Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10878/22.1T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ADITAMENTO DE NOVOS FACTOS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REJEIÇÃO DO RECURSO
OBRIGAÇÃO
EXCLUSIVIDADE
CONCORRÊNCIA DESLEAL
Nº do Documento: RP2024070410878/22.1T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Quando se entenda que a recorrente pretende a inclusão de factos na matéria provada que não constam dos factos provados nem dos não provados, ausente a formulação do segmento impugnatório da matéria de facto propriamente dita nas conclusões, por absoluta falta de indicação da matéria que pretendia ver aditada, o recurso da decisão sobre a matéria de facto deve ser rejeitado.
II – No que concerne ao incumprimento da obrigação contratual de exclusividade e inerentes deveres, mais importante do que a qualificação jurídica do contrato, é que dos fatos provados resulte (ou não) o incumprimento da obrigação mesma de exclusividade, como estatuída e/ou dos inerentes deveres acessórios de conduta à luz do princípio da boa fé consagrado designadamente no art. 762.º do CC.
III – Para além da violação directa ou imediata da disposição contratual da exclusividade perfila-se a possibilidade de uma conduta de incumprimento contratual justificativo da resolução numa situação de concorrência desleal e ainda de violação de disposições acessórias emergentes da boa fé.
IV – A confusão relevante para efeitos de concorrência desleal depende de um acto ou conduta do visado, por forma a que quem compra pense que está a adquirir o de qualidade garantida; dito de outro modo, um acto que provoque a confusão no público consumidor, sendo que o critério para aferir essa confusão há-de radicar-se na reacção normal do consumidor médio, no seu comportamento face a uma dada actuação.
V – Não integra um comportamento de violação da boa fé a distribuição pelo concessionário de OUTROS produtos (cuja composição é idêntica e a finalidade também) para o mesmo mercado, o de suplementos alimentares. É que não basta a actividade concorrente. Ponto era que esta, pelas circunstâncias demonstradas, correspondesse a uma violação do conteúdo do contrato no quadro das regras da boa fé (excluída a violação de disposição contratual expressa, como já explicitado): pela ocultação à Recorrente da existência e manutenção de outros produtos/suplementos com tal composição; pelo desenvolvimento e início dessa actividade de comercialização apenas após o contrato em causa, com o intuito de prejudicar a distribuição pela recorrente; pelo uso de marca ou embalagem ou preço susceptível de implicar confusão ou gerar desvios de clientela.
VI – Sempre a marca vem a ser o mais importante sinal utilizado para identificar e distinguir os produtos ou serviços de uma empresa de outros produtos ou serviços com a mesma composição ou destino.
VII - Não vindo alegados sequer quaisquer factos susceptíveis de indiciar a susceptibilidade de confusão com os produtos a que se reporta o contrato (e não o vinham, para além da composição e natureza – complemento dietético -), atenta a definição do objecto mediato do contrato (com referência a concretas e definidas marcas), como a actividade outrossim da Recorrida, não se alcança a violação contratual que justificaria a declarada resolução.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 10878/22.1T8PRT.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Central Cível do Porto - Juiz 7

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1º Adjunto: Ernesto Nascimento

2º Adjunto: António Carneiro da Silva


*

Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

A..., S.A., com sede na Rua ..., ..., ..., Gondomar, propôs a presente acção de processo comum contra B..., anteriormente designada por C..., com sede no ..., n.º ..., ..., ..., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 330.639,98 €, acrescida de IVA e juros de mora à taxa legal até efectivo e integral pagamento.

Para fundamentar a respectiva pretensão alegou, em resumo, que a R. rescindiu sem fundamento o contrato de fornecimento e distribuição de suplementos alimentares que havia celebrado consigo, causando-lhe prejuízos no valor de 48.813,18 €, correspondente à percentagem contratualmente devida sobre o valor das vendas não alcançadas; de 4.000,00 € por assuntos regulamentares devidos e não pagos; de 141.696,58 € correspondente ao valor das vendas não efectuadas por referência à média dos anos anteriores de 2019 e 2020; de 60.000,00 € pelos lucros cessantes desde a data da resolução até Novembro de 2023; de 15.000,00 € por danos de imagem e 14.178,37 € correspondente ao valor dos produtos que a R. lhe adquiriu mas não vendeu.

Citada, a R., em Contestação, além da ineptidão da PI e da excepção da litispendência, invocou o abuso de direito da A. por violação do dever de exclusividade, porquanto introduziu no mercado produtos idênticos aos que a própria R. tinha de comercializar, em prejuízo dos objectivos de venda destes produtos, e impugnou a matéria relativa aos alegados prejuízos.

A R. respondeu, pugnando pela improcedência da excepção da ineptidão da PI que foi por aquela alvo de correcções no próprio articulado de resposta em que a posição inicial foi mantida.

Proferido despacho saneador, com improcedência das invocadas excepções da ineptidão da PI e da litispendência assim como da apensação a estes autos do processo de injunção entre as mesmas partes, foi identificado o objecto do processo e enunciados os temas de prova, do que não houve reclamações.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, a qual julgou a acção parcialmente procedente, condenando a R. a pagar à A. a quantia de 48.813,18 € (quarenta e oito mil oitocentos e treze euros e dezoito cêntimos), acrescida de juros moratórios à taxa legal de 4% ao ano desde a citação até integral pagamento, absolvendo-a do restante pedido.

É desta decisão que vem interposto recurso pela Ré, a qual conclui nos termos seguintes:

A) A decisão do Tribunal a quo apresenta claras contradições entre a matéria dada como provada e a fundamentação da sentença, não valorando testemunhos imprescindíveis que justificaram plenamente o exercício do direito de resolução da Recorrente.

B) A sentença proferida analisou o enquadramento legal do contrato de fornecimento e distribuição de suplementos alimentares, mas não analisou corretamente a prova produzida com reflexo nas vicissitudes deste mesmo contrato, nomeadamente no que respeita ao incumprimento da cláusula de exclusividade conferida à Recorrente.

C) No âmbito do contrato celebrado pelas partes existiam cláusulas específicas que condicionavam a venda, direta ou indireta, por parte da Recorrida em vender os produtos referidos na tabela I do contrato.

D) Sendo que a sentença considera como provados que os produtos ... eram semelhantes aos produtos incluídos na tabela I do contrato, até sendo mais baratos.

E) O que claramente demonstra que a Recorrida estava em clara situação de incumprimento do contrato de fornecimento e distribuição de suplementos alimentares, competindo diretamente com a Recorrente de forma ilícita.

F) O Tribunal a quo limitou-se a não valorizar um conjunto de depoimentos essenciais, desconsiderando a prova testemunhal para enquadramento da resolução operada pela Recorrente.

G) Por outro lado, a prova testemunhal identifica claramente que a comercialização dos produtos ... não foi conhecida pela Recorrente previamente ao contrato subscrito pelas partes.

H) A situação da venda de produtos semelhantes demonstra cabalmente a prática de um ato que afeta a confiança da Recorrente, proibido em virtude do disposto na cláusula 9.ª, n.º 2, do contrato.

I) A matéria dada como provada permitiria ao Tribunal a quo retirar conclusões bastantes claras e inequívocas sobre as obrigações a que estava adstrita a Recorrida e todas as consequências levadas a cabo pela utilização de um produto similar e claramente concorrente com os produtos que estavam a ser vendidos pela Recorrente.

J) A Recorrida, direta ou indiretamente, vendeu produtos idênticos, em clara fraude ao regime de exclusividade, e procura através destes autos obter um benefício injustificado a seu favor.

K) A matéria de facto dada como provada permitiria concluir claramente de uma outra forma, dando razões objetivas para operar o quadro de resolução contratual efetuado pela Recorrente, o qual não justificava qualquer direito indemnizatório.

L) A sentença dá como provados factos que conduzem ao enquadramento de uma violação de exclusividade para depois concluir pela exclusão dessa responsabilidade sem uma análise objetiva e clara em que assentou o raciocínio jurídico.

M) A contrariedade é clara e evidente, manifestando-se na própria sentença, a qual será nula nos termos e para os efeitos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

N) O Tribunal a quo deveria ter interpretado o contrato e a exclusividade conferida no seu sentido amplo e não restrito, existindo uma clara violação desta, dado que a Recorrida introduziu no mercado produtos idênticos aos que a própria Recorrente tinha no mercado que lhe foi atribuído.

O) Ficou demonstrado que a distribuição de produtos equivalentes, ou seja, suplementos alimentares, com a mesma composição, prejudicou claramente a Ré e justificou de forma plena a resolução do contrato de distribuição.

P) Os produtos distribuídos pela Recorrente através do contrato com a Recorrida, e os produtos iguais distribuídos pela Recorrida, são claramente concorrentes.

Q) A Recorrida recorreu a um produto idêntico, e paralelamente ao contrato em apreço, acabou por distribuir este mesmo produto, o que motivou a resolução do contrato pela Recorrente.

R) Esta linha de produto foi simplesmente omitida para a Recorrida continuar a concorrer com a Recorrente, facto ignorado pelo Tribunal a quo.

S) Acresce que a distribuição de produtos semelhantes ao mesmo mercado convencionado pelas partes atribuiu um efeito claramente nocivo na relação comercial estabelecida, facto também ignorado pela sentença.

T) A Recorrente não apenas alegou a violação do dever de não concorrência, mas também mencionou desconformidades na adesão à plataforma para registo das encomendas.

U) Pelo que a sentença é claramente contraditória entre os factos dados como provados e a fundamentação evidenciada, a qual foi pouco clara e concisa na análise à prova testemunhal e conclusões extraídas desses mesmos depoimentos.

V) O Tribunal a quo não analisou corretamente alguns pontos essenciais da matéria controvertida – a circunstância da Recorrida ter violado claramente o princípio da exclusividade no contrato de distribuição e a circunstância da plataforma onde eram colocadas as encomendas ter apresentado vários constrangimentos.

