Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
25/24.0T8STS-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO DA MASSA INSOLVENTE
ADVOGADO
CONFLITO DE INTERESSES
Nº do Documento: RP2025011425/24.0T8STS-E.P1
Data do Acordão: 01/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Identifica-se um antagonismo entre os interesses de um insolvente, numa insolvência em que um imóvel apreendido para a massa vai ser vendido, e os de um proponente à respectiva aquisição no âmbito da liquidação nesse mesmo processo de insolvência.
II - Em razão de tal conflito de interesses, o mesmo advogado não pode representar simultaneamente o insolvente a o proponente comprador.
III - Para a identificação do conflito de interesses, é irrelevante a não identificação de um concreto prejuízo resultante da representação simultânea de tais diferentes entidades, ou a falta de oposição de qualquer sujeito processual.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 25/24.0T8STS-E.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 3

REL. N.º 928
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Anabela Dias da Silva
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Raquel Lima
*
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1 – RELATÓRIO

Por apenso ao processo em que foi declarada a insolvência de AA, foi aberto o competente apenso de liquidação do activo, tendo por objecto duas verbas: a primeira, constituída por uma fracção autónoma de um prédio urbano, da freguesia e concelho de Vila do Conde, inscrita na matriz sob o nº ..., da mesma freguesia; a segundo, constituída pelo automóvel com a matrícula nº ..-..-AA.
O referido imóvel foi inserido na plataforma E-Leilões, a 26/5/2024, em ordem à sua venda por leilão electrónico, mas a insolvente veio apresentar diversos requerimentos, invocando fundamentos para que a venda da fracção não se viesse a concretizar. Tal matéria acabou por ser objecto de decisão e de um outro recurso, tudo em termos que à presente instância recursiva são alheios.
Entretanto, o leilão electrónico foi encerrado, nele tendo sido obtida como proposta mais elevada a apresentada por 146.450,00€, conforme veio a ser informado pela Sra. A.I., em requerimento de 21/6/2024. Mais informou ter notificado a proponente para o depósito de 20% do valor, num total de 29.290,00€.
Juntando o ofício respeitante a tal notificação, nele se constatou que o licitante por aquele valor havia sido a sociedade A..., Lda, representada pelo Il. Advogado Dr. BB, o qual é em simultâneo, nestes mesmos autos, mandatário da própria insolvente, tendo sido subscritor dos referidos requerimentos referentes à venda do mesmo imóvel.
Essa mesma coincidência foi apontada pelo credor B... S.A., que apenas requereu o prosseguimento da venda do imóvel por aquele valor de 146.450,00€, nos seguintes termos: “6º De notar uma coincidência: a licitante da proposta mais alta é representada pelo mandatário da insolvente.”
Em resposta a esse requerimento, a insolvente apresentou um outro requerimento, em 2/7/2024, onde afirmou:
“5º Nem se percebe sequer as intervenções desta credora e muito menos a insinuação do item 6º (do requerimento anterior da B... S.A.)
(…)
7º A legitimidade para a Credora se pronunciar assenta tão só e apenas no direito que tem de receber na íntegra o seu crédito.
8º Se tal facto lhe está garantido seja por venda da fracção no leilão electrónico ou na negociação judicial particular com salvaguarda do direito de uso e habitação à insolvente, não se vê que prejuízo ou inconveniente ocorra para qualquer um dos credores reconhecidos.
(…)
11º É estranho que o facto de o signatário ser o representante da licitante incomode a Credora em causa, apesar de não a afectar em nada”
Sucessivamente, em 8/7/2024, veio a insolvente, representada pelo mesmo Il. Mandatário Dr. BB apresentar requerimento onde deu conta da sua percepção de que a Sra A.I. pretendia celebrar a escritura de venda do imóvel sem que estivessem decididas questões relativas à pretensão que deduzira, de lhe ser garantido um direito de uso e habitação do imóvel, requerendo a “sustação da venda”.
Decidindo sobre a situação, foi proferida a decisão sob recurso, com o seguinte teor:
“Quanto à questão da representação da proponente ser a mesma da insolvente existe efetivamente uma incompatibilidade.
