Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | FRNACISCO MOTA RIBEIRO | ||
Descritores: | LEI DO JOGO UTENSÍLIOS DO JOGO DESTRUIÇÃO PRESSUPOSTOS BENS APREENDIDOS PERDA A FAVOR DO ESTADO REQUISITOS LEGAIS NATUREZA JURÍDICA | ||
Nº do Documento: | RP2024062644/21.9PFVNG-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/26/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO. | ||
Indicações Eventuais: | 4. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I – Decorre claramente do artigo 116º da Lei do Jogo (DL nº 422/89, de 02 de dezembro) que a destruição dos utensílios de jogo, a ser determinada pelo tribunal, pressupõe a comprovação da prática de um crime previsto no mesmo diploma. II – Porque inicialmente considerados instrumentos dos crimes praticados, que como tal vinham referidos na acusação, aos bens apreendidos é aplicável o disposto no artigo 109º do Código Penal, ou seja, o seu eventual perdimento a favor do Estado, ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz. III – No entanto, não resultando provado qualquer facto que permita concluir pela existência de um qualquer ilícito-típico, seja à luz do artigo 116º, seja ao abrigo do artigo 109º, ambos supra citados, interpretados à luz da Diretiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, não é possível decretar a perda dos bens apreendidos a favor do Estado. IV – Assim sendo, será despicienda a apreciação do segundo pressuposto, o material, da eventual perigosidade dos bens apreendidos, isto é, de os mesmos poderem ou não ser utilizados na prática de novos crimes, porquanto faltando o primeiro pressuposto, e ainda que se verificasse o segundo, a determinação de tal perda não assumiria um cariz, que deve ter, de consequência jurídica de natureza criminal, mas de medida de polícia administrativa, sem lei. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 44/21.9PFVNG-A.P1 - 4ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
“Prevê o artigo 109º, n.º 1, do C. Penal que “1- São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática. 2 - O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz. 3 - Se os instrumentos referidos no n.º 1 não puderem ser apropriados em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A. 4 - Se a lei não fixar destino especial aos instrumentos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.” Ora, no caso em apreço verifica-se encontrarem-se apreendidos à ordem dos presentes autos, os objetos melhor identificados nos autos de apreensão (ref. 28045747, 28045784 e 28045749). Assim, atenta a natureza de tais objetos os mesmos são suscetíveis de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos, pelo que, nos termos do artigo 109.º n.º 1 e 2, do Código Penal, declaro os objetos aprendidos à ordem destes autos perdidos a favor do estado. Mais se ordena a sua destruição cfr. artigo 109.º n.º 4, do mesmo diploma legal ex vi artigo 185.º n.º 1, do CPP.” 1.2. Não se conformando com tal decisão, dela veio interpor recurso o arguido AA, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões: “I. O Arguido aqui recorrente foi, em conjunto com os demais arguidos, absolvidos dos crimes de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108.º, n.º 1, do DL 422/89, de 2.12, e participação ilícita em jogo, p. e p. pelo artigo 110.º do mesmo diploma legal, pelos quais vinha acusado, não se tendo dado como provado que os arguidos tenham praticado os crimes dos quais vieram acusados, uma vez que não se provou que os mesmos estivessem, à data dos factos, a jogar um jogo ilícito II. Após o transito em julgado da sentença que absolveu os Arguidos, o Tribunal “a quo”, por despacho de 26/01/2024, com a referência CITIUS 456126400, declarou como perdidos a favor do Estado os objetos aprendidos à ordem dos autos, mais ordenando a destruição dos mesmos. III. Tais bens apreendidos dizem respeito a inúmeras cartas e fichas de jogo, com e sem numeração (conforme decorre de simples leitura dos autos de apreensão com as referências 28045749; 28045748; 28045747, aos quais o despacho recorrido faz expressa referência). IV. Os bens apreendidos e melhor descritos nos autos de apreensão, não são, pela sua natureza, objetos suscetíveis para a prática de novos crimes, porquanto não se provou que foram usados para a prática do crime que os arguidos vieram acusados e porque se trata de bens mundanos, à venda nas superfícies comerciais, que a maioria dos portugueses tem em