W) A análise destes pontos revelava-se essencial para percebermos que não existe qualquer fundamento que justifique o montante indemnizatório atribuído na sentença recorrida.

X) A sentença proferida desconsiderou o facto de a Recorrida ter comercializado produtos idênticos aos comercializados pela Recorrente, entrando numa clara concorrência desleal.

Y) A distribuição dos produtos ... é apta a violar o número 2 da cláusula 9ª, como demonstrado.

Z) Acresce que a sentença proferida contém várias vicissitudes, não valorizando os testemunhos da Recorrente, considerando as obrigações contraídas pelas partes no âmbito do contrato celebrado.

AA) De acordo com as transcrições produzidas, deveria o Tribunal a quo ter valorado a prova testemunhal arrolada pela Recorrente, a qual ofereceu uma versão dos factos completamente diferente para apreciação dos fundamentos invocados da resolução do contrato.

BB) É indiscutível que a introdução no mercado de produtos iguais aos comercializados pela Ré ao abrigo da exclusividade, além de um atentado claro à mesma, consubstancia uma prática claramente capaz de afetar a confiança dos clientes.

CC) A comercialização de produtos ..., pelo menos desde 31 de março de 2021, a preços inferiores, afigura-se como principal dificuldade da Ré na comercialização dos produtos ao abrigo do contrato.

DD) A matéria dada como provada permitiria ao Tribunal a quo concluir pelo não cumprimento do contrato pela Recorrida em face da violação da cláusula 9.ª, n.º 2, do contrato, bem como da violação da exclusividade conferida à Recorrente.

EE) Acresce que a sentença proferida apreciou incorretamente a existência de um alegado direito de indemnização a favor da Recorrida.

FF) A sentença não apreciou que a introdução no mercado de produtos iguais aos comercializados pela Ré afetou a relação entre as partes e os objetivos propostos pela Recorrente.

GG) E, igualmente, que essa comercialização dificultou a produção de resultados favoráveis em termos de objetivos propostos no âmbito do contrato.

HH) A considerar-se todos os argumentos invocados pela Recorrente relativos à resolução operada, nunca o Tribunal a quo poderia considerar que a indemnização estaria verificada.

II) Tal direito indemnizatório não tem qualquer substrato na medida em que parte de um facto ilícito – a violação da exclusividade conferida no âmbito do contrato.

JJ) O Tribunal a quo não analisou a fundo as questões essenciais alegadas pela Recorrente para efeitos de resolução do contrato e não procurou nos depoimentos produzidos explicações e enquadramento para esta resolução.

KK) Face ao exposto, a sentença proferida pelo Tribunal a quo deverá ser alterada e substituída por outra que reconheça o direito de resolução efetuado pela Recorrente, não sendo a mesma condenada em indemnizar qualquer valor, em virtude do incumprimento do contrato pela Recorrida.

Pede a revogação da decisão.

Contra-alegou a Autora, pugnando pela improcedência do recurso e sustentando, em resumo, que:

1. Inexistem quaisquer contradições entre a matéria dada como provada e a douta

sentença proferida.

2. O tribunal a quo fundou a sua convicção numa análise crítica conjugada com a prova testemunhal produzida bem como a prova documental carreada para os autos.

3. Não existe qualquer dúvida quanto à falta de fundamento da rescisão contratual por parte da Recorrente, a Recorrida demonstrou claramente ter cumprido todas as

obrigações emergentes do referido contrato ao contrário da Recorrente que não conseguiu explicar os reiterados incumprimentos contratuais.

4. Não existe qualquer violação à clausula da exclusividade constante do contrato

porquanto a dita apenas se refere de forma explicita aos produtos das marcas ... e ... elencados no anexo I do contrato.

5. Desde sempre a Recorrente teve conhecimento de todos os produtos da Recorrida – até porque foi a Recorrente quem procurou a Recorrida e propôs a parceria , para venda de produtos ... e ... em Portugal e Angola- ao fazê-lo com a recorrida e não com qualquer outro laboratório – tal como foi referido pela testemunha AA foi por ser um laboratório reconhecido com produtos bem cotados no mercado, dos quais se destacam as marcas ... e ... , marcas estas que a Recorrente fez questão de ter a exclusividade de comercialização..

6. Nunca a Recorrida, comercializou ou trabalhou essas marcas depois de outorgado o contrato de fornecimento.

7. Como laboratório que é, manteve a sua atividade produzindo e distribuindo produtos de outras marcas – que à semelhança de todas as existentes no mercado para determinados fins clínicos têm na sua génese a mesma composição – logo não se coloca sequer a questão de venda de produto igual ou semelhante, pois isso são todos e muito menos qualquer intenção de prejudicar a Recorrente – porque em primeira analise a mais prejudicada seria a própria Recorrida –que deixaria de vender – no mínimo seria um contra senso.

8. Não existe qualquer ato ilícito de concorrência desleal ou outro por parte da Recorrida - ao fazê-lo seria agir contra “motu próprio”.

9. Todos os depoimentos foram valorizados cfr. leitura atenta da douta sentença-não se vislumbra em parte alguma que a Recorrente desconhecesse os produtos distribuídos pela Recorrida – até porque os depoimentos das testemunhas de ambas as partes foram claras e uniformes ao referirem que acedendo à plataforma logística, a Recorrente teve acesso a toda a informação relativa a atividade da Recorrida – tendo a própria testemunha AA, arrolada pela Recorrente, confirmado que o ... constava da mesma.

10. A Recorrida distribuiu esse produto juntamente com vários outros, de marcas distintas das marcas cuja exclusividade foi dada à Recorrente.

11. Ficou provado e não contestado pela Recorrente que a Recorrida nunca comercializou ou trabalhou as marcas cuja exclusividade fora entregue à Recorrente no âmbito do contrato.

12. Ficou provado que existia incumprimento contratual por parte da Recorrente quando não cumpriu os objetivos e não pagou as faturas que inclusivamente foram alvo de injunção), sendo que, foi a partir destes factos que a Recorrente levantou toda a questão e decidiu pela rescisão do contrato alegando violação da clausula de exclusividade o que, agora se veio a provar, não ser verdade.

13. A matéria dada como provada permite concluir inequivocamente pela falta de

fundamento para a rescisão contratual por parte da Recorrente.

14. O motivo da rescisão contratual não foi de facto a razão invocada, até porque a mesma não existe nem tem qualquer fundamento, mas sim, a incapacidade da Recorrente de cumprir com as suas obrigações contratuais quer com objetivos quer com a liquidação das faturas vencidas – não fossem estas as circunstâncias, e a mesma optaria pela renegociação, como aliás tentou fazer em reunião de 16-08-2021.

15. A distribuições dos produtos de uma marca distinta dos constantes do anexo ao contrato não configura concorrência desleal ou violação da exclusividade- a marca é outra e a estratégia de cada empresa é única, como ficou provado.

16. É falso que a Recorrida tenha prejudicado o bom nome ou os clientes da Recorrente fosse a que titulo fosse, até porque a Recorrente não tinha quaisquer cliente seu, com efeito foi a Recorrida que lhe passou a sua listagem de clientes, logo ao fazê-lo estaria antes de mais a prejudicar-se a si mesma, o que é em toda a linha um absoluto contrassenso – e disso não logrou a Recorrente fazer qualquer prova.

17. É falso que as dificuldades esporádicas no acesso à plataforma tenham prejudicado a Recorrente – tal como foi referido pelas suas testemunhas, a alternativa e forma preferencial de comunicação e colocação de encomendas era o email, e não a plataforma – à qual a Recorrida deu acesso como demonstração de boa fé e transparência.

18. Ao concluir-se pela falta de fundamento / justa causa para a rescisão, muito bem esteve o tribunal a quo ao decidir pela indemnização à Recorrida.

19. Tal decisão esta amplamente validada e fundamentada, parte do facto de inexistir justa causa para uma rescisão intempestiva do contrato, não se verificando qualquer incumprimento ao mesmo por parte da recorrida e muito menos a prática de qualquer ato ilícito.

20. Por todo o exposto, deve a decisão proferida pelo tribunal a quo ser confirmada e desatendida a pretensão da Recorrente.

Conclui pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.


*

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:

Importa elencar as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é definido pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

São elas,
1. do recurso em matéria de facto: extemporaneidade ou impossibilidade de conhecimento;
2. da nulidade da sentença por contradição na fundamentação;
3. a do mérito da decisão, i.é, a da aplicação do direito aos factos, tendo por não justificada a resolução do contrato pela Recorrente.


*

Consigna-se que a aparente falta de lógica na ordem de enunciação das questões a decidir, por se assomar a nulidade da sentença como questão prévia, se prende com a prioridade da apreciação da tempestividade do recurso, a qual, por se relacionar umbilicalmente com a aferição dos requisitos da impugnação da matéria de facto, demanda o conhecimento conjunto e primeiro.

III.

1.

Tendo-se perspetivado uma questão prévia a decidir no âmbito do presente recurso: a da verificação da inexistência de recurso em matéria de facto, não apenas por inobservância de ónus de impugnação fáctica, mas na medida em que sequer existe a aparência de impugnação de facticidade (falta de objeto, total falta de concretos factos impugnados); a determinar a intempestividade do recurso, com o que,  sendo destituído de impugnação da matéria de facto, não é de acrescentar ao prazo de recurso - de 30 dias, nos termos do nº1, do artigo 638º, do CPC - os 10 dias a que alude o nº7 de tal artigo (previstos apenas, para os casos de existência de objeto da impugnação da decisão de facto, materializado em reapreciação de prova gravada):

Sempre, adiante-se, se impõe verificar que  a recorrente não cumpriu o ónus que lhe está cometido pelas normas processuais do art. 638º do CPC, pois que não especificou nas concussões das alegações os concretos pontos de facto considera incorretamente julgados (al. a)) e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (al. c)), não se referindo às específicas alterações que considera deverem ser introduzidas a factos provados e a factos não provados (não mencionando, especificamente, a decisão alternativa por si proposta por contraponto à decisão proferida).