Na verdade, não pode o Sr. Dr. BB a defender os interesses da insolvente, pedindo que se suspenda as diligências de venda do imóvel à proponente que se encontra igualmente representada pelo Sr. Dr. BB, porque neste incidente a insolvente e a proponente têm posições antagónicas e a insolvente veio deduzir uma pretensão que é prejudicial ao interesse da propoente que manifestou a vontade adquirir o imóvel.
Na verdade, a este propósito dispõe o art. 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados o seguinte:
1. O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.
2. O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3. O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4. Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5. O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
6. Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.
Da situação exposta estará em causa ou o segmento da norma previsto nos nº 1 ou no nº 2 da disposição legal transcrita.
Assim, antes de mais, ao abrigo do nº 4 da mesma disposição legal, deverá o Sr. Dr. BB cessar de agir por conta ou da insolvente ou da proponente, no âmbito desse conflito e informar nos autos essa cessação.
Sem prejuízo deste incidente e com vista a que ele não implique maior protelação dos autos, sendo que o mesmo deveria implicar, a suspensão da instância até estar regularizado, a verdade é que face aos interesses em causa, decide-se proferir já decisão, atendendo aos interesses em causa.
Ora, diz a insolvente que a sua intervenção é anterior ao encerramento do leilão.
Na verdade, a assinatura do requerimento em decisão foi feita 29 minutos antes do encerramento do leilão.
Ou seja, a insolvente após ter pedido o deferimento da desocupação do imóvel apresentou cerca de 29 minutos antes do encerramento do leilão, uma sugestão de venda a um terceiro que lhe garantiu que pagava os créditos reclamados no processo e lhe garantia o direito de uso e habitação.
Sucede que esta sugestão, não passa de isso mesmo, ou seja, de uma mera sugestão, tendo em conta que não foi junta qualquer prova da veracidade desta sugestão, designadamente a declaração do dito terceiro que se disponibilizava a fazer o negócio.
Por outro lado, o leilão foi encerrado com a apresentação de uma proposta de aquisição do imóvel por um valor superior ao valor da venda, tendo o propoente sido notificado para depositar o valor correspondente a 20% do valor da venda.
Assim, sob pena de se prejudicar os credores quer pela indefinição da sugestão apresentada pela insolvente, quer pela intempestividade da sua pretensão, dado o encerramento do leilão 29 minutos após a assinatura da peça processual, quer pela falta de prova da veracidade do negócio proposto, indefere-se a pretensão da insolvente, quando pretende que “se dê sem efeito um leilão” que estava praticamente encerrado.
Notifique, devendo a Sra. AI prosseguir com as diligências de liquidação.”
Deste despacho foram interpostos dois recursos, ambos admitidos como apelação e com subida em separado.
Um constituiu o Apenso E, correspondente aos presentes autos, interposto pelo próprio Dr. BB, tendo por objecto a decisão respeitante à incompatibilidade de exercício do mandato conferido pela insolvente com a representação da entidade licitante (segmento a negrito).
Um outro constitui o apenso F e foi interposto pela insolvente, tendo por objecto a questão relativa à validade e eficácia do leilão realizado.
*
Neste contexto, o recurso em presença, que constitui o referido apenso E, mostra-se oferecido pelo próprio Dr. BB, enquanto “Advogado Signatário e mandatário da Insolvente”, e culmina com as seguintes conclusões:
A) Versa o presente recurso a decisão da Exma. Sra. Juiz a quo de 09/07/2024, Ref.ª 461972508, na parte em que a mesma considerou incompatível o mandato exercido pelo Recorrente enquanto advogado da Insolvente e por outro lado a representação como gerente da sociedade comercial por quotas com o NIPC ..., denominada A... Lda. e ordenou ao Recorrente que nos termos do nº 4 do art.º 99º do E.O.A. cesse de agir como mandatário da Insolvente ou como gerente da indicada sociedade, por violação do nº 1 ou do nº 2 do art.º 99º referido;
B) A decisão em causa violou o disposto no art.º 3º do C.P.C., pois que nem a Insolvente, nem o Recorrente, nem a proponente, nem os Credores foram notificadas para se pronunciarem, quanto à incompatibilidade, pelo que a mesma constitui decisão surpresa, nula e de nenhum efeito nos termos da al. d) do nº 1 do art.º 615º do C.P.C., o que se argui.
