Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
468/22.4PDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CLÁUDIA SOFIA RODRIGUES
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
PRONÚNCIA
INDÍCIOS
PROVA POR PRESUNÇÃO
REQUISITOS
CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES DE MENOR GRAVIDADE
DETENÇÃO DE ESTUPEFACIENTE
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RP20240612468/22.4PDPRT.P1
Data do Acordão: 06/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Para ser proferido despacho de pronúncia, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes de modo que, logicamente relacionados e conjugados, permitam concluir pela culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade no que respeita aos factos que lhe são imputados, conducentes à convicção de que lhe irá ser aplicada uma pena.
II – A lei nº 55/2023 de 8/09 que alterou o dec-lei nº 15/93, de 22/01, e faz uma segunda alteração à Lei n.º 30/2000, de 29/11, que aprova o regime jurídico do consumo de estupefacientes, resultando da nova redacção do artigo 40º do referido dec-lei nº 15/93 que a compra e detenção de uma quantidade de droga superior ao consumo médio individual por mais de dez dias é permitida se ficar demonstrado que se destina exclusivamente ao autoconsumo.
III – E daí que, no caso de detenção das substâncias estupefacientes que excedam o consumo médio individual por mais de dez dias, desde que fique demonstrado que tal detenção se destina exclusivamente ao consumo próprio, a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, o seu arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição e o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência.
IV – Os valores de dose média individual previstos na tabela anexa à Portaria nº 94/96, de 26/3 não são inderrogáveis, automáticos ou imperativos, podendo ser considerados valores de consumo médio individual diferentes, em função das caraterísticas individuais do consumidor em questão.
V – A lei admite a comummente denominada de prova indirecta ou indiciária, mas, nesses casos, os indícios para fundamentarem uma condenação têm que ser claros, não podem deixar margem para dúvidas, exigindo-se, regra geral, a pluralidade de elementos indirectos, ainda que se admita um só, se for particularmente grave e peremptório, sendo que os resultados a que tais indícios conduzem têm que ser compatíveis e não podem ter obstáculos, como hipótese alternativas plausíveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 468/22.4PDPRT.P1

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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1. RELATÓRIO

Mostram os presentes autos de instrução nº 468/22.4PDPRT do Juízo de Instrução Criminal do Porto (J1), do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que foi, em 15.01.2024, proferido despacho de não pronúncia do arguido AA, o qual se encontrava acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência ao disposto no art.º 21º, nº1 do mesmo diploma legal e à Tabela Anexa I-C., determinando-se o arquivamento os autos.

O Ministério Público interpôs recurso dessa decisão, tendo apresentado a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

“1ª) O M°P° acusou AA imputando-lhe a prática de factos suscetíveis de integrarem um crime de trafico de produtos de menor gravidade, (por detenção) p.p. pelo art° 25° al-a) do DL-15/93;
2ª) O arguido requereu a abertura da instrução, confirmando os factos descritos na acusação (a detenção de produtos estupefacientes), mas que destinava tal produto exclusivamente ao seu próprio consumo;
3ª) Não comprovou este facto;
4ª) A MM Juiz, na sua decisão instrutória dá como indiciada a detenção por parte do arguido do produto estupefaciente que lhe foi apreendido, bem assim como que o produto estupefaciente se encontrava numa bolsa que o arguido usava à ticaracolo, dividido em vários pedaços, que dariam para 49 doses, junto a 502,00 euros em notas e moedas do Banco Central Europeu, mas retira a conclusão que o referido produto se destinava exclusivamente ao consumo do arguido;
5ª) Conclusão retirada apenas pelas declarações do arguido;
6ª) Mas contrariando as regras da experiência e a presunção contida no art. 40º, nº 3 do DL-15/93;
7ª) Que a MM Juiz no seu despacho de não pronúncia, violou, bem assim como o disposto no art. 25º al-a) do DL-15/93 e o art. 308º do CPP;
8ª) Despacho que deve ser substituído por outro, que Pronuncie o arguido pelos factos e crime que lhe são imputados na acusação.
Se outro for o entendimento de Vªs Exªs, por certo farão Justiça.”

Por despacho proferido em 05.02.2024 foi o recurso regularmente admitido, sendo fixado o regime de subida imediata, nos próprios autos e com efeito não suspensivo.

O arguido AA em resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público, alega que decorrido que foi todo o inquérito, o MP não carreou qualquer facto objetivo que contrariasse aquilo que foi referido pelo arguido aquando da sua detenção – que destinava o referido produto ao seu exclusivo consumo e as afirmações do OPC e a informação de fls. 34 dos autos refere que efetuada diligência externa ao café e à zona envolvente, não se verificou que o mesmo se dedicasse ao tráfico de estupefacientes.
Porque, tal como aduziu destinava tais substâncias ao seu único e exclusivo consumo, no entender do arguido a decisão recorrida deverá manter-se.

Subiram os autos a este Tribunal da Relação, e o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer nele referindo, que no recurso interposto pela Exma. Magistrado do Ministério Público na 1ª instância é invocada abundante fundamentação jurídica em abono da sua tese, e atento o acerto e eloquência ali vertidos manifesta a sua adesão ao mesmo e conclui que o recurso deverá ser julgado procedente.

Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (diploma a que pertencem as disposições que, doravante, vierem a ser citadas sem indicação de origem), o arguido respondeu ao parecer, dando por reproduzida a sua resposta ao recurso do MP.

Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme vêm considerando a doutrina e a jurisprudência de forma uniforme, à luz do disposto no art. 412º, nº 1, do CPP, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, em que resume as razões do pedido, sem prejuízo, naturalmente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, resulta das conclusões do recurso que o recorrente delimita o respetivo objeto à: existência de indícios suficientes da verificação do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, por referência ao disposto no art. 21º, nº1 do mesmo diploma legal e à Tabela Anexa I-C, imputado ao arguido na acusação publica proferida em 18.09.2023.