sua casa. V. Não se vislumbrando os riscos específicos e perigosidade do próprio objeto, nem nesse sentido fundamentou o Tribunal “a quo”. VI. Sendo assim evidente que o despacho que declara os objetos apreendidos à ordem destes autos perdidos a favor do Estado e, subsequentemente, ordena a destruição dos mesmos é manifestamente omisso quanto à fundamentação de factos que sustentem tal decisão. VII. É, pois, nula a decisão, porquanto a mesma carece de fundamento, nulidade essa que ora expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos. Sem prescindir, VIII. Não tendo existido ilícito criminal, manifestamente que não se verifica o dito pressuposto para que tais bens apreendidos sejam declarados perdidos a favor do Estado. IX. Atenta a característica (e evidente) inocuidade dos bens apreendidos, não estamos perante uma situação que importe a apreensão e destruição dos referidos bens. X. Assim, não estando verificados os requisitos legais para ser declarada a sua perda a favor do Estado, designadamente nos termos da norma invocada, terão os bens apreendidos de ser restituídos a quem de direito, lavrando-se auto, em conformidade com o disposto no artigo 186.º do CPP XI. O despacho aqui recorrido é uma clara violação do disposto nos artigos 374.º, n.º 3, alínea c), e 186.º, n.º 2, ambos do CPP, assim como do disposto no artigo 109º do CP. XII. Sendo mesmo entendimento da jurisprudência que o momento correto para dar destino aos objetos que até esse momento continuam apreendidos é a sentença, sendo esta o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão – ora, transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objetos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art.º 186º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objetos (nesse sentido, veja-se Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no âmbito do Processo nº 970/18.2JAPRT-C.P1) XIII. O despacho proferido após o transito em julgado de sentença que absolve os arguidos, que determina o perdimento a favor do Estado de objetos apreendidos, de detenção lícita por particulares afigura-se como uma clara violação de caso julgado. Face a todo o supra exposto, vem o Arguido recorrente requerer a V. Exas, muito respeitosamente, a procedência do presente recurso e, em consequência: a) Seja declarada a nulidade do douto acórdão proferido por manifesta falta de fundamento; b) Seja ordenada a revogação do despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine o levantamento da apreensão de tais bens e a sua entrega àquela, nos termos do artigo 186.º do CPP.” “Defende-se que declaração de perdimento possa ter lugar depois do trânsito em julgado, pelo que o despacho recorrido, não enfermará de qualquer violação de lei, nem de ofensa à Constituição da República Portuguesa, quando a perigosidade dos objetos (de per si, ou atentas todas as circunstâncias do seu uso), possa justificar uma declaração ulterior de perda, uma vez existir um risco sério de serem usados na prática de novos crimes, atentos os factos apurados. - Deverá ser revogada a declaração de perdimento no que concerne às cartas de jogar, atento o supra descrito; já quando às fichas, embora não se tenha apurado que tenham sido utilizadas no cometimento de algum ilícito, certo é que as mesmas se podem considerar como perigosas, atento o seu indiciado uso em local conotado com a prática de jogo ilícito, mostrando-se assim, eventualmente, justificada a declaração da sua perda. 1.4. O Exmo. Senhor Procurador-Geral-Adjunto, junto deste Tribunal, emitiu douto parecer, no qual concluiu pela procedência parcial do recurso, nos termos propugnados pelo Ministério Público na primeira instância, na resposta por este deduzida ao recurso. 1.5. Foi cumprido o art.º 417º, nº 2, do CPP. 1.6. Tendo em conta o objeto do recurso, importa apreciar e resolver as seguintes questões: 1.6.1. Preclusão da possibilidade de dar destino aos bens apreendidos quando a respetiva decisão não foi tomada na sentença que conheceu do mérito da causa; 1.6.1. Nulidade do despacho que declarou a perda de bens por falta de fundamentação, com apreciação precípua da possibilidade da sua arguição perante o tribunal de recurso; 1.6.2. Da possibilidade ou não de declaração da perda de instrumentos do crime, pelo facto de estar em causa nos autos a absolvição dos arguidos da autoria de todos os crimes que lhe vinham imputados na acusação. 