Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
104/23.1T8VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: ALOJAMENTO LOCAL
FRAÇÃO AUTÓNOMA
ALTERAÇÃO DO FIM DE FRAÇÃO DESTINADA A HABITAÇÃO
Nº do Documento: RP20250428104/23.1T8VCD.P1
Data do Acordão: 04/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os elementos caracterizadores do alojamento local são: o alojamento temporário (nomeadamente a turistas), a remuneração e a não-qualificação do alojamento como empreendimento turístico.
II - O DL 76/2024 de 23 de outubro veio alterar o regime da exploração dos estabelecimentos de alojamento local (DL 128/2014 de 29 de agosto) e revogar medidas no âmbito da habitação, sendo que a nova redação dos art.º 6º-B e 9º é aplicável ao caso em concreto porquanto o novo regime dispõe sobre o conteúdo do direito de propriedade do condómino sobre a sua fração e sua articulação com os direitos dos demais condóminos (art.º 12º, nº2, segunda parte, do Código Civil).
III - A instalação e exploração de estabelecimentos de alojamento local em fração autónoma não constitui uso diverso do fim a que é destinada, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 1422.º do Código Civil, devendo coexistir no quadro dos usos urbanísticos dominantes admissíveis para a respetiva zona territorial, salvaguardando a harmonia e a coexistência das atividades que decorrem nas outras frações, de acordo com o art.º 6º-B/4 do DL 128/2014 de 29 de agosto, na redação do DL 76/2024 de 23 de outubro.
IV - A alteração do fim ou destino de fração destinada a habitação não carece da autorização dos demais condóminos – art.º 1422-B CC (na redação do DL 10/2024 de 08 de janeiro).
V - Perante o regime decorrente do novo art.6º-B, nº4, conjugado com as alterações ao regime da propriedade horizontal – art.º 1422 e art.º 1422º-B CC - a doutrina do AUJ nº 4/2022, publicado no DR I série de 10 de maio de 2022, caducou, porque o referido acórdão foi proferido no âmbito de um outro regime legal, previsto no DL 128/2014 de 29 de agosto na redação do DL 63/2015 de 23 de abril.
VI - Não tendo ocorrido a caducidade do registo anterior à entrada em vigor do novo regime do alojamento local (DL 76/2024 de 23 de outubro), pode ser exercida a atividade de alojamento local em fração autónoma destinada a habitação, por constituir um uso consentido para os efeitos do art.º 1422º/2/c) CC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Alojamento Local-RMF-104/23.1T8VCD.P1

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SUMÁRIO[1] (art.º 663º/7 CPC):

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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório

Na presente ação declarativa, que segue a forma de processo comum, em que figuram como:

- AUTORES: AA, solteiro, maior, portador do Cartão de Cidadão n.º ..., válido até 29/04/2031, contribuinte fiscal n.º ..., e

BB, solteira, maior, portadora do Cartão de cidadão n.º ..., válido até 08/07/2031, contribuinte fiscal n.º ..., ambos residentes na rua ..., ..., ... ..., Vila do Conde, e

- RÉ: A..., Lda, pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ... Gondomar,

vieram os autores pedir que

- a) se declare ilegal a utilização pela Ré da fração autónoma designada pela letra “E” para estabelecimento de alojamento local;

- b) seja a Ré condenada a cessar imediatamente essa utilização e a reintegrar a fração autónoma no seu destino específico para habitação;

- c) seja a Ré condenada no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) diários, a contar da data de trânsito em julgado até efetiva cessação da atividade de alojamento local na fração autónoma “E”.

Alegou para o efeito que os Autores são donos e legítimos comproprietários, na proporção de ½ cada um, da fração autónoma designada pela letra “F” correspondente a uma habitação tipologia T3, ao nível do primeiro andar direito do bloco centro, com entrada pelo n.º ..., do prédio constituído em propriedade horizontal sito à rua ..., com entrada pelos números ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., descrita na conservatória do registo predial de Vila do Conde sob o número ... e inscrita na matriz predial urbana sob o número ..., da freguesia ..., concelho de Vila do Conde.

Fração autónoma que constitui a habitação própria e permanente dos Autores desde a sua aquisição, na qual instalaram a sua casa de morada de família, e onde residem em economia comum com um filho comum do casal, de 9 (nove) anos de idade.

A Ré é dona e legítima proprietária da fração autónoma designada pela letra “E” correspondente a uma habitação tipologia T3, ao nível do R/Ch direito do bloco centro, com entrada pelo n.º ... do prédio constituído em propriedade horizontal sito à rua ..., com entrada pelos números ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., descrita na conservatória do registo predial de Vila do Conde, sob o número ... e inscrita na matriz predial urbana, sob o número ..., da freguesia ..., concelho de Vila do Conde.

O edifício, onde se inserem as frações autónomas propriedade dos Autores e Ré, foi constituído em propriedade horizontal e compõe-se de 10 (dez) frações autónomas, todas destinadas a habitação, distribuídas por três blocos, “Bloco Sul”, “Bloco Centro” e “Bloco Norte”, todos de cave, rés-do-chão e primeiro andar, com áreas de estacionamento e logradouros comuns.

A fração autónoma “E”, propriedade da Ré, destina-se a habitação, como resulta do título constitutivo, tendo sido emitida pela Câmara Municipal ... o respetivo alvará de autorização e utilização n.º ... para habitação.

As referidas frações autónomas “E” e “F” situam-se no lado direito do bloco centro, uma acima da outra, situando-se a fração “E” ao nível do rés-do-chão e a fração “F” ao nível do primeiro andar. Não obstante, os números de polícia referente às frações autónomas “E” e “F” serem diferentes, respetivamente, ... e ..., o acesso a estas frações faz-se por uma entrada comum e exclusiva.

Mais alegaram que quando adquiriram a sua habitação, uma das características que mais valorizaram foi o facto de, não obstante ser uma fração autónoma integrada num edifício constituído em propriedade horizontal, com áreas comuns a todas as frações, ter também características que lhe imprimem uma privacidade diferente da que se vivencia num só edifício de vários andares, porquanto aqui as dez frações encontram-se distribuídas por três blocos, tendo cada duas uma entrada privada. Os Autores apenas dividem o portão de acesso à sua fração autónoma com a fração autónoma propriedade da Ré. Privacidade esta que é mais valorizada pelos Autores, na qualidade de pais de um menor de 9 anos de idade, que lhes permite o conforto de saberem que o espaço imediatamente após a porta de entrada da sua habitação apenas é acessível aos próprios e aos vizinhos do rés-do-chão.

Alegaram, ainda, que em 27/03/2022, CC, sócio-gerente da Ré, contactou telefonicamente o Autor AA dando notícia de que estava a tratar de todo o processo para instalação de um alojamento local na fração autónoma “E”, tendo este logo transmitido que tal assunto teria de ser tratado com o condomínio e manifestado a sua oposição ao uso da fração para tal fim.

O Autor AA contactou de imediato a administração de condomínio que lhe transmitiu já ter notícia dessa pretensão, e que pretendia discutir esse assunto na próxima assembleia geral de condóminos.

Posteriormente, a instalação pela Ré, de um AL na fração autónoma “E” foi discutida em Assembleia Geral de Condóminos, realizada em 10/05/2022, na qual, com exceção da Ré, todos os condóminos presentes, num total de 42.6% do capital total do edifício votaram contra a instalação de Alojamento Local em qualquer uma das frações do edifício.

A ré comunicou a todos os condóminos que iria adiar o início da atividade por seis meses, mas não pretendia mudar os seus planos.

A partir do mês de outubro de 2022, atento o movimento de entradas e saídas na fração, os Autores perceberam que a Ré já se encontrava a exercer atividade de Alojamento Local na referida fração, constatando a rotatividade de turistas, entrada e saída constante de funcionários de serviços de limpeza e outros que não têm sequer como identificar a que título ali se deslocam, que disponham de chave do portão da entrada, sendo frequente os utilizadores do Alojamento local enganarem-se e tocarem na campainha dos Autores, colocando em causa o seu sossego.

Termina por considerar que o regime jurídico da propriedade horizontal veda aos condóminos, proprietários da fração autónoma, a possibilidade de a utilizarem para fim diverso do que é destinada, pelo que o uso de fração autónoma destinada a habitação para exploração de atividade de alojamento local infringe o preceituado na alínea c) do n.º 2 do art.º1422.º do Código Civil, face à interpretação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2022, uniformizador de jurisprudência, publicado em Diário da República, 1.º série, de 10/05/2022.

Consideram que a exploração do Alojamento Local consubstancia a prática de um ato de comércio, uma vez que o seu proprietário é uma sociedade comercial por quotas e que tem no seu objeto comercial a atividade de alojamento local com e sem serviço de refeições, e disponibiliza a utilização e fruição da fração autónoma a terceiros contra o pagamento de um preço diário, preço esse que chega a alcançar o valor de € 200,00 diários.

Referem, por fim, que o regulamento do condomínio, na sua cláusula 12.º, alíneas a) e c) estabelece que é vedado aos condóminos, seus familiares, pessoas que com eles convivam e seus empregados dar à fração um uso diverso do previsto no título constitutivo da propriedade horizontal e destinar a fração a qualquer uso que, pela sua frequência ou utilização, possam prejudicar o sossego do edifício e seus utentes.

A utilização da fração autónoma “E” para exploração de um estabelecimento de alojamento local não só viola o regime jurídico da propriedade horizontal como também o regulamento de condomínio, pelo que estava vedado à Ré a utilização da referida fração autónoma para nela explorar um estabelecimento de alojamento local.

Por fim, referem que se solicitou aos sócios-gerentes da ré que não utilizassem a fração para Alojamento Local, o que foi ignorado por estes, motivo pelo qual instauraram a presente ação.


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Citada a ré, contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.

Por exceção, suscitou a incompetência territorial do tribunal.

Impugnou os factos alegados pelos autores e alegou, ainda, que o uso da fração para Alojamento Local não põe em causa o uso dado à fração tal como consta do título constitutivo da propriedade horizontal.

Refere que por documento particular autenticado celebrado em 24/04/2022, a R. adquiriu, por negócio gratuito, a fração autónoma designada pela letra “E” do prédio em lide, aos seus anteriores proprietários e sócios gerentes CC e DD, que se encontra registada a seu favor pela Apresentação 5189 de 03/05/2022.

Por sua vez, os referidos CC e DD haviam adquirido a dita fração no ano de 2009 à sociedade comercial que instituiu a propriedade horizontal (B..., Lda.), tendo-o feito com o propósito de destinar tal fração a residência de férias, por se situar em local de vilegiatura balnear pela sua proximidade à Praia ....

O prédio em lide situa-se a cerca de 800 metros da referida Praia ..., sendo a zona onde se situa o prédio em lide reconhecida pela existência de residências de férias e de casas de veraneio para arrendar. Desde a aquisição de tal fração no ano de 2009, que os ditos CC e DD vinham utilizando a mesma para sua residência de férias, bem como de seus familiares e amigos, aos quais, amiúde, a cediam para o efeito, durante, apenas, cerca de oito semanas por ano.

O prédio sub judice, denominado no seu projeto de construção e promoção por “...”, é composto, na sua maioria, por segundas residências ou residências de férias. Em face de tal circunstância e da utilização reduzida que vinham fazendo da fração autónoma “E”, no início do ano de 2022, os anteriores proprietários CC e DD decidiram que iriam continuar a ceder o gozo temporário da mesma a terceiros, mas, desta vez, mediante o pagamento de uma contrapartida, de modo a rentabilizar este seu património, dando conhecimento ao autor, que referiu: “A casa é sua, o senhor pode fazer o que quiser dela”.

Mais alegou que o Autor referiu ao sócio-gerente da ré que iriam colocar a sua fração à venda, pois pretendiam construir uma moradia e aí estabelecer a sua casa de família, o que, entretanto, se veio a confirmar. O referido CC convidou, ainda, o A. Marido a ler e comentar o regulamento de utilização da fração autónoma “E” que se encontrava em elaboração. Encontrando-se os anteriores proprietários da fração em causa disponíveis para atender às preocupações dos AA. e, de modo preventivo, impedir quaisquer incómodos. Os AA. nada mais disseram.

