Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
146/27.7IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CASTRO
Descritores: CRIME FISCAL
PERDA DAS VANTAGENS
NATUREZA
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
DIREITO DE REGRESSO
Nº do Documento: RP20250521146/27.7IDPRT.P1
Data do Acordão: 05/21/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A perda das vantagens económico-patrimoniais derivadas do crime deve abarcar todos os coautores, independentemente de terem ou não usufruído dos benefícios económicos ilicitamente obtidos e, por identidade de razão, deve abarcar o autor do crime que atuou em nome da sociedade arguida, enquanto seu representante, também ela condenada, ainda que tenha sido apenas a sociedade a beneficiária da vantagem económica resultante do facto ilícito típico (neste caso, crime fiscal, tanto mais que o arguido pessoa singular, se tivesse sido condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, esta ficaria condicionada ao dever de pagamento dos tributos em falta nos termos do art.º 14.º do RGIT);
II - Nas relações internas entre os corresponsáveis visados pela declaração da perda da vantagem com a condenação do respetivo valor, nos termos do n.º 4 do art.º 110.º do Código Penal, vigorarão as regras próprias da solidariedade da obrigação quanto ao direito de regresso;
III - Tal assim é em face da natureza do instituto e da sua razão de ser, o qual não visa só neutralizar a vantagem económica ilícita, colocando o gente na situação patrimonial/económica em que estaria se não tivesse perpetrado o crime, como tem ainda uma função de prevenção especial (perante o próprio agente) e geral (perante a comunidade) contra a prática de factos ilícitos típicos, por forma a criar a perceção de que o “crime não compensa” (sendo exemplo mais evidente dessa vocação preventiva a declaração de perda da promessa prometida mas não prestada, em que o agente não retirou qualquer vantagem patrimonial ou económica da prática do facto ilícito típico);
IV - Aliás, a neutralização da vantagem económica (não necessariamente patrimonial) é instrumental das finalidades de prevenção especial e geral de dissuasão contra a prática do crime, ou melhor, de factos ilícitos típicos, para usar a terminologia legal;
V - A não ser assim, defraudar-se-ia a função preventiva do instituto, sobretudo se a sociedade arguida já não tiver qualquer atividade ou ativo, ou se é desconhecida a forma como os coautores repartiram entre si as vantagens do crime (redundando numa decisão de non liquet nesta matéria, suscetível de criar a impressão perante os visados e perante a comunidade de que, afinal, “o crime compensa”).

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 146/23.7IDPRT.P1

Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

No âmbito do proc. comum singular n.º 146/23.7IDPRT, que corre termos no Juízo Local Criminal da Maia – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em que são arguidos AA e A..., Ld.ª, com sinais identificadores nos autos, efetuado o julgamento, a 29.11.2024 foi proferida a respetiva sentença (cfr. a ref.ª Citius 466279827), depositada no mesmo dia, cujo dispositivo é o seguinte (transcrição):

«V. Dispositivo

Pelo exposto, decide-se:

1. Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 105, n.ºs 1, 2, 4 e 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na execução por 2 (dois) anos, sujeito à condição de o arguido pagar, à ordem destes autos (através de DUC) – que serão depois entregues à Autoridade Tributária, por conta da quantia em dívida - a quantia de €100,00 (cem euros) mensais, a contar da data do trânsito em julgado da sentença até ao termo do prazo da suspensão, no valor total de €2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros).

2. Condenar a sociedade arguida «A..., Lda.» pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 105, n.ºs 1, 2, 4 e 7 e 7, n.º 1, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo a quantia global de € 1.750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros).

3. Julgar o pedido de perdimento de vantagem a favor do Estado formulado pelo Ministério Público parcialmente procedente, por provado, condenando consequentemente a sociedade arguida A..., Ld.ª a entregar ao Estado a vantagem ilícita que obteve com o crime cometido, no montante de €17.871,82 (dezassete mil, oitocentos e setenta e um euros, e oitenta e dois cêntimos), absolvendo o arguido AA desse pedido.

4. Condenar o arguido AA e a sociedade arguida no pagamento das custas criminais do processo, com taxa de justiça que se fixa, para cada um, em duas unidades de conta, reduzida a metade.»


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Inconformado com o decidido no ponto 3.º do dispositivo da sentença proferida (na parte absolutória), dela recorreu o Ministério Público (cfr. a ref.ª Citius 41266655), apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da motivação (transcrição):

«CONCLUSÕES DO RECURSO

AA.) Exórdio

1. O objecto do presente recurso é a sentença proferida nestes autos a 29 de Novembro de 2024 que condenou os arguidos AA e a sociedade arguida “A... LDA.” pela prática de um crime de Abuso de Confiança Fiscal, considerando ter ocorrido apropriação pelos mencionados arguidos de valores pertencentes à Administração Fiscal a título de I.V.A. não pago no valor global de € 17.871,82.

2. O Ministério Público promoveu a declaração de perda a favor do Estado, a título solidário pelos dois arguidos, da vantagem patrimonial correspondente ao antedito valor alvo de apropriação por parte de ambos, tendo o Tribunal recorrido neste segmento condenado somente a sociedade arguida.

3. Com o presente recurso não colocamos em causa a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, nem a condenação

pela prática do crime em questão sofrida pelos dois arguidos supra identificados. O que colocamos em causa é, apenas e só, a decisão enxertada na sentença que indefere o pedido da perda de vantagens na parte referente ao arguido pessoa singular AA, absolvendo-o neste conspecto, pelo que se pretende saber se há aqui lugar, na parte

referente ao arguido pessoa singular AA, à declaração de perda de vantagem a favor do Estado.