Perante a questão suscitada no recurso, torna-se essencial - para a devida apreciação do seu mérito – recordar, primeiramente, o teor da decisão instrutória de não pronúncia, objecto do presente recurso:
“DECISÃO INSTRUTÓRIA
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O Tribunal é competente.
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O Ministério Público tem legitimidade para acusar.
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Não existem outras questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa.
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Encerrado o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra AA imputando-lhe a prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência ao disposto no art.º 21º, nº1 do mesmo diploma legal e à Tabela Anexa I-C.
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Inconformado com a subsunção da sua conduta à infração prevista no art.º 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro por referência ao disposto no artº 21º do mesmo diploma legal e pugnando pela qualificação da sua conduta como integrante da contraordenação p.p. pelo art.º 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 55/2023 de 8 de setembro, entrada em vigor no dia 1 de Outubro, o arguido requereu a abertura de instrução, alegando em suma que detinha nas circunstâncias de tempo, modo e lugar o produto estupefaciente, o qual, todavia, era destinado ao seu único e exclusivo consumo, já que é consumidor de canábis há vários anos, requerendo por isso a sua não pronúncia.
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A fase da instrução foi declarada aberta por despacho judicial datado de 07-11-2023 com a ref.ª 453483119 e constante de fls. 69 dos autos.
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Foi deferido o requerido interrogatório do arguido e não se tendo vislumbrado qualquer acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efectuou-se o debate instrutório, que decorreu em conformidade com o disposto nos art.º 298.º, 301.º e 302.º, todos do Código de Processo Penal.
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Cumpre apreciar e decidir:
Da instrução
De acordo com o art.º 286º n° 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, acrescentando o respetivo nº 2 que tal fase processual tem carácter facultativo. No que tange ao seu conteúdo, esclarece o artº 289° nº1 do mesmo Código ser a instrução formada pelo conjunto dos atos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado, mas não as partes civis.
Simas Santos e Leal Henriques salientam com propriedade a “inquestionável relevância e significado” da instrução, uma vez que, no mais, “os princípios do acusatório e da investigação se perfilam lado a lado com os do contraditório, da oralidade e da imediação da prova, tudo com vista à perseguição da verdade material” (Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 11 Volume, 2. Edição, Editora Rei dos Livros, 2000, 158).
Num pendor acentuadamente mais pragmático, acentua Maia Gonçalves não ser a instrução “um novo inquérito, mas tão-só um momento processual de comprovação; não visa um juízo sobre o mérito, mas apenas um juízo sobre a acusação, em ordem a verificar da admissibilidade da submissão do arguido a julgamento com base na acusação que lhe é formulada” (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 12. Edição, Almedina, 2001, 572).
Impõe-se, desta forma, uma apreciação crítica da totalidade da prova recolhida, não apenas na instrução, mas igualmente em sede de inquérito, tendo em vista a prolação de decisão final - de pronúncia ou não pronúncia - conforme se conclua pela existência, ou não, de indícios suficientes, que permitam a submissão do arguido a audiência de julgamento. Neste particular, o julgador não se encontra limitado ao material probatório que lhe é pré sente por acusação e defesa, devendo ao invés — caso se mostre necessário à descoberta da verdade — instruir autonomamente os factos em apreciação.
Como anteriormente se expendeu, a decisão de pronúncia basta-se, em conformidade com o preceituado pelo artº 308° n°1 do Código de Processo Penal, com a prova meramente indiciária, e, nessa medida, completamente distinta do grau de convicção em termos probatórios exigido na fase do julgamento. Nas palavras de Germano Marques da Silva, são suficientes “sinais da prática de um crime” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 111 Volume, Verbo, 1 994, 1 83), enquanto fundamentadores de uma possibilidade razoável de ter, efetivamente, sido o arguido quem praticou a factualidade em apreço. Donde, estamos em face de juízos de probabilidade, e não de certeza. Cumprirá acrescentar considerar o legislador suficientes os indícios sempre que destes resulte, conforme estatuído pelo artº 283°, n°2 do Código de Processo Penal, uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
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Do caso concreto
In casu, visa a bondade da instrução questionar a acusação deduzida nos autos cujos precisos contornos acima se expuseram, e assim atestar da propriedade da imputação ao arguido consubstanciadores da prática, em autoria material de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência ao disposto no art.º 21º, nº 1 do mesmo diploma legal.
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Detenhamo-nos, agora, no caso em apreço, em ordem a apurar da suficiência de indícios, com relação aos factos sub judice, que imponham a prossecução dos autos.
Atentemos nas diligências probatórias levadas a cabo em sede de inquérito.
Os autos encontram-se instruídos com o auto de notícia por detenção de fls. 2-3, o auto de apreensão de fls. 6, testes rápidos de fls. 7-8, fotos de fl. 9-12, relatório de exame pericial de fls. 42, constando ainda como testemunhas BB e CC, agentes da PSP, responsáveis pela abordagem e detenção do arguido.
Em sede de instrução, o arguido prestou declarações, tendo assumido que detinha nas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas na acusação o produto estupefaciente, bem como os demais objectos aí identificados. Explicou, todavia, que o produto estupefaciente era destinado ao seu único e exclusivo consumo, já que é consumidor de canábis há vários anos, sendo que a quantidade detida dar-lhe-ia para o consumo individual de um ou dois dias, assegurando que não destinava à venda a terceiros o estupefaciente, tanto mais que o produto já se encontrava esfarelado com vista ao consumo (o que também é visível nas fotos de fls. 9 a 12), tendo já enrolado alguns charros que também estavam na sua posse. Mais esclareceu que o dinheiro apreendido era proveniente da sua actividade profissional, uma vez que à data explorava um café- A..., sendo que nessa noite havia servido um jantar para um grupo alargado de pessoas e o dinheiro era proveniente justamente da venda dessas refeições, optando por retirá-lo da caixa registadora por receio de ser assaltado.
Ora, analisando as declarações do arguido à luz das mais elementares regras da experiência comum, afigura-se verosímil que alguém que seja um consumidor de produto estupefaciente (como invocou o arguido), comprou e detenha consigo os produtos que lhe foram apreendidos exclusivamente para consumir, atentas as quantidades e natureza dos produtos apreendidos.