Os anteriores proprietários da fração “E”, para além da reunião dos requisitos previstos na legislação aplicável ao alojamento local, estabeleceram no regulamento de utilização da mesma, normas destinadas a garantir a normal utilização do prédio, obstando à prática de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos demais condóminos. Em primeiro lugar, os anteriores proprietários da fração “E” não incluíram no alojamento temporário a terceiros, a garagem individual que se situa na cave, designada pelo n.º ..., bem como os respetivos acessos. Os anteriores proprietários da fração “E” fizeram constar no regulamento da sua utilização, entre outros, que: “1.4 - Há vizinhos no piso superior e na fração contígua. O silêncio deve ser assegurado entre as 22:00h e as 8:00 h nos dias uteis e entre as 23:00h e as 10.00 nos restantes dias. Entende-se por não silêncio, ruído que possa ser facilmente audível nas frações contíguas e perturbar. 1.5 - O acesso entre o portão de acesso da Rua e a entrada da Casa deve manter-se desimpedido e limpo pois é partilhado pelo vizinho do 1º andar”.

A única zona comum a todas as frações que se encontra acessível aos utilizadores da fração “E” é, apenas e só, o acesso exterior e pedonal à entrada da dita fração, com uma área total de 64,11 m2, por onde também é possível aceder à entrada da fração “F”, pertencente aos AA.. O acesso primordial à fração “F”, pertencente aos AA., é feito pelo corredor de acesso às garagens individuais, uma vez que cada fração possui uma escadaria interior que permite o acesso exclusivo da respetiva garagem individual situada na cave ao andar onde se situa a habitação propriamente dita. Apesar da possibilidade de ser feito o check in tardio, isto é, após as 22h00, o mesmo está sujeito a uma taxa de € 20,00, se efetuado até às 00h00 e de € 30,00, quando efetuado entre as 00h00 e as 02H00, o que, para além, de dissuadir o recurso a tal possibilidade, a sua combinação com a imposição de período de silêncio supra permite obstar a quaisquer incómodos.

Mais alegou que apesar de se encontrar devidamente licenciada a ocupação do alojamento por oito utentes, os anteriores proprietários da fração “E” apenas permitem a ocupação máxima de 6 hóspedes.

Tal como se comprometem, os anteriores proprietários da fração “E” diligenciaram, e lograram conseguir, que a utilização da fração “E”, agora feita sob a designação de alojamento local, não diferisse da utilização que já vinha sucedendo ao longo

dos anos.

Mais alegou que a utilização que os Autores fazem da sua fração não é isenta de ruídos, ao invés, atento o facto da mesma possuir uma “sala de cinema” com um sistema de som ambiente, dos AA. ali receberem visitas para usufruírem de tal espaço, até de madrugada, das brincadeiras próprias de uma criança de nove anos de idade, como é o caso do filho dos AA..

A concreta atividade de alojamento local exercida na referida fração “E”, devidamente licenciada, até à presente data, apenas se cingiu a uma única utilização por cinco hóspedes, que praticaram atos privados da sua existência diária, como o descanso e a dormida, no período compreendido entre 02/11/2022 a 06/11/2022.

A questão do alojamento local na sua relação o alojamento temporário proporcionado na fração autónoma “E” não difere de uma utilização similar à que era feita pelos anteriores proprietários ou por um arrendatário para habitação do respetivo agregado familiar, sendo certo que são os AA. que demonstram ter uma vida social doméstica intensa.

O prédio em lide situa-se a cerca de 800 metros da referida Praia ... e numa zona reconhecida pela existência de residências de férias e de casas de veraneio para arrendar, tendo o instituidor da propriedade horizontal denominado o projeto de construção e promoção por “...”, sendo de presumir que esse aspeto foi conjeturado pelo instituidor da propriedade horizontal e que não foi sua intenção proibir o alojamento local nas frações.

Considera que a ausência no título constitutivo de uma proibição expressa do alojamento temporário de pessoas como um sinal da falta de vontade do instituidor de impedir esse uso habitacional. Aquando a aprovação do Regulamento do condomínio, em 29/07/2011 os condóminos não deliberaram a proibição do alojamento local nas frações mas, apenas, ressalvaram que os usos a que se destinam as frações, não podem, pela sua frequência ou utilização, prejudicar o sossego do edifício e seus utentes.

Invoca, por fim, o abuso de direito e a colisão de direitos, para em sua defesa concluir que não se justifica limitar o direito de propriedade da ré e pede a improcedência da ação.


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Os Autores pronunciaram-se sobre a matéria da exceção de incompetência territorial, mantendo a posição inicial, por considerarem territorialmente competente o tribunal da localização da unidade de alojamento local em causa.

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Proferiu-se despacho que julgou procedente a exceção e determinou a remessa do processo aos Juízos Cíveis de Gondomar, Comarca do Porto.

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Após audição das partes, oficiosamente, fixou-se o valor da causa em €128.602,52 (cento e vinte e oito mil, seiscentos e dois euros e cinquenta e dois cêntimos) e determinou-se a remessa do processo aos Juízos Centrais do Porto, por ser o tribunal competente, face ao valor da ação.

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Em 28 de novembro de 2023 a Ré apresentou articulado superveniente, no qual alegou que por deliberação tomada pela Assembleia Geral de Condóminos realizada em 27 de março de 2023, foi discutida e aprovada pelos condóminos presentes, entre os quais o A. marido, com a abstenção da R., a fixação do pagamento pela fração autónoma “E” de uma contribuição adicional de 30 % do valor anual da quota respetiva, em virtude do exercício naquela fração da atividade de alojamento local, com efeito retroativo a 1 de setembro de 2022, a qual não foi objeto de impugnação.

A ré procedeu ao pagamento da contribuição adicional.

Mais alegou que resulta de tal deliberação que a assembleia de condóminos do edifício em lide, autorizou a utilização da fração autónoma “E” para fins de alojamento local, tanto que, fixou o pagamento de uma contribuição adicional de 30 % do valor anual da quota respetiva, nos termos previstos no art.º 20-A do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto, correspondente às despesas decorrentes da utilização acrescida das partes comuns.

Para a hipótese de assim não se entender, considera que nunca a assembleia de condóminos do edifício em lide, por deliberação de, pelo menos, dois terços da permilagem do edifício, opôs-se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração, conforme dispõe o n.º 2 do art.º 9.º da Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 56/2023, de 06/10.

Por fim, alegou que os factos configuram uma exceção perentória e admitido o articulado, peticiona a procedência da exceção e a absolvição da ré dos pedidos formulados pelos autores.


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Realizou-se audiência prévia, no decurso da qual, a ré reiterou o articulado superveniente e os Autores não prescindiram de prazo para se pronunciarem, sendo concedido o prazo de 10 dias para o fazer.

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Os Autores vieram responder à matéria do articulado superveniente, alegando para o efeito que da leitura da referida ata da AGC de 27/03/2023, documento n.º 1 junto com o articulado em crise, resulta:

“Ponto 6 – outros assuntos de interesse geral

a) Neste ponto foi levantada a questão do Alojamento local, correspondente à fração “E”. Nesse sentido foi esclarecido de que a assembleia podia aprovar uma contribuição adicional de 30% do valor anual da quota respetiva. Essa fixação foi aprovada pela maioria com abstenção da proprietária da fração E, e produz efeito retroativo do devido pagamento a 01 de setembro de 2022”.

Da deliberação aprovada não resulta qualquer autorização expressa por parte da assembleia de condóminos à utilização da fração autónoma “E” para fins de alojamento local. Da deliberação aprovada resulta apenas e tão-só, a fixação de uma contribuição adicional de 30% de condomínio, prevista no artigo 20.º-A do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto, diploma que regula o Regime Jurídico da Exploração dos estabelecimentos de Alojamento Local.

O artigo 20.º-A do Regime Jurídico da Exploração dos estabelecimentos de Alojamento Local, com a epígrafe “contribuições para o condomínio” foi aditado pela lei n.º 62/2008 de 22 agosto, e em momento algum a sua aplicação ficou dependente ou relacionado com uma eventual autorização ou não do condomínio ao exercício da atividade de alojamento local. Existindo uma fração autónoma a ser explorada em alojamento local o condomínio pode fixar o pagamento de uma contribuição adicional correspondente às despesas decorrentes da utilização acrescida das partes comuns.

Na referida assembleia não foi discutido conceder autorização para exploração de atividade de alojamento local na referida fração autónoma “E”, até porque, quanto a essa questão em concreto a AGC havia já deliberado em 10/05/2022, na qual, com exceção da Ré, todos os condóminos presentes, votaram contra a instalação de alojamento local em qualquer uma das frações do edifício.

A possibilidade de oposição do condomínio ao exercício da atividade de alojamento local através de deliberação tomada por pelo menos dois terços da permilagem do edifício, bem como o efeito preclusivo da existência de uma deliberação prévia e expressa da assembleia de condóminos a autorizar, são duas novidades introduzidas pela Lei 56/2023, e que apenas estão em vigor desde 07 de outubro de 2023.

As AGC de 10/05/2022 e 27/03/2023 e respetivamente as deliberações exaradas nas atas n.ºs 20 e 21, são anteriores a esta nova redação conferida ao n.º 2 do artigo 9.º do Decreto-lei n.º 128/2014 de 29 de agosto. Após entrada em vigor desta nova redação, não se realizou qualquer assembleia geral de condóminos.

Mais alegam que nunca a AGC deliberou autorizar a utilização da fração autónoma “E” para atividade de alojamento local. A aplicação do Regime Jurídico da Exploração dos estabelecimentos de Alojamento Local em funcionamento em nada contende com a presente lide, pois não se sobrepõe ao regime da propriedade horizontal.

O regime jurídico da propriedade horizontal veda aos condóminos, proprietários da fração autónoma, a possibilidade de a utilizarem para fim diverso do que é destinada, pelo que o uso de fração autónoma destinada a habitação para exploração de atividade de alojamento local infringe o preceituado na alínea c) do n.º 2 do artigo 1422.º do Código Civil e nesse sentido se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2022, uniformizador de jurisprudência, publicado em Diário da República, 1.º série, de 10/05/2022.

Concluem que comprovado nos autos, que a fração autónoma “E” está a ser explorada pela Ré para atividade de alojamento local e a fração autónoma “E” destina-se a habitação, pelo que não podia a Ré utilizar a referida fração para fim diverso do que é destinada.


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Proferiu-se despacho que admitiu o articulado superveniente apresentado pela ré.

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Realizou-se nova audiência prévia, com vista a habilitar o juiz a decidir em sede de saneador.

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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:

“Pelo exposto, julga-se a presente ação procedente por provada e condena-se a Ré no pedido.

Custas a cargo da Ré”.


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A ré veio interpor recurso da sentença.

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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:

(…)


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Os Autores vieram apresentar resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)


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O recurso foi admitido como recurso de apelação.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art.º 639º do CPC.

As questões a decidir:

- nulidade da sentença;

- impugnação da decisão de facto;

- se o processo contém os factos necessário para proferir decisão em sede de despacho saneador;

- mérito da causa, que consiste em apreciar se em fração destinada a habitação se permite o uso para Alojamento Local;

- do abuso de direito e da colisão de direitos.


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2. Os factos

Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:

1. Os Autores são donos e legítimos comproprietários, na proporção de ½ cada um, da fração autónoma designada pela letra “F” correspondente a uma habitação tipologia T3, ao nível do primeiro andar direito do bloco centro, com entrada pelo n.º ..., do prédio constituído em propriedade horizontal sito à rua ..., com entrada pelos números ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., descrita na conservatória do registo predial de Vila do Conde sob o número ... e inscrita na matriz predial urbana sob o número ..., da freguesia ..., concelho de Vila do Conde.

2. Fração autónoma que constitui a habitação própria e permanente dos Autores desde a sua aquisição, na qual instalaram a sua casa de morada de família, e onde residem em economia comum com um filho comum do casal, de 9 (nove) anos de idade.

3. A Ré é dona e legítima proprietária da fração autónoma designada pelas letra “E” correspondente a uma habitação tipologia T3, ao nível do R/Ch direito do bloco centro, com entrada pelo n.º ... do prédio constituído em propriedade horizontal sito à rua ..., com entrada pelos números ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., descrita na conservatória do registo predial de Vila do Conde, sob o número ... e inscrita na matriz predial urbana sob o número ..., da freguesia ..., concelho de Vila do Conde.