2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos 2.2.1. Da preclusão da possibilidade de dar destino aos bens apreendidos quando a respetiva decisão não foi tomada na sentença que conheceu do mérito da causa Seguindo a ordem lógico-cronológica das questões colocadas pelo recorrente, a primeira delas atine à alegada violação do disposto no art.º 374º, nº 3, al. c), e 186º, nº 2, do CPP, na medida em que na sentença proferida nos autos não foi dado destino aos bens apreendidos, e não tendo sido dado destino a tais objetos, a consequência, no entender do recorrente, seria a impossibilidade de essa pronúncia poder ter lugar através de despacho, a não ser com um sentido a si favorável, isto é, de tais objetos não poderem vir a ser declarados perdidos a favor do Estado. Para o recorrente o facto de o destino a dar aos bens apreendidos não ter sido contemplado na sentença final proferida no autos, entretanto transitada em julgado, nos termos previstos nas disposições normativas acima citadas, em bom rigor, não seria um problema de preclusão da possibilidade de se decidir sobre o destino a dar a esses bens, opção que, aliás, deixaria num limbo jurídico a situação jurídico-patrimonial dos bens apreendidos, provocando uma lacuna que seria juridicamente absurda, mas sim a impor um sentido de decisão favorável ao próprio recorrente, ainda que contra legem, isto é, em violação das disposições normativas de direito material, que pudessem impor ao julgador critérios de legalidade estrita quanto ao efetivo destino a dar a esses bens, pretendendo assim o recorrente fazer valer em seu favor um critério de mera oportunidade, a si natural e arbitrariamente favorável, face à circunstância de na sentença final proferida, certamente por esquecimento, se ter omitido a prolação de decisão sobre o destino a dar aos bens apreendidos. Nos termos do art.º 380º, nº 1, al. a), do CPP, conjugado com o disposto no art.º 379º, nº 1, do mesmo diploma, o tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença, que operará por mero despacho, quando nela não tenha sido integralmente observado o disposto no art.º 374º, sendo que no âmbito do dispositivo da sentença, a que alude o nº 3 deste mesmo artigo, apenas a omissão do requisito relativo à condenação ou absolvição, constante da al. b), é fundamento de nulidade, como resulta do art.º, 379º, nº 1, al. a), constituindo a falta dos restantes requisitos uma mera irregularidade, suprível nos termos especialmente previstos no art.º 380º, nº 1, al. a), do CPP. Por despacho. Aliás, neste sentido, de a ponderação fáctico-jurídica sobre o destino a dar aos bens apreendidos poder ter lugar por mero despacho, após a prolação da sentença que conheceu do mérito da causa, pode ver-se, entre outros, os Ac. do TRC, de 16/02/2022; do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/10/2023; do Tribunal da Relação do Porto, de 06/04/2011, de 11/11/2012 e de 02/03/2016; do Tribunal da Relação de Guimarães, de 28/10/2019; e do Tribunal da Relação de Évora, de 11/10/2022[1]. 2.2.2. Da nulidade do despacho que declarou a perda de bens por falta de fundamentação, com apreciação precípua da possibilidade da sua arguição perante o tribunal de recurso A segunda questão posta no recurso interposto diz respeito à alegada nulidade do despacho recorrido, por falta de fundamentação. Diz o recorrente que o despacho recorrido é manifestamente omisso quanto à fundamentação de factos que sustentem a decisão e conclui que o mesmo é nulo. O referido vício e a nulidade que o mesmo pudesse comportar deveria ter sido suscitado perante o próprio Tribunal que proferiu a decisão e não por via do recurso dela interposto, pois apenas relativamente aos vícios de nulidade da sentença prevê a lei a possibilidade de serem arguidos ou conhecidos em sede de recurso – é o que resulta do art.º 379º, nº 2, do CPP. Sendo certo, porém, que a nulidade agora invocada pelo recorrente foi efetivamente por si arguida junto do Tribunal a quo, tendo sobre ela sido prolatada a decisão de 05/03/2024, que julgou improcedente a invocada nulidade, mantendo-se o despacho anteriormente proferido. Não se conformando com esta última decisão, restaria ao recorrente interpor recurso da mesma, nos termos legais. Ora, não o tendo feito, a mesma transitou em julgado, não sendo possível a este Tribunal de recurso, ou mesmo ao Tribunal recorrido, voltar a pronunciar-se sobre a questão aí decidida. De qualquer modo, sempre se poderá dizer o seguinte: No âmbito dos atos decisórios dos juízes, a que alude o art.