda e na roda dianteira esquerda do veículo ligeiro de passageiros.

Assim sendo, devia ter-se apercebido da ultrapassagem do motociclo e aguardado que a mesma se efetuasse como podia e devia um condutor avisado.

O nº 1 do art. 35.º do C. Estrada estabelece que o condutor só pode efetuar a manobra de mudança de direção em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.

A conduta do ora A., condutor do motociclo, é mais grave. Não podia, repete-se, ultrapassar num entroncamento – art. 41.º, nº 1, alínea c), do C. Estrada. Para além disso, circulava a velocidade desaconselhada para as circunstâncias – art. 24.º, nº 1, do C. Estrada -, como se colige das distâncias a que foram projetados ele e o motociclo.

Por esta razão fixa-se a percentagem da culpa no acidente em 70% para o A. e 30% para o condutor do veículo de matrícula ..-..-TB.”

A questão da concorrência de culpas para a produção do resultado danoso está prevista legalmente no âmbito do dever de indemnizar e da sua forma de cálculo e contende diretamente com o requisito do nexo causal entre o facto lesivo e o dano que a responsabilidade civil extracontratual exige para que haja dever de indemnizar.

O artigo 566º do Código Civil estipula a forma de cálculo da indemnização em dinheiro quando, como é o caso, não é possível a reconstituição natural e o artigo 570º do mesmo Diploma prevê que “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”.

É, pois em face do contributo relativo de cada um dos comportamentos que determinaram o dano e da culpa de cada agente que deve ser aferida a proporção em que a indemnização deve ser concedida.

Não assiste razão ao Recorrente quando afirma que apenas o comportamento do condutor do veículo seguro na Ré contribuiu para o acidente.

Apurou-se que o lesado se encontrava a realizar manobra de ultrapassagem num local em que a via em que seguia entroncava com outra estrada. Tal comportamento é violador do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 41.º do Código da Estrada que estabelece que é proibida a ultrapassagem imediatamente antes e nos cruzamentos e entroncamentos.

Não colhe a argumentação do Recorrente quando alega que não violou tal preceito visto que se provou que tal entroncamento não estava sinalizado.

A proibição de ultrapassagens em entroncamentos e cruzamentos não depende de estes estarem sinalizados. Provou-se, além disso, que o Autor conhecia o local em causa e sabia que ali existia o referido entroncamento e, ainda, que o mesmo acabara de circular em sentido contrário (...) tendo o acidente ocorrido quando o mesmo regressava em sentido contrário. Pelo que tampouco está afastada a sua culpa, já que sabia que se encontrava a ultrapassar junto a entroncamento de cuja existência tinha conhecimento, apesar de o mesmo não estar sinalizado.

Dúvidas não há, também, de que o seu comportamento foi ilícito. A licitude pode revestir duas formas ou modalidades: violação do direito de outrem ou violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios.

Há violação do direito de outrem quando ocorrem ofensas a direitos absolutos, de que constituem exemplo os direitos reais e os direitos de personalidade.

Haverá, por sua vez, violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios desde que a tal lesão corresponda a ofensa de uma norma legal (neste caso há uma norma do Código da Estrada que foi violada), e que esses interesses não sejam protegidos apenas reflexamente pela norma enquanto tutela interesses gerais indiscriminados.

É exigível, assim, que a lesão se efetive no próprio bem jurídico ou interesse privado que a lei tutela [1]. Foi o caso, sendo manifesto que o escopo do artigo 41º, número 1 c) do Código da Estrada é exatamente o de evitar o perigo de embate que decorre da ultrapassagem em local onde é expectável que outro veículo possa atravessar a faixa de rodagem por onde se faz tal ultrapassagem, seja porque provém de via que nela entronca, seja porque para ela se dirige.

Deve, ainda, concluir-se que o comportamento ilícito do lesado foi causador do embate.

Tem sido afirmado por grande parte da doutrina que nosso legislador, nos artigos 483º e 563º do Código Civil consagrou a teoria da causalidade adequada. Duas afirmações podem enformar, contendo-a de forma cabal, esta teoria: a de que apenas são indemnizáveis os danos decorrentes do facto lesivo e a de que a indemnização deve ressarcir os danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

E afirmá-lo, sendo, como se disse, necessário é, também, manifestamente insuficiente no caso dos autos, como em muitos.

É preciso que se reflita sobre as exatas consequências pretendidas por tal opção legal com respeito pelo pensamento e pelo texto legislativo.

Para que se possa alcançar essa reflexão importa relembrar que, doutrinariamente, a causalidade poderia ter tido diferente tratamento.

Poder-se-ia ter optado por uma visão meramente naturalística em que tudo o que sucedesse ao facto fosse considerado como tendo sido por ele causado ainda que do ponto de vista da adequação e da probabilidade não fosse de esperar tal consequência.

Todavia, o legislador exige, mais do que isso, que haja uma decorrência não meramente física ou natural, mas também normativa.

O que significa isto? Para diferentes doutrinadores a enunciação da teoria da causalidade adequada tem diferentes formulações. Há quem acentue o escopo da norma jurídica violada[2], quem ponha maior enfoque na previsibilidade da consequência para o agente (formulação positiva), exigindo que a consequência seja o natural, o normal, o típico resultado daquela ação e quem afaste o nexo apenas quando a consequência tenha decorrido da intervenção de outro fator, extraordinário e imprevisível ou anormal (formulação negativa), bem como há quem defenda a relevância da causa virtual, a saber a que, tendo sido provocada pelo agente, podia ter causado aquele dano que, todavia, ocorreu por interferência prévia de outro acontecimento que precipitou a mesma consequência.

Estando a apreciação do nexo de causalidade a ser feita não num plano naturalístico mas sim normativo e sobretudo porque do que se trata é da responsabilidade civil, ou seja, da responsabilização de alguém pelo ressarcimento de um dano, é manifesto que na sua aplicação ao caso concreto sempre se terá de manter o olhar no comportamento humano do ponto de vista do dever ser.