BB.) – Das razões da nossa discordância face ao decidido

4. O indeferimento decidido pelo Tribunal A Quo apoiou-se na circunstância de não ter sido dado como provado no caso em apreço o aproveitamento pessoal do arguido AA da quantia alvo de apropriação concluindo, assim, não se encontrem verificados integralmente, contra este arguido, os pressupostos necessários para o decretamento da perda da vantagem

5. Nas vantagens patrimoniais correspondentes à dívidas tributárias não pagas, que é precisamente o tema dos nossos autos, é a sociedade, na qualidade de contribuinte fiscal titular do lucro tributado, a devedora do imposto indevidamente não pago ao Estado, sendo a responsabilidade dos gerentes, administradores e gestores de facto meramente subsidiária.

6. Para accionar a responsabilidade destes há que aplicar o mecanismo jurídico da reversão nos termos dos arts. 22º a 24º da Lei Geral Tributária, o que nem sempre ocorre com sucesso.

7. Estas limitações não são, no entanto, integráveis no âmbito da aplicação do disposto no art. 110º do Código Penal, pois, sendo aquelas pessoas agentes do crime, também devem ser visadas pela declaração de perda de vantagens, tal como os seus patrimónios, o que denota o maior alcance e efeito deste instituto.

8. Daqui resulta uma efectiva relevância prática deste instituto e sobressai, outrossim, o carácter criminalmente preventivo da declaração judicial de perda clássica.

9. Como é consabido, as sociedades que na qualidade de sujeito passivo de imposto não pago são levadas a julgamento criminal frequentemente acusadas de crimes como abuso de confiança fiscal ou contra a segurança social ou mesmo fraude fiscal, chegam a esta fase processual já num estado “moribundo”, ou seja sem qualquer património.

10. Logo, uma interpretação como aquela que é feita pelo Tribunal A Quo do instituto da perda (clássica) de vantagens significa passar uma carta branca para o cometimento deste tipo de crimes na medida em que isenta da perda de vantagens o património dos verdadeiros responsáveis pelo crime na qualidade de decisores humanos, relegando para

pessoas meramente jurídicas sem poder decisório autónomo e já desprovidas de valor a consequência exclusiva da perda de vantagens, como é o caso das anteditas pessoas colectivas moribundas.

11. Desta forma, inverte-se a matriz e o espírito legal do instituto da perda de vantagens pois concede-se ao verdadeiro decisor do crime o privilégio de saber de antemão que o seu património pessoal não será atacado criminalmente em função das suas decisões criminosas, o que projecta na comunidade um estado de coisas muito mais compatível com a ideia de que o crime compensa do que o oposto …

12. O caso dos autos é um caso de perda de valor pois o dinheiro não entregue ao Estado a título de imposto indevidamente

não pago pela sociedade arguida já foi há muito gasto pela mesma sob a liderança do arguido AA. Nestes casos - quando o crime é praticado por um arguido pessoa singular em representação de um outro arguido pessoa colectiva - a perda de vantagens deve abranger todos os arguidos solidariamente. Esta solução não decorre de qualquer “presunção”, mas sim da tarefa de convocar a regra estruturante do ordenamento jurídico nacional de pagamento solidário nos casos de responsabilidade por factos ilícitos.

13. O facto do valor não pago ao Estado referente ao montante de imposto em falta ter revertido para a sociedade identificada nos autos não significa que o arguido pessoa singular, neste caso AA, dele não tenha beneficiado na medida em que era não só gerente da mesma mas também sócio juntamente com a sua esposa, na proporção de metade das quotas da empresa para cada um deles – Cfr. Certidão Permanente do registo de matrícula constante do expediente citius com data de 23 de Fevereiro de 2024 .

14. O sócio de uma empresa é o seu dono, exclusiva ou juntamente com outros, pelo que é ele quem lucra com a obtenção de lucro por parte da sociedade, designadamente na vertente da distribuição de dividendos e na vertente do salário recebido pelo exercício do cargo de gerência. Por conseguinte, o que era benéfico para a sociedade era-o, inerentemente, também para ele próprio, arguido AA, como seu dono e gerente.

15. Ao mesmo tempo, também notamos que foi sob a liderança do arguido pessoa singular e do que por ele foi decidido que tal sociedade [ou seja a A...] adoptou a conduta criminosa da qual adveio a vantagem patrimonial em crise e que, volvidos vários anos sobre os factos, está ainda por devolver ao Estado a quantia em causa.

16. Nesta conformidade, e do ponto de vista da vertente criminalmente preventiva associada ao instituto da perda de vantagens clássica, não faz, s.m.o., qualquer sentido isentar o arguido, AA da perda de vantagens quando este teve um papel exclusivo e decisivo na sua obtenção. A interpretação e aplicação desta norma no sentido em que apenas afectasse a sociedade arguida identificada nos autos quando esta LHE PERTENCE A ELE (AA) - E ALÉM DISSO NADA SERIA, NEM NADA PODERIA TER TIDO, sem a sua intervenção - é atentatória da teleologia do preceito criminal sob análise.

17. Não obstante, sempre se dirá que o texto do art. 110º, nº 1, alínea b), do Código Penal, quando refere que são declaradas perdidas a favor do Estado as vantagens resultantes de facto ilícito típico para o agente ou para outrem, estabelece necessariamente o agente do crime como alvo da declaração de perda, quer este actue em nome individual ou em nome

duma sociedade ou de um terceiro, o que acontece, quanto a nós, e salvo melhor opinião, no caso vertente.