º 97º, nºs 1 e 2, do CPP, apenas as sentenças, nos termos previstos no art.º 379º, nº 1, al. a), conjugada com o art.º 374º, nº 2, do CPP, poderão padecer do vício de nulidade por falta de fundamentação, ou seja, por falta de menção de algum dos elementos da fundamentação da sentença referidos no art.º 374º, nº 2, ou da falta de condenação ou de absolvição, a que se refere a al. b) do nº 3 do mesmo artigo. A “falta de fundamentação” num mero despacho, dada a ausência de previsão legal que especificamente comine um tal vício com a nulidade, tendo ademais em conta o princípio da legalidade das nulidades dos atos, previsto no art.º 118º, nº 1, do CPP, faz com que o mesmo se traduza numa mera irregularidade, nos termos do nº 2 deste mesmo artigo, a ser arguida ou conhecida em harmonia com o estabelecido no art.º 123º do CPP, ou seja, no próprio ato ou se a este os interessados não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado. Podendo assim concluir-se que a arguição da irregularidade agora apontada seria manifestamente extemporânea. Como já o era quando foi considerada arguida perante o Tribunal recorrido (a decisão foi notificada ao recorrente por ofício expedido a 26/01/2024 e este veio a arguir a nulidade no processo apenas a 08/02/2024, já decorrido o prazo de três dias, e o mesmo já sucederia também no articulado de interposição do recurso, apresentado a 28/02/2024, não se olvidando ainda que a decisão da primeira instância, em que se decidiu o mérito da arguição da referida nulidade, foi proferida a 05/03/2024. Ou seja, pelas razões acabadas de referir é o recurso interposto, neste segmento, manifestamente improcedente. 2.2.3. Da possibilidade ou não de declaração da perda de instrumentos do crime, pelo facto de estar em causa nos autos a absolvição dos arguidos da autoria de todos os crimes que lhe vinham imputados na acusação Resta agora conhecer o mérito da pretensão deduzida pelo recorrente, de ver revogado o despacho que determinou a perda dos bens apreendidos nos autos a favor do Estado, de molde a que os mesmos lhe sejam restituídos. Está em causa a apreensão de - 13 cartas; - 7 fichas com a marcação do n.º 50; - 8 fichas com a marcação do n.º 10; - 8 fichas com a marcação do n.º 5; - 5 fichas sem qualquer marcação; 13 cartas; 7 fichas com a marcação do n.º 50; - 12 fichas com a marcação do n.º 10; - 4 fichas com a marcação do n.º 5;- 4 fichas sem qualquer marcação. 13 cartas; - 7 fichas com a marcação do n.º 50; - 7 fichas com a marcação do n.º 10; - 6 fichas com a marcação do n.º 5; - 3 fichas sem qualquer marcação. Tudo nos termos descritos nos três autos de apreensão de bens juntos aos autos, e também descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público, na qual vinha imputada ao recorrente e ao arguido BB a prática, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108.º, n.º 1, com referência aos artigos 1.º, 4.º, 159.º, todos do DL 422/89, de 02.12, na sua redação atual, e um crime de prática ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 110.º, com referência aos artigos 1.º, 4.º, 159.º, todos do DL 422/89, de 02.12 na sua redação atual. E ainda ao arguido CC, em autoria imediata e na forma consumada, a autoria de um crime de prática ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 110.º com referência aos artigos 1.º, 4.º, 159.º, todos do DL 422/89, de 02.12 na sua redação atual. Ora, os arguidos foram absolvidos da autoria dos referidos crimes, por sentença transitada em julgado, na qual apenas resultaram provados os seguintes factos: “1. Os arguidos AA e BB são Vice-presidentes, aquele da Direção e este do Conselho Fiscal, da Associação Cultural Desportiva e Recreativa denominada “...”, situada na Rua ..., ... .... 2. No dia 28 de janeiro de 2021, entre as 15h45m e as 17h30m, os arguidos AA, CC e BB encontravam-se no interior da mencionada Associação, sentados à volta de uma mesa redonda, a jogar, entre si e uns contra os outros, cartas. 3. A mesa na qual os arguidos se encontravam, tinha um pano vermelho sobre a superfície, 8 copos encastrados na sua periferia e no centro dois montes de cartas - um constituído por cartas cuja face se encontrava voltada para cima e outro cuja face se encontrava voltada para baixo -, e diante de cada um dos arguidos várias cartas e fichas coloridas e numeradas; 4. Cada um destes arguidos tinha à sua frente e em cima da mesa, respetivamente, os seguintes objetos: 6.1 – O arguido AA: - 13 cartas; - 7 fichas com a marcação do n.