Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12185/23.3T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: FALTA OU NULIDADE DA CITAÇÃO
ARGUIÇÃO EM ALEGAÇÕES DE RECURSO
Nº do Documento: RP2024062012185/23.3T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 06/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DEVOLUÇÃO À PRIMEIRA INSTÂNCIA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A falta ou nulidade da citação consubstanciam nulidades processuais que devem ser arguidas no tribunal onde foram cometidas, cabendo recurso da decisão que delas tenha conhecido.
II - Não tendo sido arguidas no lugar próprio, mas apenas em sede de alegações de recurso de apelação, tal situação consubstancia erro no meio processual utilizado.
III - Perante esta situação, deverá a Relação corrigir o referido erro, nos termos do n.º 3 do artigo 193.º do Código de Processo Civil, convolando o recurso de apelação em incidente de arguição de nulidades, remetendo, para o efeito, o processo ao tribunal de primeira instância.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 12185/23.3T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto – Juiz 4

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

Proposta acção declarativa com processo comum por AA contra BB, CC e A..., Lda., tendo sido devolvida a carta registada com aviso de recepção expedida para citação do Réu CC, foi proferido, a 17.10.2023, o seguinte despacho:

“Informação constante da conclusão que antecede:

De acordo com o art.º 219º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender; emprega-se ainda para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa.

Verifica-se que no dia 04/09/2023 foi junta espontaneamente aos presentes autos uma procuração outorgada pelo réu CC a favor do Exmo. Senhor Dr. DD, o que demonstra que o réu tinha já naquela data e tem pleno conhecimento de que foi proposta contra ele a presente acção e os fundamentos que lhe estão subjacentes.

Ora, tendo o réu constituído mandatário nos presentes autos e sendo conhecedor da presente acção, a sua citação configura um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (cfr. art.º 130.º do Código Processo Civil).

Assim sendo, bem andou a secção ao não citar o réu, o que se decide”.

 Inconformado com tal decisão, dela interpôs o Réu CC recurso de apelação para esta Relação, findando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1 – O presente recurso de apelação versa sobre a decisão (despacho) de fls. De 18.10.2023.

2 - A recusa de citação impediu e impede o recorrente de conhecer o processo e apresentar contestação, facto que prejudicou gravemente o Réu/recorrente na defesa dos seus direitos.

3 - Vem o recorrente arguir a Nulidade da Citação ( art. 191º CPC ) e a Falta de citação  ( Art. 188º CPC ) com base no seguinte:

4 - Menciona o nº 3 do artigo 219º do CPC que “a citação e as notificações são sempre acompanhadas de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objeto.

5 - Outrosim, o nº 1 do artigo 227º do mesmo diploma legal, especifica que “ o acto de citação implica a remessa ou entrega ao citando do duplicado da petição inicial e da cópia dos documentos que a acompanhem, comunicando-se-lhe que fica citado para a acção a que o duplicado se refere, e indicando-se o tribunal, juízo e secção por onde corre o processo, se já tiver havido distribuição.

6 - A verificação das nulidades processuais deve ser objecto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre esta incidir.

7 - Tal solução é inadequada quando estão em causa situações em que o próprio Juiz ao proferir a decisão, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório ou implicitamente dá cobertura a essa omissão.

8 - A nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a Lei prescreve comunica-se ao despacho ou decisão proferidos, pelo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso dessa decisão em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do Art. 615º nº 1 al. d) in fine do CPC.

9 - O recorrente entende que não se encontra citado pois a procuração não comporta poderes especiais por um lado e por outro a mera junção de procuração não é suficiente para sanar aquela nulidade e por termo à revelia absoluta.

10 - O recorrente conferiu ao seu mandatário procuração forense em geral.

11 - O recorrente não conferiu ao seu mandatário procuração forense com poderes especiais para a prática de actos específicos nomeadamente para receber a primeira citação.

12 - O recorrente nunca foi citado para a presente ação, tendo todo o processo sido tramitado sem o seu conhecimento, e sem este ter a possibilidade de opor a sua versão e se defender dos factos contra si deduzidos.