18. O arguido poderia ter canalizado o dinheiro para qualquer outro fim que desejasse pois ao apoderar-se do mesmo teve-o na sua disponibilidade plena. Ou seja o arguido AA apropriou-se de dinheiro do Estado português e deu-lhe o destino que bem quis - neste caso a injecção do dinheiro na actividade da própria sociedade arguida devedora do imposto – pelo que é irrelevante que o tivesse gasto em benefício próprio ou pessoal como defende a sentença recorrida, devendo por isso, como beneficiário mediato da vantagem económica do crime, ver o seu património ser chamado a repor a vantagem patrimonial resultante daquele ilícito.

19. Uma interpretação distinta deste normativo, ou seja em que se afastasse do alcance da perda de vantagens um agente dum crime por não se ter demonstrado ter sido ele o beneficiário directo da vantagem do crime mas sim a sociedade em representação da qual agiu, e da qual era dono, conduzir-nos-ia sempre a uma inversão do escopo do instituto da perda de vantagens.

CC.) Das normas jurídicas violadas pelo Tribunal recorrido e da sua correcta interpretação e aplicação

20. O Tribunal A Quo errou ao decidir pela não decretação da perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelo arguido AA em resultado necessário da prática do crime por ele cometido, e pelo qual foi condenado, tendo por isso violado, por errada interpretação, o disposto nos arts. 110º, nrs. 1, alínea b), e 4, do Código Penal e 105°, nrs. 1, 4 e 5, todos do R.G.I.T..

21. A correcta interpretação e aplicação de tais normativos no caso vertente impunha a conclusão de que o valor de imposto total (€ 17.871,82) alvo de apropriação pelo arguido AA conjuntamente com a sociedade arguida A... constituiu uma vantagem patrimonial para ambos, pois foi ele (AA) quem decidiu o destino a dar o dinheiro e era, ademais, o proprietário da sociedade arguida (juntamente com a sua esposa) à data dos factos em crise.

22. Consequentemente impunha-se que, conforme o Ministério Público peticionou, fosse determinada a perda da vantagem patrimonial do crime, nos termos do disposto no art. 110º, nrs. 1, alínea b), e 4, do Código Penal, no valor de € 17.871,82 (dezassete mil oitocentos e setenta e um euros e oitenta e dois cêntimos), também relativamente ao arguido AA com a condenação deste e da sociedade arguida no pagamento solidário de tal quantia a favor do Estado português.

EE.) - Do Conhecimento em substituição por parte do Venerando Tribunal da Relação

23. Em face de todo o exposto nos segmentos A) a C) da motivação de recurso antecedente e dos pontos AA) a CC) destas conclusões, perante os erros de apreciação vertidos na sentença e ao abrigo dos princípios da celeridade e economia processual e da proibição da prática de actos processuais inúteis, dado que dos autos constam todos os elementos necessários ao proferimento de uma ajustada decisão final sobre o objecto do processo, requeremos que o Venerando Tribunal da Relação do Porto profira Acórdão em sede do qual acolha a argumentação por nós apresentada, revogue parcialmente a sentença proferida e determine o seguinte: - a declaração da perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelo arguido pessoa singular AA no caso vertente em resultado directo da prática do crime de abuso de confiança fiscal pelo qual foi condenado, nos termos do disposto no art. 110º, nº 1, alínea b), e 4, do Código Penal, perda esta que se computa no valor de € 17.871,82 (dezassete mil oitocentos e setenta e um euros e oitenta e dois cêntimos), com a consequente condenação do mesmos no pagamento solidário desta quantia ao Estado português juntamente com a sociedade arguida que já fora condenada a este respeito na sentença recorrida.

Assim, se fará inteira JUSTIÇA - R.E.D.».


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O recurso interposto pelo Ministério Público foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cfr. despacho com a ref.ª Citius 4676460454).

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Não obstante para tanto notificados, os arguidos não apresentaram resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público.

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Neste Tribunal da Relação do Porto, por sua vez, o Exm.º Sr. Procurador-Geral-Adjunto, aderindo aos fundamentos do recurso apresentado pelo MP junto do tribunal de 1.ª instância, emitiu parecer no sentido do seu provimento (cfr. a ref.ª Citius 19257024).

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Não foi apresentada resposta ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 417.º do CPP.

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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso interposto.

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FUNDAMENTAÇÃO

I - Questão a decidir em face do objeto do recurso

Antes de mais, cabe referir que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso.

Nesta conformidade, inexistindo qualquer questão de conhecimento oficioso que cumpra conhecer, a única questão que o objeto recursório convoca é a de se saber se a declaração de perda da vantagem emergente da prática do crime de abuso de confiança fiscal se deve estender ao arguido pessoa singular – gerente de facto da arguida pessoa coletiva -, não obstante não se ter provado que dela tirou proveito.


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II – Apreciação da questão acima enunciada

a) Na sentença recorrida foram dados como provados e não provados os seguintes factos (transcrição parcial[1]):

«Factos provados

1) Por apresentação de 23-11-2018, foi inscrita na Conservatória do Registo Comercial a sociedade arguida «A..., Lda.», sob a forma de sociedade unipessoal por quotas, com o número de pessoa coletiva ..., encontrando-se coletada desde 05-12-2018, para o exercício da atividade de principal de «comércio de veículo automóveis ligeiros», a que corresponde o CAE 45110, tendo ainda como CAE secundário o 45200.

2) A sociedade arguida, à data dos factos infra descritos, era gerida e representada, de facto e de direito, pelo arguido AA, cabendo-lhe todas as decisões respeitantes à gestão diária da sociedade, em cujos poderes se incluíam todas as transações, recebimentos e pagamentos, designadamente, à Administração Tributária.

3) Nos termos do artigo 2.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante, CIVA) a sociedade arguida é sujeito passivo de imposto sobre o valor acrescentado, enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral, razão pela qual sobre toda a sua atividade subsumível à previsão do artigo 1.º do CIVA, incide o referido imposto.