4. O edifício, onde se inserem as frações autónomas propriedade dos Autores e Ré, foi constituído em propriedade horizontal e compõe-se de 10 (dez) frações autónomas, todas destinadas a habitação, distribuídas por três blocos, “Bloco Sul”, “Bloco Centro” e “Bloco Norte”, todos de cave, rés-do-chão e primeiro andar, com áreas de estacionamento e logradouros comuns.

5. A fração autónoma “E”, propriedade da Ré, destina-se a habitação, como resulta do título constitutivo (doc. n.º 05), tendo sido emitido pela Câmara Municipal ... o respetivo alvará de autorização e utilização n.º ... para habitação.

6. As frações autónomas “E” e “F” acima em 1 e 3, estas duas frações situam-se no lado direito do bloco centro, uma acima da outra, situando-se a fração “E” ao nível do rés-do-chão e a fração “F” ao nível do primeiro andar.

7. O acesso a estas frações faz-se por uma entrada comum e exclusiva.

8. Os Autores apenas dividem o portão de acesso à sua fração autónoma com a fração autónoma propriedade da Ré.

9. A instalação pela Ré, de um AL na fração autónoma “E” foi posteriormente discutida em Assembleia Geral de Condóminos, realizada em 10/05/2022, na qual, com exceção da Ré, todos os condóminos presentes, num total de 42.6% do capital total do edifício votaram contra a instalação de Alojamento local em qualquer uma das frações do edifício.

10. A Ré através de uma comunicação do seu sócio gerente, Sr. CC dirigida a todos os condóminos, enviada via correio eletrónico, fez saber que perante a oposição dos condóminos iria adiar o início da atividade por seis meses, mas não pretendia mudar os seus planos.

11. A partir do mês de outubro de 2022, atento o movimento de entradas e saídas na fração os Autores perceberam que a Ré já se encontrava a exercer atividade de Alojamento Local na referida fração.

12. A Ré tem como objeto social “Investimentos imobiliários, nomeadamente, a atividade de compra e venda de imóveis para revenda. Arrendamento de bens imobiliários e exploração de imóveis. Atividade de alojamento local com e sem serviço de refeições”.

13. Sob a designação “...”, como aparece publicitada em sítio da internet denominado airbnb, a referida fração autónoma, contra remuneração, é disponibilizada a turistas, devidamente mobilada e equipada, para alojamento temporário, inferior a 30 dias, prestando ainda serviços remunerados de limpeza.

14. A referida atividade de alojamento local encontra-se registada em nome do sócio gerente da Ré, CC no Registo Nacional de Alojamento Local sob o n.º .../AL, com data de abertura ao público em 01 de abril de 2022.

15. O regulamento do condomínio, na sua cláusula 12.º, alíneas a) e c) estabelece que “é vedado aos condóminos, seus familiares, pessoas que com eles convivam e seus empregados dar à fração um uso diverso do previsto no título constitutivo da propriedade horizontal e destinar a fração a qualquer uso que, pela sua frequência ou utilização, possam prejudicar o sossego do edifício e seus utentes”.


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Consignou-se, ainda:

Não se consideraram mais factos com interesse para a boa decisão da causa.


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3. O direito

- Nulidade da sentença -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos IV a XXI, a apelante suscita a nulidade da sentença com fundamento no art.º 615º/1 c) e d) CPC.

A sentença na sua formulação pode conter vícios de essência, vícios de formação, vícios de conteúdo, vícios de forma, vícios de limites[2].

As nulidades da sentença incluem-se nos “vícios de limites” considerando que nestas circunstâncias, face ao regime do art.º 615º CPC, a sentença não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia[3].

O Professor ANTUNES VARELA no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do art.º 668º CPC e atual art.º 615º CPC, advertia que: “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário […] e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”[4].

Resulta do disposto no art.º 615º/1 c) CPC, que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

A previsão da norma contempla as situações de contradição real entre os fundamentos e a decisão e não as hipóteses de contradição aparente, resultante de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão.

Como refere o Professor ANTUNES VARELA: “a norma abrange os casos em que há um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direção diferente”[5].

Nos termos do art.º 615º/1 c) CPC a sentença é ainda nula quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Considera-se que a sentença é obscura quando enferma de “ambiguidade, equivocidade ou de falta de inteligibilidade”.

A sentença é ambígua quando alguma das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais do que um sentido, quer na fundamentação, quer na decisão. A sentença mostra-se equívoca quando o sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal.

Contudo, este vício apenas determina a nulidade da sentença se a decisão for ininteligível ou incompreensível[6].

A ininteligibilidade da decisão corresponde à falta ou ininteligibilidade da indicação do pedido na petição inicial (art.º 186º2 a) CPC)[7].

Considera a apelante, no ponto XX das conclusões de recurso, em relação à fundamentação da matéria de facto, que “é impercetível o que resultou transcrito na sentença recorrida, a esse respeito, nomeadamente, que “a convicção do tribunal assentou ausência dos factos que constam sob os nºs 1 a 8 e 10 a 15.”, pelo que, padece a decisão recorrida de obscuridade que a torna inteligível”.

No caso concreto a sentença contém uma decisão expressa em termos inequívocos, quando julga procedente a pretensão dos autores. A sentença não carece de decisão.

Os fundamentos que conduziram à decisão são eles também objetivos, reproduzindo os argumentos desenvolvido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2022 de 22 de março de 2022, publicado no DR I série de 10 de maio de 2022 (que abreviadamente se passará a indicar como AUJ 4/2022) e que foram devidamente entendidos pela apelante, como decorre dos fundamentos do recurso.

Acresce que a fundamentação está sustentada nos factos provados.

Desta forma, não ocorre qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível ou incompreensível.

Como observam os apelados na resposta ao recurso verifica-se apenas uma inexatidão por lapso manifesto, suscetível de ser retificada nos termos do art.º 614º/1 CPC e que resulta do próprio contexto.

Na fundamentação da decisão de facto escreveu-se:

“A convicção do tribunal assentou ausência dos factos que constam sob os nºs 1 a 8 e 10 a 15.

No que concerne aos factos que constam sob os nºs 8 foram consideradas a cópia da ata junta com a p.i. com doc. nº 11 e a cópia da comunicação junta como Doc. nº 12”.

Analisando os articulados constata-se que os factos enunciados sob os pontos 1 a 8 e 11 a 15 estão admitidos por acordo e comprovados por documento. Os factos sob os pontos 9 e 10 decorrem dos documentos juntos com a petição e cujo teor não foi impugnado pela ré. Aliás, essa é a posição que expressamente a apelante assume nos art.º 12, 13, 26, 37 da contestação.

Na frase: “convicção do tribunal assentou ausência dos factos que constam sob os nºs 1 a 8 e 10 a 15”, omitiu-se a expressão “impugnados”, devendo, pois, passar a ler-se: “a convicção do tribunal assentou na ausência de impugnação dos factos que constam sob os nºs 1 a 8 e 10 a 15”.

Em conclusão, os fundamentos invocados não configuram o vício apontado à sentença.


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A apelante considera, ainda, que a sentença é nula com fundamento no art.º 615º/1 d) CPC, por ser omissa a respeito de questões suscitadas e por excesso de pronúncia.

A omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar ou o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento constitui um dos fundamentos de nulidade da sentença, previsto art.º 615º/1 d) CPC.

A omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar e o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento, constitui um vício relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento” - art.º 608º/2 CPC.

Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

A respeito do conceito “questões que devesse apreciar” refere ANSELMO DE CASTRO que deve “ser tomada em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sob os aspetos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”[8].

LEBRE DE FREITAS por sua vez tem a respeito de tal matéria uma visão algo distinta, pois considera que devendo: “o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art.º 660º/2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado”[9].

Para melhor precisar o seu entendimento remete para o estudo do Professor ALBERTO DOS REIS cuja passagem se transcreve:

“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “ não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art.º 511º/1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”[10].

Seguindo os ensinamentos dos ilustres Professores, atendendo ao regime processual vigente, afigura-se-nos ser esta a interpretação que melhor reflete a natureza da atividade do juiz na apreciação e decisão do mérito das questões que lhe são colocadas, pois o juiz não se encontra vinculado às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 5º CPC).

Resulta desta interpretação que a sentença não padece de nulidade porque não analisou um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito.

Argumenta a apelante, sob os pontos IV a XVII, que na sentença se omitiu a apreciação das questões suscitadas no articulado superveniente e na contestação e que não ficaram prejudicadas pela decisão proferida.

Alegou que na contestação suscitou a exceção da colisão de direitos (art.º 335ºCC) e do abuso do direito (art.º 334ºCPC), mas na sentença omitiu-se a apreciação de tais exceções.

No articulado superveniente defendeu que ao abrigo do novo regime do Alojamento Local, na redação da Lei 56/2023 de 06 de outubro o Condomínio não tomou qualquer deliberação no sentido de impedir o uso da fração para Alojamento Local, motivo pelo qual o uso da fração para aquele fim é permitido e por outro lado, considerou que a deliberação que aprovou uma contribuição adicional para o condomínio configura uma autorização do condomínio para o uso da fração para Alojamento Local.

Quanto ao conhecimento das exceções suscitadas na contestação, a sua apreciação ficou prejudicada pela decisão, ao sustentar que não é permitido o uso para Alojamento Local de fração que se destina a habitação, com apoio nos argumentos expressos no AUJ 4/2022, proibição que se estabelece com caráter absoluto e onde foram ponderados os argumentos da tese contrária à que mereceu vencimento. Aliás, a apelante na sua defesa desenvolve os argumentos que sustentaram o voto de vencido e que vai na linha da jurisprudência que não foi acolhida no douto aresto.

Ficando prejudicada a apreciação das exceções não cumpria proceder à sua análise (art.º 608ºCPC).

Quanto às questões suscitadas no articulado superveniente por contenderem com a aplicação de um novo regime jurídico do Alojamento Local, posterior à publicação do AUJ 4/2022, verifica-se com efeito omissão de pronúncia.

O AUJ nº 4/2022 foi proferido tendo presente o regime do Alojamento Local previsto no DL 128/2014 de 29 de agosto, na redação do DL 63/2015 de 23 de abril (ainda que nos seus fundamentos não se ignorasse a alteração, entretanto introduzida pela Lei 62/2018 de 22 de agosto). No articulado superveniente a apelante pretende que se aprecie os factos à luz da alteração introduzida pela Lei 56/2023 de 06 de outubro, o que não foi considerado na sentença recorrida e operando a regra da substituição do tribunal recorrido, nos termos do art.º 665º CPC, cumpre conhecer de tal questão em sede de recurso.

Por fim, no ponto XVIII das conclusões de recurso, a apelante considera que existe excesso de pronúncia porque o tribunal proferiu decisão em sede de saneador sem considerar os factos controvertidos alegados pelos autores nos art.º 16º, 18, e 25 da petição e 16º a 40º, 62º, 65º a 67º da contestação.

A omissão de factos relevantes na apreciação do litígio não configura o apontado vício, porque não estamos perante a apreciação de questões. A omissão a verificar-se apenas pode justificar a anulação da sentença verificados os pressupostos do art.º 595º/1 b), conjugado com o art.º 662º/2 c) CPC.

Conclui-se, assim, que a sentença não padece dos vícios apontados e os fundamentos alegados não preenchem a invocada nulidade, exceto, quanto à matéria do articulado superveniente, cuja apreciação será considera em sede de mérito.

Procedem, em parte, as conclusões de recurso sob os pontos IV a XXI.


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- Reapreciação da decisão de facto -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos XXII a XXVI, veio a apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova e ampliação da decisão de facto.

Começando por apreciar a reapreciação da decisão de facto.

A apelante pretende que se altere a decisão dos pontos 10, 11 e 13 dos factos provados, no sentido de se eliminar os pontos 10 e 11 e em relação ao ponto 13, eliminar a parte final “prestando serviços remunerados de limpeza”.

Independentemente de se verificarem, ou não, os pressupostos para proceder à reapreciação da decisão de facto, no caso concreto mostra-se inútil tal reapreciação, porque os factos em causa não contendem com a questão em litígio.

A reapreciação da prova tem em vista uma possível alteração da decisão da matéria de facto em pontos relevantes para a boa decisão da causa e à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito e não uma determinação da realidade dos factos, independentemente do relevo que possam ter nas questões de direito a reapreciar, sendo proibida a prática no processo de atos inúteis (artigo 130º do CPC)[11].