O que é caso para a rejeição do recurso em matéria de facto, por falta de objecto, sem lugar a convite ao aperfeiçoamento ou correcção. Como se consignou no Acórdão da Relação do Porto de 14/11/2022, proc. 537/22.0T8PVZ.P1 (Relator: Jorge Seabra), acessível na base de dados da dgsi, a mera discordância com o decidido não basta para que a impugnação da matéria de facto se considere efetuada nos termos impostos por lei, sendo que «por forma a evitar impugnações meramente genéricas ou meras discordâncias subjectivas, o artigo 640º, do CPC, estabelece a cargo do recorrente que impugna a decisão de facto um conjunto de ónus que devem ser estritamente cumpridos sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte.

Neste sentido, como refere A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 130, através das regras estabelecidas no artigo 640º “… foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão de facto, tendo o legislador optado por abrir apenas a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente.”

Nesta perspectiva e em face do teor do citado artigo 640º, do CPC, a lei é clara ao assinalar ao recorrente a obrigatoriedade de especificar nas conclusões do recurso (a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; (b) em caso de, na sua perspectiva, a resposta a tais factos dever ser diversa da proferida pelo Tribunal, a decisão alternativa por si proposta por contraponto à decisão proferida; (c) os concretos meios probatórios, constantes do processo, do registo ou da gravação, que imponham decisão diversa da recorrida e (d) caso a impugnação da decisão de facto se baseie em prova pessoal gravada, a indicação das passagens ou segmentos da respectiva gravação que demonstrem o erro em que incorreu o Tribunal, sendo certo que quanto aos ónus referidos nas sobreditas alíneas (c) e (d) julgamos que os mesmos podem ser cumpridos apenas nas alegações.

Trata-se, através do estabelecimento de tais ónus a cargo do recorrente, em primeiro lugar, a título de ónus primário, nos termos das ditas alíneas (a) e (b) de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso indicando os concretos segmentos da decisão que considera viciados por erro e a resposta alternativa eventualmente proposta. Em segundo lugar, a título de ónus secundário, através das ditas alíneas (c) e (d) estará já em causa a fundamentação ou motivação, em termos concludentes, das razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação e que, no seu entender, impunham uma decisão diversa.

Este ónus, no seu todo, decorre não apenas dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa-fé processuais, mas visa garantir, ainda e em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado, evitando o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão que porventura esteja inquestionavelmente correcta.

Por outro lado, como já se referiu, as apontadas divergências sobre o julgamento da matéria de facto têm de constar em termos especificados das conclusões do recurso, seja pela indicação específica/concreta de cada um dos factos que, por referência ao elenco da sentença, tenham sido incorrectamente julgados, como, ainda, da resposta alternativa proposta pelo Recorrente, ponto por ponto; Pelo contrário, quanto à indicação dos meios de prova em que o recorrente se funda para divergir do decidido e, ainda, quanto à indicação da localização no processo dos meios de prova dele constantes e/ou às passagens da gravação (ou transcrição), como antes se afirmou, as mesmas não têm que figurar nas conclusões, podendo constar – mas têm que constar – apenas das alegações. De facto, como é consabido e já antes foi salientado, são as conclusões que delimitam o âmbito da actividade jurisdicional do Tribunal de 2ª instância e, por outro, é com estes precisos elementos que, desde logo, o Tribunal de recurso deve ser confrontado por forma a saber, com o rigor e precisão exigíveis, a matéria de facto que se encontra impugnada e em que termos e, depois, a própria parte contrária, a fim de lhe permitir exercer um pleno exercício do contraditório, através, nomeadamente, da indicação dos mesmos meios de prova ou de outros produzidos nos autos e que, em seu entender, refutem as conclusões do recorrente – vide artigo 640º, n.º 2, alínea b), do mesmo Código.

Dito isto, no caso dos autos, resulta de forma insofismável que, desde logo, o Recorrente não deu cumprimento ostensivo ao aludido ónus primário de precisa delimitação do objecto do recurso na vertente da impugnação de facto, pois não faz alusão nas conclusões do recurso a nenhum dos pontos de facto da sentença que, na sua perspectiva, foram incorrectamente julgados, nem, ainda, indica, logicamente, as respostas alternativas que propõe para cada um dos ditos factos, incumprindo, pois, os ónus previstos nas alíneas a) e c) do n.º 1, do artigo 640º. É certo que o faz nas alegações, mas, como já o dissemos antes, isso não basta; é preciso que essa matéria conste de alguma forma das conclusões do recurso, o que no caso dos autos não ocorre.

(..) como salienta, ainda, A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 135, “… A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: (…) b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; (…) e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.” (…) como tem sido recorrentemente dito pela doutrina e pela jurisprudência, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento no segmento da impugnação da decisão de facto, despacho este que se mostra previsto apenas para as hipóteses do n.º 3 do artigo 639º, do CPC. Aliás, que assim é di-lo, de forma peremptória, o legislador no n.º 1 do citado artigo 640º, quando, na parte final do mesmo normativo, usa a expressão «… sob pena de rejeição», o que inculca em termos evidentes, até por comparação com a previsão do antecedente artigo 639º, n.º 3, que, de facto, não há lugar ao aperfeiçoamento das falhas no cumprimento dos ónus de impugnação da decisão de facto, sobretudo quando, como é o caso, esse incumprimento se situa ao nível daquele ónus primário já acima identificado.

Realce-se, ainda, neste particular que não está em causa, como fundamento da recusa da presente impugnação da decisão de facto, o incumprimento do denominado ónus secundário em termos de impugnação da decisão de facto e acima referido, caso este em que o STJ, fazendo uma distinção entre o dito ónus primário e o dito ónus secundário, tem vindo a fazer uma leitura menos apertada dos ónus prescritos no artigo 640º, do CPC -, mas, pelo contrário, em termos decisivos, o incumprimento do denominado ónus primário de impugnação da decisão de facto, qual seja a exacta delimitação do seu objecto e, reflexamente, do âmbito da actividade jurisdicional reclamada perante o Tribunal de 2ª instância, seja por via da indicação pelo Recorrente nas conclusões dos concretos pontos da matéria de facto que impugna, seja, ainda, pela indicação da resposta alternativa por si proposta por contraponto às respostas dadas à matéria de facto pelo Tribunal de 1ª instância.

De facto, se é certo que na verificação do cumprimento dos ónus previstos no artigo 640º, os aspectos de ordem formal devem estar subordinados aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, estes princípios não podem, sob pena de redundarem numa pura interpretação ab-rogante dos ónus primários e essenciais previstos nas citadas alíneas a) e c) do n.º 1, do artigo 640º, servir para suprir a falta de definição, precisa e rigorosa, do objecto do recurso no segmento da impugnação da decisão de facto, sendo certo que, em nosso ver, esse é o ónus mínimo exigível à parte que discorda da decisão de facto.

Neste sentido, é praticamente pacífica a doutrina do Supremo Tribunal de Justiça que defende que o recorrente que impugna a decisão de facto tem que fazer constar das conclusões do recurso (não sendo, pois, bastante a sua indicação nas alegações) os concretos pontos da matéria de facto que impugna e, ainda, as respostas alternativas que propõe.

Neste sentido, a título exemplificativo, podem citar-se, além dos já referidos na nota anterior, ainda, os AC do STJ de 19.05.2015, relatado pela Sr.ª Juíza Conselheira Maria Teresa Beleza, AC STJ de 8.10.2019, relatado pela Sr.ª Juíza Conselheira Maria João Vaz Tomé, AC STJ de 13.11.2019, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro António Leones Dantas e, ainda, mais recentemente o AC STJ de 15.09.2022, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Fernando Baptista, todos disponíveis in www.dgsi.pt. De facto, como se sumaria neste último Acórdão do STJ de 15.09.2022: “ III. Os ónus ínsitos nas als. a) e c) do n.º 1 do artigo 640º do CPC, cuja falta impõe a imediata rejeição do recurso sem necessidade de prévio convite ao recorrente, constituem um ónus primário, o qual deve ser satisfeito, não apenas no corpo das alegações, mas também nas conclusões da alegação. IV. E pela simples razão de que tais ónus têm por função delimitar o objecto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto”.»

Vide, neste sentido, quanto à inadmissibilidade de despacho de convite ao aperfeiçoamento em caso de incumprimento do ónus primário de impugnação da decisão de facto, por todos, Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 134, e, ainda, na jurisprudência, AC STJ de 19.12.2018, relatora Maria Graça Trigo e AC STJ de 24.05.2018, ambos na base de dados da dgsi.

Sempre, quanto à questão da exclusividade, equívocos os termos do recurso. Pese embora a menção nas alegações a depoimentos testemunhais, o que resulta já da interpretação das conclusões é a pretensão de reapreciação da decisão de mérito e que se extraiam os efeitos jurídicos que pretende, a partir e sobre os factos mesmos provados na sentença recorrida. Aqui nos remetemos para as alíneas D), H), I), K), L), DD) e F) das conclusões.

Destas resulta não estar em causa a impugnação dos factos provados, mas uma diferente perspectiva sobre o entendimento jurídico desses factos, sustentando a Recorrente serem os mesmos bastantes ou suficientes a ter por justificada a excepcionada resolução do contrato, com a consequência de extinguir a obrigação a que se reconduz a condenação…Donde, curiosamente, a transcrição dos depoimentos em sede de alegações, como emerge claro da conclusão sob F), não serve a impugnação da matéria de facto, mas um pretendido “enfoque” (?!) da situação subjacente à resolução comunicada pela Recorrente à A.