4) O arguido AA, enquanto gerente da sociedade, estava obrigado a liquidar o imposto de IVA que incidia sobre a sua atividade.

5) Uma vez apurado o montante de imposto, a sociedade arguida «A..., Lda.», por intermédio do arguido AA, seu gerente, à luz do artigo 27.º, n.º 1, alínea b) do CIVA, tinha de o entregar aos cofres do Estado.

6) A sociedade arguida, no exercício da sua atividade normal, emitiu diversas faturas, faturas-recibo e notas de crédito, referentes ao 1.º e 2º trimestre de 2022, e relativas a bens e serviços por si prestados, nas quais liquidou e reteve o imposto sobre o valor acrescentado.

7) A liquidação efetuada de imposto sobre o valor acrescentado deu lugar ao seu apuramento enquanto imposto exigível e a entregar ao Estado, relativo ao 1º trimestre de 2022 da quantia de € 9.243,75 (nove mil duzentos e quarenta e três cêntimos e setenta e cinco cêntimos) e relativo ao 2º trimestre de 2022, de € 8.628,07 (oito mil seiscentos e vinte e oito euros e sete cêntimos).

8) No entanto, o arguido AA, atuando em nome e no interesse da sociedade «A..., Lda.», não entregou ao Estado tal prestação tributária, liquidada, efetivamente cobrada aos seus clientes e exigível pelo Estado até à data limite da sua entrega, nem nos 90 dias subsequentes.

9) O arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, foi pessoalmente notificado para proceder ao pagamento no prazo de 30 dias, da prestação tributária em dívida relativa ao 1.º e 2º trimestre do ano de 2022, nos termos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, não tendo, contudo, efetuado tais pagamentos.

10) Antes, se tendo apropriado de tais montantes, utilizando-os em benefício da sociedade arguida como se de coisa sua se tratasse, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia, beneficiando da circunstância da administração fiscal não atuar atempadamente e eficazmente sobre situações semelhantes.

11) Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se apurou, quanto ao pedido de perda, que:

12) A referida quantia não foi, ainda, recuperada pelo Estado Português.

[…]

Factos não provados

Com relevância para a decisão da causa, não se apuraram quaisquer outros factos, tendo resultado os seguintes factos não provados:

a) O arguido utilizou as quantias referidas em 7) em seu próprio benefício.»


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b) Da perda da vantagem:

Cabe então decidir se a declaração da perda da vantagem (ou melhor, a condenação do pagamento do respetivo valor a que se reporta o n.º 4 do art.º 110.º do Código Penal) emergente do crime de abuso de confiança fiscal em causa nos autos se deve circunscrever à arguida sociedade (A..., Ld.ª) ou se se deve estender ao arguido pessoa singular (AA), tendo em atenção que a atuação daquela deu-se por via da atuação deste último.

Sobre esta temática existem profundas divergências doutrinais e jurisprudenciais, sendo certo que na sentença recorrida optou-se por uma das possíveis vias.

Ora, antes de prosseguirmos, vejamos o que dispõe o Código Penal a este respeito.

Assim, estatui o art.º 110.º do Código Penal, sob a epígrafe «Perda de produtos e vantagens», na redação dada pela Lei n.º 30/2017, de 30.05, o seguinte:

«1 - São declarados perdidos a favor do Estado:

a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e

b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.

2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.

3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.

4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.

5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.

6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.»

Em causa nos autos está a perda da vantagem de facto ilícito típico – crime de abuso de confiança fiscal – no montante global de €17.871,82, que corresponde ao montante global da apropriação pela sociedade A..., Ld.ª, relativa ao IVA cobrado aos seus clientes e não entregue ao Estado relativo aos 1.º e 2.º trimestres de 2022.

Por conseguinte, neste caso, não há qualquer dificuldade em apurar o montante da vantagem proveniente do crime em causa nos autos e que nos remete diretamente para a hipótese contemplada na al. b) do n.º 1 e no n.º 4 do art.º 110.º acima citado. De resto, esta particular questão nem sequer é convocada no presente recurso, pelo que sobre ela não há a necessidade de maiores desenvolvimentos.

Não há assim dúvida que a arguida A..., Ld.ª se apropriou de tal quantia – que não entregou, como devia, aos cofres do Estado -, não estando demonstrado todavia que o arguido AA se tenha pessoalmente locupletado com tal quantia, no todo ou em parte.

Assim, postas as coisas nestes termos, para responder à questão enunciada em I, haverá que determinar com precisão a natureza do instituto em apreciação, para o que iremos auscultar alguns contributos doutrinários e jurisprudenciais nesta matéria, mas sem a preocupação de sermos exaustivos.

Vejamos.

Leal-Henriques e Simas Santos, nos alvores da reforma introduzida ao Código Penal de 1982 pelo DL n.º 48/95, de 15.03, opinavam que as normas atinentes à perda de bens perseguem objetivos bem diversos, pelo que o instituto não possui uma natureza jurídica unitária, pois tem dois tipos de características, a saber: (i) características de índole “quase-penal” (visto que a perda de objetos serve ao mesmo tempo fins de prevenção e pode constituir para o agente do crime uma sanção que o pode afetar de forma mais penalizadora que a própria pena; e (ii) características próprias das medidas de segurança, pois visam proteger a comunidade do perigo que os objetos representam para a segurança pública ou para a prática de atos antijurídicos (Código Penal Anotado, 1.º volume, 2.ª ed., pág. 745, Rei dos Livros).