º 50; - 8 fichas com a marcação do n.º 10; - 8 fichas com a marcação do n.º 5; - 5 fichas sem qualquer marcação. 6.2 – O arguido BB: - 13 cartas; - 7 fichas com a marcação do n.º 50; - 12 fichas com a marcação do n.º 10; - 4 fichas com a marcação do n.º 5; - 4 fichas sem qualquer marcação. 6.3 – O arguido CC: - 13 cartas; - 7 fichas com a marcação do n.º 50; - 7 fichas com a marcação do n.º 10; - 6 fichas com a marcação do n.º 5; - 3 fichas sem qualquer marcação. 5. Em todas as circunstâncias descritas os arguidos atuaram de forma livre e voluntária.” Tratando-se de bens apreendidos à ordem dos autos importa ter presente o que dispõe o art.º 186º, nº 2, do CPP, ao dizer que “Logo que transitar em julgado a sentença, os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”. Ou seja, só ressalvada a hipótese de os bens terem sido declarados perdidos a favor do Estado é que os mesmos não poderão ser restituídos, nos termos previstos na norma, caso contrário impõe-se legalmente a sua restituição a quem de direito. Sobre a perda de bens, neste caso específico, rege o art.º 116º da Lei do Jogo (DL nº 422/89, de 02 de dezembro), ao estabelecer que “O material e utensílios de jogo serão apreendidos quando sejam cometidos crimes previstos nesta secção e destruídos, a mandado do tribunal, pela autoridade apreensora”. Sendo assim claro, à luz da norma acabada de transcrever, que a destruição dos utensílios de jogo, a ser determinada pelo tribunal, pressupõe a comprovação da prática de um crime previsto no mesmo diploma, circunstância que, como se deixou referido, não ocorreu no caso dos autos. Porque inicialmente considerados instrumentos dos crimes praticados, que como tal vinham referidos na acusação, aos bens apreendidos é aplicável o disposto no art.º 109º do Código Penal, cujo nº 1 estabelece que “São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática” e o nº 2 que a perda prevista no nº 1 terá lugar “ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz”. Para o Professor Jorge de Figueiredo Dias, instrumentos do crime serão “os objetos (coisas) utilizados como meio(s) de realizar o crime”[2]. Definição no essencial coincidente com a que resulta do art.º 2º, nº 3, da Diretiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, cuja transposição deu origem à alteração do art.º 109º do CP, pela Lei nº 30/2017, de 30 de maio, e define instrumentos do crime como “quaisquer bens utilizados ou que se destinem a ser utilizados, seja de que maneira for, no todo ou em parte, para cometer uma ou várias infrações penais”. Ou seja, elemento essencial ao preenchimento do conceito é a demonstração de que os bens foram utilizados ou se destinavam a ser utilizados par cometer uma ou várias infrações penais. Sendo ademais elucidativo o disposto no art.º 4º, nº 2, do mesmo Diploma, ao dizer que “Se não for possível a perda com base no nº 1, e pelo menos se tal impossibilidade resultar de doença ou de fuga do suspeito ou arguido, os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda dos instrumentos ou produtos nos casos em que foi instaurado processo penal por uma infração penal que possa ocasionar direta ou indiretamente um benefício económico, e em que tal processo possa conduzir a uma condenação penal se o suspeito ou arguido tivesse podido comparecer em juízo.” O Professor Paulo Pinto de Albuquerque divide os pressupostos da perda em pressupostos de caráter formal e material. O pressuposto formal seria o “da utilização dos instrumentos numa atividade criminosa, não sendo necessário que esse crime se tenha consumado, nem seja imputável ao arguido”. É, pois, continua o mesmo autor, “suficiente que possa ser aplicada uma medida de segurança ao facto típico-ilícito, razão pela qual a perda pode ser declarada quer em relação a agentes imputáveis quer a agentes inimputáveis”, invocando ainda, em favor de um tal entendimento, as atas das Comissões de revisão do Código Penal de 1961/1964 e 1989/1991. Recordemos que na redação proposta para o então art.º 107º, nº 2, do Projeto de Revisão de 1989, correspondente ao atual art.