Como se refere Ac. Relação do Porto de 20 de maio de 2024, Proc. 4929/21.0T8MTS-G.P1, acessível em www.dgsi.pt: “a reapreciação da matéria de facto não é um exercício dirigido a todo o custo ao apuramento da verdade afirmada pelo recorrente mas antes e apenas um meio de o recorrente poder reverter a seu favor uma decisão jurídica fundada numa certa realidade de facto que lhe é desfavorável e que o recorrente pretende ver reapreciada de modo a que a realidade factual por si sustentada seja acolhida judicialmente, pelo que logo que faleça a possibilidade de uma qualquer alteração da decisão factual poder ter alguma projeção na decisão da matéria de direito em sentido favorável ao recorrente, deixa de ter justificação a reapreciação requerida, constituindo antes a prática de um ato inútil e, por isso, proibido (artigo 130º do Código de Processo Civil)”.

Na presente situação a apelante impugnou os seguintes factos provados:

10. A Ré através de uma comunicação do seu sócio gerente, Sr. CC dirigida a todos os condóminos, enviada via correio eletrónico, fez saber que perante a oposição dos condóminos iria adiar o início da atividade por seis meses, mas não pretendia mudar os seus planos.

11. A partir do mês de outubro de 2022, atento o movimento de entradas e saídas na fração os Autores perceberam que a Ré já se encontrava a exercer atividade de Alojamento Local na referida fração.

13. Sob a designação “...”, como aparece publicitada em sítio da internet denominado airbnb, a referida fração autónoma, contra remuneração, é disponibilizada a turistas, devidamente mobilada e equipada, para alojamento temporário, inferior a 30 dias, prestando ainda serviços remunerados de limpeza.

Na ação está em causa apreciar se numa fração de um prédio constituído em propriedade horizontal, destinada a habitação, pode ser exercida atividade de alojamento local.

Os factos essenciais e que relevam para a apreciação da questão em litígio não foram objeto de impugnação, pelo que, ainda que se altere a decisão dos factos impugnados, tal decisão não produz qualquer efeito sobre a matéria em litígio.

Acresce que a apelante não extrai da impugnação dos factos qualquer efeito útil sob o ponto de vista jurídico, tendo presente os fundamentos em que sustenta a impugnação da decisão em confronto com os fundamentos da ação.

Revela-se inútil a reapreciação dos factos, porque independentemente da decisão face à posição que a apelante assume perante a questão essencial em discussão nos autos, não se extrai dos mesmos qualquer efeito útil para a decisão e por esse motivo improcede a reapreciação da decisão.


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A apelante pretende, ainda, que se adite aos factos provados os factos alegados nos art.º 16, 40, 62, 65 a 67 da contestação, por considerar que estão admitidos por acordo.

Na contestação a ré alegou:

“16.º

Tendo-o feito como o propósito de destinar tal fração a residência de férias, por situar em local de vilegiatura balnear pela sua proximidade à Praia ....

17.º

Com efeito, o prédio em lide situa-se a cerca de 800 metros da referida Praia ....

18.º

Sendo a zona onde se situa o prédio em lide reconhecida pela existência de residências de férias e de casas de veraneio para arrendar.

19.º

Disso mesmo dá conta a Junta de freguesia ... no seu site (...):

“Além de uma forte tradição piscatória, ... esteve sempre inevitavelmente ligada ao turismo. As suas praias apresentam uma qualidade extraordinária, tanto pela qualidade das águas, como pelas suas caraterísticas bio geológicas. São praias muito procuradas para a prática de mergulho aquática e para a pesca lúdica apeada.

O facto de integrar a Paisagem Protegida Regional de Vila do Conde e ROM também evidencia a sua qualidade paisagística, nomeadamente ao nível dos cordões dunares, rochedos, zonas húmidas, bouças e áreas agrícolas. É, também por isso, uma área reconhecidamente rica ao nível da quantidade e qualidade da avifauna presente.

De forma a dar resposta às necessidades hoteleiras da freguesia, quer seja para pernoitar ou para simplesmente relaxar, ... conta com diversos cafés e restaurantes (onde se destacam os pratos de peixe), uma residencial, um parque de campismo de três estrelas e ainda diversas casas de veraneio para aluguer.” (Conforme documento sob o número 2 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

20.º

Pelo que, desde a aquisição de tal fração no ano de 2009, que os ditos CC e DD vinham utilizando a mesma para sua residência de férias, bem como de seus familiares e amigos, aos quais, amiúde, a cediam para o efeito, durante, apenas, cerca de oito semanas por ano.

21.º

E, portanto, a proporção de alojamento temporário a terceiros na referida fração autónoma “E” já vem sendo praticada há vários anos.

22.º

Aliás, cumprirá referir, a este título, que o prédio sub judice, denominado no seu projeto de construção e promoção por “...”, é composto, na sua maioria, por segundas residências ou residências de férias.

23.º

Em face de tal circunstância e da utilização reduzida que vinham fazendo da fração autónoma “E”, no início do ano de 2022, os anteriores proprietários CC e DD decidiram que iriam continuar a ceder o gozo temporário da mesma a terceiros, mas, deste vez, mediante o pagamento de uma contrapartida, de modo a rentabilizar este seu património.

24.º

Tendo-o decidido, e por uma questão de cortesia e promoção da relação de boa vizinhança que sempre cultivou, o dito CC procurou o A. Marido e deu-lhe conta de que iria dar início ao procedimento para registo da fração autónoma “E” como estabelecimento de alojamento local.

25.º

Ao que o A. Marido retorquiu “A casa é sua, o senhor pode fazer o que quiser dela.”

26.º

Mais informou o dito CC que os AA. iriam colocar a sua fração à venda, pois pretendiam construir uma moradia e aí estabelecer a sua casa de família, o que, entretanto, se veio a confirmar (Conforme documento sob o número 3 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

27.º

Ademais, o referido CC convidou, ainda, o A. Marido a ler e comentar o regulamento de utilização da fração autónoma “E” que se encontrava em elaboração.

28.º

Encontrando-se os anteriores proprietários da fração em causa disponíveis para atender às preocupações dos AA. e, de modo preventivo, impedir quaisquer incómodos.

29.º

Porém, os AA. nada mais disseram.

30.º

Apesar disso, os anteriores proprietários da fração “E”, para além da reunião dos requisitos previstos na legislação aplicável ao alojamento local, estabeleceram no regulamento de utilização da mesma, normas destinadas a garantir a normal utilização do prédio, obstando à prática de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos demais condóminos.

31.º

Com efeito, e em primeiro lugar, os anteriores proprietários da fração “E” não incluíram no alojamento temporário a terceiros, a garagem individual que se situa na cave, designada pelo n.º ..., bem como os respetivos acessos.

32.º

Por outro lado, os anteriores proprietários da fração “E” fizeram constar no regulamento da sua utilização, entre outros, que:

“1.4 - Há vizinhos no piso superior e na fração contígua. O silencio deve ser assegurado entre as 22:00h e as 8:00 h nos dias uteis e entre as 23:00h e as 10.00 nos restantes dias. Entende-se por não silencio, ruido que possa ser facilmente audível nas frações contiguas e perturbar.

1.5 - O acesso entre o portão de acesso da Rua e a entrada da Casa deve manter-se desimpedido e limpo pois é partilhado pelo vizinho do 1º andar.” (Conforme documento sob o número 4 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

33.º

De facto, a única zona comum a todas as frações que se encontra acessível aos utilizadores da fração “E” é, apenas e só, o acesso exterior e pedonal à entrada da dita fração, com uma área total de 64,11 m2, por onde também é possível aceder à entrada da fração “F”, pertencente aos AA. (Conforme doc. n.º 8 junto com a petição inicial e documento sob o número 5 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

34.º

Sendo certo, ainda, que o acesso primordial à fração “F”, pertencente aos AA., é feito pelo corredor de acesso às garagens individuais, uma vez que cada fração possui uma escadaria interior que permite o acesso exclusivo da respetiva garagem individual situada na cave ao andar onde se situa a habitação propriamente dita.

35.º

E, apesar da possibilidade de ser feito o check in tardio, isto é, após as 22h00, o mesmo está sujeito a uma taxa de € 20,00, se efetuado até às 00h00 e de € 30,00, quando efetuado entre as 00h00 e as 02H00, o que, para além, de dissuadir o recurso a tal possibilidade, a sua combinação com a imposição de período de silêncio supra permite obstar a quaisquer incómodos (Conforme doc. N.º 15 junto com a petição inicial).

36.º

Por outro lado, e apesar de se encontrar devidamente licenciada a ocupação do alojamento por oito utentes, os anteriores proprietários da fração “E” apenas permitem a ocupação máxima de 6 hóspedes (Conforme docs. 13 e 14 juntos com a petição inicial).

37.º

Pelo que, tal como se comprometem, os anteriores proprietários da fração “E” diligenciaram, e lograram conseguir, que a utilização da fração “E”, agora feita sob a designação de alojamento local, não diferisse da utilização que já vinha sucedendo ao longo dos anos (Cf. Doc. 12 junto com a petição inicial).

38.º

E, como tal, dos incómodos inerentes à normal convivência em habitação coletiva que, como é notório, não pressupõe silêncio completo, pois o ruído é algo de inerente à civilização moderna, integrado na sua essência, e tanto pode ocorrer entre os proprietários das frações que compõem a propriedade horizontal, como entre os seus familiares, hóspedes, arrendatários, comodatários, ou, in casu, utilizadores do alojamento local.

39.º

Aliás, como os próprios AA. bem sabem, a utilização que fazem da sua fração não é isenta de ruídos, ao invés, atenta o fato da mesma possuir uma “sala de cinema” com um sistema de som ambiente, dos AA. ali receberem visitas para usufruírem de tal espaço, até de madrugada, das brincadeiras próprias de uma criança de nove anos de idade, como é o caso do filho dos AA., até se vem revelado bastante ruidosa.

40.º

Ademais, e ao contrário do que maliciosamente os AA. fazem crer na petição inicial, mediante a alegação de fatos falsos, a concreta atividade de alojamento local exercida na referida fração “E”, devidamente licenciada, até à presente data, apenas se cingiu a uma única utilização por cinco hóspedes, nomeadamente, a senhora EE e a sua família, que ali praticaram atos privados da sua existência diária, como o descanso e a dormida, no período compreendido entre 02/11/2022 a 06/11/2022 (Cf. Doc. n.º 13 junto com a petição inicial).

[…]

62.º

Ademais, a fração “E” em lide não se encontra munida de um qualquer espaço, com afetação de pessoas, destinado a receber os turistas interessados na permanência temporária na fração, mediante retribuição, em mostrar-lhes a mesma para esse efeito, ou a proporcionar-lhe outros serviços que não os estritamente relativos ao alojamento temporário, tais como fornecimento de refeições ou tratamento de roupas.

65.º

Ora, in casu, resulta do documento junto com a petição inicial sob o número 5, que a propriedade horizontal em lide foi constituída por escritura pública outorgada em 21/09/2007 pela dona e legitima proprietária do prédio, a sociedade comercial “B..., Lda.”.

66.º

Apesar da figura do alojamento local foi criada pelo Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de março, certo é que o alojamento temporário de turistas fora dos estabelecimentos hoteleiros turísticos tradicionais já existia.

67.º

Por outro lado, e como acima já referido, o prédio em lide situa-se a cerca de 800 metros da referida Praia ... e numa zona reconhecida pela existência de residências de férias e de casas de veraneio para arrendar, tendo o instituidor da propriedade horizontal denominado o projeto de construção e promoção por “...””.

Cumpre ter presente que a decisão foi proferida em sede de saneador.

Dispõe o art.º 595º CPC que o despacho saneador se destina a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.

Enquadram-se na previsão da norma as situações em que não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo[12], nomeadamente quando:

- toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita por acordo ou documento;

- quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, por serem manifestamente insuficientes ou inócuos – inconcludência do pedido - para apreciar a pretensão do Autor ou a exceção deduzida pelo Réu;

- quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental[13].

Contudo, naquelas situações limite, em que concluída a fase dos articulados, o juiz conclui, com recurso aos dispositivos de direito probatório material ou formal, pela existência de um leque de factos que ainda permanecem controvertidos, deve fazer prosseguir a ação, ponderando as diversas soluções plausíveis da questão de direito.