As inovações então introduzidas ao Capítulo VIII foram objeto de ponderação pela respetiva Comissão Revisora, conforme emerge da ata n.º ..., em que o Professor Figueiredo Dias manifestou o entendimento de que a reforma «deve orientar-se no sentido de a perda se apresentar como uma espécie de medida de segurança, não se aplicando somente a crimes, mas sim a qualquer facto ilícito punível, operando somente naqueles casos em que existe o perigo de repetição, de cometimento de novos factos ilícitos através do mesmo instrumento.» (Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, Rei dos Livros, 1993, pág. 92).

Para Maia Gonçalves a perda é uma espécie de medida de segurança, operando somente naqueles casos em que existe o perigo de repetição de cometimento de novos factos ilícitos típicos através do mesmo instrumento (Código Penal Português, Anotado e Comentado e Legislação Complementar, 9.ª ed., Almedina, 1996, pág. 474).

Esta perspetiva do instituto está mais focada, conforme é fácil de perceber, na perda de instrumentos correlacionados com o facto ilícito típico a que se reporta o art.º 109.º do Código Penal e não tanto na perda de vantagens.

Já segundo o Professor Damião da Cunha o instituto em apreço é de direito substantivo e tem uma dupla natureza, embora unificada na ideia de sanção patrimonial, pois não é um efeito da condenação (já que não é automática) nem é uma medida de polícia ou equiparável (visto supor sempre a intervenção de um juiz), constituindo uma sanção criminal que assenta na prática de um crime ou de um facto ilícito típico que levante a possibilidade de uma pena ou de uma medida de segurança, concluindo que nuns casos pode configurar uma medida de carácter quase penal, com finalidades de segurança (aliada à ideia de perigosidade), e noutros casos uma pena acessória (quando não baseada em considerações de segurança, constituindo a consequência da prática de um crime, supondo um juízo de culpabilidade do agente), subordinada assim aos princípios da necessidade e da proporcionalidade (Da Perda de Objectos relacionados com o crime, apontamentos policopiados para a disciplina de Direito Penal II, Porto, Universidade Católica Portuguesa, 1993, em particular págs, 3, 5, 6, 19 e 20).

Esta visão, atribuindo a natureza de pena acessória à perda de bens, mereceu firmes críticas do Professor Figueiredo Dias, por não se poder extrair da lei que a culpa do visado constituísse limite à intervenção do instituto, desde logo pelo facto da providência poder operar relativamente a inimputáveis ou sem condenação de um agente. Ademais, nos instrumentos e produtos em que está em causa a sua perigosidade imediata, há uma adequação para a prática de crimes, ao passo que, diversamente, nas vantagens o que está em causa primariamente é um propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligada à ideia de que “o crime não compensa” (Direito Penal Português - Parte Geral, As consequências jurídicas do crime, Tomo II, Lisboa, Aequitas, 1993, págs. 627 e 632). Em suma, num e noutro caso, segundo este entendimento, serão razões de prevenção, digamos direta (mais dirigida aos objetos) ou indireta (mais dirigida às vantagens), imediata ou mediata, que estarão na génese do instituto da perda de bens ou de vantagens, constituindo uma providência sancionatória análoga à medida de segurança, mas que não se confunde com esta, pois uma e outra assentam num fundamento politico-criminal de prevenção da perigosidade, sempre ligada ao pressuposto da proporcionalidade correlacionada com a gravidade do facto ilícito típico e à perigosidade do objeto (e não do agente) ou da vantagem.

Pedro Caeiro, por seu turno, não concorda que o instituto tenha natureza análoga às medidas de segurança, pois entende estar mais próximo de uma pena, já que a perda não se cinge apenas a finalidades de prevenção especial como também tem fins de prevenção geral. A perda de vantagens é uma medida punitiva e, a seu ver, é uma das reações penais possíveis e que, como qualquer outra, visa finalidades de prevenção criminal que assenta na prática de um facto ilícito típico. Em suma, a pena exige culpa, a medida de segurança exige perigosidade e a perda de vantagens basta-se com a existência de vantagens patrimoniais obtidas através da prática do crime [sentido e função do instituto da perda de vantagens no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia (em especial os procedimentos de confisco in rem e a criminalização do enriquecimento “ilícito”), RPPC, Ano 21, Abril-Junho de 2011, págs. 307 e 308].

Por sua vez, João Conde Correia, à luz do regime anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 30/2017, de 30.05, expressou uma visão dualista do instituto, no sentido de que o “confisco” teria a natureza de medida sancionatória análoga à medida de segurança no que respeita à perda de instrumentos, ao passo que teria a natureza de simples medida preventiva penal no caso da perda de vantagens, pois neste caso não está relacionada com a ideia de perigosidade, ainda que abstrata, latente ou mediata, conforme sustentado pelo Professor Figueiredo Dias, visto que mais não visa que alcançar a supressão ou correção de um património juridicamente ilegítimo, tendo na sua base fins exclusivamente preventivos, no sentido de demonstrar ao visado que a prática de crimes não é forma legítima de enriquecer e confirmar perante toda a comunidade a validade e a vigência do ordenamento jurídico, nomeadamente dos modos de aquisição e de incremento patrimonial válidos (Da proibição do confisco à perda alargada, Lisboa, Imprensa Nacional, 2012, págs. 628 e 629).

Centrando a sua análise na perda de vantagens, Hélio Rigor Rodrigues perfilha o entendimento que o “confisco clássico” regulado no Código Penal deve ser encarado como uma medida que tende a remover a situação de ilicitude patrimonial gerada por um facto antijurídico e, dessa forma, repor a situação patrimonial que o agente detinha antes de tal facto. Nessa estrita medida, não se assemelha a uma medida de segurança ou mesmo a uma pena, pois não possui carácter sancionatório, devendo antes ser considerado uma figura jurídica com uma natureza autónoma relativamente às demais consequências jurídicas do crime, a par das penas, das medidas de segurança e de reparação da vítima («O confisco das vantagens do crime: entre os direitos dos homens e os deveres dos estados – a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em matéria de confisco», O Novo Regime de Recuperação de Ativos: à luz da diretiva 2014/42/EU e da lei que a transpôs, pág. 47).