Ou seja, não pode o intérprete acolher uma solução que permita a responsabilização por algo com que o agente não pudesse, de todo, contar.

Antunes Varela[3] defende que a formulação legal visou reagir contra a mais “acanhada” formulação do artigo 707º do Código de 1867 que restringia a indemnização aos danos necessariamente decorrentes do incumprimento contratual, tentando-se, com a adoção do advérbio “provavelmente” ensaiar maior maleabilidade ao conceito. Aponta, todavia, que a fórmula adotada não é, mesmo assim, inteiramente feliz já que permite uma interpretação pela negativa ou pela positiva assim deixando uma liberdade ao intérprete que pode gerar incertezas.

Opta pela maior bondade da formulação negativa e sublinha, sobretudo, que esta fórmula legal impõe, além da condicionalidade (isto é, que o facto tenha sido, efetivamente, uma condição do resultado danoso) a adequação. Finalmente, este Autor afasta a adoção, sem mais, da teoria do fim tutelado pelo contrato ou pela norma legal infringida embora reconheça a utilidade de chamar à colação, no caso concreto “como um auxiliar precioso das dúvidas suscitadas”[4], a determinação dos interesses tutelados pela norma legal infringida. Já acima o fizemos, aliás, a propósito da análise do requisito da ilicitude da conduta do lesado.

Seguimos de perto o entendimento deste autor que, no caso da responsabilidade por factos ilícitos (como é o caso dos autos), nos impõe o seguinte raciocínio: desde que o autor tenha praticado um  facto ilícito e este tenha sido condição para a ocorrência do dano, justifica-se que seja alterada a verdade naturalística (que é a de que o dano é suportado por quem o sofre – casum sentit dominus).

Assim não será apenas caso o dano tenha, não obstante a prática da ação ilícita, decorrido de acontecimento fortuito, culpa do próprio lesado ou conduta de terceiro ou quando, ainda que estas três possibilidades se não verifiquem fosse, de todo, em todo irrazoável exigir ao agente a previsibilidade da ocorrência de um dano.

Seguindo, então, a formulação defendida por Antunes Varela (op cit página 893) teremos que:

1º – para concluirmos que há causa adequada não é exigível que o facto tenha sido a única causa do dano, sendo apenas essencial que aquele tenha sido condição deste.

2º- tão pouco é necessário que o dano seja previsível para o autor do facto. Apenas se exige que o facto seja, em relação ao dano subsequente, causa objetivamente adequada. “Se a responsabilidade depender da culpa do lesante, é imprescindível a previsibilidade do facto constitutivo da responsabilidade, visto essa previsibilidade constituir parte integrante do conceito da negligência, em qualquer das modalidades que ela pode revestir. Mas já não se exige que sejam previsíveis os danos subsequentes”.

3.º - finalmente, há que ter presente que a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano. É esse processo concreto que há de caber na aptidão geral ou abstrata do facto para produzir o dano.

Ora, no caso em análise verificam-se que o comportamento do Autor foi essencial à ocorrência do acidente e que era objetivamente adequado à ocorrência do resultado danoso – requisito para cuja verificação nos socorremos da teoria do escopo da norma, no caso o artigo 41º, número 1 c) do Código da Estrada que acima já analisamos -, não podendo imputar-se apenas ao condutor do veículo seguro a ocorrência do resultado danoso desde logo porque a sua manobra de mudança de direção foi realizada em local onde não podia legitimamente contar com uma ultrapassagem , isto é, com a presença de um veículo a circular no mesmo sentido em que seguia, mas na hemifaixa de sentido contrário. Acresce que ficou provado que o mesmo seguia a velocidade inferior a 50 km por hora e antes da mudança de direção à esquerda aproximou o seu veículo do eixo da via e acionou o sinal luminoso (pisca) indicativo dessa intenção. O embate veio a ocorrer quando a porta da frente do seu automóvel já se encontrava na hemifaixa destinada ao trânsito de sentido contrário e desconhece-se se quando o mesmo iniciou a manobra já se encontrava a ser ultrapassado (facto que foi julgado não provado sob a alínea c)).

Pelo que se justificou a ponderação da culpa do lesado que foi feita pelo Tribunal Recorrido, não colhendo a pretensão do Recorrente de afastar a aplicação do disposto no artigo 570º do Código Civil.

Também não se vê qualquer motivo para alterar a proporção do contributo da responsabilidade de cada um dos condutores para o resultado danoso no sentido pretendido pelo Recorrente, ou seja, de vir a ser fixada uma proporção de 80% de contributo do condutor do veículo seguro, ou outra diversa da fixada em primeira instância.

A sentença recorrida considerou que o condutor do veículo seguro tinha, também ele, contribuído para o resultado danoso ao relevar que “o local onde ocorreu o acidente apresenta um traçado reto, com boa visibilidade, apresentando a EN ..., atento o sentido ... – ..., uma reta de cerca de 300 metros até ao entroncamento com a Rua .... O motociclo conduzido pelo A. era avistável pelo condutor do veículo de matrícula ..-..-TB, através do seu espelho retrovisor esquerdo, a mais de 100 metros de distância do local onde se deu o embate. E o acidente ocorreu pouco depois de o condutor do veículo de matrícula ..-..-TB ter iniciado a manobra, uma vez que apenas a parte da frente e a porta do condutor deste veículo se encontravam na hemifaixa esquerda, tendo o motociclo embateu na porta dianteira esquerda e na roda dianteira esquerda do veículo ligeiro de passageiros. Assim sendo, devia ter-se apercebido da ultrapassagem do motociclo e aguardado que a mesma se efetuasse como podia e devia um condutor avisado.”