O conhecimento do mérito da causa, em sede de saneador, deve reservar-se para as situações em que o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa e que não seja apenas aquela que o juiz da causa perfilha, devendo assim atender-se às diferentes soluções plausíveis de direito, facultando sempre a ampla discussão da matéria de facto controvertida

Como refere ABRANTES GERALDES, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça: “[a]pesar de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas”[14].

No caso concreto os factos em causa não estão admitidos por acordo (art.º 574º/2 e art.º 587º CPC).

Efetivamente, os autores não tomaram posição sobre os factos, mas tal circunstância não equivale a aceitação por acordo.

Verifica-se no caso em concreto uma impugnação por antecipação, porque parte dos factos alegados pela ré visam refutar os já alegados pelos autores na petição, sem constituírem matéria de exceção (cf. art.º 39º e 40º).

Por outro lado, a ré tece considerações de direito e faz apreciações sobre o regime legal que mais não são do que conclusões e por isso não comportam factos e o tribunal apenas julga factos (art.º 607º/4 CPC).

Por fim, cabe referir que os factos não têm qualquer relevo para a apreciação da questão em litígio, porque não versam sobre o título constitutivo da propriedade horizontal, o regulamento ou uma deliberação do condomínio que se pronuncie sobre o concreto uso da fração para a atividade de alojamento local.

A apelante apenas descreve o uso que fazia da fração até passar a exercer a atividade de Alojamento Local e ainda, enuncia e descreve um conjunto de procedimentos e regulamentos que implementou e que são inerentes ao exercício da atividade de Alojamento Local, face ao regime legal. Os factos em causa não relevam para apreciar da legalidade do uso dado à fração para a atividade de Alojamento Local.

Conclui-se que os factos em causa não merecem qualquer relevo para a apreciação do litígio, motivo pelo qual não se justifica considerar os mesmos na decisão.

Improcedem as conclusões de recurso sob os pontos XXII a XXVI.


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Na sentença considerou-se que para além dos factos enunciados não se mostravam relevantes outros factos.

Contudo, perante o objeto do litígio, em que está em causa apreciar da legalidade do uso dado à fração para a atividade de alojamento local no confronto com os diferentes regimes jurídicos adotados para a regulamentação de tal atividade, mostra-se relevante ampliar a decisão de facto, no sentido de consignar a data da constituição da propriedade horizontal, o início da atividade de alojamento local e a deliberação da assembleia de condóminos que fixou a contribuição adicional.

Estes factos estão admitidos por acordo e resultam dos documentos juntos aos autos, cujo teor não foi questionado e consta dos documentos nº 5 e 14, juntos com a petição e documento junto com o articulado superveniente.

Fazendo uso da faculdade concedida pelo art.º 662º/1/2 c) “a contrario” do CPC, oficiosamente, procede-se à ampliação da decisão de facto, nos seguintes termos:

- ponto 4 - indicar a data da constituição da propriedade horizontal: 21 de setembro de 2007;

- ponto 14 – data da abertura ao público: 01 de abril de 2022;

- na assembleia de condóminos realizada em 23 de março de 2023, a seguinte deliberação:


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Na apreciação das restantes questões cumpre ter presente os seguintes factos provados, com as alterações introduzidas em itálico:

1. Os Autores são donos e legítimos comproprietários, na proporção de ½ cada um, da fração autónoma designada pela letra “F” correspondente a uma habitação tipologia T3, ao nível do primeiro andar direito do bloco centro, com entrada pelo n.º ..., do prédio constituído em propriedade horizontal sito à rua ..., com entrada pelos números ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., descrita na conservatória do registo predial de Vila do Conde sob o número ... e inscrita na matriz predial urbana sob o número ..., da freguesia ..., concelho de Vila do Conde.

2. Fração autónoma que constitui a habitação própria e permanente dos Autores desde a sua aquisição, na qual instalaram a sua casa de morada de família, e onde residem em economia comum com um filho comum do casal, de 9 (nove) anos de idade.

3. A Ré é dona e legítima proprietária da fração autónoma designada pelas letra “E” correspondente a uma habitação tipologia T3, ao nível do R/Ch direito do bloco centro, com entrada pelo n.º ... do prédio constituído em propriedade horizontal sito à rua ..., com entrada pelos números ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., descrita na conservatória do registo predial de Vila do Conde, sob o número ... e inscrita na matriz predial urbana sob o número ..., da freguesia ..., concelho de Vila do Conde.

4. O edifício, onde se inserem as frações autónomas propriedade dos Autores e Ré, foi constituído em 21 de setembro de 2007 em propriedade horizontal e compõe-se de 10 (dez) frações autónomas, todas destinadas a habitação, distribuídas por três blocos, “Bloco Sul”, “Bloco Centro” e “Bloco Norte”, todos de cave, rés-do-chão e primeiro andar, com áreas de estacionamento e logradouros comuns.

5. A fração autónoma “E”, propriedade da Ré, destina-se a habitação, como resulta do título constitutivo (doc. n.º 05), tendo sido emitido pela Câmara Municipal ... o respetivo alvará de autorização e utilização n.º ... para habitação.

6. As frações autónomas “E” e “F” acima em 1 e 3, estas duas frações situam-se no lado direito do bloco centro, uma acima da outra, situando-se a fração “E” ao nível do rés-do-chão e a fração “F” ao nível do primeiro andar.

7. O acesso a estas frações faz-se por uma entrada comum e exclusiva.

8. Os Autores apenas dividem o portão de acesso à sua fração autónoma com a fração autónoma propriedade da Ré.

9. A instalação pela Ré, de um AL na fração autónoma “E” foi posteriormente discutida em Assembleia Geral de Condóminos, realizada em 10/05/2022, na qual, com exceção da Ré, todos os condóminos presentes, num total de 42.6% do capital total do edifício votaram contra a instalação de Alojamento local em qualquer uma das frações do edifício.

10. A Ré através de uma comunicação do seu sócio gerente, Sr. CC dirigida a todos os condóminos, enviada via correio eletrónico, fez saber que perante a oposição dos condóminos iria adiar o início da atividade por seis meses, mas não pretendia mudar os seus planos.

11. A partir do mês de outubro de 2022, atento o movimento de entradas e saídas na fração os Autores perceberam que a Ré já se encontrava a exercer atividade de Alojamento Local na referida fração.

12. A Ré tem como objeto social “Investimentos imobiliários, nomeadamente, a atividade de compra e venda de imóveis para revenda. Arrendamento de bens imobiliários e exploração de imóveis. Atividade de alojamento local com e sem serviço de refeições”.

13. Sob a designação “...”, como aparece publicitada em sítio da internet denominado airbnb, a referida fração autónoma, contra remuneração, é disponibilizada a turistas, devidamente mobilada e equipada, para alojamento temporário, inferior a 30 dias, prestando ainda serviços remunerados de limpeza.

14. A referida atividade de alojamento local encontra-se registada em nome do sócio gerente da Ré, CC no Registo Nacional de Alojamento Local sob o n.º .../AL, com data de abertura ao público em 01 de abril de 2022.

15. O regulamento do condomínio, na sua cláusula 12.º, alíneas a) e c) estabelece que “é vedado aos condóminos, seus familiares, pessoas que com eles convivam e seus empregados dar à fração um uso diverso do previsto no título constitutivo da propriedade horizontal e destinar a fração a qualquer uso que, pela sua frequência ou utilização, possam prejudicar o sossego do edifício e seus utentes”.

16. Na ata da assembleia de condóminos realizada em 27 de março de 2023 consta a seguinte deliberação:


-

- Da legalidade do uso de fração autónoma, destinada a habitação, para estabelecimento de Alojamento Local -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos XXVII a LX, a apelante insurge-se contra a decisão, pretendendo a sua revogação, por entender que lhe assiste o direito a usar a fração “E” para a atividade de alojamento local. Defende que se aplica o regime jurídico previsto no DL 128/2014 de 29 de agosto, na redação da Lei 56/2023 de 06 de outubro e por isso, não se aplica a interpretação defendida no AUJ 04/2022.

A sentença seguiu a interpretação do AUJ 04/2022, com os seguintes fundamentos:

“Conforme já referido, no âmbito da presente decisão importa apurar se a cedência onerosa da fração a turistas em regime de alojamento local viola o título constitutivo da propriedade horizontal, na medida em que todas as habitações/frações se encontram destinadas a habitação de acordo com aquele título.

O Ac. do TRL de 20/10/2016, proferido no processo nº 12579-16.0T8LSB.L1-8 e citado no aresto proferido pelo TRP no processo nº 24471/16.4T8PRT, considerou que a afetação de uma fração ao exercício da atividade de alojamento local, quando a mesma é destinada a habitação, segundo o título constitutivo de propriedade horizontal, constitui infração à proibição constante do art.º 1422º, nº 2, al. c) do Código Civil, devendo ser reprimida. (“Destinando-se a fração autónoma, segundo o título constitutivo, a habitação, não lhe pode ser dado outro destino (alojamento mobilado para turistas) sendo para tanto irrelevante o licenciamento do local para a atividade comercial acima referida por aquelas entidades. As autorizações de entidades administrativas, segundo as quais, determinada fração autónoma de prédio constituído em regime de propriedade horizontal pode ser destinada a comércio, não tem a virtualidade de alterar o estatuto da propriedade horizontal constante do respetivo título constitutivo, segundo o qual essa fração se destina a habitação”).

Pronunciando-se no mesmo processo, o STJ, por acórdão de 28/3/2017, revogou essa solução, no pressuposto de que a cedência onerosa de fração mobilada a turistas consubstancia a sua afetação a um destino habitacional e não ao exercício de atividade comercial, pelo que se respeita o conteúdo do título constitutivo da propriedade horizontal, onde consta que determinada fração se destina a habitação, se essa fração for objeto de alojamento local.

Todavia, a jurisprudência dos tribunais superiores e a doutrina não era unanime na condenação da compatibilidade do exercício da atividade de alojamento local com o destino de uma habitação para habitação.

Este dissidio ficou esclarecido pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2022 datado de 22-03-2022 que considera que “no regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fração se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local”.

Fundamenta esta posição uniformizadora da jurisprudência no facto de ser aquela que melhor adesão colhe no regime civilista da proteção da propriedade condominial e dos direitos dos condóminos, suplantando-se os eventuais obstáculos da posição contrária, e pode sustentar-se a partir das seguintes premissas:

a) A nova versão dada ao regime do AL pela Lei n.º 62/2018 não introduz alterações no regime civilista da propriedade horizontal, envolvendo uma opção legal de âmbito administrativo no sentido de se prescindir do controlo administrativo sobre o fim ou destino ou sobre as proibições de uso da fração constantes do título constitutivo da propriedade horizontal ou de deliberações levadas a registo;

b) Do novo regime do AL não consta qualquer disposição que revele intenção de derrogar o estatuto condominial inserido no CC;

c) A alteração legal ao regime do alojamento local operada pela Lei n.º 62/2018, de 22 de Agosto – art.º 9, n.ºs 2 e 3 do DL 128/2014, de 29 de Agosto, permitindo à assembleia de condóminos adotar deliberação em que se opõe ao exercício da atividade de alojamento local em frações autónomas, por mais de metade da permilagem do edifício, fundamentando a deliberação na prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos é uma medida de reação, a posteriori, para um AL que não respeita o normal funcionamento de um condomínio, distinta da permissão para o exercício do AL a partir de uma “autorização para habitação” da fração autónoma; não se trata de um meio suscetível de substituir os meios de tutela cível dos direitos privados dos condóminos alicerçada na reserva de jurisdição consagrada nos artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1 e 2, da Constituição;

d) Aquele meio constituiu apenas uma tutela administrativa que, além de apresentar uma frágil garantia do exercício dos direitos condominiais, nem tão pouco contempla a tutela de cada condómino nos casos em que ocorra uso da fração autónoma diversa do destino que lhe é dado pelo estatuto condominial, nem das hipóteses de violação de proibições condominiais de atos ou atividades, nos termos previstos, respetivamente, nas alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 1422.º do CC, independentemente do seu grau de concretização, podendo aproximar-se da tutela concedida ao condomínio, que não propriamente aos condóminos, confinada a atos de turbação à semelhança do tipo de atos previstos no artigo 1346.º do CC;