Nesse pressuposto, não tendo qualquer conteúdo sancionatório (só teria esse cariz se se admitisse que o facto ilícito típico é título aquisitivo do direito de propriedade), entende que o instituto não tem sequer natureza penal, mas meramente civil, uma medida puramente restaurativa (tal como a indemnização, visa reparar os danos provocados por factos ilícitos e, sob o ponto de vista dos seus efeitos, faz incidir sobre o visado uma consequência equiparável à obrigação de restituição que, nos termos da lei civil, emerge da verificação de situações de enriquecimento ilícito, isto é, sem causa justificativa). A esta luz, ainda que prevista no Código Penal, a perda de vantagens de factos ilícitos típicos não desempenha, na sua visão, em termos substanciais, qualquer função própria das reações penais, antes possuindo natureza estruturalmente civil, ou seja, ao fim ao cabo, uma consequência jurídica do crime de caráter civil (cfr. ob cit., págs. 49 a 55).[2]

Para Inês Ferreira Leite, diversamente, há que fazer a distinção consoante se trate do confisco de instrumentos do facto ilícito típico e das vantagens imediatas do mesmo ou de confisco dos lucros das atividades ilícitas ou dos produtos criados pelo crime.

Na primeira situação o confisco não visa a imposição de um sacrifício sobre o património ou a pessoa do agente, não tendo por isso uma dimensão punitiva. No segundo caso, uma vez que o procedimento não está vinculado ao dano (pois o ganho patrimonial pode ser bem diferente do dano provocado ou da vantagem direta que foi obtida pelo crime), o confisco já possui um substrato punitivo (ainda que possam coexistir finalidades complementares de índole reparatória).

Assim, o confisco tem natureza híbrida emergente da combinação de finalidades punitivas e não punitivas e cuja amplitude e extensão dependem das necessidades preventivo-gerais e preventivo- especiais negativas do caso concreto.

Nessa conformidade, devido a essa hibridez, quando o confisco incide sobre bens perigosos ou sobre bens ilicitamente obtidos, assim como quando se impõe a inimputáveis, a perda não tem a caraterística de pena; de modo diverso, quando incide sobre os frutos da atividade criminosa, sejam estes bens criados pelo crime sejam valores alcançados através de investimentos realizados com os proveitos do crime, o confisco deve seguir em pleno o regime da pena e, como tal, não pode prescindir da culpa do agente [“Ne (idem) bis im idem” proibição de dupla valoração e duplo julgamento – Contributos para a racionalidade do poder punitivo público, págs. 349, 392 a 413, 419 a 426, e 469 a 487].

Aqui chegados, tem prevalecido nos nossos tribunais superiores o entendimento coincidente com o pensamento do Professor Figueiredo Dias sobre a matéria, qual seja, a de que a perda, neste caso específico de vantagens derivadas de facto ilícito típico, a qual, não supondo sequer uma condenação – conforme emerge expressamente do disposto no n.º 5 do art.º 110.º do Código Penal –, tem assim fins preventivos, tanto de natureza especial como geral, isto é, tanto ligadas à pessoa do agente como ligadas à defesa do ordenamento jurídico, como fator dissuasor do visado e da comunidade em geral para a prática do crime, na justa medida em que se procura neutralizar a vantagem patrimonial/económica obtida e de modo a criar a perceção no visado e na comunidade que o “crime não compensa”.

A perda de vantagens não se correlaciona com qualquer noção de perigosidade imediata (mas mediata, conforme entendimento do Professor Figueiredo Dias), operando-se com a neutralização da vantagem patrimonial/económica emergente do facto ilícito típico ou de restabelecimento da ordem económica conforme o direito ou ainda, dito doutro modo, com a colocação do agente do facto ilícito típico (ou de terceiro) na situação patrimonial e/ou económica em que estaria se não tivesse ocorrido tal facto ilícito típico.

Esta finalidade de neutralização da vantagem ilicitamente obtida, segundo nos parece, acaba por ser instrumental da finalidade última da perda de vantagens, imediatas ou mediatas, qual seja, a finalidade de prevenção especial (perante o agente) e geral (perante a comunidade), de molde a criar a perceção que o “crime não compensa”, para usar a expressão do Professor Figueiredo Dias.[3]

Assim, a neutralização da vantagem económica (não necessariamente patrimonial) é instrumental das finalidades de prevenção especial e geral de dissuasão contra a prática do crime, ou melhor, de factos ilícitos típicos, para usar a terminologia legal.