Acresce, a circunstância de não ter sido apreendido ao arguido qualquer outro material respeitante à atividade de tráfico de estupefacientes, como material de corte, balanças ou embalagens individuais para acondicionamento do produto.
Por outro lado, o Agente da P.S.P. que deteve o arguido não fez qualquer menção que o mesmo seja conotado nos meios policiais como vendedor de produto estupefaciente, nem presenciou qualquer transação, referindo que o arguido foi encontrado com 6 cigarros enrolados de forma manual e que pelo odor que exalavam indiciavam conter produto estupefaciente, vulgarmente denominado de charros. Aliás, na informação de serviço constante de fls. 34 pode ler-se que “de forma a apurar mais dados acerca da possível actividade delituosa do suspeito, foi efectuada uma diligência externa ao café e à zona envolvente, não tendo sido verificado nada que nos pudesse influir que o mesmo se dedicava ao tráfico de produto estupefaciente”, o que também confere sustentação à versão do arguido.
Assim, nos termos expostos e dos demais elementos probatórios constantes dos autos, mormente considerando a natureza e quantidades das substâncias apreendidas, e à míngua de quaisquer outros elementos probatórios que infirmem a versão do arguido, as declarações deste merecem credibilidade.
FACTOS INDICIADOS:
Em face da prova supra indicada, mormente a documental, testemunhal e pericial, resultam suficientemente indiciados os seguintes factos:
1. No dia 12 de Novembro de 2022, pelas 1h45min., o arguido encontrava-se junto ao estabelecimento de restauração e bebidas, denominado “Café A...”, sita na Rua ..., nesta Cidade e Comarca, do qual é proprietário, na posse de uma bolsa que usava à tiracolo, contendo:
- no interior de um maço de tabaco, dento de um pedaço de papel vários pedaços de canábis (resina), com o peso líquido de 10,238 gramas, com um grau de pureza de 24,3%, correspondente a 49 doses;
- 6 cigarros com resíduos de canabis
- a quantia de € 502,05, em notas e moedas do BCE que se encontravam a granel no interior da citada bolsa
2. A totalidade dos produtos estupefacientes apreendidos pertencia ao arguido que a destinava ao seu exclusivo consumo individual, dando para um período de cerca de dois dias.
FACTOS NÃO INDICIADOS:
Não resultam indiciados quaisquer outros factos de entre a alegação factual constante da mesma acusação, concretamente:
A) O arguido destinava os produtos estupefacientes apreendidos à venda a terceiros, mediante contrapartida económica.
B) A quantia em poder do arguido provinha da transacção de estupefacientes efectuada pelo mesmo antes da intervenção policial e destinava-se a ser utilizada na prossecução desta actividade.
C) O arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo quais eram as características, natureza e efeitos dos produtos estupefacientes que detinha, transportava, guardava, cedia e vendia, sempre com a intenção de obter contrapartida económica.
D) Sabia ainda que a posse, detenção, transporte, guarda, cedência e venda de tais produtos era proibida e punida por lei.
E) Não obstante disso bem saber, o arguido quis agir e sabia que procedia da forma descrita, vendendo a terceiros produtos estupefacientes.
F) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL:
O Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro tem como objetivo a definição do regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, sendo que tráfico e consumo são duas realidades de facto e jurídicas distintas.
O tráfico encontra-se regulado no artigo 21.º, do referido diploma, punindo-se quem, sem autorização, cultive, produza, fabrique, extraía, prepare, ofereça, puser à venda, distribua, compre, ceda ou por qualquer título receba, proporcione a outrem, transporte, importe, exporte, faça transitar ou ilicitamente detenha determinadas plantas, substâncias ou preparações fora dos casos previstos no artigo 40.º.
Já o artigo 25.º do citado diploma, consagra um privilegiamento do crime de tráfico de estupefacientes que só se verifica quando, a quantidade e qualidade de produto estupefaciente detido e as modalidades de cometimento do crime revelem uma menor ilicitude do facto.
Por outro lado, o consumo encontrava-se regulado no artigo 40.º daquele Decreto-Lei e a Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro fixa o consumo como atividade ilícita, mas em termos contraordenacionais.
Com as incriminações previstas desde logo nos artigos 21.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, o legislador pretendeu acautelar interesses coletivos e individuais e em primeira linha o bem jurídico da saúde pública, procurando garanti-la contra o perigo da circulação de estupefacientes, perigo este que é gerado, por si só, pela detenção destes produtos.
Dispõe o artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro que “Quem, sem para tal estar habilitado, cultivar, produzir- fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
Já no artigo 25.º, do citado diploma, prevê-se que: “Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a lII, V e VI; b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.”
O regime que se encontrava previsto no artigo 40.º, do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, conforme resulta da própria letra da lei, prendia-se apenas com as condutas de consumidores que, exclusivamente para o seu próprio consumo, cultivem, adquiram ou detenham plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV.
Com a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 55/2023 de 8 de setembro que alterou o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro o artigo 40.º passou a ter a seguinte redação: “1 - Quem, para o seu consumo, cultivar plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas i a iv é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2 - A aquisição e a detenção para consumo próprio das plantas, substâncias ou preparações referidas no número anterior constitui contraordenação.
3 - A aquisição e a detenção das plantas, substâncias ou preparações referidas no n.º 1 que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo.
4 - No caso de aquisição ou detenção das substâncias referidas no n.º 1 que exceda a quantidade prevista no número anterior e desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio, a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, o seu arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição e o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência.
5 - No caso do n.º 1, o agente pode ser dispensado de pena.”
Anteriormente à entrada em vigor da redação supra descrita dispunha o referido preceito que a detenção de produto estupefaciente, para consumo do próprio e para um período superior a dez dias integrava a prática do crime de consumo.
Agora tal preceito deixou de existir.
Tendo havido descriminalização do crime de consumo é de aplicar retroativamente a lei penal mais favorável (artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal), concluindo-se pela inexistência de crime de consumo, por via da referida descriminalização.
Dispõe o n.º 4, do artigo 29.º, da Constituição da República Portuguesa que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.