Todavia, como já se afirmou, desconhece-se pois não ficou provado, que quando o referido condutor iniciou a manobra de mudança de direção já se encontrava a ser ultrapassado pelo Autor. Apesar da não prova desse facto, foi considerado na sentença recorrida que o condutor do veículo seguro na Ré não terá antecedido a manobra de mudança de direção dos cuidados necessários, já que quando foi embatido pelo motociclo do Autor apenas tinha invadido a hemifaixa de sentido contrário com a frente do seu automóvel, com vista a mudar de direção.

No recurso está apenas sob apreciação a pretensão do Recorrente de aumentar o contributo relativo do condutor do veículo seguro para a produção do acidente, já que a Ré não estende o seu recurso a tal questão.

Ora, não há qualquer motivo para pretendida alteração já que, como seu viu, a conduta ilícita e culposa do lesado teve um contributo essencial e determinante para a ocorrência do acidente. Como acima evidenciado, o escopo da norma que o mesmo violou é, exatamente, o de evitar embate de veículos provindos ou direcionados a vias que se cruzam com aquela em que seguem os veículos em ultrapassagem. É nos locais em que tal cruzamento de vias ocorre que é proibida a ultrapassagem precisamente por forma a que quem muda de direção ou de via possa anteceder a manobra apenas tendo em conta o trânsito que circula na faixa que vai cruzar não tendo que antecipar que a mesma pode vir a ser ocupada por veículo em “contramão” que se encontre a efetuar ultrapassagem. Essa foi a norma violada pelo Autor/lesado e ao condutor do veículo seguro apenas foi imputado o facto de não ter verificado que faixa que atravessava estava livre ali não circulando qualquer outro veículo. Ora, estando o mesmo em entroncamento e a pretender mudar de direção para outra via à sua esquerda, a sua obrigação principal era a de verificar que não circulavam veículos em sentido contrário ao seu antes de atravessar essa faixa de rodagem para aceder a outra via. Sendo proibida, no local, a ultrapassagem, não tinha porque contar com um veículo a ultrapassá-lo. Não obstante, foi considerado que não cumpriu com o dever previsto no artigo 35º, número 1 do Código da Estrada de anteceder a manobra de mudança de direção do cuidado necessário a que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.

A violação deste dever de cuidado, todavia, teve um contributo para o resultado danoso de grau manifestamente inferior ao comportamento do lesado, sendo o grau de ilicitude da conduta deste superior, (por força da lesão dos interesses diretamente tutelados pelo artigo 41º, número 1 c) do Código da Estrada), bem como a sua culpa foi mais acentuada já que sabia e podia prever, portanto, que estava em local de ultrapassagem proibida, enquanto o condutor do veículo seguro na Ré podia, pelo contrário, contar que naquele local não estaria a ser ultrapassado, já que tal era vedado por lei.

Acresce que não se provou a que distância estava o motociclo do Autor quando o veículo seguro na Ré iniciou a manobra de mudança de via nem, sequer, se quando esta manobra foi iniciada – se quando o respetivo condutor verificou se podia realizá-la com segurança -, o lesado estava já em ultrapassagem e, podia, portanto ser visto.

Sempre se dirá, contudo, que se o Autor circulasse, já em ultrapassagem, a distância bastante para ser visto pelo referido condutor pelo seu espelho retrovisor antes de iniciar a mudança de direção, também o Autor, momentos antes do embate e com a mesma antecedência, podia ter visto a manobra que o automóvel estava a iniciar, à sua frente ao aproximar-se do eixo da via e ao sinalizar a sua intenção de virar à esquerda com luz indiciativa. Apesar disso o Autor não teria logrado parar ou desviar-se do veículo seguro na Ré em que veio a embater apesar de apenas a parte da frente do mesmo estar a ocupar parte da hemifaixa em que o Autor circulava ao ultrapassar. Sendo desconhecida a velocidade concreta a que seguia o Autor e a distância a que se encontrava do veículo em que veio a embater quando este iniciou a manobra de mudança de direção não pode afirmar-se que a referida velocidade tenha sido causal do acidente nem, também e portanto, que o mesmo pudesse ter sido visto a ultrapassar pelo condutor do veículo seguro antes de iniciar a sua manobra e de modo a impedir o acidente.

Foi, pois essencial a conduta do Autor para a ocorrência do acidente não havendo qualquer fundamento para alterar o decidido no sentido pretendido pelo Recorrente.


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2 - Pretende, ainda, o Autor ver aumentado para o montante de 300.000 € a indemnização fixada para ressarcimento dos seus danos de natureza não patrimonial.

A sentença recorrida fixou tal indemnização em 65.000€ (de que o Autor terá o direito a receber 30%) ponderando o seguinte:

“Provou-se que o período de défice funcional temporário total foi fixado em 792 dias, período durante o qual o A. esteve internada no CHBV, no CHVNGE, no CHUC e no CMRRC – .... O quantum doloris é fixável no grau 6/7. O dano estético permanente é fixável no grau 6/7. A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer é fixável no grau 5/7. A repercussão permanente na atividade sexual é fixável no grau 5/7.

Foi intervencionado cirurgicamente. Apresenta um quadro de tetraplegia, incontinência urinária e tem de se deslocar em cadeira de rodas. Apresenta perturbação de adaptação, verificando-se a instalação de alterações psíquicas secundárias ao evento em apreço e suas consequências. Tal impacto está associado, de forma inequívoca, ao acidente descrito no processo – nº 48 dos Factos Provados.

Era, à data do acidente, era um jovem dinâmico e trabalhador, alegre e bem-disposto. Mantinha uma vida social ativa, convivendo frequentemente com os amigos. E praticava, nos seus tempos livres, atividades desportivas, designadamente motociclismo e motocrosse.”.

Em se tratando de indemnização em dinheiro, por não ser possível a reconstituição natural, de acordo com a “teoria da diferença”, a indemnização “terá como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos”.

No caso dos danos não patrimoniais, todavia, tal fórmula não é aplicável pelo que nos resta a prevista no artigo 496º, número 1 do Código Civil que na fixação da indemnização preceitua deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Nos termos do número 3 do mesmo preceito, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º.