C) Não existe nos autos nenhum facto praticado pelo Recorrente, seja enquanto advogado constituído e mandatário da Insolvente, seja em representação da Proponente /Licitante que apresentou a proposta mais alta, que cause prejuízo à Insolvente, ou que cause prejuízo aos Credores garantidos e não garantidos ou que ponha em causa o pagamento de um cêntimo que seja das dívidas da Massa ou das Custas e Encargos dos presentes autos;
D) A proposta que o Recorrente fez em representação da Insolvente de a venda judicial do único bem imóvel que a mesma possui ser feita através de venda judicial por negociação particular, que garanta o seu direito à habitação e o integral pagamento das dívidas dos credores, das dívidas da Massa, das Custas e Encargos, em nada contende com a licitação que fez, em representação da proponente, já que esta apenas tem uma mera expectativa de o imóvel em causa lhe poder vir ser adjudicado;
E) Sendo que a Proponente se viu obrigada a cumprir a notificação do pagamento de 20 % feita pela Sra. A.I., por forma a garantir o cumprimento da lei, não ignorando porém que se lhe não for adjudicado o imóvel, tal pagamento será devolvido, sob pena de enriquecimento se causa pela Massa;
F) Não existindo nos autos quaisquer factos que não comprovem, o cabal desempenho das suas funções como advogado da Insolvente na intransigente defesa dos interesses desta, ou dos quais resulte qualquer prejuízo para os Credores ou para a proponente não se vislumbra qualquer razão para que o Recorrente não continue a exercer o seu mandato;
G) De igual modo não se vislumbra a prática pelo signatário de qualquer acto que lese a proponente nos seus direitos, enquanto mera proponente no leilão electrónico;
H) A decisão recorrida não só erra nos pressupostos de facto em que assenta, como parte de falsos silogismos aventados pela Credora B..., S.A., a qual notificada para se pronunciar sobre a aceitação ou não da proposta da Insolvente, vem suscitar uma questão para a qual não foi notificada, apesar de estar assegurado o pagamento do seu crédito;
I) Nem a Credora Hipotecária nem os outros Credores se opuseram à proposta da Insolvente, ou seja a maioria;
J) Não existindo quaisquer factos comprovativos de incompatibilidade ou impedimento, a Sra. Juiz não podia ter proferido a decisão recorrida, a qual viola o disposto no art.º 99º do E.O.A. e integra nulidade nos termos da al. d) do nº 1 do art.º 615º do C.P.C., para além de violar os arts.º 18º, 20º, 26º, 58º e 65º da C.R.P..
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis que mui doutamente serão supridos, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente por provado e em consequência ser a decisão recorrida revogada por nula e de nenhum efeito.
*
Não foi oferecida qualquer resposta ao recurso.
*
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo. Sustentou o tribunal recorrido o indeferimento do efeito suspensivo requerido pelo apelante, no mesmo despacho.
É insusceptível de crítica tal solução, atento o disposto no nº 5 do art. 14º do CIRE, sendo que inexiste qualquer outra disposição legal sobre a questão de que resulte uma solução excepcional e divergente para com a concessão do efeito devolutivo ali prevista.
Cumpre apreciá-lo.
*
2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é circunscrito pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da decisão de questões que sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC.
No caso, atentas as conclusões acima reproduzidas, importa decidir:
1 – Se a decisão é nula, por constituir uma decisão surpresa;
2 – Se inexiste incompatibilidade entre a intervenção do Il. Advogado Dr. BB enquanto mandatário da insolvente e representante da sociedade licitante do imóvel desta, no âmbito do leilão ocorrido em sede de liquidação da correspondente massa insolvente;
3 – Se é relevante a circunstância de nenhum credor se ter oposto à proposta, e de nenhum prejuízo advir da sua intervenção, seja para a insolvente, seja para a proponente.
4 - Se a decisão viola os artigos 18º, 20º, 26º, 58º e 65º da Constituição da República Portuguesa
*
Os pressupostos da decisão a proferir sobre as questões enunciadas constituem elementos do próprio processo, conforme descrito no relatório que antecede. Nada importa acrescentar-lhe.
Começa o apelante por arguir a nulidade da decisão, com fundamento na al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC, isto é, ter o tribunal apreciado questão de que não podia conhecer, porquanto não teriam sido ouvidas as partes previamente, como impunha o disposto no nº 3 do art. 3º do CPC.
Não tem, porém, qualquer razão.