Por sua vez, o artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, prescreve que o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número de infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.
Ora, atenta a distinção material entre a natureza da redação da referida infração no enquadramento sancionatório, a diferente ressonância ética que subjaz às correspetivas sanções e a ausência de norma legal transitória que regule e qualifique esta matéria, afigura-se-nos que estes segmentos de factos foram descriminalizados por lei expressa posterior.
O arguido prestou declarações, tendo o mesmo referido que os factos constantes da acusação correspondem à verdade na parte em que detinha nas circunstâncias de tempo, modo e lugar o produto estupefaciente, bem como os demais objectos aí identificados. Todavia, o produto estupefaciente era destinado ao seu único e exclusivo consumo, já que é consumidor de canábis há vários anos, dando-lhe para o consumo individual de um ou dois dias, sendo que não destinava à venda a terceiros os referidos produtos e o dinheiro apreendido era proveniente da sua actividade profissional, uma vez que à data explorava um café- A....
Ora, analisando as declarações do arguido à luz das mais elementares regras da experiência comum, afigura-se plausível que alguém que seja um consumidor de produto estupefaciente (como invocou o arguido), comprou e detenha consigo os produtos que lhe foram apreendidos exclusivamente para consumir, atentas as quantidades e natureza dos produtos apreendidos.
Acresce, a circunstância de não ter sido apreendido ao arguido qualquer outro material respeitante à atividade de tráfico de estupefacientes, como material de corte, balanças ou embalagens individuais para acondicionamento do produto.
Por outro lado, o Agente da P.S.P. que deteve o arguido não fez qualquer menção que o mesmo seja conotado nos meios policiais como vendedor de produto estupefaciente, nem presenciou qualquer transação, referindo que o arguido foi encontrado com 6 cigarros enrolados de forma manual e que pelo odor que exalavam indiciavam conter produto estupefaciente, vulgarmente denominado de charros. Aliás na informação de serviço constante de fls. 34 pode ler-se que “de forma a apurar mais dados acerca da possível actividade delituosa do suspeito, foi efectuada uma diligência externa ao café e à zona envolvente, não tendo sido verificado nada que nos pudesse influir que o mesmo se dedicava ao tráfico de produto estupefaciente”, o que também confere sustentação à versão do arguido.
De modo, nos termos expostos e dos demais elementos probatórios constantes dos autos, mormente considerando a natureza e quantidades das substâncias apreendidas, e à míngua de quaisquer outros elementos probatórios que infirmem a versão do arguido, as declarações deste merecem credibilidade, conforme já acima indicado.
Assim, dando como indiciado que o estupefaciente havia sido adquirido pelo arguido com dinheiro próprio e destinava-se ao seu próprio consumo, para um período não superior a uma semana não podemos considerar a conduta do arguido integradora da prática de crime.
Mesmo considerando uma eventual dúvida acerca do destino que pretendia dar à droga que o arguido detinha, sempre esta teria que ser valorada a seu favor (v., neste sentido, o Ac. do TRP, de 20.12.2011, proferido no processo nº 80/10.0PAGDM.P1, passível de consulta em www.dgsi.pt).
Assim e face à prova indiciária produzida, não é possível afirmar, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido destinava à venda os produtos estupefacientes que detinha, pois nada foi testemunhado nesse sentido – não foi visto a ser abordado por ninguém, não foi visto a entregar ou a receber algo de alguém, nem foi visto a aguardar quem quer que fosse.
Do que decorre dos autos, verifica-se que não existem quaisquer indícios de que o arguido se dedique ao tráfico de estupefacientes, pelo que, desde logo, fica afastada a integração dos factos no crime de tráfico e outras atividades ilícitas, de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, al. a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, por referência ao disposto no artigo 21º, nº 1 do mesmo diploma legal e à Tabela I-C anexa à Portaria n.º 94/96, de 26.03,
Assim, da factualidade apurada, atenta a data dos factos, mostra-se, sim, configurada a prática, pelo arguido, do crime de detenção de substâncias estupefacientes para consumo, p. e p., no art.º 40º, nº 1 e 2 do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, porquanto a quantidade apreendida excedia a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Sucede, porém, que em 01/10/2023 entrou em vigor a citada Lei n.º 55/2023, de 08 de Setembro, que procedeu, entre o mais, à alteração do artigo 40º e 71º do Decreto-Lei 15/93, de 22 Janeiro e do artigo 2º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro.
Ora, resultando dos autos que o produto apreendido se destinaria exclusivamente ao consumo do arguido, atendendo à nova redação do art.º 40º do DL n.º 15/93 de 22 de Janeiro,
designadamente o seu n.º 4, e ao disposto no artigo 2º, n.º 4 do Código Penal, será de determinar a não pronúncia, porquanto, de acordo com a nova lei da droga, que é concretamente mais favorável ao arguido, o consumo não integra a prática de crime, mas tão só, poderá configurar uma contraordenação.
Com efeito, a conduta do arguido apenas integra, a previsão da contraordenação de consumo prevista e punida pelo artigo 2º, n.º 1, da Lei 30/2000, de 29 de novembro, com a última alteração sofrida pela Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro, para cujo conhecimento é competente a Comissão de Dissuasão da Toxicodependência, nos termos do artigo 5º de tal diploma legal.
Por tudo o exposto, e sem necessidade de outras considerações, julgamos ser procedente a defesa apresentada no requerimento de abertura de instrução, não havendo nos autos indícios suficientes da prática pelo arguido de todos os factos descritos na acusação e, portanto, do crime com base neles é imputado, de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade, sendo altamente improvável uma sua condenação em sede de julgamento.
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DECISÃO:
Nestes termos, decide-se julgar procedente o requerimento de abertura de instrução e, consequentemente, decide-se não pronunciar para julgamento AA, pelos factos descritos na acusação pública de fls. 55 e s.s. e crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade ali imputado.
Sem custas.
Notifique.
Comunique, após o trânsito em julgado desta decisão, o presente caso à Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência territorialmente competente para efeitos de decisão, devendo ser remetida, para o efeito, certidão de todo o processado.
Declaro perdidos a favor do Estado os produtos estupefacientes apreendidos nos autos, devendo solicitar-se a destruição dos mesmos, por incineração, logo que transite em julgado esta decisão, com oportuna remessa ao processo do respetivo auto – cfr. art.º 62º do Decreto-Lei nº 15/93.
Dado que não se provou que a quantia em dinheiro apreendida ao arguido fosse de proveniência ilícita, determina-se a sua restituição ao mesmo.
Dê baixa estatística (F7).
Oportunamente, arquive os autos.”