e) Nas situações dos autos o regime do alojamento local constante dos Dec.-Leis n.º 39/2008 e n.º 128/1014 – o aplicável -, não contém sequer nenhuma disposição normativa que contemple a proteção dos direitos dos condóminos perante a instalação de estabelecimentos de alojamento local em fração autónoma destinada a habitação por parte de outro condómino, como também não contém nenhuma disposição que possa ser tida como derrogatória da tutela desses direitos conferida pelo regime da propriedade horizontal disciplinado pelo CC;

f) Na situação dos autos, a par deste regime de alojamento local (constante dos Dec.-Leis n.º 39/2008 e n.º 128/1014), a qualquer condómino de fração autónoma de prédio em regime de propriedade horizontal assistem os meios de tutela previstos no âmbito deste regime consagrado no CC para reagir contra a violação das limitações ao exercício do direito de outro condómino, nomeadamente em caso de uso da respetiva fração em desvio do destino que lhe é dado pelo estatuto condominial ou nos casos de prática de atos ou atividade violadoras de proibições condominiais, respetivamente, ao abrigo do disposto nas alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 1422.º do referido Código, assim como assiste a qualquer condómino a tutela geral da propriedade constante do artigo 1346.º do mesmo Código contra concretos atos de turbação ali contemplados praticados por outro condómino;

g) A tais domínios de tutela não obsta o facto de ter sido viabilizado, por via administrativa, o registo e instalação de estabelecimento de alojamento local nos termos do respetivo regime;

h) O AL não é um simples habitar da fração, equivalente à habitação que dele fazem os usuários não abrangidos pelo AL, ainda que possam aí pernoitar e descansar - sob o ponto de vista da destinação da coisa e da respetiva envolvência sócio-económica condominial, uma vivência habitacional é essencialmente diversa da sua utilização em alojamento de terceiros, com repercussões diversas no meio interhabitacional ou condominial em que se desenvolvem;

i) A afetação de uma fração destinada a habitação a AL pode ou não implicar o exercício de atividade comercial, mas isso não afasta a sua natureza de afetação distinta da habitação constante do título constitutivo da propriedade horizontal;

j) Os motivos que conduziram o legislador a autonomizar a figura do AL são específicos e não conduzem a que no AL se possa identificar um arrendamento de curta duração, nos termos desta figura;

k) As utilidades proporcionadas pelo explorador do alojamento local ao utente alojado, através do uso do prédio ou fração dele, embora requeiram as necessárias condições de habitabilidade, não se consubstanciam numa prestação de gozo habitacional, por natureza com um grau de permanência e estabilidade que não se verificam nos casos de alojamento local;

l) No âmbito do Dec.-Lei n.º 128/014, quer na sua versão original, quer na atual redação dada pela Lei n.º 62/2018, a exploração de estabelecimentos de alojamento local é expressamente definida no artigo 4.º, n.º 1, como correspondendo ao exercício, por pessoa singular e coletiva, da atividade de prestação de serviços de alojamento;

m) Para efeitos tributários o AL não é tratado como habitação;

n) O uso de frações autónomas em hospedagem no âmbito do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1093.º do CC, em arrendamentos sazonais de curta duração em áreas de veraneio ou “alojamento” de estudantes em determinados núcleos urbanos universitários inserem-se noutro contexto económico-social, distinto do AL, não justificando necessariamente a mesma solução jurídica;

o) A solução preconizada é perfeitamente harmoniosa com a Constituição da República Portuguesa, que reconhece a propriedade privada mas não a absolutiza em termos de impedir que o legislador ordinário limite os direitos de propriedade singular sobre as frações autónomas, no âmbito do regime da propriedade horizontal, atenta a especificidade deste direito real, que sofre de limitações específicas ao seu exercício, como as constantes do artigo 1422.º, n.º 2, do CC, e que são justificadas pela ordem unitária do conjunto imobiliário em que essas frações se integram;

p) O paralelismo que se possa fazer com outras atividades permitidas pelo legislador, em diploma específico, como sucede como o Regime Jurídico aplicável ao Sistema de Indústria Responsável (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 169/2012, de 1 de Agosto – art.º 18.º do SIR), não determina que a solução preconizada pelo legislador nesse diploma se possa sobrepor necessariamente ao estatuto condominial, sem alteração jurídica do mesmo.

Revertendo, ao caso em apreço apurou-se que a Ré é proprietária da fração autónoma identificada pelas letras “E”, destinada a habitação. O imóvel possui a licença de utilização e destina-se a habitação e em assembleia de condóminos foi aprovada deliberação de proibição de realização de alojamento local na fração E.

Considerando que no alojamento local podem estar envolvidas organizações de atividades económicas de dimensão diversa – desde a empresa societária ao sujeito individual, proprietário de espaço que aloca ao alojamento local, com maior ou menor frequência (podendo ser marginal mesmo ou acessória de uma qualquer outra atividade não comercial, o que sempre levaria a excluí-la da natureza comercial), a qualificação como ato de comércio tout court pelo intérprete, sem cabal enquadramento legal inequívoco, não se apresenta isenta de dúvidas, como sucede igualmente na delimitação do AL face a outras figuras, conforme se destaca da literatura, nomeadamente no escrito de Januário da Costa Gomes, “Notas soltas sobre a relação entre o «proprietário» e o «hóspede» no alojamento local”, I Congresso do Alojamento Local, Almedina, 2020, págs. 96-97, onde se lê:

“…o contrato de alojamento local apresenta-se, debaixo do manto da sua unicidade designativa, como uma figura bicéfala: tanto pode ter, em concreto, a natureza de arrendamento de vilegiatura como pode assumir, em concreto, a natureza de hospedagem.

Como conjugar o exposto com o facto de o próprio art.º 4º, n.º 1 do RAL se reportar a uma “atividade de prestação de serviços de alojamento” por parte do titular do estabelecimento?

E como compatibilizar essa diversidade sob a unidade designativa com o facto de o RAL insistir em ver um “estabelecimento” em cada modalidade de alojamento local?

Essas linguagens designativas revelam, por um lado, o facto acima referido, de o berço do alojamento local estar na legislação do turismo; por outro, evidenciam o propósito “normalizador” do legislador, quer das plúrimas situações de alojamento local quer dos clássicos, fiscalmente “rebeldes”, arrendamentos de vilegiatura.”

A integração do AL nos atos de comércio, tal como indicada no acórdão recorrido, parece-nos ter sido justificada sobretudo com base na necessidade de distinguir a utilização da fração para “habitação” de outras utilizações, distinção esta que sempre será possível de realizar sem entrar na qualificação da atividade de alojamento local como comercial.

É que com alguma facilidade se consegue distinguir o fim “habitação” do fim “comércio” inserido no título constitutivo da propriedade horizontal com recurso às regras da interpretação do negócio jurídico – art.º 236.º e ss do CC – sem qualificar o alojamento local como ato de comércio, dada a artificialidade da qualificação, em face da utilização específica que o alojamento local comporta (pernoitar e ter certos serviços associados à pernoita).

A solução interpretativa proposta na Uniformização não é contrária à letra ou ao espírito do regime do alojamento local constante dos Dec.-Leis n.º 39/2008 e n.º 128/1014, os quais não contém nenhuma disposição normativa que contemple a proteção dos direitos dos condóminos perante a instalação de estabelecimentos de alojamento local em fração autónoma destinada a habitação por parte de outro condómino, tal como não contém nenhuma disposição que possa ser tida como derrogatória da tutela desses direitos conferida pelo regime da propriedade horizontal disciplinado pelo CC e legislação de direito privado.

Mesmo após a alteração do regime do alojamento local introduzida pela Lei n.º 62/2018, de 22-11, e no que toca ao mecanismo introduzido no n.º 2 do artigo 9.º (prevendo a possibilidade de oposição ao exercício da atividade de alojamento local em fração autónoma de prédio sujeito a propriedade horizontal mediante apresentação ao órgão municipal competente de deliberação fundamentada da assembleia de condóminos, aprovada por mais de metade da permilagem do edifício, decorrente da prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos) a situação não se modificou, pelo que é de considerar que se trata “de um meio alternativo de tutela administrativa, para efeitos de cancelamento, até ao máximo de um ano, do registo de estabelecimento de alojamento local, o que se mostra, portanto, insuscetível de substituir os meios de tutela cível dos direitos privados dos condóminos alicerçada na reserva de jurisdição consagrada nos artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1 e 2, da Constituição.

Nestes termos, entende-se que a pretensão dos autores deve proceder quanto aos pedidos formulados nas alíneas a) e b) da p.i..[…]”.

A questão a apreciar na ação consiste em determinar se o uso da fração “E” para atividade de alojamento local, contende com o regime da propriedade horizontal, na medida em que perante o título constitutivo da propriedade horizontal a fração destina-se a habitação.

Por efeito da sucessão de leis no tempo, uma das questões a apreciar na apelação prende-se com o regime jurídico a considerar no caso concreto.

A ação foi intentada em 16 de janeiro de 2023.

A sentença foi proferida em 26 de abril de 2024.

Na apreciação do mérito, cumpre ter presente os seguintes factos essenciais:

1. Os Autores são donos e legítimos comproprietários, na proporção de ½ cada um, da fração autónoma designada pela letra “F” correspondente a uma habitação tipologia T3, ao nível do primeiro andar direito do bloco centro, com entrada pelo n.º ..., do prédio constituído em propriedade horizontal sito à rua ..., com entrada pelos números ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., descrita na conservatória do registo predial de Vila do Conde sob o número ... e inscrita na matriz predial urbana sob o número ..., da freguesia ..., concelho de Vila do Conde.

2. Fração autónoma que constitui a habitação própria e permanente dos Autores desde a sua aquisição, na qual instalaram a sua casa de morada de família, e onde residem em economia comum com um filho comum do casal, de 9 (nove) anos de idade.

3. A Ré é dona e legítima proprietária da fração autónoma designada pelas letra “E” correspondente a uma habitação tipologia T3, ao nível do R/Ch direito do bloco centro, com entrada pelo n.º ... do prédio constituído em propriedade horizontal sito à rua ..., com entrada pelos números ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., descrita na conservatória do registo predial de Vila do Conde, sob o número ... e inscrita na matriz predial urbana sob o número ..., da freguesia ..., concelho de Vila do Conde.

4. O edifício, onde se inserem as frações autónomas propriedade dos Autores e Ré, foi constituído em 21 de setembro de 2007 em propriedade horizontal e compõe-se de 10 (dez) frações autónomas, todas destinadas a habitação, distribuídas por três blocos, “Bloco Sul”, “Bloco Centro” e “Bloco Norte”, todos de cave, rés-do-chão e primeiro andar, com áreas de estacionamento e logradouros comuns.

5. A fração autónoma “E”, propriedade da Ré, destina-se a habitação, como resulta do título constitutivo (doc. n.º 05), tendo sido emitido pela Câmara Municipal ... o respetivo alvará de autorização e utilização n.º ... para habitação.

6. As frações autónomas “E” e “F” acima em 1 e 3, estas duas frações situam-se no lado direito do bloco centro, uma acima da outra, situando-se a fração “E” ao nível do rés-do-chão e a fração “F” ao nível do primeiro andar.

7. O acesso a estas frações faz-se por uma entrada comum e exclusiva.

8. Os Autores apenas dividem o portão de acesso à sua fração autónoma com a fração autónoma propriedade da Ré.

9. A instalação pela Ré, de um AL na fração autónoma “E” foi posteriormente discutida em Assembleia Geral de Condóminos, realizada em 10/05/2022, na qual, com exceção da Ré, todos os condóminos presentes, num total de 42.6% do capital total do edifício votaram contra a instalação de Alojamento local em qualquer uma das frações do edifício.

12. A Ré tem como objeto social “Investimentos imobiliários, nomeadamente, a atividade de compra e venda de imóveis para revenda. Arrendamento de bens imobiliários e exploração de imóveis. Atividade de alojamento local com e sem serviço de refeições”.

13. Sob a designação “...”, como aparece publicitada em sítio da internet denominado airbnb, a referida fração autónoma, contra remuneração, é disponibilizada a turistas, devidamente mobilada e equipada, para alojamento temporário, inferior a 30 dias, prestando ainda serviços remunerados de limpeza.

14. A referida atividade de alojamento local encontra-se registada em nome do sócio gerente da Ré, CC no Registo Nacional de Alojamento Local sob o n.º .../AL, com data de abertura ao público em 01 de abril de 2022.