O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, às flutuações do valor da moeda, entre outros fatores atendíveis. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta, na sua fixação, todas as regras da prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida [5].

A utilização do termo indemnização relativamente aos danos não patrimoniais justifica ainda que se renha presente de que não se trata da fixação de “um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão. Trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo ofensa moral, não é susceptível de equivalente[6].

Ponderando os fatores legais a atender estamos perante culpa efetiva do lesante, embora de grau que não pode ter-se por elevado, a situação económica do lesado era débil já que à data do acidente auferia a retribuição mensal ilíquida de 650 €.

Estamos perante um dano muito grave que resultou em limitação definitiva da capacidade física do Autor graduada em 78 pontos em idade muito jovem vendo-se o mesmo incapacitado de mover os membros inferiores o que limita a sua locomoção ao uso de cadeira de rodas. Tem um grau de ano estético muito relevante (grau seis numa escala de 1 a 7) e repercussão nas atividades de lazer e desportivas de grau 5. Ficou provado estar incapaz de obter qualquer gratificação sexual. Está totalmente incapacitado de exercer profissão que demande o uso do corpo, sendo que não estava habilitado para outra. Ficou definitivamente dependente da ajuda de terceiros e de recurso a médicos, tratamentos e à toma de medicamentos. Tem necessidade permanente de uso de sonda vesical acoplada a saco coletor.

Tratava-se de jovem com 21 anos à data do acidente. Era muito ativo e dinâmico sendo praticante de motociclismo e participava habitualmente em atividades recreativas. Tinha um relacionamento amoroso que terminou em consequência do acidente e tem uma esperança de vida encurtada em função das sequelas de que é portador. Por tudo isto sente-se inconformado e perdeu a vontade de viver vivendo em permanente estado de tristeza e melancolia.

É com base na consideração destes fatores que deve, recorrendo-se à equidade, fixar o montante da indemnização do lesado.

É o recurso à equidade que permite a ponderação das circunstâncias concretas de cada caso: as lesões sofridas; o grau de incapacidade; a idade da vítima; o reflexo das sequelas no seu estilo de vida; o grau de dificuldade que pode sofrer no exercício das suas profissões e nas suas atividades quotidianas, etc. Deve, contudo, e sempre que se recorra à equidade ter em vista um critério ou baliza que ajude a manter um certo grau de equiparação de indemnizações em idênticas situações, como impõe o artigo 8º, número 3 do Código Civil.

É olhando essencialmente para as decisões dos tribunais superiores que nesta matéria tem decidido – em ordem a procurar senão uniformidade pelo menos coerência nas decisões a proferir – que se deve ir buscar-se orientação.

Encontramos, a este propósito as seguintes decisões que entendemos pertinentes à comparação exigida:

O Tribunal da Relação de Coimbra em acórdão de 22-09-2021manteve em 80.000 € a indemnização por danos não patrimoniais a lesado que “sofreu um DFP de 33 pontos percentuais, com um QD fixável em 5/7, com um DE de 1/7, repercussão na atividade desportiva e de lazer de 3/7 e ainda repercussão permanente na atividade sexual graduável em 4/7”;

O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 5 de Julho de 2007[7], fixou “uma indemnização de 85 mil euros por danos morais ao lesado que, bombeiro de profissão, ficou aos 42 anos de idade definitivamente impossibilitado de exercer essa actividade por causa dum acidente de viação de que não foi culpado e cujas consequências foram, entre outras de gravidade paralela, deixar-lhe o braço esquerdo de todo inutilizado (dependurado, preso por uma cinta) até ao final dos seus dias, impossibilitando-lhe a realização, sozinho, de tarefas como vestir-se e lavar-se, e tornar-lhe o andar notoriamente claudicante por virtude da fractura duma rótula”;

Também o Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão mais recente, de 19 de maio de 2020 [8] atribuiu uma indemnização de 100.000 € numa situação em que as sequelas determinaram para o Autor uma incapacidade parcial permanente geral de 25, 17858 pontos, com incapacidade total para a profissão de mecânico, um dano estético permanente de Grau 3/7, Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no Grau 2, em escala de sete graus de gravidade crescente, Repercussão Permanente na atividade sexual no grau 2/7 e Quantum Doloris de Grau 5/7.

Quanto à grandeza deste montante cumpre afirmar que é nosso entendimento que o valor da compensação que vem sendo fixada pelo dano da perda da vida não constitui necessariamente um limite intransponível na fixação de danos não patrimoniais por lesões que não tenham determinado a morte do lesado. Em inúmeros casos a sobrevida que é permitida a alguns sinistrados acarreta um tal grau de sofrimento que deve considerar-se merecedora de compensação superior à devida pelo dano que poderia advir da morte imediata.

Assim foi decidido, nomeadamente no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-03-2009 [9], que confirmou a indemnização de 150.000 € em situação muito semelhante à dos autos, em que o sinistrado, também com 47 anos, ficou limitado a uma cadeira de rodas e com incapacidade de 85%).

O mesmo valor foi fixado em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-02-2024 a lesada que “(…) contava 22 anos de idade na data do acidente que a vitimou (em 13 de Junho de 2016), sofrido, em consequência daquele, graves lesões físicas que a obrigaram a permanecer na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente cerca de um mês, com alta em finais desse ano, com transferência para outro hospital em 2 de Fevereiro de 2017, apenas regressando a casa em 18 de Abril de 2019, mas continuando, não obstante, a padecer definitivamente de diversas sequelas; registando um défice funcional total de 1223 dias e um quantum doloris de grau 7 numa escala de 1 a 7, com incapacidade parcial permanente para o trabalho de 76%, impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, embora compatíveis com outras profissões na área da sua preparação técnico profissional; um dano de grau 5 numa escala de 1 a 7; repercussão nas actividades desportivas e de lazer de grau 3 numa escala de 1 a 7; repercussão na actividade sexual de grau 4 numa escala de 1 a 7 e dependência de ajudas técnicas (medicação analgésica em SOS, laxantes, medicação psicofarmacológica, tratamentos de Medicina Física e de Reabilitação (fisioterapia, terapia ocupacional e terapia da fala); andarilho, poltrona, cadeira de rodas eléctrica, adaptação da casa de banho, colocação de barras de apoio para sanita, cadeira de duche, cadeira de rodas de encartar; estrado articulado para a cama, ajuda de terceira pessoa, com a necessidade de orientação e supervisão de terceiros para a organização e realização de todas as tarefas, bem como para a alimentação, cuidados de higiene, acompanhamento nas deslocações (pelas alterações de equilíbrio imprevisíveis) e necessidade de assistência de terceira pessoa total e permanente para os cuidados básicos da vida diária”.[10]