A instrução foi requerida pelo arguido AA, na sequência da acusação contra ele deduzida pelo Ministério Público, a qual é do seguinte teor:

“O Ministério Público, para julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular, acusa:

AA, filho de DD e de EE, solteiro, empregado de balcão, nascido em ../../1989, natural de Porto e actualmente a residir na Rua ..., ..., ... , Viseu;

porquanto:

No dia 12 de Novembro de 2022, pelas 1h45min., o arguido encontrava-se junto ao estabelecimento de restauração e bebidas, denominado “Café A...”, sita na Rua ..., nesta Cidade e Comarca, do qual é proprietário, na posse de uma bolsa que usava à tiracolo, contendo:
- no interior de um maço de tabaco, dento de um pedaço de papel vários pedaços de canábis (resina), com o peso líquido de 10,238 gramas, com um grau de pureza de 24,3%, correspondente a 49 doses;
- 6 cigarros com resíduos de canabis
- a quantia de € 502,05, em notas e moedas do BCE que se encontravam a granel no interior da citada bolsa.
A totalidade dos produtos estupefacientes apreendidos pertencia ao arguido que a destinava à venda a terceiros, mediante contrapartida económica.
A quantia em poder do arguido provinha da transacção de estupefacientes efectuada pelo mesmo antes da intervenção policial e destinava-se a ser utilizada na prossecução desta actividade.
O arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo quais eram as características, natureza e efeitos dos produtos estupefacientes que detinha, transportava, guardava, cedia e vendia, sempre com a intenção de obter contrapartida económica.
Sabia ainda que a posse, detenção, transporte, guarda, cedência e venda de tais produtos era proibida e punida por lei.
Não obstante disso bem saber, o arguido quis agir e sabia que procedia da forma descrita, vendendo a terceiros produtos estupefacientes.
O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Cometeu, assim, um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência ao disposto no art. 21º, nº1 do mesmo diploma legal e à Tabela Anexa I-C
O Ministério Público, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 110.º do Código Penal e 35.º e 36.º do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22.01, indica como instrumentos, produtos e vantagens a serem declarados perdidos a favor do Estado:
- o estupefaciente apreendido ao arguido,
- 6 cigarros com resíduos de canábis,
- a quantia de € 502,05, proveniente da venda de estupefaciente efectuada pelo arguido,
- uma bolsa “Calvin Klein” onde o arguido transportava o estupefaciente que destinava à venda
*
PROVA, a dos autos.
Pericial
Relatório de Exame de fls. 42
Documental
- Auto de Noticia de fls. 2-3
- Auto de apreensão de fls. 6
- Testes rápidos de fls. 7-8
- fotograma de fl. 9-12
- CRC de fls. 20
Testemunhal
1. BB, Agente da PSP, id. a fls. 2
2. CC, Agente da PSP, id. a fls. 2vº
(…)”
*
Cumpre apreciar:

Nos presentes autos, verifica-se que o Ministério Público em vista do auto de noticia por detenção de 12.11.2022, promoveu e exerceu a ação penal, dirigiu e realizou o inquérito, e decidiu acusar o arguido AA nos termos sobreditos.
Requerida a abertura de instrução pelo arguido, veio nesta a concluir-se pela sua não pronúncia consoante se deixou exarado.
É entendimento pacífico, que o despacho de não pronúncia é proferido após o debate instrutório sempre que não existam indícios suficientes que justifiquem a submissão de arguido a julgamento – cfr. art. 308º, nº 1, in fine, do CPP.
Cumpre, deste modo, aquilatar dos indícios da verificação do crime imputado ao arguido na acusação pública, insuficientes do ponto de vista da Sra. Juiz de Instrução e suficientes na perspetiva do recorrente Ministério Público.
Vejamos.
Relembrando o pertinente enquadramento legal, começamos pelo nº 1 do art. 308º onde se estatui: “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”
Segundo o art. 283º, nº 2, para onde remete o art. 308º, nº 2, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.
Correlacionado com estes preceitos e por se tratar da fase de instrução, proclama o art. 286º, nº 1, “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
A fase processual de instrução – que termina com a prolação da decisão instrutória - visa a comprovação judicial de acusar ou não acusar, isto é, pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada ao arguido uma pena pelos factos e ilícito que lhe é imputado na acusação.
Não se verificando tais indícios, há lugar à prolação de um despacho de não pronúncia.
Cumpre ainda salientar, que tendo em vista tal finalidade – art. 286º, nº 1 - percebe-se que a lei não pretende que a instrução constitua um efectivo suplemento de investigação relativamente ao inquérito, não visando esta fase processual facultativa o alargamento do âmbito da investigação realizada em sede de inquérito.
José Souto de Moura, Inquérito e Instrução, Jornadas de Direito Processual Penal, Livraria Almedina, 1989, pág. 125 clarifica “a instrução não é uma segunda fase investigatória, desta feita levada a cabo pelo juiz, e nada mais. Trata-se antes de uma fase através da qual se opera o controle judicial da posição assumida pelo MP, ou pelo assistente que deduziu acusação particular, no final do inquérito” - vide também Maia Gonçalves in Código de Processo Penal Anotado, 15ª edª., pág. 578 que nos diz que “A instrução – importa acentuar – não é um novo inquérito, mas tão só um momento processual de comprovação; não visa um juízo sobre o mérito, mas apenas um juízo sobre a acusação, em ordem a verificar sobre a admissibilidade da submissão do arguido a julgamento com base na acusação que lhe foi formulada”.
Pelo que, a instrução não se destina a completar, ampliar ou prolongar o inquérito ou à feitura de uma outra investigação dos factos, levada a cabo pelo juiz, diferente da do Ministério Público ou Assistente.
Tendo presente este contexto, ainda assim, para ser proferido despacho de pronúncia, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes de modo que, logicamente relacionados e conjugados, permitam concluir pela culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade no que respeita aos factos que lhe são imputados.
A jurisprudência tem considerado maioritariamente, que indícios suficientes correspondem à persuasão ou à convicção de que, mediante o debate amplo da prova em julgamento, se poderão provar em juízo os elementos constitutivos da infracção. Isto é, os indícios suficientes correspondem a um conjunto de factos que, relacionados e conjugados entre si, conduzam à convicção de culpabilidade do arguido e de lhe vir a ser aplicada uma pena.
Nas palavras de Figueiredo Dias serão indícios suficientes quando “em face deles seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável que a sua absolvição” - vide Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 133.
Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2ª edição, pág.332, aponta como indícios suficientes “as razões que sustentam e revelam uma convicção sobre a maior probabilidade de verificação de um facto do que a sua não verificação”.
Lê-se no Ac. desta Relação de 29.11.2017 proferido no Proc. nº 1532/16.4PJPRT.P1 (Rel. Maria Luísa Arantes) acessível in www.dgsi.pt. “(…) quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”. Ou seja: o juiz de instrução criminal analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo sentido e alcance daquelas que teve no inquérito é mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição?
Se a resposta for positiva, deve pronunciar o arguido; caso contrário deverá lavrar despacho de não pronúncia.”
A avaliação da suficiência dos indícios que o juiz de instrução tem de fazer no momento da decisão instrutória da pronúncia, exige somente que conclua ser maior a probabilidade de condenação do que de absolvição. Existem indícios suficientes quando predomina a probabilidade de condenação (teoria da probabilidade dominante).
Para além do mais, sendo a instrução requerida pelo arguido, na sequência de acusação do Ministério Público, a decisão instrutória terá de apreciar o “mérito” da imputação criminal, ainda que necessariamente em termos indiciários, em face das provas recolhidas nos autos, bem como do preenchimento de algum ilícito criminal, concluindo pela pronúncia ou não pronúncia do arguido.
Pelo que, em síntese, reafirma-se são indícios suficientes aqueles que, relacionados e conjugados, persuadem o Juiz da responsabilidade criminal do arguido, fazendo antever, com razoável grau de probabilidade, a sua ulterior condenação. Na impossibilidade de alcançar esse grau de probabilidade de ulterior condenação, impõe-se a não pronúncia, tal como decorre do estatuído no art. 308º, nº 1, in fine, do CPP.
Regressemos à situação em apreço.
O arguido declarou no Requerimento de Abertura da Instrução (RAI), detinha nas circunstâncias de tempo, modo e lugar o produto estupefaciente, bem como os demais objectos identificados na douta acusação, todavia, esse produto era destinado ao seu único e exclusivo consumo, sendo consumidor de canábis há vários anos.
Não destinava à venda a terceiros os referidos produtos e o dinheiro apreendido era proveniente da sua actividade profissional, uma vez que á data explorava um café- A....
Também não existe nos autos qualquer elemento probatório que permite concluir que o arguido vendeu ou destinava à venda as referidas substâncias, e não foram visualizadas vendas ou identificados compradores de droga.
Apela ainda à alteração recente da legislação do combate à droga à luz da qual a sua conduta apenas integra uma contraordenação.
No recorrido a Sra. Juiz de Instrução considerou suficientemente indiciados os assinalados factos aceites pelo arguido:
1. No dia 12 de Novembro de 2022, pelas 1h45min., o arguido encontrava-se junto ao estabelecimento de restauração e bebidas, denominado “Café A...”, sita na Rua ..., nesta Cidade e Comarca, do qual é proprietário, na posse de uma bolsa que usava à tiracolo, contendo:
- no interior de um maço de tabaco, dento de um pedaço de papel vários pedaços de canábis (resina), com o peso líquido de 10,238 gramas, com um grau de pureza de 24,3%, correspondente a 49 doses;
- 6 cigarros com resíduos de canabis
- a quantia de € 502,05, em notas e moedas do BCE que se encontravam a granel no interior da citada bolsa
2. A totalidade dos produtos estupefacientes apreendidos pertencia ao arguido que a destinava ao seu exclusivo consumo individual, dando para um período de cerca de dois dias.
Mas considerou não resultar suficientemente indiciada nos autos a seguinte factualidade:
A) O arguido destinava os produtos estupefacientes apreendidos à venda a terceiros, mediante contrapartida económica.
B) A quantia em poder do arguido provinha da transacção de estupefacientes efectuada pelo mesmo antes da intervenção policial e destinava-se a ser utilizada na prossecução desta actividade.
C) O arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo quais eram as características, natureza e efeitos dos produtos estupefacientes que detinha, transportava, guardava, cedia e vendia, sempre com a intenção de obter contrapartida económica.
D) Sabia ainda que a posse, detenção, transporte, guarda, cedência e venda de tais produtos era proibida e punida por lei.
E) Não obstante disso bem saber, o arguido quis agir e sabia que procedia da forma descrita, vendendo a terceiros produtos estupefacientes.
F) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
A Sra. Juiz de Instrução valorou e considerou as diligências probatórias que referenciou no despacho recorrido, enfatizando as declarações do arguido, chamando a atenção para a ausência de quaisquer outros elementos probatórios que infirmem a versão do arguido – mormente o depoimento do Agente da P.S.P. que deteve o arguido não fez qualquer menção que o mesmo seja conotado nos meios policiais como vendedor de produto estupefaciente, chegando a efectuar diligência externa ao café e à zona envolvente, não tendo sido verificado nada que pudesse influir que o mesmo se dedicava ao tráfico de produto estupefaciente, pelo que entendeu que as declarações daquele merecem credibilidade.
Também não foi apreendido ao arguido qualquer outro material respeitante à atividade de tráfico de estupefacientes, como material de corte, balanças ou embalagens individuais para acondicionamento do produto.
Entendendo, por conseguinte, que estava criada uma situação de dúvida razoável a valorar em benefício do arguido, relevando ademais a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 55/2023 de 8/09 que alterou o DL n.º 15/93, de 22/01 introduzindo uma nova redação ao art. 40º como de resto se lê na decisão recorrida, pois anteriormente à entrada em vigor da redação de tal normativo, o referido preceito estatuía que a detenção de produto estupefaciente, para consumo do próprio e para um período superior a dez dias integrava a prática do crime de consumo. Agora tal preceito deixou de existir. Tendo havido descriminalização do crime de consumo é de aplicar retroativamente a lei penal mais favorável (art. 2º, nº 2, do Código Penal), concluindo-se pela inexistência de crime de consumo, por via da referida descriminalização.