De todo o modo, quanto agora às também (convocadas na pronúncia pela parte quanto à possibilidade de decisão pela extemporaneidade) desconformidades na adesão à plataforma para registo das encomendas/ circunstância da plataforma onde eram colocadas as encomendas ter apresentado vários constrangimentos… Admita-se que das alegações e conclusões se infere uma vontade ou intenção de recorrer da matéria de facto nesse segmento…

Atente-se ao acórdão uniformizador do STJ nº 12/2023, de 17/10, que no seu segmento decisório diz não ser preciso que as conclusões do recurso expressamente contenham a indicação da decisão alternativa que o recorrente pretende [a alínea c) do nº 1 do artigo 640º do CPC], desde que isso resulte evidente da motivação. Ora, na fundamentação, este acordão também diz que o mesmo princípio (ou seja, não é obrigatório constar das conclusões) deve ser aplicado aos meios de prova que o recorrente entende imporem outra decisão [a alínea b) do nº 1 do artigo 640º do CPC]. Resta a alínea a) do nº 1 do artigo 640º do CPC - diz o mesmo acórdão, que tem obrigatoriamente de constar das conclusões, sob pena de rejeição, a indicação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

Na realidade, conforme se evidenciou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-2021 (Pº 4750/18.7T8BRG.G1.S1, rel. FÁTIMA GOMES), “[a]inda que não constitua uma impugnação de matéria de facto, no sentido típico, pode o recorrente entender que a matéria de facto provada e não provada não está completa, para a boa decisão da causa, invocando essa desconformidade em recurso. Com essa pretensão o recorrente quer ver incluídos factos alegados e sobre os quais versou o julgamento na matéria de facto, a partir de alegações e meios de prova, o que significa que o tribunal de recurso carece de ter elementos concretos sobre a indicada pretensão – quais os factos a aditar e porquê; quais os meios de prova que sustentam o aditamento”.

Quando se entenda que a recorrente pretende (e apesar do que consta do ponto 167 das alegações) a inclusão de factos na matéria provada que não constam dos factos provados nem dos não provados (ponto 166 das alegações) – ausente a formulação do segmento impugnatório da matéria de facto propriamente dita nas conclusões, por absoluta falta de indicação da matéria que pretendia ver aditada.

No caso, pois, sobre qualquer dos pontos referenciados e, muito decisivamente, quanto a este último, a impugnante não concretizou as respetivas motivações impugnatórias, limitando-se nas conclusões sob B) e T), V), ZZ) e AA), justamente, à alusão a vacuidades e generalidades, às quais, precisamente, nos termos supra, as rigorosas exigências legais quanto aos requisitos do recurso em matéria de facto se destinaram a obviar.

Donde, em conclusão, o recurso da decisão sobre a matéria de facto deve ser rejeitado, o que se decide, sem prejuízo de se haver o recurso por tempestivo.

2.

Dispõe o artigo 615º, nº 1, al. c) do C.P.C. “é nula a sentença quando (…) os fundamentos estejam em oposição com a decisão (…)”.

É pacífico na doutrina e jurisprudência o entendimento segundo o qual a nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão aí contemplada pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la: a contradição geradora de nulidade ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente (cf. nesse sentido, na doutrina Professor Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, , Vol. V, pág. 141, Coimbra Editora, 1981, Amâncio Ferreira, Manual de Recursos no Processo Civil, 9ª edição, pág. 56 e Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª edição, pág. 736-737, e na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Secção Social, de 28.10.2010, Procº nº 2375/18.6T8VFX.L1.S3, 21.3.2018, Procº nº 471/10.7TTCSC.L1.S2, e 9.2.2017, Procº nº 2913/14.3TTLSB.L1-S1).

É igualmente pacífico o entendimento de que a divergência entre os factos provados e a decisão não integra tal nulidade reconduzindo-se a erro de julgamento.

Neste sentido afirmou-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.5.2013, Procº nº 660/1999.P1.S1, que: “I- A contradição a que a lei impõe o efeito inquinatório da sentença como nulidade, é a oposição entre os fundamentos e a decisão – art.º 668º, nº 1, al. d) do CPC. II- Porém, para que tal ocorra, não basta uma qualquer divergência inferida entre os factos provados e a solução jurídica, pois tal divergência pode consubstanciar um mero erro de julgamento (error in judicando) sem a gravidade de uma nulidade da sentença. Como escreve Amâncio Ferreira «a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se como erro de julgamento» (A. Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, 9ª edição, pg. 56). III- A contradição entre os fundamentos e a decisão prevista na alínea c) do nº 1 do art.º 668º, ainda nas palavras do citado autor, verifica-se quando «a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo Juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente».

Em sentido idêntico, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Secção Social, de 18.1.2018, Procº nº 25106/15.8T8LSB.L1.S1, afirmou-se que “a nulidade prevista no artº 615º, nº 1, al. c), do CPC consiste na contradição entre os fundamentos exarados pelo juiz na fundamentação da decisão e não entre os factos provados e a decisão”.

No caso vertente, não assiste qualquer razão à recorrente, a qual não substancia minimamente no recurso interposto quais as claras contradições entre a matéria dada como provada e a fundamentação da sentença. Na verdade, apesar da conclusão primeira do recurso, as alegações e conclusões derivam esta afirmação imediatamente para a sede da matéria provada[1] e do enquadramento jurídico da decisão, não se esclarecendo minimamente onde se encontra a contradição…

Não se alcança qualquer contradição ou desconformidade entre os fundamentos da decisão e esta, impondo-se julgar improcedente o segmento recursivo respectivo.


3.

Quanto ao mérito da decisão recorrida, pelo julgamento do direito, importa, desde logo, atermo-nos aos factos provados e não provados na decisão recorrida, que se mantêm incólumes, em face da posição que antecede quanto ao não conhecimento da impugnação em matéria de facto.

Assim:

Factos provados

Da PI

1. A Autora dedica-se, entre outros, ao desenvolvimento, comercialização e distribuição de suplementos alimentares, fabricados em conformidade com os requisitos Europeus de Boas Práticas de Fabrico (GMP).

2. A Ré dedicou-se à comercialização de suplementos alimentares, na relação comercial que existiu com a A.

3. Em novembro de 2020, a Ré procurou a Autora no sentido de estabelecer uma parceria entre ambas, com o intuito de comercializar os produtos da Autora.

4. Até àquela data, a Ré trabalhava com o mercado de Angola, e tinha interesse em investir no mercado nacional.

5. Nesse sentido, e como existia interesse por parte da R. em comercializar os produtos que a ... detinha, encetaram negociações com vista a um acordo entre ambas as partes.

6. Com o intuito do novo investimento a R. decidiu avançar com este novo projecto, tendo a aqui A. como parceiro na área dos suplementos alimentares.

7. Para a R. era fundamental comercializar produtos conhecidos e implementados no mercado e que já estivessem no circuito comercial.

8. O que acontecia com os produtos da A. da linha ... e da linha ....

9. Em 22 de Fevereiro de 2021, a Autora e a Ré celebraram um contrato de fornecimento e distribuição de suplementos alimentares que tinha a duração de um ano, renovável automaticamente por iguais e sucessivos períodos, caso o contrato não fosse denunciado por qualquer uma das partes com a antecedência mínima de 180 dias relativamente ao termo inicial ou subsequente (cláusula 2.ª, n.º 1 do contrato).

10. A Autora assumiu as obrigações de:

- Distribuição dos bens constantes da Tabela I, anexa ao contrato supra identificado:

- Não alteração de preços, excepto se e quando o valor da produção assim o exija, e após o decurso de 2 anos da assinatura do contrato de fornecimento dos bens.

-Transmissão do “know-how” e experiência à C..., para efeitos de comercialização, por parte desta última.

- Não vender, direta ou indiretamente, os referidos produtos nos Territórios Português e Angolano.

11. A Ré assumiu as seguintes obrigações:

- Adquirir e comercializar, em exclusividade, os produtos distribuídos pela Autora;

-Diligenciar toda uma estrutura em termos de organização e promoção/venda dos produtos no mercado;

-Fazer a sua comercialização junto de farmácias, médicos e outras estruturas.

12. No dia 26 de Fevereiro de 2021, a A. forneceu à Ré a sua password junto da D..., entidade onde a Autora armazena todos os seus produtos, e para onde são dirigidas as encomendas solicitadas pelos clientes da Autora, inclusive as encomendas efetuadas pela ora Ré e por referência aos produtos objeto do contrato supra identificado.

13. O acesso à plataforma da D... para realização de encomendas permite ver os produtos distribuídos pela A., quais os preços praticados, e quais os seus clientes.

14. Em Fevereiro de 2021, a Ré fez a sua primeira encomenda na plataforma da D....

15. Em 13/07/2021, a A. comunicou à R. que no período de Março a Maio de 2020 a A. tinha vendido, Linha ... - €22.726,00 e Linha ... – €21.033,00, enquanto a Ré, em período homólogo (Março a Maio 2021) vendeu, Linha ... – €17.278,00 e Linha ... – €136,50, oferecendo a sua ajuda.

16. Tal comunicação, foi enviada para o Dr. BB, pessoa encarregue do projeto em questão, a manifestar a preocupação/descontentamento, por parte da A..

17. Em resposta, a Ré convocou uma reunião nas suas instalações, que se realizou em 16 de Agosto de 2021.

18. Aí foram discutidas questões que as partes achavam preponderantes para o bom funcionamento da parceria existente.

19. Aí, também foi discutida a questão, levantada pela aqui Ré, em relação a certos produtos, denominados de ....

20. Os produtos ... não faziam parte dos produtos constantes do anexo I supra referido em 10).

21. Tais produtos, em Agosto de 2021, eram distribuídos pela aqui A.

22. A Autora, também distribui e fornece produtos a outras empresas, tal como o “E...”, “F...”, entre outros.

23. A partir desta altura, as relações entre ambas as partes deterioraram-se, e

24. Em novembro de 2021 a Ré apresentou carta sob ao assunto “Resolução com justa causa do Contrato de Fornecimento e Distribuição” que foi rececionada pela A.