13 - A junção de procuração outorgada a Advogado não implica de forma automática o conhecimento do processo.

Acontece que,

14 - No dia 17.10.2023 o recorrente CC descolou-se à secretaria do Juízo Local Cível do Porto – Juiz 4 – no âmbito destes autos - solicitando a sua citação tendo a secretaria se recusado com fundamento de que o aqui recorrente tinha constituído mandatário com procuração junta aos autos.

15 - O seu mandatário estava munido de uma procuração com poderes forenses em geral datada de 25.08.2023 que destinou ao processo nº 12942/23.0T8PRT – Juízo Local Cível do Porto – Juiz 6. Doc. 1

16 - E juntou essa procuração forense a esse processo em 31.08.2023. Doc. 2

17 - Posteriormente a secretaria desse Tribunal procedeu a diligências para proceder validamente à sua citação. Foi emitido um mandado com data de 11.09.2023 tendo o réu/recorrente ficado citado através de funcionário judicial de todo o conteúdo do mandado em 19.09.2023 que se junta. Doc. 3

18 - Nessa mesma altura 31.08.2023 chegou ao conhecimento do recorrente por um terceiro da existência de uma outra acção, cujos fundamentos desconhecia e desconhece, tendo apenas lhe sido facultado um número de processo.

19 - O seu mandatário munido, como se disse, dessa procuração, tentou juntar via citius a referida procuração aos presentes autos não tendo conseguido com a indicação que o nº do processo é inválido.

20 - Tendo o seu mandatário contactado telefonicamente a secretaria do Tribunal relatando a falta de acesso eletrónico ao processo.

21 - A secretaria do Tribunal informou que com eles estava tudo a funcionar.

22 - Mas face ao impedimento de acesso eletrónico ao processo a secretaria propôs que enviasse por email a Procuração o que foi feito no dia 01.09.2023 mas sem garantias de acesso ao processo, o que se veio a verificar.

23 - A partir daí a secretaria do Tribunal nada disse, desconhecendo se a mesma foi junta ao processo e quando, nem promoveu diligências para a citação do recorrente nem comunicou ao seu mandatário que ficava citado para a acção – nº1 do Art. 227º do CPC.

24 - No referido email o mandatário do recorrente alegou expressamente o impedimento manifestando a impossibilidade da junção do requerimento e procuração via citius com a indicação, como se disse, número de processo inválido. Doc. 4

25 - Isto é o mandatário não tinha nem teve acesso ao processo judicial.

26 - A carta de citação do recorrente foi devolvida em 31.08.2023 por não reclamada e a secretaria devia, salvo o devido respeito, ter procedido à citação do recorrente quando este compareceu em Tribunal para ser citado.

27 - Ora, o recorrente aguardava que a secretaria do Juízo Local Cível – Juiz 4 procedesse da mesma maneira como procedeu a secretaria do Juiz Local Cível – Juiz 6, do mesmo Tribunal, que apesar de estar junta a procuração procedeu à sua citação através de mandado ( citação por agente de execução ou funcionário judicial ) acompanhada de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objeto.

28 - Face a tal impedimento a secretaria do Juízo Local Cível – Juiz 4 não deu qualquer resposta nem promoveu diligências no sentido de proceder à citação do réu através de agente de execução ou funcionário judicial.

29 - Face ao silêncio da secretaria do Tribunal o recorrente apresentou-se voluntariamente para ser citado, a qual foi recusada pela secretaria.

30 - Não se compreende esta dualidade de critérios no que diz respeito à citação do recorrente.

31 - Caso que não acontecia se o Tribunal, tivesse tomado as diligências necessárias, como aliás decorreu de outro processo neste Tribunal.

32 - Obviamente que se tal tivesse sido regularmente citado, quer fosse por carta registada, quer fosse por mandado ou outro, teria apresentado a sua defesa e apresentando provas conduzindo naturalmente a uma decisão compatível com a verdade material.

33 - Sucede que, o Recorrente nunca foi citado para a presente ação, tendo todo o processo sido tramitado sem o seu conhecimento, e sem este ter a possibilidade de opor a sua versão e se defender dos factos contra si deduzidos.