Consequentemente, uma vez em julgamento, seria mais improvável do que provável a condenação do arguido.
Desta feita, analisando-se tais elementos factuais e argumentação jurídica, não cremos que o tribunal a quo tenha feito errado juízo quanto à indiciação factual, ao contrário do referido pelo recorrente Ministério Público.
Sustenta este, a sua posição, na quantidade de produto estupefaciente apreendida, escudado na Portaria 94/96 que se mantém em vigor, de acordo com a qual o produto corresponde a 49 doses diárias, ou seja, superior à necessária para 10 dias e ainda no nº 3 do art. 40º do DL 15/93 com a alteração introduzida pela lei 55/23 que refere “detenção (…) que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo.”, cabendo ao arguido ilidir essa presunção legal.
Porém os argumentos esgrimidos apresentam evidentes fragilidades.
Em relação à quantidade de produto estupefaciente apreendido, a Lei n.º 55/2023 de 8/09 que alterou o DL n.º 15/93, de 22/01, e faz uma segunda alteração à Lei n.º 30/2000, de 29/11, que aprova o regime jurídico do consumo de estupefacientes, e que de acordo com o art. 1º “Clarifica o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade (…)” veio introduzir alterações ao art. 40º do DL 15/93 e art. 2º da Lei 30/2000.
Atentando, pois, na nova redação do art. 40º, conclui-se que a compra e detenção de uma quantidade de droga superior ao consumo médio individual por mais de dez dias é permitida se ficar demonstrado que se destina exclusivamente ao autoconsumo. Claro que a ausência de um limite quantitativo admissível esbate a fronteira entre o tráfico e o consumo, dificultando a averiguação pelas autoridades quanto à finalidade da posse de droga e até facilitando a justificação da posse para os traficantes.
E daí que “No caso de (…) detenção das substâncias (…) que exceda a quantidade prevista no número anterior e desde que fique demonstrado que tal (…) detenção se destina exclusivamente ao consumo próprio, a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, o seu arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição e o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência.” – cfr. nº 4 do art. 40º na nova redação.
Por outro lado, e no que diz respeito à convocada Portaria n.º 94/96, de 26 de março, que, de acordo com o seu preâmbulo, teve o propósito de viabilizar a realização da perícia médico-legal e do exame médico referidos nos arts. 52.º e 43.º do DL 15/93, e determinou no seu art. 9º que “Os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante”, haverá que fazer a seguinte apreciação.
É para nós pacifico que os valores de “dose média individual” previstos na Tabela anexa à Portaria nº 94/96, de 26/3 não são inderrogáveis, automáticos ou imperativos. Podem ser considerados valores de consumo médio individual diferentes, em função das caraterísticas individuais do consumidor em questão, como é assinalado no acórdão deste TRP, datado de 2/10/2013 citado no Ac. também desta Relação de 08/09/2020 proferido no Proc. 106/19.2PBMAI.P1 (Rel. Liliana Paris Dias e por nós subscrito como Adjunta).
É verdade que o arguido detinha vários pedaços de canábis (resina), com o peso líquido de 10,238 gramas, com um grau de pureza de 24,3%, correspondente a 49 doses e 6 cigarros com resíduos de canábis, todavia, conjugando a Sra. Juiz de Instrução, os elementos probatórios constantes dos autos, com enfoque para as declarações do arguido analisadas que foram à luz das regras da experiência comum, concluiu que o antedito produto estupefaciente era destinado ao seu único e exclusivo consumo, já que é consumidor de canábis há vários anos, mostrando-se desde logo irrelevante se lhe dava para um ou dois dias ou mais, inclusivamente para mais de dez dias, de acordo com a legislação vigente relativa ao consumo que não especifica o máximo admissível.
E não é ao arguido que compete ilidir essa presunção legal, como alega o recorrente MP, antes são as autoridades judiciárias, que ficam agora com o ónus de ter de provar que a quantidade identificada na posse de alguém não se destina a consumo próprio, mas sim a tráfico. A alteração legislativa reflete, pois, uma inversão do ónus da prova. A responsabilidade agora recai sobre as ditas autoridades, que devem provar que a quantia encontrada na posse de alguém não foi destinada ao consumo pessoal, mas sim ao tráfico.
Perante o cenário apresentado, mesma a quantidade de dinheiro apreendida ao arguido – de € 502,05 - quantia essa que para o recorrente faz indiciar que tal montante monetário era resultado de anteriores vendas, é perfeitamente consentânea com a actividade do arguido, uma vez que à data explorava um café- A..., sendo plausível que constituísse o apuro do dia até porque quando foi intercetado era 1.45 horas.
Depois, à mingua de outros elementos que se revelariam importantes neste particular, a saber, a circunstância de não ter sido apreendido ao arguido qualquer outro material respeitante à atividade de tráfico de estupefacientes, como material de corte, balanças ou embalagens individuais para acondicionamento do produto e não ser individuo conotado nos meios policiais como vendedor de produto estupefaciente, não tendo sido presenciada qualquer transação, concluiu o tribunal a quo, e bem que a versão do arguido era credível.