Os padecimentos físicos e emocionais do Autor, as suas limitações e dependência em relação a terceiros, o prejuízo grave no relacionamento sexual e na socialização bem como a perda total de capacidade de se locomover sem recurso a cadeira de rodas e de exercer profissão para que tinha habilitações, o seu grave dano estético e o seu estado anímico de grande frustração e inconformismo são danos de grande relevância, sobretudo se tivermos presente a sua idade à data do sinistro: vinte e um anos. Pelo que, tendo presentes os montantes habitualmente fixados pelos Tribunais superiores nomeadamente os acima referidos como tendo sido acolhidos pelo Supremo Tribunal de Justiça em situações similares entende-se ser justo e equitativo fixar a indemnização do aqui Autor em 150.000 €, sendo a Ré responsável pelo pagamento de 30%, ou seja, do valor de 45.000€.


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3 - Volvendo agora a nossa atenção para o recurso da Ré também esta pede a reapreciação de dois dos montantes indemnizatórios arbitrados na sentença sendo o primeiro deles o destinado a ressarcir a perda da capacidade de ganho.

Insurge-se a recorrente contra o valor encontrado pelo Tribunal Recorrido, de 400.000 € e sugere, antes, o valor de 250.000 € que alcança pela consideração da idade do autor à data da alta (24 anos) do seu provado rendimento (578,50 € mensais) da sua incapacidade (de 75 pontos) e ao facto de vir a receber de uma só vez o que poderia auferir em 43 anos de trabalho que provavelmente viria a ter pela frente.

Defende, ainda, que ao valor encontrado seja deduzido o valor que o Autor já recebeu do Instituto de Segurança Social, Instituto Público depois da alta clínica, entre 11-10-2021 e 06-07-2022.

A sentença recorrida teve em consideração não só a remuneração do lesado à data do acidente como a improbabilidade de exercício de qualquer outra que requeira locomoção ou esforço físico tendo fixado o montante de 400.000 € sem, contudo, ter sido efetuada discriminação de qualquer cálculo ou explicado o critério usado para alcançar tal quantia.

Estando em causa a fixação de uma indemnização por dano patrimonial futuro deve a mesma ser encontrada, na medida do possível, com base em critérios de cálculo objetivados, como previsto no artigo 562º do Código Civil sendo o recurso à equidade um “último recurso, para ajustar o montante da indemnização às particularidades do caso concreto”[11].

Ora, ficou provado que o Autor auferia a quantia mensal líquida de 578,50 € acrescidos de subsídio de férias e de natal e de 6,80 € de subsídio de alimentação por cada dia de trabalho efetivo.

A remuneração média líquida anual do Autor era, assim de 9 744, 60 €, assim calculada: (22 x 6, 80) x 11 + (578, 50 € x 14).

Tendo sido separadamente calculado o montante de perda de retribuição do Autor durante os períodos de incapacidade temporária (até 06-09-2021) cumpre apenas ter em conta a perda desse rendimento a partir do momento em que teve alta.

Ora, nessa data o Autor, que nasceu em 4 de agosto de 1997, contava com 24 anos. A idade de reforma está fixada nos 66 anos e quatro meses e passará, em 2025, para os 66 anos e sete meses como previsto na Portaria 414/2023 de 7 de dezembro.

A tendência de aumento da idade de reforma (que tem seguido um critério de “indexação” ao aumento da esperança média de vida) e a circunstância, do conhecimento comum, de que os salários baixos e o aumento do custo de vida são frequentemente causa do prolongamento da atividade laboral para além da reforma, justificam que se considere, um período de atividade laboral previsível de pelo menos 46 anos (desde o sinistro até aos 70 anos de idade do lesado).

É, aliás, essa a idade a que o legislador manda atender no artigo 7º, número 1 b) da Portaria 377/2008 de 26 de maio destinada à elaboração de proposta razoável pelas seguradoras em sede extrajudicial pelo que, pelo menos essa deve ser considerada.

Multiplicando o rendimento anual médio previsto para o lesado em função por quarenta e seis anos de vida laborar previsível o mesmo auferiria 448.251,60 €.

Perante os factos provados não é correto, a nosso ver, fazer incidir sobre tal valor uma percentagem de incapacidade de 78%, como pretende a Recorrente.

Desde logo porque, como se lê no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-11-2017[12], “os índices de incapacidade geral permanente não se confundem com os índices de incapacidade profissional, correspondendo a duas tabelas distintas, aprovadas pelo DL n.º 352/2007, de 23-10: na incapacidade geral avalia-se a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, a qual pode ter reflexos ao nível da incapacidade profissional, mas que com esta não se confunde”.

Acresce que ficou provado que o Autor é portador de sequelas impeditivas da sua atividade profissional habitual (serralheiro civil), bem como de qualquer outra que requeira locomoção e/ou esforços físicos.

O mesmo à data do acidente tinha vinte e um anos e era servente metalúrgico não sendo de prever que, com as sequelas de que é portador possa adquirir agora competências profissionais/académicas que então não teria e que lhe permitam exercer qualquer profissão que não dependa de esforço físico.