º 109º, nº 2, do CP, no qual se dizia que “O disposto no número anterior terá lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, se pronunciou o Professor Jorge de Figueiredo Dias, quando aí foi posta a questão sobre o alcance da substituição da expressão ‘crime’ por ‘facto ilícito’, e nomeadamente se se pretendia abranger as próprias contraordenações, “esclareceu desde logo” o Il. Professor “que não foi essa a intenção. O que se pretende obter com ‘facto ilícito’, é o afastamento da ideia de culpa, valendo também a medida para inimputáveis”[3]. Sendo esta a posição que o mesmo autor mais tarde reitera, defendendo uma interpretação do então art.º 107º, nº 2, “nos termos mais restritivos que se tornem viáveis, nomeadamente restringindo o seu âmbito de aplicação aos casos em que o agente está determinado, mas não pode, por falta de pressupostos de punibilidade, ser perseguido e (ou) condenado. O que implicaria que, nestes casos, pressuposto da perda seria somente a verificação de um facto ilícito-típico no preciso sentido da doutrina do crime; em todo o caso, portanto, um ilícito onde estivesse presente não só o tipo de ilícito objetivo, como o tipo de ilícito subjetivo, doloso ou negligente.”[4] No fundo, o que o mesmo autor já havia afirmado momentos antes: “os casos em que o agente do facto está determinado, mas o processo deve ser arquivado por qualquer causa de extinção da responsabilidade ou por falta de pressupostos processuais”. E neste sentido assim propugnado foi também a alteração operada pela Lei nº 30/2017, de 30/05, ao nº 2 do art.º 109º do CP, ao aditar o seguinte segmento normativo: “incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz”, o que além de deixar incólume o pressuposto da verificação do facto ilícito-típico, enquanto fundamento jurídico-penal da determinação da perda dos instrumentos do crime apreendidos, que logicamente não será de determinar se objetivamente não houver qualquer crime, mais ainda reforça teleologicamente a necessidade de verificação daquele pressuposto. Podendo assim dizer-se que, não resultando provado qualquer facto que permita concluir pela existência de um qualquer ilícito-típico (ainda que “com a necessária ressalva de todos os elementos para a culpa”[5]), seja à luz do art.º 116º do DL nº 422/89, de 02 de dezembro, seja ao abrigo do art.º 109º, nºs 1 e 2, do CP, interpretados à luz da Diretiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, não é possível decretar a perda dos bens apreendidos a favor do Estado. Sendo despicienda a apreciação do segundo pressuposto, o material, da eventual perigosidade dos bens apreendidos, isto é, de os mesmos poderem ou não ser utilizados na prática de novos crimes, porquanto faltando o primeiro pressuposto, e ainda que se verificasse o segundo, a determinação de tal perda assumiria, não um cariz, que deve ter, de consequência jurídica de natureza criminal, mas de medida de polícia, administrativa[6], sem lei, como o também seria no caso em que a autoridade policial, sem qualquer indício da prática de um crime, decidisse apreender os mesmos objetos que foram apreendidos nos autos, estando eles a ser usados num qualquer pueril jogo entre crianças, à porta da casa de seus pais, ainda que depois se pudesse, a um nível certamente mais abstrato do que concreto, dizer que aqueles objetos também poderiam ser utilizadas na prática de crimes de jogo ilícito. Razão por que irá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine, nos termos do art.º 186º, nº 2, do CPP, a restituição dos objetos apreendidos a quem de direito.
2.3. Responsabilidade pelo pagamento de custas Uma vez que o arguido obteve vencimento non recurso, não é responsável pelo pagamento da taxa de justiça - art.ºs 513º, nº 1, a contrario, do Código de Processo Penal.
3. DISPOSITIVO Face ao exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal (4ª Secção Judicial) deste Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente, determina-se a restituição dos objetos apreendidos nos autos a quem de direito. Sem custas.
Porto, 2024-06-26 Francisco Mota Ribeiro Maria dos Prazeres Silva Liliana de Páris Dias ___________________________ [1] Respetivamente, processos nºs 72/08.0TAMMV-B.C1, 4/22.2PBVPT-A.L1-3, 538/06.6GNPRT.P1, 323/09.3GACNF.P1, 176/14.0TASTS-A.P1, 395/15.1GAVLP.G1 e 90/17.7GASRP-A.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. [2] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, Coimbra, p. 618. [3] Atas e Projeto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, Rei dos Livros, 1993, Lisboa, p. 92. [4] Idem, p. 621. [5] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Idem, p. 506. [6] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Obra citada, p. 620 |