34 - Acresce que o seu mandatário, não teve acesso à presente acção nem aos seus fundamentos tendo apenas tomado conhecimento dos factos constantes do despacho na data de 18.10.2023.

35 - Como se disse, o mandatário não teve acesso eletrónico ao processo o que veio apenas a acontecer em 18.10.2023.

36 - Pelo que é tempestiva a presente arguição da nulidade da citação, tendo em conta o ínsito no nº 2 do art. 191º do CPC e a falta de citação prevista no artigo 188º do CPC.

Sem prescindir,

37 - A Meritíssima Juiz “ a quo “ ao decidir como decidiu apoiou-se numa corrente jurisprudencial desatualizada, prejudicando gravemente os direitos de defesa do recorrente e violando preceitos constitucionais nomeadamente o art. 20º da CRP.

38 - Aceitar que a junção de procuração forense ao processo declarativo, tramitado de forma eletrónica, constitui a prática de um acto no processo é interpretar as normas 189º, 191º do CPC de forma literal, em clara violação do disposto no artigo 9º nº 1 do C.C.

39 - Tal interpretação constitui uma violação do principio do acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20º nº 1 e 4 da CRP, porquanto tal interpretação consagra uma restrição intolerável ao direito de defesa do réu/recorrente.

40 - Não é legítima a conclusão que a simples apresentação de uma procuração com poderes gerais, que é condição de acesso ao sistema eletrónico e para efeitos de citação.

41 - Aliás o mandatário não tinha poderes especiais para a prática de actos específicos nomeadamente receber a 1ª citação.

42 - Nos termos do nº 5 do art. 225º do CPC a citação pode efectuar-se na pessoa do seu mandatário constituído pelo citando, com poderes especiais para a receber, mediante procuração passada há menos de 4 anos.

43 - Nos termos do art. 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil, a nulidade (falta) da citação (nulidade principal) deve ser arguida com a primeira intervenção no processo, em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (artºs 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil).

44 - Como refere o Prof. A. dos Reis (Comentário, vol. 2º, pág. 446/447 e CPC Anot., I, 3ª ed., pág. 313) “para a arguição da falta de citação não há prazo; enquanto o réu se mantiver em situação de revelia, ou melhor, enquanto se mantiver alheio ao processo, está sempre a tempo de arguir a falta da sua citação, só perdendo o direito de o fazer se intervier no processo e não reagir imediatamente contra ela”.

45 - Relevante será, pois, e antes de mais, definir o que deve entender-se por intervenção da parte na causa, sendo que é na primeira intervenção processual que deve ser “logo” arguida a falta de citação.

46 - Na jurisprudência existe uma orientação que defende que a junção da procuração a advogado constitui intervenção relevante que faz pressupor o conhecimento do processo que a mesma permite, de modo a presumir-se que o réu prescindiu conscientemente de arguir a falta de citação (neste sentido, AC da RE de 20-12-2018, proc. 4901/16; Ac. Rl de 20-04-2015, proc. 564/14, Ac da RE de 16.04.20125, proc. 401/10), entendimento esse seguido pela juiz “a quo”.

47 - A esta orientação opõe-se outra corrente, segundo a qual a forma de compatibilizar o direito constitucional de acesso ao direito, no caso das ações tramitadas eletronicamente, é fazer uma interpretação atualista quanto aos efeitos relacionados com a apresentação da procuração forense, de modo a evitar que a simples junção de instrumento de mandato forense não implique, direta e necessariamente, a preclusão da possibilidade de invocação da nulidade por falta de citação (neste sentido, Ac RP de 9-1-20, proc. 2087/17, RC 24-04-2018, proc. 608/10, Acórdão da Relação de Évora de 3.11.2016; os Acs. da Relação de Lisboa de 6.7.2017, e de 05.11.2019, e o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 29.6.2017 e ainda o AC da RG de 23-01-2020, proc. 17/19.1T8PVL.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

48 - Assim, entendemos que uma interpretação atualista da lei (em consonância com o disposto no artº 9º, nº1, in fine, do Código Civil) leva a considerar como estando desatualizada a corrente jurisprudencial que pugnava por reputar como intervenção relevante - para efeitos do actual artº189º, do Código de Processo Civil - a simples apresentação de uma procuração.