Depois, conforme sustentado por José Nuno Ramos Duarte «se a perda de vantagens se tratasse de uma simples medida de remoção de uma situação de ilicitude, de todo incompreensível seria a possibilidade de, em certos casos, ser formado um juízo no sentido de a aplicação da medida ser injusta ou demasiado severa e, devido a isso, tal como se encontra estabelecido no artigo 112.º, n.º 2, do CP, o tribunal atenuar equitativamente o quantitativo pecuniário correspondente ao valor da vantagem que não pode ser apropriada em espécie. De igual forma, sendo inequívoco, face ao disposto no n.º 2 do artigo 110.º do CP, que a recompensa é uma subespécie das vantagens das infracções criminais, mostra-se claro que o confisco de recompensas não se destina a operar a reposição da situação jurídico-patrimonial anterior ao facto ilícito-típico, seja quando está em causa o confisco de bens dados em recompensa (que são retirados da esfera jurídica do seu primitivo dono para ingressarem na propriedade do Estado), seja, de forma ainda mais evidente, quando está em causa o confisco de bens que foram oferecidos em recompensa (os quais são declarados perdidos a favor do Estado sem que alguma vez tenham chegado a sair da esfera jurídica do respectivo titular). […] Ora, se a perda das vantagens do crime tanto se pode operar através do confisco das coisas ou direitos que constituem o verdadeiro benefício que foi obtido, como através da obrigação de pagamento do seu valor, tal apenas pode ser explicado pelo facto de a perda de bens desempenhar uma função mais ampla do que a simples reparação da ordem patrimonial ferida. Essa função – tanto quanto se concebe – é, muito simplesmente, o combate ao crime. A intervenção do Estado, mais do que por escopos restaurativos, move-se por claras finalidades de prevenção criminal, a qual se exerce, directamente, sobre quem é visado pelas medidas de confisco e, indirectamente, sobre os membros da sociedade em geral, a quem é emitida uma mensagem (simultaneamente dissuasora e de reafirmação da validade da ordem jurídica) sobre a não compensação do recuros a expedientes criminais.» (A Perda de Instrumentos, Produtos e Vantagens do Crime no Código Penal Português, Almedina, abril de 2023, págs. 86 a 88).

A esta luz, somos levados a concordar com o posicionamento do recorrente.

Por sua vez, a tese plasmada na sentença recorrida segue uma linha de entendimento também pugnada, entre outros, nos acs do TRP de 30.04.2019, proc. n.º 1325/17.1T9PRD.P1; de 11.10.2021, proc. n.º 276/17.4IDPRT.P1; de 10.01.2023, proc. n.º 7930/19.4T9PRT.P1; de 17.05.2023, proc. n.º 234/18.1IDAVR.P1; e de 13.12.2023, proc. n.º 12/19.0FAPRT.P1, todos com texto integral em www.dgsi.pt.[4]

A nosso ver, s.m.o., tal linha de orientação, na verdade, desconsidera a primordial função preventiva do instituto (já que apenas focada na neutralização da vantagem económica como fim último e único, como faz por exemplo Conde Correia, conforme já vimos), função preventiva essa que não seria alcançada se o agente pessoa singular – agindo no interesse da sociedade arguida e por isso penalmente responsável por via do art.º 12.º do Código Penal – não tivesse de arcar com o ónus da reposição das vantagens indevidamente apropriadas, quando é certo que, como sucede neste caso, a sociedade A..., Ld.ª já não tem qualquer atividade nem património.

De resto, à luz da lei, conforme já vimos, nem sempre a neutralização da vantagem indevida está na base do instituto, como é o caso da perda de vantagem prometida e que não se chegou a concretizar (n.º 2 do art.º 110.º), onde estão porventura mais vincadas as mencionadas funções preventivas. A perda da vantagem económica correspondente à promessa não se trata, ao fim ao cabo, de um regime de exceção, antes segue de forma mais marcada a vocação preventiva do instituto, qual seja, a de dissuasão contra a prática do crime.

A vingar a tese da sentença recorrida, em caso de coautoria e desconhecendo-se a forma como foram repartidas entre os coautores as vantagens derivadas do facto ilícito típico, tal redundaria num non liquet que defraudaria decisivamente a função preventiva do instituto, o que se rejeita.

Assim, salvo o devido respeito por diverso entendimento, entendemos que o autor do crime deverá ser condenado no pagamento da vantagem ilicitamente obtida através facto típico, ainda que a mesma apenas tenha beneficiado terceiro, seguindo assim uma linha de pensamento consentânea com o entendimento jurisprudencial vertido nos acs. do TRP de 19.04.2023, proc. n.º 2460/20.4T8VFR.P1, e de 13.09.2023, proc. n.º 2111/21.0T9VFR.P1, ambos publicados em www.dgsi.pt.

E tal faz todo o sentido e até se impõe no caso dos crimes fiscais ante a panóplia de sociedades-fantasma tantas vezes criadas sem qualquer atividade real para defraudar o fisco das mais variadas formas, seja em sede de IVA seja em sede de outros impostos como o IRC.

De resto, em caso de condenação do autor do crime pessoa singular em pena de prisão suspensa na sua execução, a mesma tem necessariamente de ficar subordinada ao pagamento dos tributos em falta, ainda que apenas tenha sido a sociedade a beneficiária da vantagem ilicitamente obtida com a prática do crime fiscal, por força do disposto no n.º 1 do art.º 14.º do RGIT (pressuposto de que parte, aliás, o AUJ n.º 8/2012, de 12.09).[5]

Tendo a pena de prisão e a perda de vantagens funções preventivas e para que o “crime não compense”, sendo também à luz dessas funções que se compreende a imposição a que respeita o n.º 1 do art.º 14.º do RGIT, mal se compreenderia que o autor do crime, pessoa singular, tivesse de ser condenado no pagamento dos tributos em falta (que corresponde, nos crimes fiscais, ao benefício económico/incremento patrimonial emergente da prática do facto ilícito típico) em caso de suspensão da execução da pena de prisão e que o não pudesse ser ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 1 e n.º 4 do art.º 110.º do Código Penal, mormente em caso de condenação em pena de multa, como é o caso dos autos.

Isto significa que – não obstante a marcada diferença de institutos - tanto aquela condição para a suspensão da execução da pena de prisão como a declaração da perda da vantagem (que no caso se traduziria na condenação do pagamento dos tributos em falta por via do n.º 4 do art.º 110.º do Código Penal) apenas tem como pressuposto a ocorrência de um dano[6] e cuja reparação se impõe ainda que o agente não seja o beneficiário final das vantagens económicas emergentes do facto ilícito típico.