25. Dizendo, nomeadamente o seguinte:

“A A..., S.A. (“A...”) tem incumprido de forma reiterada este Contrato, apesar das nossas sucessivas reclamações, inviabilizando definitivamente o sucesso desta distribuição.

Desde logo, em violação do n.º 5 da cláusula 1ª, a A... comercializou no território produtos idênticos (fazemos referência à marca e produtos ...), em substância e forma, para o mesmo público-alvo, identificando-se também como “produtora”, e a preços mais baixos, assim concorrendo directamente, de forma desleal, com a nossa empresa e com os produtos entregues para a nossa distribuição exclusiva (com objetivos de vendas fixados, que saíram naturalmente afetados pela vossa conduta).

Como sabem, tomámos conhecimento desta situação por confrontação dos próprios clientes, que nos acusaram de “vender gato por lebre”, considerando que tinham acesso “ao mesmo produto” diretamente junto do “fabricante”, a um preço muito mais baixo.

Com efeito, e ao contrário de outros produtos comercializados pela A..., que se incluem na categoria de suplementação alimentar, a ... é na prática uma cópia da gama e produtos que a A... nos entregou para distribuição exclusiva, sendo por isso este comportamento uma violação indireta do dever de exclusividade.

Infelizmente, a A... também violou diretamente o referido n.º 5 da cláusula 1ª, considerando que vendeu diretamente os produtos (marca e referência) do nosso contrato, conforme nos foi possível detetar através do Portal D... SGPS…

Adicionalmente, a A... tem incumprido o Contrato ao bloquear-nos o acesso do Portal D... SGPS, dificultando a nossa distribuição e ao mesmo tempo ocultando a sua atividade.

Primeiro fê-lo com a alegação de que existiam pagamentos em atraso, o que demonstrámos ser falso. Depois fê-lo justificando-se com “problemas informáticos” os quais pudemos verificar que só afetavam a nossa empresa, uma vez que os demais operadores consultados confirmaram ter o acesso normal à referida plataforma.

Por fim, recentemente, quando descobrimos o V. comportamento, a A... impediu-nos de colocarmos a nossa empresa como destinatária das encomendas. Fê-lo sabendo que, com essa imposição, impediria a nossa comercialização dos produtos aos principais operadores do mercado. Mas também porque dessa forma conseguiria identificar os nossos clientes finais, para solicitá-los com os seus produtos “iguais” de menor preço.

Naturalmente, a nossa confiança nesta relação comercial saiu muito prejudicada…

Face ao supra exposto, e tendo-se gorado as negociações tendentes a uma cessação por acordo do referido contrato, não nos resta alternativa a resolvermos com justa causa este contrato de distribuição, o que se opera por meio desta comunicação, com efeitos imediatos considerando o seu incumprimento grave e reiterado”.

26. No referido contrato figura o seguinte: “Considerando que:

1.A A... dedica-se, entre outros, à comercialização e distribuição de suplementos alimentares, fabricados em conformidade com os requisitos Europeus de Boas Práticas de Fabrico (GMP), nomeadamente os constantes da “Tabela de Produtos” que constitui Anexo I ao presente Contrato, e que dele faz parte integrante e vai rubricado pelas PARTES;”

27. No n.º 5 da cláusula 1ª está estipulado o seguinte:

“5. A A... obriga-se a não vender, direta ou indiretamente (por meio de distribuidores ou agentes), os Produtos nos Territórios. A A... obriga-se ainda a fazer cessar qualquer venda a terceiros que comprovadamente revendam os Produtos para os Territórios.”

28. A A. dedica-se também à venda de dispositivos médicos e Produtos ... para proteção da COVID.

29. Estipula o n.º 2 da clausula 5.ª o seguinte:

2. As encomendas serão colocadas pela C... por email. A C... pode também colocar as encomendas através da plataforma logística utilizada pela A.... A A... só pode rejeitar encomendas com fundamento em rotura de stock ou impedimento legal. As encomendas devem ser entregues, nas moradas indicadas pela C..., no prazo de 3 (três) dias úteis após a sua colocação”.

30. Em Agosto de 2021, a R. efectuou compras à A. no valor de 12.353,96 €.

31. A 4/11/2021, a R. efectuou campanha de promoção de produtos que havia adquirido à A. no âmbito do contrato.

32. Estipula a cláusula 4.ª, n.º 1 do contrato celebrado que a R. estava obrigada a um valor mínimo anual de compras de 165.000,00 €, considerando compras mínimas obrigatórias trimestrais de 15.000,00 €, e no n.º 2 que a compra obrigatória trimestral não se aplicava ao primeiro trimestre da vigência do contrato.

33. A R. efectuou compras à A. no valor de 25.533,77 €, sem Iva.

34. A Cláusula 11.ª, n.º 5 do contrato estipula que “Se a C... incumprir o objetivo anual de compras durante o primeiro ano de vigência do Contrato, obriga-se a pagar à A..., a título de compensação, o correspondente a 35% (trinta e cinco por cento) sobre o volume não adquirido…”

35. A Cláusula 6.º, n.º 2 do contrato estipula que “As outorgantes acordam em fixar o valor mensal de € 1.000,00 (mil euros), pela prestação do Suporte Regulamentar, que a C... pagará à A..., independentemente de qualquer ordem de encomenda”.

Da Contestação

36. Os supra referidos produtos ... tinham ingredientes idênticos aos produtos incluídos no anexo supra referido em 10) e eram mais baratos.

37. Os supra referidos produtos ... foram distribuídos pela A. pelo menos desde 31/03/2021 sem que tal tenha sido comunicado por esta à R.

38. As partes convencionaram no contrato que: “Cláusula 9.º…2. (…) a A... obriga-se a:… d) Abster-se da prática de qualquer acto que, de qualquer forma, possam causar danos à imagem da C... ou afectar a confiança dos seus clientes”.

39. Os principais clientes finais de uma distribuidora de suplementos alimentares são farmácias e outros estabelecimentos similares que recebem os produtos através de distribuidores.

Factos não provados

Todos os que se mostrem em contradição com os que acima se deram como provados, designadamente e ainda que:

- No período de Março a Maio de 2020, a A. tenha vendido Linha ..., 22.726,00 € e Linha ..., 21.033,00 €.

-No período de Março a Maio de 2021, a R. tenha vendido Linha ... 17.278,00 € e Linha ... 136,50 €.

- Na reunião de 16/08/2021 a R. tenha proposto à A. a inexistência de objectivos mensais e anuais.

- Tenha sido por a A. não aceitar esta proposta que as relações entre A. e R. se deterioraram.

- A marca ... já existisse no mercado antes de as partes iniciarem as relações comerciais entre A. e R.

- De 1/03/2019 a 1/03/2020, a A. tenha vendido 169.784,01 € quanto aos produtos ... e 46.394,93 € quanto aos produtos ....

-  De 1/03/2020 a 1/03/2021, a A. vendeu 82.845,25 € produtos ... e 35.436,51 € de produtos ....

- Os produtos objecto do contrato em questão tenham sido esquecidos no mercado.

- A imagem da A. no mercado se encontre deteriorada.

- A R. não tenha efectuado as diligências necessárias a que se comprometeu no contrato.

- Os clientes habituais da A. tenham formado uma visão negativa acerca dos produtos ... e dos produtos ....

- O A. tenha sido confrontado com perguntas: “Este produto é para continuar? Prevêem alguma data para o deixar de comercializar?”

- Só ao fim de aproximadamente um ano é que tais produtos poderão alcançar os anteriores montantes de vendas.

- A A... tivesse conseguido vender ao armazenista os produtos adquiridos pela R. em 24/08/2021.


*

Quanto ao enquadramento jurídico da pretensão:

A natureza ou espécie de certo contrato pode não corresponder, necessariamente, à designação que as partes lhe atribuíram e, portanto, à qualificação que dele fizeram.

Quanto ao “contrato de fornecimento”.

A respeito deste contrato refere Carolina Cunha (O contrato de fornecimento no sector da grande distribuição a retalho: perspectivas actuais, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, I, org. Diogo Leite de Campos, Coimbra Editora, 2009, pp. 622-623) que: “Trata-se, no caso, de um negócio de execução reiterada, em que uma das partes (o fornecedor) se obriga, contra o pagamento de um preço, a realizar fornecimentos periódicos ao outro contraente (o fornecido)”.

Nas palavras de Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Almedina, 2007, pp. 142-3, “o contrato de fornecimento caracteriza-se pelo carácter periódico ou contínuo da prestação não monetária (mercadoria, (…)). (…) É frequente a qualificação doutrinária do contrato de fornecimento como subtipo da compra e venda. Mais adequada parece ser porém, se a interpretação do contrato a tal não se opuser, a qualificação como contrato-quadro, no âmbito do qual se celebram múltiplos contratos de compra e venda ou de prestação de serviço”.

De acordo com José Engrácia Antunes (Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2009, p. 358), o contrato de fornecimento “pode assumir diferentes configurações que vão desde a execução de prestações periódicas e continuadas até verdadeiros contratos-quadro que dão lugar a sucessivas compras e vendas mercantis independentes que se prolongam no tempo (v.g., contratos de fornecimento de matérias-primas, eletricidade, gás, etc.)”.

No contrato de fornecimento, uma das partes (designada por fornecedor) obriga-se: a fornecer bens ou serviços continuamente, mediante um preço (normalmente a pagar periodicamente) ou a fornecer bens ou serviços, periódica ou reiteradamente, contra uma prestação pecuniária; ou, ainda, a celebrar futuros contratos onerosos (nomeadamente de compra e venda, de locação ou de prestação de serviços), quando solicitado pela contraparte.