Antes de mais, respeitando a decisão à regularidade do mandato com base no qual intervém o Il. ADV. Dr. BB, tem o tribunal o dever de intervir oficiosamente, em ordem a prevenir ou obviar a qualquer falta ou irregularidade do mandato. É o que dispõe o nº 1 do art. 48º do CPC.
É certo, todavia, que tal intervenção oficiosa não pode alhear-se da necessidade de um prévio contraditório. Assim dispõe o nº 3 do art. 3º do CPC.
Todavia, no caso sub judice, contrariamente ao alegado pelo apelante, não só a parte originariamente representada pelo Dr. BB, isto é, a insolvente, teve oportunidade de se pronunciar sobre a questão – a irregularidade constituída pela representação simultânea da insolvente e de uma proponente ao leilão do imóvel integrante da massa insolvente – como o fez efectivamente.
Com efeito, como acima descrito, no requerimento oferecido a 2/7/2024, a insolvente, obviamente representada pelo próprio Dr. BB pronunciou-se sobre a questão, que havia sido apontada em requerimento anterior pelo credor B... S.A., referindo a sua falta de interesse na arguição da questão e a inexistência de qualquer inconveniente para qualquer dos credores na referida simultaneidade da representação.
E tal seria suficiente para afastar a nulidade invocada, tanto mais que, atenta a simplicidade da questão, seria possível considerar a desnecessidade desse contraditório prévio, tal como permitido no próprio nº 3 do art. 3º. Todavia, certo é que ocorreu tal contraditório, o que, de todo, prejudica a ocorrência da nulidade arguida.
Por fim, dir-se-á ainda que, com tal conclusão, se dispensa a consideração de uma outra questão, em homenagem a interesses de pragmatismo e celeridade. Considerou o apelante, tal como considerou o tribunal recorrido, que a decisão em causa era recorrível.
Todavia, em rigor, a decisão sob apreciação nem sequer é ainda uma decisão substancial, que reconhece ou rejeita qualquer direito processual. A decisão é meramente instrumental a outra que apenas se seguiria, dispondo substantivamente sobre a situação, no caso de os destinatários (insolvente ou o próprio Dr. BB, em representação desta ou da A..., Lda), por terem entendimento diferente, não actuarem no sentido anunciado como necessário, pelo tribunal.
Por conseguinte, em face do disposto no art. 630º, nº 1, do CPC, sendo a decisão recorrida meramente procedimental em ordem à ulterior apreciação da questão, sendo caso disso, é duvidosa a sua recorribilidade. Aceitou-se, porém, essa mesma recorribilidade, pelas apontadas razões de pragmatismo e celeridade, tanto mais que a apreciação da questão já neste momento prejudica necessariamente que a mesmo venha a ser colocada em momento ulterior, sendo caso disso, à luz do disposto no art. 620º, nº 1, do CPC, aplicável em face da não subsunção do caso àquele art. 630º (cfr. nº 2 do art. 620º).
Resta, assim, concluir, quanto a esta questão, pela falta de razão do recorrente, rejeitando-se a verificação da nulidade invocada.
*
Cabe, sucessivamente, apreciar a ocorrência da anunciada incompatibilidade entre a intervenção do Il. Advogado Dr. BB enquanto mandatário da insolvente e representante da sociedade licitante do imóvel desta, no âmbito do leilão ocorrido em sede de liquidação da correspondente massa insolvente.
Nesta discussão será igualmente útil ponderar se é determinante, para a identificação dessa incompatibilidade, a eventual circunstância de nenhum credor se ter oposto à validade da proposta apresentada pelo mesmo Dr. BB em representação da licitante A..., Lda e da alegação de nenhum prejuízo daí haver de decorrer, quer para a proponente, quer para a insolvente.
Sobre matéria de conflito de interesses, com relevância para a situação em apreço, dispõe o art. 99.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, nos termos seguintes:
“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.
2 – (…).
3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 - (…)
6 – (…).
Em face do regime assim construído, começa por assinalar-se a indiferença para a solução, da eventual concordância ou mera falta de oposição de qualquer interveniente, sejam os diferentes sujeitos processuais que aparecem representados pelo mesmo advogado, sejam quaisquer outros interessados.
Para além disso, constata-se ser também irrelevante a verificação de um efectivo prejuízo para qualquer das partes representadas pelo mesmo advogado, para que se conclua pela ocorrência de um conflito de interesses.