Foi, aliás, efectuada uma diligência externa ao café e à zona envolvente, não tendo sido verificado nada que pudesse influir que o mesmo se dedicava ao tráfico de produto estupefaciente, como foi referido pelo agente que deteve o arguido.
Deste modo, a tese da acusação, dando por certo que o arguido apresente uma versão dos actos que não o incrimine, não lograria claramente comprovação, atentando nos ditos elementos probatórios elencados, pois nenhum deles aponta inequivocamente no sentido ali vertido, mesmo com apelo à normalidade das coisas e às regras da experiência, tal como pretende o recorrente MP, pois para este o “normal” é que o dinheiro do apuro estivesse na caixa registadora e o produto estupefaciente em casa ou mesmo no estabelecimento em local mais reservado. Pretendendo retirar da “anormalidade” detetada que o arguido transportava a bolsa com o produto estupefaciente e o dinheiro porque destinava tal produto a vender aos seus clientes e o dinheiro era o resultado de anteriores vendas.
Mas tais conclusões não se extraem, minimamente, da prova produzida, não tendo sido carreados para os autos elementos probatórios a esse respeito, pelo que tudo o que se diga são meras possibilidades. De todo o modo, mesmo sendo consabido que não se exige a existência de prova directa para a imputação de ilícitos criminais, pois que, para além daquela, a lei admite a comummente denominada de prova indirecta ou indiciária (sendo admissíveis, em processo penal, “as provas que não forem proibidas por lei” - art. 125º do CPP, nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais, as quais são “as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” (art. 349.º do C. Civil), ainda assim, na situação vertente, esta demonstra-se claramente insuficiente.
Relembra-se que em processo penal, só é válida, designadamente para efeitos de formação da convicção do Tribunal, a prova produzida ou examinada em audiência de julgamento, regra erigida no art. 355º, nº 1, do CPP e que emana desde logo do princípio da concessão das garantias de defesa amplamente acolhido no art. 32º da CRP. No entanto, a prova a atender não é só a que se produz ou analisa directamente sobre os factos que constituem o objecto do processo (por exemplo, depoimentos de testemunhas que assistem à prática do crime), mas também a designada prova indirecta ou circunstancial, desde que esses outros elementos sejam evidentes, em regra múltiplos, concordantes, convincentes e sem hipótese alternativas plausíveis, conquanto sejam sujeitos ao crivo do amplo contraditório próprio da audiência de julgamento, tal como decorre da jurisprudência consolidada dos nossos tribunais superiores, mormente podendo ler-se no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.09.2019 acessível em www.dgsi.pt.: “A eficácia probatória da prova indiciária está dependente da verificação de quatro requisitos, a saber: a prova dos indícios; concorrência de uma pluralidade de indícios; raciocínio dedutivo entre os indícios provados e os factos que deles se inferem, devendo existir um nexo preciso, directo, coerente, lógico e racional”.
Donde, os indícios para fundamentarem uma condenação têm que ser claros, não podem deixar margem para dúvidas; regra geral, exige-se a pluralidade de elementos indirectos, ainda que se admite um só, se for particularmente grave e peremptório; os resultados a que tais indícios conduzem têm que ser compatíveis; e não podem ter obstáculos, como hipótese alternativas plausíveis.
Ora tais parâmetros não se mostram cumpridos no nosso caso, pois os apontados indícios, têm uma explicação alternativa plausível como se retira dos fundamentos do despacho recorrido e das razões já apontadas. Com efeito, na presente situação, a mera detenção do estupefaciente e do dinheiro, tratando-se o arguido de um consumidor de canábis há vários anos, sendo esse o estupefaciente apreendido, não permite, por si só, concluir tudo o mais que é imputado àquele na acusação deduzida pelo Ministério Público, em termos de factualidade objectiva e subjectiva. Não é possível, somente com base nesses elementos, dar o “salto” para os demais factos que aí se narraram.
Tudo para concluir, que a prova recolhida nos autos (e elencada na acusação) não é suficiente para afirmar como indiciados todos os factos da acusação, por forma a que, com base nela, haja maior probabilidade de o arguido, em julgamento, seja condenado do que absolvido do crime que lhe é imputado, tendo ainda presente que a dúvida quanto à verificação dos factos dados como não indiciados na decisão recorrida sempre lavaria, nessa sede, à consideração do princípio in dubio pro reo, corolário da presunção de inocência constitucionalmente consagrada (art. 32º, nº 2, da CRP).
E porque não há elementos nos autos que levem a concluir, em termos indiciários, que a condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado é mais provável que a sua absolvição, não nos merece censura o sentido decisório do despacho recorrido, em face do disposto no art. 308º, nº 1, in fine, do CPP.
Em consequência, soçobra o recurso interposto.

3. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta segunda secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
Sem custas - art. 522º do CPP

Notifique.

(Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).

Porto, 12.06.2024.
Cláudia Rodrigues
Elsa Paixão
José António Rodrigues da Cunha