Acresce que todo o quadro clínico do Autor, nomeadamente a sua patologia psiquiátrica decorrente do acidente, o facto de se locomover em cadeira de rodas, de usar permanentemente sonda vesical com saco coletor acoplado e de sofrer dores permanentes de grau 6 numa escala de 1 a 7,  fazem prever com grande probabilidade que o mesmo não terá possibilidade de exercer continuamente qualquer atividade remunerada.

Deve, assim, a situação dos autos ser tratada como de efetiva perda total de capacidade para o trabalho.

O usual raciocínio do julgador nestas situações, é este: o lesado ficou com uma incapacidade para o trabalho de α, a sua idade é β, trabalharia γ anos, e o seu salário era de δ. O valor final da indemnização a fixar atinge-se, depois, com ajuda das chamadas “reservas matemáticas” do direito laboral ou dos índices usados pelo legislador na Portaria 377/2008 que fazem crescer a indemnização em proporção inversa à da idade e objetivam a forma de computar a idade ou, no caso de indemnizações cuja remição é feita de imediato,[13] tendo em conta outra forma de considerar no valor a fixar que o capital a receber pelo lesado se deve esgotar no fim da sua vida ativa por forma a que não enriqueça injustificadamente.

No caso, a Recorrente defende a aplicabilidade do fator previsto na portaria 377/2008 de 26-05. 

É pacífico que os critérios de fixação de indemnizações previstos na referida portaria se destinam à elaboração de proposta razoável pelas seguradoras em fase extrajudicial, não estando os tribunais obrigados a seguir tais critérios, antes devendo, como vimos fazendo, fixar os valores a arbitrar de acordo com os critérios legais decorrentes do Código Civil.

Não obstante, não deixa a referida Portaria de poder conter instrumentos úteis a atender. No que tange à tabela constante do seu anexo III a mesma fixa a forma de cálculo das deduções a fazer à soma do rendimento anual perdido, em função do número de anos em que esse rendimento seria auferido.

A utilidade desse fator de cálculo decorre de se tratar de fórmula legal que tem em conta dois valores que o legislador fixou e que importam para a consideração que deve ser feita sobre o efeito do prazo no montante  fixar: por um lado é tido em conta uma percentagem de 2% de taxa anual de crescimento da prestação e, por outro, uma taxa de juro nominal líquida de aplicações financeiras de 5%.

A conjugação desses dois fatores permite por um lado ter em consideração que tendencialmente, ao longo dos anos, a remuneração do lesado iria aumentar e que, por outro, ao receber a indemnização de uma só vez ele poderá rentabilizá-la financeiramente fazendo-a produzir um rendimento por via do recebimento dos juros, enquanto frutos civis dessa quantia monetária.

Cumpre, todavia, salientar que tal Portaria, de 2008, apenas foi atualizada por via Portaria 679/2009 pelo que há quinze anos que não é modificada.

De todo o modo, se se lançar mão, como pretende a Recorrente, do fator previsto na referida tabela para o prazo de 46 anos a que acima chegamos (25,774961) a e da remuneração anual do mesmo acima calculada (9.744,60 €), chegaríamos a um valor indemnizatório de 251.166, 69 €, muito próximo, pois, do que defende a mesma.

Todavia cumpre salientar que a referida Portaria estabelece um desvio à aplicação da tabela prevista no seu Anexo III nos casos em que se verifique “incapacidade permanente absoluta para a prática da profissão habitual, sem possibilidade de reconversão para outras profissões dentro da sua área de formação técnico profissional”. Como previsto no seu artigo 7º número 2, nestes casos a proposta indemnizatória deve corresponder a dois terços do capital. Aproxima-se esta solução legal do que vinha sendo aplicado pela jurisprudência que deduzia um valor habitualmente encontrado entre 1/3 e 1/5 do capital como vista a impedir o enriquecimento do lesado pelo facto de receber de uma só vez o capital que, não fora a lesão, receberia ao longo de vários anos.

Ora, no caso, como vimos, entende-se justificado o tratamento da incapacidade do Autor como sendo para todo e qualquer trabalho já que não lhe são conhecidas habilitações para qualquer profissão que não requeira atividade física e porque não se vê como provável que venha a obter, agora, com as sequelas de que é portador, tal qualificação que lhe permita reconversão profissional.

Esta consideração de previsibilidade da incapacidade de o Autor vir a, no futuro, gerar rendimentos do seu trabalho justifica-se na medida em que entre os danos patrimoniais, a ressarcibilidade dos danos futuros apenas ocorre desde que os mesmos sejam previsíveis, tal como dispõe o artigo 564º, número e do Código Civil. Daí a oportunidade de juízos de prognose como o que se fez.

Como já salientado, tem sido prática jurisprudencial unanimemente aceite a de procurar evitar, na fixação da indenização por danos futuros, um enriquecimento injustificado do lesado à custa do lesante que ocorreria em muitos casos pelo facto de o primeiro ir receber a pronto um capital que traduz um benefício que, de outra forma, só alcançaria ao longo de vários anos.

Salienta J. J. Sousa Dinis[14] referindo-se à dedução que deve incidir sobre a quantia destinada a ressarcir o dano futuro de perda de rendimentos que se irá refletir ao longo da vida do lesado que: “Quanto mais baixa for a idade da vítima, maior será a tendência para nos aproximarmos da quantia encontrada ou mesmo ultrapassá-la; quanto mais alta for essa idade, maior será a tendência para nos desviarmos dela, para baixo”.

Assim, se se aplicasse ao valor de capital devido ao lesado em função do que efetivamente auferia à data do acidente (e tendo em conta a probabilidade de vir a exercer a sua profissão até aos 70 anos) -  448.251 € - uma dedução de um terço como fixado na Portaria 377/2008 cuja aplicabilidade a Ré defende, o mesmo teria direito, de acordo com esse critério matemático a uma indemnização no valor de 298.834 €.