Trata-se de um contrato duradouro, com influência direta do tempo no conteúdo da prestação, pois o fornecedor obriga-se a ir prestando (eventualmente, celebrando os futuros contratos de execução) ao longo de um período de tempo, não tendo forma de cumprir antecipadamente, pois os futuros fornecimentos não podem, na lógica do contrato, ser efetuados todos de uma vez, desde logo porque a sua concretização – em termos de número, quantidades, tempos – apenas em momentos futuros e diversos será feita de acordo com as encomendas (ou consumos) a realizar pela contraparte.

Quando o contrato de fornecimento se destina a determinar ou regular a celebração de futuros contratos, é também um contrato-quadro (sobre esta categoria e suas várias modalidades, v. Maria Raquel de Almeida Graça Silva Guimarães, O Contrato-Quadro no Âmbito da Utilização de Meios de Pagamento Electrónicos, Coimbra Editora, 2011, sobretudo pp. 59-168).

Conforme se mencionou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-02-2018 (Pº 22131/15.2T8LSB.L1-7, rel. HIGINA CASTELO), na base de dados da dgsi: “À expressão contrato de fornecimento podem reconduzir-se ocorrências contratuais de feições diversas que podemos agrupar nos seguintes modelos:

a)- Contrato em que o fornecedor disponibiliza o seu produto em contínuo, durante um dado período ou sem termo determinado, obrigando-se a contraparte a pagar em função do que for consumindo ou retirando, sem prejuízo de poder também ser acordada uma prestação fixa, única ou reiterada, por essa disponibilidade;

b)- Contrato pelo qual as partes acordam que o fornecedor realizará futuras entregas de certos produtos e quantidades (ou prestará futuros serviços), com dada periodicidade, durante um período ou sem termo determinado, mediante contraprestação pecuniária;

c)- Contrato no qual as partes (ou uma delas) se obrigam à futura celebração de contratos de execução (compras e vendas, prestações de serviços, locações), durante um dado período ou por tempo indeterminado, podendo regular com maior ou menor intensidade esses futuros contratos (sua cadência, preços, formas de pagamento, quantidades globais por período de tempo, locais de entrega, etc.)”.

Já o contrato de concessão comercial “define-se como o contrato pelo qual um empresário – o concedente – se obriga a vender a outro – o concessionário- , ficando este último, em contrapartida, obrigado a comprar ao primeiro, certos produtos, para revenda em nome e por conta próprios numa determinada zona geográfica, bem assim como a observar determinados deveres emergentes da sua integração na rede de distribuição do concedente” (assim, José Engrácia Antunes; Direito dos Contratos Comerciais; Almedina, 2009, p. 446).

Este contrato permanece ainda um contrato atípico e inominado, mas trata-se de um contrato socialmente típico, perfeitamente sedimentado na prática negocial, correspondendo a uma das modalidades mais difundidas da distribuição comercial (a par da agência, da franquia, da comissão e da mediação) de bens ou serviços.

Mediante este contrato, “o produtor, fabricante ou importador (concedente) assegura o controlo da distribuição dos seus produtos por um número limitado de revendedores qualificados sem suportar o risco da respectiva comercialização, ao mesmo tempo que o distribuidor (concessionário) goza de uma posição concorrencialmente privilegiada na venda desses produtos em determinada zona” (assim, José Engrácia Antunes; Direito dos Contratos Comerciais; Almedina, 2009, p. 446).

Constituem elementos caracterizadores deste tipo negocial os seguintes (acompanhando-se a exposição de Maria Helena Brito; O Contrato de Concessão Comercial, Almedina, 1990, pp. 179-184; e José Alberto Coelho Vieira; O Contrato de Concessão Comercial; AAFDL, 1991, p. 15):

- O caráter duradouro do contrato (a estabilidade do vínculo);

- A atuação autónoma do concessionário, em nome próprio e por conta própria (transferindo-se o risco do produtor para o distribuidor);

- O objeto mediato, consistente nos bens produzidos ou distribuídos pelo concedente;

- A obrigação do concedente celebrar, no futuro, sucessivos contratos e venda (o dever de venda dos produtos a cargo do concedente);

- A obrigação do concessionário de celebrar – no futuro – sucessivos contratos de compra (dever de aquisição impendente sobre o concessionário);

- O dever de revenda por parte do concessionário dos produtos que constituem o objeto do contrato, na zona geográfica ou humana a que o mesmo se refere;

- A obrigação do concessionário orientar a sua atividade empresarial em função das finalidades do contrato e do concedente fornecer ao concessionário os meios necessários ao exercício da sua atividade; e

- Exclusividade, na grande maioria dos casos (constituindo elemento acidental deste contrato – cfr. Ac. do STJ de 23-03-2000, Rev. 167/2000, 1.ª Sec., rel. LEMOS TRIUNFANTE, em: https://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_busca_processo.php?buscaprocesso=&seccao=&ficha=1141&pagina=39).

Conforme refere Carlos Ferreira de Almeida (Contratos III – Contratos de liberalidade, de cooperação e de risco; Almedina, 2012, pp. 139-140), “[o] objeto nuclear do contrato de concessão comercial é formado pelos contratos que o concedente se obrigam a celebrar. Tem portanto a natureza de contrato unitário mas preliminar e, mais precisamente, de contrato quadro normativo (…), visto que do seu conteúdo constam cláusulas essenciais dos sucessivos contratos de compra e venda, que o concedente e o concessionário se obrigam a celebrar, e dos contratos de revenda, que o concessionário se obriga a celebrar com os seus clientes. O contrato de concessão comercial é ainda, eventualmente, contrato quadro em relação a contratos a celebrar entre o concessionário e subconcessionários e entre o concedente e outros concessionários (…).

Concedente e concessionário obrigam-se pois a celebrar os mencionados contratos em conformidade com o que consta do contrato de concessão, que é geralmente um contrato de adesão do concessionário a um modelo estereotipado pelo concedente para todos os seus concessionários”. A fim de assegurar a qualidade e um certa uniformidade na rede de distribuição, o contrato de concessão comercial inclui ainda um conjunto de obrigações do concessionário referentes “à promoção dos produtos, aos métodos de venda, a informações técnicas e comerciais a prestar ao concedente e, eventualmente, à organização da empresa concessionária e a serviços pós-venda” (também, Carlos Ferreira de Almeida; Contratos III – Contratos de liberalidade, de cooperação e de risco; Almedina, 2012, p. 140). Conforme salienta António Pinto Monteiro (Contratos de Distribuição Comercial; Almedina, 2004, p. 107), “pelo contrato de concessão “concede-se” a outrem o “privilégio” de comercializar bens “pré-vendidos”, seja pela notoriedade da marca, seja pela integração numa rede de distribuição, seja pela publicidade de que beneficiam esses produtos, seja, enfim, pela vantagem concorrencial e as oportunidades de ganho em face dos demais comerciantes”. Fernando A. Ferreira Pinto (Contratos de Distribuição – Da tutela do distribuidor integrado em face da cessação do vínculo; Universidade Católica Editora; Lisboa, 2013, p. 61) sublinha que, “a concessão é, entre nós, encarada como um contrato-quadro que dá origem a uma relação jurídica duradoura e complexa, nos termos da qual um empresário independente – o concedente – se obriga a vender a outro – o concessionário - , certos produtos ou categorias de produtos, vinculando-se este, por sua vez, a adquirir e a revender esses produtos, em seu nome e por sua conta, de acordo com as directrizes formuladas pelo primeiro e sob a sua supervisão”.

Como notas essenciais do contrato de concessão comercial refere António Pinto Monteiro (ob. cit., p. 109), as seguintes:

- É um contrato em que alguém assume a obrigação de compra para revenda, nele se estabelecendo logo os termos – ou os principias termos ou regras – em que esses futuros negócios serão feitos, pelo que, ao celebrarem, periodicamente, os contratos de compra e venda pelos quais o concessionário adquire do concedente os bens para revenda, estarão as partes a cumprir a obrigação anteriormente assumida;

- O concessionário age em seu nome e por conta própria, assumindo os riscos da comercialização; e

- Vinculam-se as partes a outro tipo de obrigações – além da obrigação de compra para revenda – sendo através delas (no fundo para definir e executar determinada “política comercial”) que verdadeiramente se efetua a integração do concessionário na rede ou cadeia de distribuição do concedente.

A concessão comercial apresenta também alguma afinidade com o contrato de agência, não só quanto à atividade desenvolvida pelo agente e pelo concessionário, mas ainda quanto à situação de dependência económica em que se encontram relativamente à outra parte estas duas categorias de intermediários comerciais. Todavia, na agência, o agente atua sempre por conta do principal, o que não ocorre na concessão: “o concessionário, ao contrário do agente, actua em seu nome e por conta própria, adquire a propriedade da mercadoria, comprando ao fabricante ou ao fornecedor mercadorias para revender a terceiros (…) e assume os riscos da comercialização” (assim, Pinto Monteiro; Contrato de Agência – Anteprojecto, in BMJ 360.º, p. 22).

Refere o mesmo Autor (Contratos de Distribuição Comercial; Almedina, 2004, pp. 112-113) o seguinte quadro de diferenças entre a agência e a concessão comercial:

- Ao contrário do agente, o concessionário age em seu nome e por conta própria;

- Ao contrário do agente, o concessionário, em regra, adquire a propriedade da mercadoria;

- Ao invés do agente, o concessionário é um comerciante que compra para revenda, estando muitas vezes obrigado a adquirir uma quota mínima de bens;

- O concessionário assume o risco da comercialização;

- O concessionário beneficia, normalmente, do direito de exclusivo;

- As obrigações do concessionário, perante o concedente, não cessam com a alienação dos bens, estando igualmente vinculado a prestar assistência pós-venda aos clientes, mediante pessoal especializado e meios idóneos.

Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-01-2014 (Pº 679/11.8TJLSB.L1-8, rel. ILÍDIO SACARRÃO MARTINS), na base de dados da dgsi., “[o] contrato de concessão comercial é um contrato-quadro que faz surgir entre as partes uma relação obrigacional complexa, por força da qual uma delas, o concedente, se obriga a vender à outra, o concessionário, e esta a comprar-lhe, para revenda, determinada quota de bens, aceitando certas obrigações – mormente no tocante à sua organização, à política comercial e à assistência a prestar aos clientes – e sujeitando-se a um certo controlo e fiscalização do concedente. Como contrato-quadro, o contrato de concessão comercial funda uma relação de colaboração estável, duradoura, de conteúdo múltiplo, cuja execução implica, designadamente, a celebração de futuros contratos entre as partes, pelos quais o concedente vende ao concessionário, para revenda, nos termos previamente estabelecidos, os bens que este se obrigou a distribuir. A concessão comercial é, pois, um instrumento de integração económica mediante o qual a empresa do concessionário ingressa na rede comercial do concedente, adquirindo uma posição privilegiada na revenda dos produtos e essa posição tem o seu preço: o concessionário é obrigado a possuir instalações adequadas à actividade de revenda e assistência pós-venda, a especializar o seu pessoal, a dirigir a sua actividade ao incremento da clientela da marca, o que implica um considerável esforço financeiro. No contrato de concessão vinculam-se as partes a outro tipo de obrigações – além da obrigação de compra para revenda -, sendo através delas que verdadeiramente se efectua a integração do concessionário na rede ou cadeia de distribuição do concedente. São obrigações de índole e intensidade diversa, com as quais se visa, no fundo, definir e executar determinada política comercial. Isso pode implicar, designadamente, o estabelecimento de regras sobre a organização e as instalações do concessionário, os métodos de venda, a publicidade, a assistência a prestar aos clientes, etc; consagra-se, além disso, um certo controlo do primeiro sobre a actividade do segundo. Numa palavra, trata-se de definir regras de comportamento através das quais se estabeleçam laços de colaboração entre as partes e se articula e coordena a actividade de todos no seio da rede de distribuição, regras essas que implicam obrigações várias e se fundam – juntamente com a obrigação de compra para revenda – no contrato de concessão como contrato-quadro que é”.

“No contrato de concessão comercial o concessionário, ao contrário do agente, actua em seu nome e por sua conta, assumindo os riscos da comercialização dos produtos que compra ao fabricante ou ao fornecedor, para vender a terceiros, e retirando os proventos do resultado da compra e venda desses produtos” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-07-2004, Pº 4409/2004-7, rel. PIMENTEL MARCOS). Por outro lado, conforme se referiu no Acórdão do STJ de 10-05-2001 (Rev. n.º 324/01, 7.ª Secção), “o que permite distinguir o contrato de concessão comercial de outros contratos de carácter duradouro como, por exemplo, o contrato de fornecimento ou a distribuição autorizada, é a integração do concessionário na rede de distribuição de produtos adquiridos ao concedente, usualmente pelo recurso a estruturas criadas para tal efeito, grande parte das vezes com a participação do próprio concedente”.

Nesta mesma linha, referiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-07-2009 (Pº 147/06.0TBPNH.C1, rel. SÍLVIA PIRES)[2] que: “O contrato de fornecimento é o contrato pelo qual uma parte se obriga, mediante pagamento de um preço, a executar, a favor da outra, prestações periódicas ou continuadas de coisas.

Nos casos em que o fornecedor se obriga a transmitir a propriedade de coisas à contraparte, este tipo contratual aproxima-se da compra e venda, apresentando-se como um negócio definitivo e unitário, cujas prestações se sucedem e prolongam no tempo.

No contrato de concessão comercial, que se insere na categoria jurídica dos contratos de distribuição, o concedente obriga-se a vender certos produtos ao concessionário, para que este os revenda a terceiros.

Deste contrato resulta para o concessionário a obrigação de comprar certos produtos ao concedente nos termos previamente estabelecidos, com a finalidade vinculística da sua revenda, e, para este, a obrigação de vender os produtos do concessionário, obrigando-se as partes à celebração de sucessivos contratos de compra e venda.

Além de neste último tipo contratual não existir um único negócio de transmissão da propriedade, é seu elemento essencial, e estranho ao contrato de fornecimento, a obrigação do concessionário revender os produtos comprados ao concedente e de exercer uma actividade de promoção da revenda.

A concessão comercial apresenta-se como um contrato juridicamente inominado que, em traços gerais, se pode descrever como aquele em que um comerciante independente – o concessionário – se obriga a comprar a outro – o concedente – determinada quantidade de bens de marca, para os revender ao público em deter­minada área territorial, e, normalmente, mas nem sempre, com direito de exclusividade.

São indispensáveis à caracterização deste contrato a relação duradoura entre o fornecedor e o distribuidor, a actuação do concessionário em nome e por conta própria, a obrigação do concessionário promover a revenda dos bens adquiridos ao concedente na respectiva zona, constituindo os bens produzidos ou meramente entregues pelo fornecedor o objecto mediato do contrato, a obrigação futura de compra e venda por concessionário e concedente dos produtos objecto do contrato e a obrigação do concessionário orientar a sua actividade em função das finalidades do contrato e do concedente lhe fornecer os meios necessários ao exercício da sua actividade”.

Ora, se olharmos para os factos apurados e para os termos do contrato junto, temos para nós que se divisa a existência de um acordo (quadro) com as caraterísticas típicas de um contrato de concessão comercial. Assim quando se atente na estipulação de um método de organização das relações entre produtor/vendedor e distribuidor e uma técnica de distribuição de produtos no mercado.

Sem relevo decisivo a questão da qualificação.

Assim é que, como contrato de fornecimento, como de concessão, o contrato em causa rege-se, em primeiro lugar, pelo programa definido pelas partes, depois, serão também atendíveis, evidentemente, as regras legais gerais pertinentes sobre o negócio jurídico (formação, capacidade, objecto, etc.); também as regras de defesa da concorrência e, na falta de um regime próprio fixado na lei, quando se identifique concretamente a proximidade das figuras negociais (analogia)[3], no leque dos contratos de cooperação – enquanto contrato de distribuição –, susceptíveis de aplicação as regras do contrato de agência.

A única questão colocada no recurso vem a ser a da consideração ou julgamento da (in)existência de justa causa para a declarada resolução do contrato[4].

A resolução, como é sabido, consiste na "destruição da relação contratual, operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato", cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., 275. Como refere outrossim J. Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, em Obra Dispersa, Vol. I, 130, "o direito de resolução é um direito potestativo extintivo, dependente de um fundamento".

Pode ser feita por declaração à outra parte (art. 436º do CC) e, assim, extrajudicialmente; opera imediatamente, logo que recebida a declaração resolutiva.

Está também prevista no art. 30º e segs do DL 178/86.

Quanto à existência de motivo subsistente para a resolução demonstradamente declarada, quanto facto extintivo, atentem-se nos termos respectivos, demonstrados. Assim, a 4/11/2021, a R. comunicou à A. a impossibilidade de cumprir as suas obrigações, e consequentemente a resolução contratual, por perda de confiança na relação comercial provocada pelo comportamento da A. traduzido na distribuição paralela por esta de produtos da marca ..., idênticos aos que lhe haviam sido concedidos para serem por si comprados para revenda; na venda directa dos produtos do contrato e no bloqueio do acesso da R. ao Portal destinado a realização das encomendas.

Os factos provados caracterizam que contemporaneamente à vigência do contrato de concessão dos autos, a A. distribuiu suplementos alimentares ... compostos pelos mesmos ingredientes dos suplementos alimentares ... e ..., cuja venda havia sido reservada em exclusividade para a R. a fim de serem revendidos por esta.

Ficou provado que a relação contratual que estabeleceu com a Recorrida pressupunha a exclusividade: a obrigação de esta vender só àquela os produtos que constituem o objecto do contrato na área geográfica definida.

Em causa saber, pois, se a Recorrida incumpriu a sua reconhecida obrigação contratual de exclusividade e inerentes deveres. A este propósito, mais importante do que a qualificação jurídica do contrato em apreço, é que, face à inequívoca atipicidade do mesmo, atentemos nos factos provados em ordem a determinar se deles resulta (ou não) o incumprimento por parte da 1.ª Ré da obrigação de exclusividade e/ou dos inerentes deveres acessórios de conduta à luz do princípio da boa fé consagrado designadamente no art. 762.º do CC (para uma síntese da doutrina em torno destes deveres acessórios, veja-se o artigo de Gil Valente Maia, Boa fé e responsabilidade civil decorrente da violação de deveres acessórios de conduta: o critério do «perímetro contratual» na delimitação do regime de responsabilidade aplicável, publicado na Julgar Online, janeiro de 2020)

Importa, desde logo, perceber em que se traduzia essa obrigação de exclusividade, sendo certo que nessa parte se concorda totalmente com a posição assumida na decisão recorrida.

A venda pela Autora Recorrida de produtos de marca distinta daqueles objecto do contrato com a Recorrente, ainda quando de composição e fim idêntico e preço inferior, não viola directamente a disposição contratual de exclusividade tal e qual estabelecida…, a qual vai referida apenas e só aos produtos das marcas convencionadas.

Não integrada a violação da disposição contratual convocada, s.m.o.

O problema vem a sê-lo já o do segundo segmento aventado para essa violação, o de inobservância dos ditames da boa fé, a partir de uma atitude hoc sensu de concorrência desleal.

Nos termos do art. 311º do CPI constitui concorrência desleal todo o acto de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade económica, nomeadamente: a) os actos susceptíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue. (...)

Segundo Carlos Olavo[5], constituem concorrência desleal "os actos repudiados pela consciência normal dos comerciantes como contrários aos usos honestos do comércio, que sejam susceptíveis de causar prejuízo à empresa de um competidor pela usurpação, ainda que parcial, da sua clientela". Será desleal a actuação que fira a consciência ética do empresário médio.