15. O regulamento do condomínio, na sua cláusula 12.º, alíneas a) e c) estabelece que “é vedado aos condóminos, seus familiares, pessoas que com eles convivam e seus empregados dar à fração um uso diverso do previsto no título constitutivo da propriedade horizontal e destinar a fração a qualquer uso que, pela sua frequência ou utilização, possam prejudicar o sossego do edifício e seus utentes”.

16. Na ata da assembleia de condóminos realizada em 27 de março de 2023 consta a seguinte deliberação:

Convocando as normas do Código Civil em sede de propriedade horizontal (na redação do DL 10/2024 de 08 de janeiro, que entrou em vigor a 01 de janeiro de 2024 (art.º 26º/e)), temos que:

- o título constitutivo da propriedade horizontal pode conter a “menção do fim a que se destina cada fração” (art.º 1418º, nº2, al. a));

- é vedado aos condóminos dar à sua fração “uso diverso do fim a que se destina”, bem como “praticar quaisquer atos ou atividades que tenham sido proibidos no título constitutivo ou, posteriormente, por deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição” (art.º 1422º, nº 2 / c) e d));

- “sempre que o título constitutivo não disponha sobre o fim de cada fração autónoma, a alteração ao seu uso carece da autorização da assembleia de condóminos, aprovada por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio, com exceção do previsto no artigo 1422.º-B” (art.1422º, nº 4);

- “a alteração do fim ou do uso a que se destina cada fração para habitação não carece de autorização dos restantes condóminos” (art.º 1422º-B/1 CC).

O regime jurídico de exploração de estabelecimentos de alojamento local regulado, inicialmente, pelo Decreto-lei nº 39/2008, de 7 de março, que veio instituir o regime jurídico da instalação, exploração e funcionamento dos empreendimentos turísticos, diploma esse alterado pelos Decretos-Leis nºs 228/2009, de 14 de setembro, e 15/2014, de 23 de janeiro, veio permitir a prestação de serviços de alojamento temporário em estabelecimentos que não reunissem os requisitos legalmente exigidos para os empreendimentos turísticos.

O Decreto-lei nº 128/2014, de 29 de agosto, que elevou “a figura do alojamento local de categoria residual para categoria autónoma, reconhecendo a sua relevância turística e inaugurando um tratamento jurídico próprio” de forma a que “as figuras dos empreendimentos turísticos e do alojamento local passam a ser duas figuras devidamente autónomas e recortadas, vedando-se a possibilidade de colocação sob a figura e regime do alojamento local de empreendimentos que cumprem com os requisitos dos empreendimentos turísticos”.

Nos termos do art.º 2º, nº 1, do Decreto-lei nº 128/2014, “Consideram-se estabelecimento de alojamento local aqueles que prestam serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração, e que reúnam os requisitos previstos no presente decreto-lei”.

Nos termos do art.º 4º, nº 1, “Para todos os efeitos, a exploração de estabelecimento local corresponde ao exercício, por pessoa singular ou coletiva, da atividade de prestação de serviços de alojamento”.

A Lei nº 56/2023, de 6 de outubro (Medidas no âmbito da habitação), teve como um dos propósitos o “incentivo à transferência de apartamentos em alojamento local para o arrendamento habitacional” (art.º 1º, nº2, al. g)).

A Lei nº 56/2023 (com entrada em vigor no dia seguinte ao da sua publicação – art.º 55º) alterou a redação do Decreto-lei nº 128/2014, de 29 de agosto, passando o art.º 9º, nº2, a dispor o seguinte:

“2 - No caso de a atividade de alojamento local ser exercida numa fração autónoma de edifício ou parte de prédio urbano suscetível de utilização independente, a assembleia de condóminos, por deliberação de pelo menos dois terços da permilagem do edifício, pode opor-se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração, salvo quando o título constitutivo expressamente preveja a utilização da fração para fins de alojamento local ou tiver havido deliberação expressa da assembleia de condóminos a autorizar a utilização da fração para aquele fim”.

A mesma Lei nº 56/2023 alterou os nºs 4 e 5 do art.º 5º do Decreto-lei nº 128/2014 nestes termos:

“4 - Sempre que o estabelecimento de alojamento local seja registado em fração autónoma de edifício em regime de propriedade horizontal que se destine, no título constitutivo, a habitação, deve o registo ser precedido de decisão do condomínio para uso diverso de exercício da atividade de alojamento local.

5 - A decisão é tomada nos termos do n.º 1 do artigo 1419.º do Código Civil”.

Essa nova redação apenas se aplica aos registos efetuados após a entrada em vigor da Lei nº 56/2023 (cf. art.º 52º).

Neste contexto, não se podem atender os argumentos da apelante, que pretende que se reconheça que ao abrigo do regime previsto na Lei 56/2023 de 06 de outubro se mostra reconhecido o exercício da atividade por não se pronunciar o condomínio em sentido contrário.

A lei exige que a assembleia de condóminos tome uma deliberação expressa no sentido de autorizar a atividade.

Como o registo do alojamento local da ré é anterior à entrada em vigor da lei, por se reportar a abril de 2022, não se lhe aplica a nova redação.

Contudo, foi publicado posteriormente, o Decreto-lei nº 76/2024, de 23 de outubro (entrou em vigor no dia 01 de novembro de 2024 – cf. art.º 7º) que veio alterar o regime da exploração dos estabelecimentos de alojamento local e revogar medidas no âmbito da habitação, republicando o Decreto-lei nº 128/2014. O propósito deste diploma foi o de «(…) criar condições para que a atividade do alojamento local se consolide de forma equilibrada com o ambiente habitacional, com respeito dos direitos de iniciativa privada, de propriedade privada e de habitação, constitucionalmente consagrados, conciliando os impactos económicos e urbanísticos daquela atividade em Portugal”.

Quanto à questão do uso de fração destinada a habitação para a atividade de alojamento local, o novo diploma passou a prever no art.º 6º-B [aditado] sob a epígrafe:

“Utilizações válidas e compatíveis com alojamento local”:

“[…]4 - Sem prejuízo da eventual proibição do exercício da atividade de alojamento local no título constitutivo da propriedade horizontal ou em regulamento de condomínio que dele faça parte integrante, ou ainda através de deliberação posterior da assembleia de condóminos a aprovar nos termos do número seguinte, a instalação e exploração de estabelecimentos de alojamento local em fração autónoma não constitui uso diverso do fim a que é destinada, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 1422.º do Código Civil, devendo coexistir no quadro dos usos urbanísticos dominantes admissíveis para a respetiva zona territorial, salvaguardando a harmonia e a coexistência das atividades que decorrem nas outras frações.

5 - A deliberação posterior de criação ou alteração do regulamento de condomínio, prevista no número anterior, com o objetivo de proibir o exercício da atividade do alojamento local, deve ser aprovada pela assembleia de condóminos por maioria representativa de dois terços da permilagem do prédio e produz efeitos para futuro, aplicando-se apenas aos pedidos de registo de alojamento local submetidos em data posterior à deliberação.

Artigo 9º “Cancelamento do registo”

“[…]

2 - No caso de a atividade de alojamento local ser exercida numa fração autónoma de edifício, ou parte de prédio suscetível de utilização independente, a assembleia de condóminos pode opor-se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração, através de deliberação fundamentada aprovada por mais de metade da permilagem do edifício, com fundamento na prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos, solicitando, para o efeito, uma decisão do presidente da câmara municipal territorialmente competente, nos termos dos números seguintes.

3 - (Revogado.)

4 - Uma vez recebida a deliberação da assembleia de condóminos aprovada nos termos do disposto no n.º 2, o presidente da câmara municipal pode ordenar a realização do procedimento previsto nos nºs. 12 e 13.

[…]

12 - Em alternativa ao cancelamento do registo do estabelecimento, o presidente da câmara municipal pode convidar os intervenientes à obtenção de um acordo, acompanhado, quando exista, por um provedor do alojamento local, com vista ao arquivamento do procedimento mediante a aceitação de compromissos e condições.

Esta nova redação dos Artigos 6º-B e 9º do Decreto-lei º 128/2014 é aplicável ao caso em apreço, por aplicação do art.º 12º/2, parte final do Código Civil.

Neste sentido, observa-se no Ac. Rel. Lisboa 04 de fevereiro de 2025, Proc. 4966/23.4T8FNC.L1-7., acessível em www.dgsi.pt, que seguimos de perto: “[…] a nova redação destes preceitos veio dispor sobre o conteúdo de certas relações jurídicas (a saber: o conteúdo do direito de propriedade do condómino sobre a sua fração - cf. Artigo 1420º do Código Civil - e sua articulação com os direitos dos demais condóminos), abstraindo dos factos que lhes deram origem, razão pela qual se aplicam às relações jurídicas já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor (segunda parte do nº 2 do Artigo 12º do Código Civil).

«Tem-se, assim, que aí onde, por determinação da primeira parte do nº2, as leis que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos só se aplicam aos factos novos, já sucede, por indicação da segunda parte do nº2, que as leis dispondo diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas são aplicáveis às relações jurídicas constituídas antes da entrada em vigor da lei nova as subsistentes ou em curso à data do seu início de vigência. Seja uma lei que vem alterar o regime das relações pessoais dos cônjuges ou o regime de administração dos bens do casal, ou o conteúdo do direito de propriedade (…)» (Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, p.62). Também Inocêncio Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, 11ª ed., pp. 293-294, afirma que as relações ou situações abarcadas pela segunda parte do nº 2 do Artigo 12º «são as de execução duradoura, ou, mais concretamente, de execução continuada ou periódica, como as relativas ao direito de propriedade ou outros direitos reais (…)». «A LN aplica-se a todos os factos jurídicos (…) que se tenham iniciado na vigência da LA e que ainda estejam em curso no início da vigência da LN» (Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, Almedina, p. 282)”.

Atento o regime decorrente do novo art.º 6º-B, nº4 (“a instalação e exploração de estabelecimentos de alojamento local em fração autónoma não constitui uso diverso do fim a que é destinada, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 1422.º do Código Civil”), a doutrina do AUJ nº 4/2022 caducou porquanto se alterou – em termos essenciais - o quadro legal subjacente à prolação do dito acórdão uniformizador de jurisprudência.

Nos termos desse AUJ nº 4/2022 foi fixada esta jurisprudência:

- “No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fração se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local”.

Consoante é assumido pelo próprio AUJ nº4/2022, o regime legal que foi atendido para a prolação do citado acórdão foi o decorrente do DL 128/2014 de 29 de agosto na redação do DL 63/2015 de 23 de abril, antes das alterações introduzidas pela Lei nº 62/2018, de 22 de agosto (apesar de se fazer referência a este diploma na fundamentação).

Conforme tem sido recorrentemente sublinhado na doutrina e jurisprudência[15], conquanto os acórdãos de uniformização de jurisprudência não tenham a força obrigatória geral que era atribuída aos assentos pelo revogado art.º 2º do Cód. Civil, é-lhes reconhecido um valor reforçado que deriva não apenas do facto de emanarem do Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, como ainda de o seu não acatamento pelos tribunais de 1ª instância e Relação constituir motivo para a admissibilidade especial de recurso, nos termos do art.º 629º, nº 2, al. c) do CPC. Portanto, tais acórdãos uniformizadores são vinculativos para o STJ enquanto este não os alterar e constituem um precedente persuasivo para os demais tribunais.

A doutrina dum acórdão uniformizador mantém, no descrito contexto, a sua força vinculativa na ordem jurisdicional, enquanto a norma interpretada não for alterada pelo legislador ou a jurisprudência não for modificada por outro acórdão uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça.

No caso concreto ocorreu uma alteração legislativa que contende com um dos argumentos mais relevantes do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2022 relacionado com o destino da fração e o próprio regime da propriedade horizontal.

Citando o AUJ, onde se referia: “o sentido normal do destino “habitação” para qualquer potencial adquirente das referidas frações não poderá deixar de ser o de que a sua função económico -social é a de servir de fogos ou de residência para pessoas e agregados familiares, proporcionando -lhes o sossego, a tranquilidade, a segurança e o conforto requeridos por qualquer economia doméstica, num envolvente espaço comum instrumental desse tipo de convivência coletiva.”

[...]