Tendo em conta que não estamos vinculados pela referida Portaria – que, todavia, deve ser tida em conta como estabelecendo, pelo menos, um critério mínimo a atender, já que é com base nela que as seguradoras estão obrigadas a fazer uma proposta de indemnização extrajudicial ao lesado -, entende-se que a situação dos autos – em particular a idade do lesado à data do acidente -justificam que se faça incidir sobre o capital um desconto inferior, de cerca de 1/5 do valor apurado, por conta do possível ganho que o mesmo obterá com o recebimento da indemnização de uma só vez.

Para tal solução contribui a ponderação de que era de prever que um jovem que aos 21 anos já auferira uma retribuição pelo seu trabalho viesse, ao longo dos anos, a auferir quantia gradualmente superior em função da sua progressão/antiguidade e experiência profissional crescente.

Com base na ponderação de todos os fatores acima expostos conclui-se pela fixação de uma indemnização no valor de 360.000€.

O Autor tem direito, por força da proporção acima fixada dos contributos de ambos os condutores para o acidente a 30% desse valor, ou seja, a indemnização de 108.000 €

Tendo presente que depois da alta médica o Autor já recebeu do Instituto de Segurança Social, Instituto Público, o valor de 4.258,27, no período de 11/10/2021 a 06/07/2022 deve tal valor ser deduzido à quantia acima encontrada, como se fez na sentença recorrida.

Pelo que se alcança um valor final de 103.741,73€.


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4 – Finalmente insurge-se a Ré seguradora contra o montante de 574 000 € fixado para ressarcir a sua necessidade futura de auxílio de terceira pessoa. Tal valor, segundo a Recorrente partiu da necessidade de tal auxílio por 8 horas diárias o que a mesma entende injustificado. Discorda ainda a Recorrente da ponderação de uma esperança de vida de 50 anos já que as sequelas que o Autor apresenta determinam uma diminuição da mesma.

Quanto à fixação do montante encontrado na sentença recorrida para ressarcimento desse dano consta da mesma a seguinte fundamentação:

“Provou-se que o A. requer de ajuda permanente de 3ª pessoa (de complemento), para a confeção de alimentos, higiene pessoal e vestir/despir da cintura para baixo – nº 62-e) dos Factos Provados. E, face à tetraplegia do A., também para toda a limpeza da casa e restantes tarefas domésticas. Isto é, o A. precisa de uma empregada doméstica 8 horas por dia.

A retribuição mínima mensal garantida vai passar para €820,00 em 2024.

O A. tem 26 anos de idade. Precisa de uma empregada doméstica durante cerca de 50 anos (cfr. nº 68 dos Factos Provados). O que importa em € (50anosx14mesesx820,00=) 574.000,00.

Face à percentagem de culpa que lhe foi atribuída no acidente, só tem direito a receber €(574.000,00x30%=) 172.200,00.

É certo que o A. vai receber este dinheiro todo de uma vez, mas é igualmente certo que a retribuição mínima mensal garantida vai aumentar todos os anos, pelo que entendemos ser de atribuir a totalidade do referido valor.”.

Mais uma vez está em apreço a fixação de indemnização por dano patrimonial futuro que convoca, assim, juízos de prognose da sua previsibilidade nos termos do disposto no artigo 564º, número 2 do Código Civil.

Não vemos razão para divergir da motivação da sentença quanto ao número de horas diárias de trabalho de terceira pessoa de que o Autor previsivelmente necessitará.

Nos seus cuidados pessoais o mesmo está dependente dessa ajuda para a sua higiene pessoal (que face às suas limitações comportará, seguramente, no mínimo uma hora por dia), para se vestir e despir da cintura para baixo (de manhã e à noite e, ainda, sempre que necessite de ir à casa de banho já que apenas tem sonda vesical com saco coletor de urina) para confeção de refeições (três vezes por dia) sendo seguro afirmar que também para atividades diárias como fazer compras e tratar/limpar casa e roupas necessitará de apoio de terceiros.

Nunca tais tarefas poderiam importar menos de seis horas de trabalho diário sendo razoável supor que o Autor, desde logo dada a necessidade de ser acompanhado para ir à casa de banho terá que estar acompanhado o maior número de horas possível por dia desde logo para evitar usar fralda ou permanecer por muito tempo sem a muda da mesma. Pelo que é razoável a consideração da sua necessidade de apoio por oito horas diárias.

Tendo em conta que as necessidades do Autor são diárias e, portanto, não se interrompem aos fins de semana nem em férias é de considerar que o mesmo terá de contratar alguém que cumpra todas as assinaladas funções por todos os dias do ano. O que, tendo em conta o direito legal ao gozo de férias[15] e de descanso semanal[16] importará previsivelmente a contratação de pelo menos duas pessoas distintas. Assim, ainda que se ponderasse reduzir o número de horas diárias em que o Autor necessita de auxílio de terceiro - para menos do que as oito horas tidas em consideração na sentença recorrida, nomeadamente para as seis horas mínimas diárias acima referidas -, sempre no total o auxílio semanal ao Autor seria de 42 horas semanais.

Acresce que a sentença recorrida apenas considerou o dispêndio que o Autor suportará com a retribuição dessa terceira pessoa, partindo do valor da retribuição mínima mensal garantida em 2024, de 820,00 €.

Ora, quem contrata trabalhador por sua conta tem, ainda, por decorrência legal, duas outras obrigações pecuniárias obrigatórias: a decorrente da celebração de seguro de acidentes de trabalho[17] e a do pagamento das prestações para a segurança social a cargo do empregador[18].

Donde, quando muito, peca por defeito o montante apurado para os gastos que o Autor previsivelmente terá com a contratação de ajuda de terceira pessoa.

Quanto à previsível duração dessa ajuda em função da expetativa de vida do Autor ficou, de facto, provado que por força das sequelas de que é portador o mesmo viu a sua esperança de vida diminuída sem que, contudo, se tenha apurado em quantos anos.

A Recorrente não esboça qualquer argumento para que se considere apenas uma expetativa de sobrevida de 30 anos.