É necessária a existência de uma certa “proximidade” entre as actividades desenvolvidas pelos agentes económicos em causa. Existe concorrência próxima tratando-se de actividades idênticas ou afins. São actividades económicas afins as que estiverem numa relação de substituição, de complementaridade e todas as que se dirijam ao mesmo tipo de clientela.

A concorrência desleal pressupõe a existência de um acto de concorrência; "o acto de concorrência é constitutivo de todas as modalidades de concorrência desleal (Oliveira Ascensão, Concorrência Desleal, Lições ao 5º ano no Ano Lectivo de 1993/94, pág.63).

Várias noções foram ensaiadas para o acto de concorrência, desde a definição ampla de Ascarelli (referida por Carlos Olavo, in C.J, AnoXII, Tomo IV, pág. 14), para quem a concorrência se verificava entre todas as actividades económicas, fossem elas quais fossem - exemplo de escola: o aumento do preço do pão pode causar uma diminuição na procura de vestuário -, até às mais restritas, que colocam o acento tónico na proximidade das actividades, concebida a proximidade como identidade ou afinidade (actividades que estão numa relação de substituição, ou seja, quando o resultado de uma é susceptível de substituir o resultado de outra, ou de complementaridade, isto é, quando se integram no mesmo processo produtivo, ainda que em estádios diferentes, ou as que dão origem a bens que só em conjunto são úteis ).

Aproximando-se da noção mais restrita, o conceito da lei portuguesa é, contudo, mais vasto do que ela, devendo entender-se que pode haver concorrência desleal entre quaisquer actividades económicas que se insiram no mesmo sector de mercado, independentemente de existir entre elas qualquer relação de identidade, substituição ou complementaridade; a razão é simples: é que, o que está em causa, o bem protegido, é o interesse geral dos consumidores, o regular funcionamento do mercado, e não propriamente os interesses particulares de cada empresário (cf. Carlos Olavo, loc. cit., que se tem vindo a seguir de perto).

Revertendo à hipótese em apreço, é manifesto que são absolutamente idênticas as actividades exercidas por recorrida e recorrente, no que importa à colocação no mercado dos produtos em causa.

Sempre a protecção da concorrência desleal não se cinge à dos direitos privativos: pode haver violação de um direito privativo sem se materializar a concorrência desleal, como pode configurar-se a concorrência desleal sem a violação de um direito privativo.

Por isso que a inexistência de violação de uma cláusula ou convenção de exclusividade não exclui a possibilidade de violação contratual relevante, por via de uma conduta integradora do instituto da concorrência desleal ou até por pura e simples violação de deveres acessórios ou laterais de conduta, a corresponderem outrossim, à violação do contrato por operância do princípio da boa fé, tout court.

No CPI o conceito de concorrência desleal reconduz-se (cfr. art. 313º) a todo o acto de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade económica. Após esta definição genérica, dada no corpo do artigo, prevê aquele normativo um conjunto de situações possíveis de configurar concorrência desleal e, por isso, expressamente proibidas.

A noção de concorrência desleal é idêntica, quer na Convenção da União de Paris, quer no Código da Propriedade Industrial, que enumeram também um conjunto de situações absolutamente proibidas. Os diversos números da norma são de carácter meramente exemplificativo, que não taxativo, daí decorrendo uma importante consequência: constitui concorrência desleal a prática, não só de qualquer dos factos integrados na enumeração exemplificativa, mas também de quaisquer outros que, por si, contrariam as normas e usos honestos da actividade económica.

Perante a não taxatividade da norma, têm os tratadistas procurado arrumar os actos de concorrência desleal em diversas classificações.

Oliveira Ascensão distingue entre actos de aproveitamento de elementos empresariais alheios, actos de agressão a empresa alheia, actos de indução do público em erro, mediante a falsa apresentação da própria empresa, e actos que atingem o mercado em si, correspondendo esta última figura à prática de factos de desorganização geral do mercado.

Em sugestiva linguagem, diz que, no primeiro caso, o agente se enfeita com penas alheias, no segundo, atinge a empresa concorrente, no terceiro mascara-se, apresentando-se como não é, e no quarto atinge toda uma categoria de concorrente (Concorrência Desleal, Lições ao 5º ano no Ano Lectivo de 1993/94, cit., págs. 91 e seguintes).

Carlos Olavo, CJ cit, ensaia uma classificação quadripartida, diferente: actos de confusão, actos de descrédito, actos de apropriação e actos de desorganização, embora não rejeite a existência de uma quinta categoria, admitida por alguns autores, qual seja a dos actos de concorrência parasitária.

Adverte, de todo o modo, que, mais do que uma classificação rigorosa, se trata de uma distinção algo empírica, uma vez que existem actos concretos passíveis de subsunção a diferentes tipos (loc. cit.).

Afigura-se, efectivamente, que a classificação, enquanto ajude à compreensão do problema, não é o que mais interessa; importante, isso sim, é o desenho das situações susceptíveis de enquadramento no conceito de concorrência desleal.

Pela sua relevância para o caso vertente, como se adiantou, há que atentar especialmente nos actos de confusão.

Não é novidade para ninguém que determinada marca vende melhor que outra, que certos produtos têm aceitação garantida ou que um dado serviço é sinónimo de qualidade.

Donde, a confusão relevante depende de um acto ou conduta do visado, por forma a que quem compra pense que está a adquirir o de qualidade garantida; dito de outro modo, um acto que provoque a confusão no público consumidor.

O critério para aferir essa confusão há-de radicar-se na reacção normal do consumidor médio, no seu comportamento face a uma dada actuação; um determinado acto de um empresário integrará o critério de concorrência desleal a partir do momento em que o consumidor médio não for capaz de distinguir entre uma actividade e outra actividade empresarial.  (Carlos Olavo, ibidem).

Nada nos autos caracteriza esta possibilidade de confusão. Ao invés, o que ressalta é que a recorrente ficou com a distribuição dos produtos mais conhecidos, nomeados e reputados…

Afastada decididamente a configuração da concorrência desleal, não resulta da matéria provada bem assim qualquer comportamento de violação da boa fé pela recorrida, mediante a distribuição de OUTROS produtos (cuja composição é idêntica e a finalidade também) para o mesmo mercado, o de suplementos alimentares.

É que não basta a actividade concorrente. Ponto era que esta, pelas circunstâncias demonstradas, correspondesse a uma violação do conteúdo do contrato no quadro das regras da boa fé (excluída a violação de disposição contratual expressa, como já explicitado): pela ocultação à Recorrente da existência e manutenção de outros produtos/suplementos com tal composição; pelo desenvolvimento e início dessa actividade de comercialização apenas após o contrato em causa, com o intuito de prejudicar a distribuição pela recorrente; pelo uso de marca ou embalagem ou preço susceptível de implicar confusão ou gerar desvios de clientela.

Ora, reconduzindo-se já a um conteúdo inexistente de uma proibição de concorrência “alargada”, por via da convenção de exclusividade, sem o mínimo de correspondência ao teor do clausulado, não provou a Recorrente quaisquer factos dos quais decorra a razão para a declarada resolução contratual, por via da venda pela Recorrida de produtos concorrentes com aqueles quanto aos quais versa o contrato em causa.

A proibição desta não emerge da lei, nem do contrato, ainda quando se busque a integração deste mediante juízos de probidade ou honestidade comercial.

Sempre a marca vem a ser o mais importante sinal utilizado para identificar e distinguir os produtos ou serviços de uma empresa de outros produtos ou serviços com a mesma composição ou destino.

Ora, não vindo alegados sequer quaisquer factos susceptíveis de indiciar a susceptibilidade de confusão com os produtos a que se reporta o contrato (e não o vinham, para além da composição e natureza – complemento dietético -), atenta a definição do objecto mediato do contrato (com referência a concretas e definidas marcas), como a actividade outrossim da Recorrida, não se alcança, como o não alcançou a decisão recorrida, a violação contratual que justificaria a declarada resolução…

Assim ainda quando às dificuldades no acesso à plataforma electrónica, já que não caracterizada a impossibilidade de encomendas ou qualquer perturbação séria na execução ou cumprimento do contrato.

Tudo sem esquecer a necessidade, absolutamente ausente a alegação de factos caracterizadores desta, de estar em causa um incumprimento definitivo de obrigações pela recorrida.

Soçobram, na íntegra, as alegações/conclusões da Recorrente.

Consequentemente, terá a apelação de improceder.

IV.

Pelo exposto, nega-se provimento à apelação e confirma-se a sentença apelada.

Custas pela recorrente.

Notifique.


Porto, 04 de Julho de 2024
Isabel Peixoto Pereira
Ernesto Nascimento
António Carneiro da Silva
_______________
[1] 2ª parte da conclusão primeira e segunda conclusão, desde logo.
[2] Todos na base de dados da dgsi.
[3] Fernando Ferreira Pinto, in Contratos de Distribuição e A Indemnização de Clientela dos Distribuidores Integrados: uma longa e dolorosa aprendizagem, http://www.fd.lisboa.ucp.pt/resources/documents/Centro/Talk%20Indemniza%C3%A7%C3%A3o%20de%20clientela.pdf sobre a necessidade de apuramento em concreto das razões da analogia. No sentido de que a aplicação das normas do contrato de agência aos demais contratos de distribuição não é automática, Pinto Monteiro, Contrato de agência, p. 59 e ss.: "será necessário averiguar, em cada caso, se a norma que se pretende aplicar permite uma aplicabilidade analógica, o que implica ponderar se a sua ratio se adequa a um concessionário (ou a um franquiado)" ou a outro distribuidor.
[4] Não discute já que a resolução infundada/ilícita deva ser tratada como denúncia, mediante inobservância do prazo respectivo ou o modo de liquidação utilizado em sede de outorga da indemnização a esse título.
[5] Propriedade Industrial, 2ª ed., p. 252.