Com efeito, nos termos do nº 1 e do nº 3 da norma citada, o que determina a inviabilidade de representação de um determinado cliente é a circunstância de o advogado já ter intervindo em qualquer outra qualidade na mesma questão ou em questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária, não podendo aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
No caso, o Dr. BB vem representando a insolvente no respectivo processo de insolvência. Assim, não pode representar qualquer outro interveniente no processo, que seja titular de interesses eventualmente conflituantes com as da insolvente.
Ora, quando o mesmo advogado aparece a representar uma entidade que, no apenso de liquidação da mesma insolvência, apresenta uma proposta para adquirir um bem da massa insolvente, é evidente o antagonismo entre os respectivos interesses e os interesses da própria insolvente.
Com efeito, a insolvente pretenderá que o bem seja vendido pelo maior valor possível e, no caso concreto, até o mais tarde possível, para resolver o problema de habitação que a perda da disponibilidade do imóvel lhe trará. É esse, de resto, o tema do outro recurso interposto da decisão em crise. No caso, sendo o valor dos créditos reclamados pouco superior a 100.000,00€, a maximização do preço da venda poderá até vir a permitir não só a satisfação de todos os créditos, mas até a sobre de capital a reverter para a própria insolvente.
Pelo contrário, por natureza, qualquer adquirente terá interesse em pagar o menor preço possível e em obter a entrega do bem negociado tão breve quanto possível, para dele passar a tirar proveito.
É, pois, por demais evidente o conflito de interesses entre a insolvente e a licitante A..., Lda, tanto bastando para que se não possa permitir que o Dr. BB ambas represente em simultâneo.
Nestas circunstâncias, um tal conflito só não se verificaria se a intervenção da A..., Lda não se destinasse à efectiva aquisição do imóvel, mas tão só a obstar a que outrem o adquirisse, a fim de conseguir que previamente à concretização da venda em leilão electrónico viesse a ser decidida outra questão que a própria insolvente suscitou, sugerindo outro destino negocial para a o imóvel, em ordem a impedir aquela venda.
Todavia, não sendo admissível tal hipótese teórica, havendo até mecanismos processuais adequados ao respectivo tratamento se a mesma se verificasse, só podemos concluir pela presença de um efectivo conflito de interesses entre a insolvente e a A..., Lda, tal como entendeu o tribunal recorrido. E, como tal, pela inadmissibilidade da representação de ambas pelo Dr. BB.
Como antes se referiu, é irrelevante para o caso a circunstância de nenhum sujeito processual se ter oposto à intervenção do Dr. BB em representação também da A..., Lda, tal como o é a circunstância de não ter sido identificado um concreto prejuízo em resultado dessa intervenção.
Com efeito, identificado o conflito, a actuação da norma, isto é, do nº 4 do art. 99º do E.O.A., impedindo a continuidade da representação simultânea de sujeitos com interesses antagónicos, basta-se com o risco de que algum desses interesses seja preterido em favor de outro, não exigindo a concreta afectação de qualquer deles.
Conclui-se, pois, pelo total acerto da decisão recorrida.
Por fim, o apelante alega que a decisão viola os artigos 18º, 20º, 26º, 58º e 65º da Constituição da República Portuguesa.
Trata-se, porém, da invocação gratuita, infundada, totalmente desprovida de motivação, de uma tutela constitucional que a decisão recorrida de forma alguma põe em causa.
Nesta alegação, o apelante tanto invoca a tutela constitucional do acesso ao direito e aos tribunais, como do direito ao trabalho (certamente o seu), como a do direito à habitação (certamente o da insolvente).
Todavia, fá-lo sem qualquer fundamento, como resulta desde logo da circunstância de nem sequer justificar em que termos é que a decisão recorrida resulta em violação de tais direitos.
Rejeita-se, pois, de forma igualmente liminar e que nada justifica desenvolver, que a decisão em causa consubstancie a violação de qualquer desses preceitos constitucionais.
*
Resta, em conclusão, negar provimento ao presente recurso, na confirmação da decisão recorrida.

Sumário.
………………………………
………………………………
………………………………
*
3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento ao presente recurso de apelação, na confirmação da decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Registe e notifique.
*
Porto, 14 de Janeiro de 2025
Rui Moreira
Anabela Dias da Silva
Raquel Correia de Lima