Em suma, salvo melhor opinião, não é pressuposto da declaração de perdimento da vantagem ou a condenação no seu pagamento que o visado tenha sido o beneficiário último da mesma.

Ademais, se não é condição sine qua non para a condenação pela autoria do crime, ou pela coautoria do crime, que o agente ou que todos os agentes coautores beneficiem da vantagem económica emergente do facto ilícito típico, também não é condição sine qua non para a declaração de perdimento da vantagem – na vertente de condenação do pagamento do valor equivalente - que apenas possam ser por ela visados o agente ou agentes que efetivamente dela beneficiaram.

Depois, nas relações internas havidas entre os agentes coautores e por via das regras próprias da solidariedade da obrigação quanto ao direito de regresso (cfr. o art.º 524.º do Código Civil), assim se contrabalançarão os custos económicos da declaração de perdimento ou de condenação no seu pagamento.

Em suma, a neutralização da vantagem económica (líquida), prosseguindo finalidades preventivas, terá, a esta luz, de visar todos os coautores, independentemente da repartição das vantagens entre eles.

Como assim, por identidade de razão, a declaração de perdimento das vantagens terá de visar também o agente pessoa singular através da qual a sociedade arguida foi a destinatária última dos proventos do crime.

Isto é, dito doutro modo, à luz de razões de prevenção, seria estranho que, sendo o agente pessoa singular quem, em nome e por conta da sociedade, executa o crime, não possa ser abarcado pela declaração de perdimento, alargando-se assim a base patrimonial a que o Estado pode lançar mão para repor a licitude patrimonial, mormente com a condenação solidária de ambos os arguidos (pessoa singular e sociedade) no pagamento da quantia equivalente à vantagem indevidamente obtida nos termos do n.º 4 do art.º 110.º do Código Penal.

Ademais, a declaração da perda de vantagens ou da concomitante condenação na entrega do respetivo valor impõem-se sempre, reunidos que estejam os seus requisitos, estando subtraída a respetiva decisão à discricionariedade do tribunal, inserindo-se antes no círculo dos seus poderes-deveres, ainda que tenha sido deduzido PIC, conforme emerge do AUJ n.º 5/2024, de 11.04., publicado no DR n.º 90/2024, Série I, de 09.05.[7]

Consequentemente, caberá a este tribunal decidir em conformidade, revogando parcialmente, nessa parte, a sentença recorrida, tendo presente que no sistema ordinário dos recursos, por norma, impera a regra da substituição quando está apenas em causa o mérito do decidido e não qualquer questão de índole processual, por exemplo, eventualmente geradora de irregularidade ou nulidade não reparável pelo tribunal ad quem (o que não é de todo o caso dos autos, pois a sentença recorrida seguiu um caminho atinente ao mérito, aliás com sustentação jurisprudencial e doutrinal mas que não se sufraga).

Procede por isso o recurso interposto pelo Ministério Público.


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III – Das custas

Não tendo sido os arguidos a interpor recurso, não existe decaimento para efeitos do disposto no art.º 513.º, n.º 1, do CPP.

O MP, por seu turno, além de ter obtido vencimento, está isento do pagamento de custas (cfr. o n.º 1 do art.º 522.º do CPP).

Não há assim lugar a tributação nesta instância.


***

DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes desembargadores subscritores, desta 4.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, pelo que, consequentemente, revogando parcialmente a sentença recorrida:
a) condenam o arguido AA (em solidariedade com a arguida sociedade) a entregar ao Estado a vantagem ilícita obtida com o crime cometido, no montante de €17.871,82 (dezassete mil, oitocentos e setenta e um euros, e oitenta e dois cêntimos); e
b) no mais, mantêm a sentença recorrida.


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Sem tributação nesta instância (cfr. o ponto III da «FUNDAMENTAÇÃO»).

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Registe e notifique (art.º 425.º, n.ºs 3 e 6, do CPP).

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Porto, 21 de maio de 2025.
(Texto processado por computador, composto e revisto pelo 1.º signatário)
José Castro
João Pedro Pereira Cardoso
Maria dos Prazeres Silva
(Assinaturas eletrónicas no canto superior esquerdo da 1.ª página)
_________________
[1] A transcrição circunscrever-se-á ao necessário e com relevo tendo em vista a apreciação da questão posta à nossa consideração.
[2] Na mesma linha de pensamento, ver Hélio Rigor Rodrigues e Carlos A. Reis Rodrigues in Recuperação de Activos na Criminalidade Económico-Financeira: Viagem pelas idiossincrasias de um regime de perda de bens em expansão, págs. 185 a 193.
[3] No sentido de que a perda de vantagens é determinada por necessidades de prevenção, pode ver-se ainda M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, in Código Penal, Parte Geral e especial, Almedina, março de 2014, pág. 446; bem como Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed. atualizada, Universidade Católica Editora, , agosto de 2021, pág. 495.
[4] E também por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed. atualizada, Universidade Católica Editora, agosto de 2021, pág. 498, não obstante concordar que a perda de vantagens é determinada por necessidades de prevenção; no sentido pugnado na sentença recorrida, ver ainda William Themudo Gilman in Revista Julgar Online, julho de 2024 (julgar.pt/a-perda-de-vantagens-do-crime-reflexoes-breves/).
[5] «No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.».
[6] A esta luz perspetivado numa dupla vertente – de dano patrimonial para o lesado (o Estado) e da concomitante vantagem económico-patrimonial obtida com a perpetração do crime pelo agente ou por terceiro.
[7] «Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto.»