É habitual, no cálculo de danos futuros o recurso a tabelas estatísticas que indicam a esperança média de vida para os nascidos em determinado ano como forma de objetivar na medida do possível os danos que perdurarão por toda a vida do lesado. Recorrendo à tabela Estatística publicada na portata.pt, concluímos que a esperança de vida à nascença era para o Autor, de 71, 9 anos. Assim, à data do acidente, a esperança de vida do Autor era estatisticamente de mais cerca de cinquenta e um anos. A sentença recorrida ponderou a necessidade de ajuda de terceira pessoa desde a sua prolação, isto é, desde a idade dos 26 anos do Autor. Todavia, remetendo para o facto provado sob a alínea 68, que refere a diminuição da sua esperança de vida, considerou apenas a necessidade de pagamento a terceira pessoa por cinquenta anos.

Na falta de qualquer dado objetivo que permita afirmar que o Autor tem uma esperança de vida diminuída para mais 30 anos apenas função das suas sequelas, como sugere a Ré, ter-se-á em consideração apenas a expetativa média de vida conhecida estatisticamente, que era para os homens nascidos no ano do Autor, em 1997, de 71, 9 anos.

O Autor deduziu o pedido de pagamento de ajuda de terceira pessoa na petição inicial como se tratando de dano futuro não tendo quantificado qualquer valor já despendido até esse momento com esse encargo. Como tal é desde essa data que deve ser tido em conta o referido dano. A petição inicial deu entrada em juízo em 16-02-2021, quando o Autor tinha 23 anos e, portanto, e nessa data o Autor tinha ainda a expetativa de vida de mais 49 anos.

Considerando que terá de despender pelo menos 820 € mensais em retribuição mínima garantida (atual, mas que aumentará ao longo dos anos) que deve ser paga 14 meses por ano a que acresce a taxa contributiva para a segurança social que atualmente é, no caso de entidade empregadora de 22, 30%[19], o Autor terá um encargo mensal mínimo de 1002,86 € a pagar 14 vezes por ano[20]. O que multiplicado por 49 anos totaliza 687.921,92€. A este valor haveria ainda que fazer acrescer o montante que o Autor despenderá anualmente com o pagamento do prémio do seguro obrigatório de acidentes de trabalho a que já acima nos referimos. Acresce que o montante de retribuição mensal a pagar ao terceiro de cuja ajuda necessitará sempre aumentará ao longo dos anos bem como, tendencialmente, os correspetivos contributos para a segurança social e o prémio de seguro.

Assim, não se vê qualquer razão para diminuir o montante arbitrado na sentença que foi de 574.000 €, tendo o Autor direito a receber 30% dessa quantia, ou seja 172.200€.


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V – Decisão:

Nestes termos, julgam-se parcialmente procedentes ambas as apelações e, em consequência, altera-se a sentença recorrida nos seguintes termos:

Condena-se a Ré a pagar ao Autor:
a) A quantia de 283.664,40 € título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento;
b) quantia de 45.000 € a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da prolação da presente sentença e até integral pagamento.

Mantendo-se tudo o demais decidido.

Custas do recurso e da ação por Recorrentes pelos Recorridos na proporção dos seus decaimentos, nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil.

Porto, 17-06-2024.

Ana Olívia Loureiro

José Eusébio Almeida

Anabela Mendes Morais

__________________________
1] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7º ed., p. 488 e 489.
[2] Menezes Cordeiro, Da Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais, 1996, p. 534 e ss.e Menezes Leitão, Direito das obrigações, 2010, p. 348.
[3] Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, Vol. I, página 898)
[4] Op cit,, página 871 e seguintes.
[5] P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, p. 501).
[6]  Vaz Serra, cit. apud Ac. da Relação do Porto de 29/09/2008, disponível no sítio http://www.dgsi.pt).
[7] Processo número 07A1734, disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/fbe1f7fb3a2387d0802573140034a155?OpenDocument
[8] Proc. 376/15.5T8VFR.P1.S1, ECLI:PT:STJ:2020:376.15.5T8VFR.P1.S1
[9] Processo9/2009 CJ número 214, Tomo I ou disponível em: https://www.colectaneadejurisprudencia.com
[10] Processo 13390/18.0T8PRT.P1.S1 disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/406a57dd518b02a980258ad90037eb1f?OpenDocument&Highlight=0,biol%C3%B3gico,jovem,n%C3%A3o,patrimoniais
[11] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.01.2024, processo n.º 25713/ 15.9T8SNT.L1.S1, em cujo sumário se pode ler: “I. A ressarcibilidade do dano patrimonial futuro não depende da comprovada perda de rendimentos do lesado, podendo e devendo o julgador ponderar, designadamente, os constrangimentos a que o lesado fica sujeito no exercício da sua atividade profissional corrente e na consideração de oportunidades profissionais futuras. II. Em relação aos danos patrimoniais, designadamente aos danos patrimoniais futuros, o princípio é o de que a indemnização deve calcular-se de acordo com as regras dos artigos 562.º e seguintes do CC, funcionando a equidade como último recurso, para ajustar o montante da indemnização às particularidades do caso concreto”.
[12] Disponível em: https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/2035-2017-116181505
[13] Isto é, não pagas em forma de pensão como se prevê, a pedido, no artigo 577º, nº 1 do Código Civil e, como regra, no direito laboral onde a remição das pensões está pensada apenas nas situações de IPP não ultrapasse um determinado valor.
[14] Dano Corporal em Acidentes de Viação, Coletânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Tomo X, 1, página 9.
[15] Artigo 238º do Código do Trabalho.
[16] Artigo 232º do Código do Trabalho.
[17] Artigo 283 número 5 do Código do Trabalho.
[18] Artigo 59º da Lei 4/2007 de 16 de janeiro
[19] Artigo 121 da Lei 110/2009 de 16/09, na sua redação atual.
[20] Artigo 36º, número 1 g) da mesma Lei.