“Será, portanto, em função desse destino ou fim que importa aferir o âmbito de tutela traçado no artigo 1422.º, n.º 2, alínea c), do CC, que confere a cada condómino o direito de se opor a que qualquer das frações dos restantes condóminos seja usada para fim diverso do que lhe é destinado no estatuto da propriedade horizontal em foco.”

[...]

“Não é demais sublinhar que o fim ou destino das frações autónomas configurado no título constitutivo assegura, antecipadamente, aos potenciais adquirentes delas o conteúdo dos direitos de propriedade singular e de compropriedade que lhe são inerentes.”

18.5 Decorre do exposto que a orientação tida por mais conforme com o espírito do sistema jurídico e com as normas legais que regulam a propriedade horizontal e o alojamento local, em análise, coincide com a orientação adotada no acórdão recorrido”.

À face do atual regime tais considerandos não se podem manter, porque expressamente se prevê no art.º 6º-B da citada diploma que a atividade de alojamento local constitui um uso permitido na fração destina a habitação, para os efeitos do art.º 1422º/2 c) CC.

Acresce as críticas apontada na doutrina ao AUJ nº4/2022, devidamente sintetizadas no Ac. Rel. Lisboa de 04 de fevereiro de 2025, Proc. 4966/23.4T8FNC.L1-7 (acessível em www.dgsi.pt) e que aqui damos por reproduzidas.

Refira-se que o atual quadro legal prevê uma articulação entre o exercício da atividade de alojamento local e o regime da propriedade horizontal, destacando-se os seguintes aspetos essenciais:

i. É admissível a exploração de estabelecimento de alojamento local em fração autónoma, independentemente de tal fração se destinar a habitação nos termos do título constitutivo, salvo se o título constitutivo da propriedade horizontal proibir o exercício de tal atividade ou se a mesma for proibida pelo regulamento de condomínio estando este integrado no título constitutivo (Artigo 6º-B, nº4, do Decreto-lei nº 128/2014, de 29 de agosto a redação do Decreto-lei nº 76/2024, de 23 de outubro; proibição originária);

ii. A assembleia de condóminos pode criar ou alterar o regulamento do condomínio, proibindo o exercício da atividade de alojamento local, exigindo-se uma maioria representativa de 2/3 da permilagem do prédio, sendo que essa deliberação só produz efeitos para o futuro (ex nunc), aplicando-se apenas aos pedidos de registo de alojamento local submetidos em data posterior à deliberação (Artigo 6º-B, nº5; proibição superveniente);

iii. A assembleia de condóminos pode, por deliberação fundamentada aprovada por mais de metade da permilagem do edifício, opor-se ao exercício da atividade de alojamento local em fração autónoma com fundamento na prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos, solicitando, para o efeito, uma decisão do presidente da câmara territorialmente competente (Artigo 9º, nº2; proibição superveniente reativa sujeita a condição). Feita essa solicitação, o presidente da câmara das duas uma: (i) após audiência prévia, determina o cancelamento do registo (nºs 5 e 6); (ii) pode convidar os intervenientes à obtenção de um acordo com vista ao arquivamento do procedimento mediante a aceitação de compromissos e condições (nº12).

iv. A exploração de alojamento local está também sujeita a limitações legais objetivas, nomeadamente: é vedada a exploração, pelo mesmo proprietário ou titular de exploração, de mais de nove estabelecimentos de alojamento local na modalidade de apartamento, por edifício, se aquele número de estabelecimentos for superior a 75/prct. do número de frações existentes no edifício (artigo 11º, nº4); na modalidade de hostel em edifício em que coexista habitação, é necessário autorização dos condóminos para o efeito (Artigos 4º, nº4 e 6º, nº2, al. f)); na modalidade de “quarto”, este tem de se integra na residência do titular da exploração e esta tem de corresponder ao seu domicílio fiscal, com o limite máximo de três unidades (Artigo 3º, nº7); o município pode aprovar regulamento que preveja a existência de áreas de contenção e áreas de crescimento sustentável, impondo limites quantitativos à instalação de novos alojamentos locais (cf. Artigos 4º, nºs 5 a 7, 15º-A e 15º-B).

Acresce ao exposto que o regime da propriedade horizontal sofreu alterações - DL 10/2024 de 08 de janeiro -, passando a prever no art.º 1422-B CC o regime da alteração do fim e uso da fração para habitação tal como consta do título constitutivo da propriedade horizontal. Como acima se referiu este preceito não condiciona a alteração a autorização dos restantes condóminos. Tal regime representa uma alteração ao estatuto da propriedade horizontal que, como tal, não foi considerado no AUJ nº 04/2022.

Neste contexto a caducidade do AUJ 4/2022 justifica não seguir a interpretação ali defendida, o qual, como sublinhamos foi proferido à luz de um outro regime jurídico e que a decisão recorrida não ponderou, nem o poderia fazer pelo menos em relação ao DL 76/2024, de 23 de outubro, porque na data em que foi proferida a sentença tal regime ainda não tinha entrado em vigor.

Face ao atual regime e ponderando os factos provados, não existe impedimento legal para o exercício da atividade de alojamento local na fração “E”, destinada a habitação, porque tal uso é consentido para os efeitos do art.º 1422º/2 c) CC.

O título constitutivo da propriedade horizontal e o regulamento do condomínio não proíbem expressamente o exercício de tal atividade.

A cláusula 12, alíneas a) e c) do Regulamento do Condomínio prevê:

- “é vedado aos condóminos, seus familiares, pessoas que com eles convivam e seus empregados dar à fração um uso diverso do previsto no título constitutivo da propriedade horizontal e destinar a fração a qualquer uso que, pela sua frequência ou utilização, possam prejudicar o sossego do edifício e seus utentes”.

Porém, a lei apenas atribui relevo a uma proibição expressa de exercício de atividade de alojamento local, quer à luz da Lei 56/2023 de 06 de outubro, como face à previsão do art.º 6º-B do DL 76/2024, de 23 de outubro e tal proibição não consta do regulamento do condomínio.

A deliberação da assembleia de condóminos com data de 10 de maio de 2022, não tem a virtualidade de impedir o uso da fração para a atividade de alojamento local, por caducidade.

Na assembleia deliberou-se: “com exceção da Ré, todos os condóminos presentes, num total de 42.6% do capital total do edifício votaram contra a instalação de Alojamento local em qualquer uma das frações do edifício” (ponto 9 dos factos provados).

À data estava em vigor o DL 128/2014 de 29 de agosto, na redação da Lei 62/2018 de 22 de agosto, que no art.º 9º sob a epígrafe “Cancelamento do Registo” previa:

“1.[…]

2 — No caso de a atividade de alojamento local ser exercida numa fração autónoma de edifício ou parte de prédio urbano suscetível de utilização independente, a assembleia de condóminos, por decisão de mais de metade da permilagem do edifício, em deliberação fundamentada, decorrente da prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos, pode opor -se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração, dando, para o efeito, conhecimento da sua decisão ao Presidente da Câmara

Municipal territorialmente competente.

3 — O Presidente da Câmara Municipal territorialmente competente, com faculdade de delegação nos vereadores, decide sobre o pedido de cancelamento.

4 — O cancelamento do registo determina a imediata cessação da exploração do estabelecimento, sem prejuízo do direito de audiência prévia”.

A deliberação em causa não foi tomada por mais de metade da permilagem do edifício (nº2), motivo pelo qual não poderia desencadear o procedimento tendente a obter a caducidade do registo, factos aliás que não foram alegados pelos autores.

Acresce que a deliberação foi tomada após obtenção pela ré do registo de atividade de alojamento local. Como se provou, o registo foi atribuído em abril de 2022 e com data de abertura ao público a partir de 01 de abril de 2022 (ponto 14 dos factos provados), sendo certo que à data a lei não previa como condição para obter o registo a prévia deliberação do condomínio sobre tal matéria. A deliberação posterior não constitui fundamento de caducidade do registo.

Por fim e atento o disposto no art.º 6º/5 do DL 76/2024 de 23 de outubro, a deliberação anterior não produz efeitos, pois só releva a deliberação que for proferida depois da entrada em vigor da lei, a qual apenas produz efeitos para o futuro.

Resta referir, face à posição defendida pela apelante no articulado superveniente, que a fixação de uma contribuição adicional para o condomínio, como ficou deliberado na Assembleia de Condóminos realizada em 27 de março de 2023 não tem a virtualidade de conceder autorização para o exercício da atividade. A deliberação apenas prevê a fixação da contribuição adicional, uma vez que estava documentado o registo de atividade de alojamento local na fração “E”.

Pelo exposto não assiste aos apelados-autores o direito a opor-se ao uso da fração “E” pela apelada-ré, para a atividade de alojamento local.

Neste contexto, ficam prejudicadas as demais questões suscitadas a título subsidiário na apelação, nos pontos XLVIII a LX das conclusões de recurso, a respeito da interpretação da vontade dos subscritores do título constitutivo da propriedade horizontal, colisão de direitos (art.º 335ºCC) e abuso de direito (art.º 334ºCC) - art.º 608º/2 CPC.

Procedem as conclusões de recurso, sob os pontos XXVII a XLVII, ainda que com fundamentos distintos, o que determina a revogação da sentença.


-

Nos termos do art.º 527º CPC as custas são suportadas:

- na ação, pelos autores; e

- na apelação, pela apelante e apelados na proporção do decaimento, que se fixa em 1/3 e 2/3, respetivamente.


-

III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e revogar a sentença recorrida e nessa conformidade, julgar improcedente a ação e absolver a ré do pedido.


-

Custas:

- na ação, pelos autores; e

- na apelação, pela apelante e apelados na proporção do decaimento, que se fixa em 1/3 e 2/3, respetivamente.


*
Porto, 28 de abril de 2025
(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art.º 131º, 132º/2 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Teresa Pinto da Silva
Ana Olívia Loureiro
___________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990. [2] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol. III, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1982, pág. 297.
[3] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, ob. cit., pág. 308.
[4]ANTUNES VARELA, J. M. BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 686.
[5] ANTUNES VARELA, et al, Manual de Processo Civil, ob. cit., pág. 690.
[6] FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, pág. 369.
[7] FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, pág. 369, nota 744.
[8] ANSELMO DE CASTRO Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra, Almedina, 1982, pág. 142.
[9] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pág. 704.
[10] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora Lim., 1984, pág. 143.
No mesmo sentido pode ainda ler-se o ANTUNES VARELA J. M. BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, ob. cit., pág.688.
[11] Neste sentido se pronunciaram, entre outros, Ac. Rel. Porto de 5 de novembro de 2018, Proc.3737/13.0TBSTS.P1, Ac. Rel. Coimbra de 24 de abril de 2012, Proc. 219/10.6T2VGS.C1, Ac. Rel. Coimbra 27 de maio de 2014, Proc. 1024/12.0T2AVR.C1, Ac. Rel. Porto 05 de fevereiro de 2024, Proc. 2499/21.2T8PNF.P1, todos estes disponíveis em www.dgsi.pt e ainda o Ac. STJ de 23 de janeiro de 2020, Proc. 4172/16.4TFNC.L1.S1, CJ, Acórdãos do STJ, ano XXVII, tomo I/2020, págs. 13/16, Ac. STJ 22 de junho de 2022, Proc. 2239/20.3T8LRA.C1.S1, Ac. STJ 03 de novembro de 2023, Proc. 835/15.0T8LRA.C4.S1, acessíveis em www.dgsi.pt .
[12] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum-Á luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pág. 183
[13] Cf. ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 3ª edição revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 2000, pág. 138.
Cf. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pág. 402.
Cf. JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum –À luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pág.183 a 186.
Cf. ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma do Processo Civil, ob. cit., pág. 138. Na jurisprudência, entre outros, seguindo esta orientação pode consultar-se o Ac. Rel. Coimbra 3.02.2010, Proc. 254/09.7TBTMR-A.C1 – endereço eletrónico: www.dgsi.pt.
[15] Cf., CASTRO MENDES/TEIXEIRA DE SOUSA, in Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL Editora, 2022, págs. 201 e seguintes, LEBRE DE FREITAS et al., in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição, Almedina, págs. 29 e seguintes e ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, Almedina, págs. 45 e seguintes; na jurisprudência, acórdãos do STJ de 24 de março 2021, Proc. 64/15.2IDFUN.L1-A.S1 e de 12 de maio de 2016, Proc. 982/10.4TBPTL.G1-A.S1, acessíveis em www.dgsi.pt.