49 - Isto é, como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 3-11-2016, acima referido: “Tendo presente a realidade social, económica e a própria evolução tecnológica, inclusivamente na dimensão do acesso ao direito através do recurso a ferramentas informáticas, de acordo com os cânones de uma boa interpretação, estando a hermenêutica actualista legitimada pelo Código Civil e pela Teoria do Direito, o julgador tem de tomar em consideração as circunstância de tempo e de modo em que a lei deve ser aplicada e, como corolário lógico, no domínio da Tramitação Electrónica dos Processos Judiciais preconizada pela Portaria nº 280/2013, de 26/08, não é legítima a conclusão que a simples apresentação de uma procuração, que é condição de acesso ao sistema electrónico e constitui pressuposto de qualquer actuação processual futura, implica a sanação de eventual falta de citação de uma das partes e preclude a hipótese de suscitar a competente nulidade”.

50 - Desta forma, entende-se que a junção da referida procuração não é suficiente para pôr termo à revelia absoluta, nem meio idóneo de tomar conhecimento do processo, de modo a presumir-se que logo aí o réu/recorrente prescindiu, conscientemente, de arguir a falta de citação, é de concluir que não ficou então sanada a eventual nulidade da citação.

51 - Encontrando-se o processo sujeito a tramitação eletrónica, não pode considerar-se que a mera junção de procuração forense a mandatário judicial é suficiente para fazer pressupor o conhecimento do processo, nos termos e para os efeitos do disposto no Artigo 189º do CPC – Ac. do TRG proc 17/19.1T8PVL.G1.

52 - Destarte, fica invocada e demonstrada a ocorrência da nulidade por falta de citação e, por consequência, a nulidade da decisão que veio a ser proferida na sequência e no pressuposto da regularidade de validade da citação.

53 - Impõe-se, como tal, salvo o devido respeito, anular todo o processado e consequentemente, a decisão proferida nos autos, determinando que os autos baixem à 1ª instância para que aí seja concedido ao réu/recorrente o prazo de que dispõe para contestar, prosseguindo depois o processo a tramitação processual subsequente que se imponha.

54 - A sentença recorrida, violou entre outras disposições legais, o artigo 20º nº 1 e 4 do C.R.P, os artigos 187º, 188º 189º, 191º, 219º nº 3, 225º nº5, 227º nº 1 do CPC e artigo 9º, nº 1 do Código Civil.

Nos termos do artigo 651º e 425º ambos do CPC requer a junção de documentos os quais se tornam necessários em virtude da decisão proferida na 1ª Instância.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, ordenando-se, como tal, anular todo o processado e consequentemente, o despacho proferido nos autos, determinando que os autos baixem à 1ª instância para que aí seja concedido ao réu/recorrente o prazo de que dispõe para contestar”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- se deve considerar-se ou não validamente citado o Réu CC, ora recorrente.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Os factos/incidências processuais a atender para o conhecimento do objecto do recurso são os narrados no relatório introdutório.

 

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

A citação constitui o acto pelo qual se dá a conhecer a alguém que contra si foi instaurado processo, no qual é formulada certa pretensão, permitindo-lhe, através dessa notícia, que o mesmo possa, querendo, exercer os direitos de defesa que a lei lhe reconhece[1].

Sendo o meio adequado a assegurar o exercício desses direitos, é também a partir da sua concretização que se inicia, na sua plenitude, o direito ao contraditório.

Como elucidam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[2], “Quer pela forma, quer pelo seu conteúdo e finalidade, a citação constitui o meio privilegiado para a concretização de um dos princípios basilares do processo civil: o princípio do contraditório. Num processo de natureza dialéctica, como é o processo civil, é a citação do réu que determina o início da discussão necessária a iluminar a resolução do conflito de interesses, com vista à justa composição do litígio. É pelo acto de citação que se dá conhecimento ao réu da petição ou do requerimento inicial, propiciando-lhe a faculdade de deduzir oposição”.

         Constitui ela garantia fundamental num processo equitativo, traduzindo garantia do direito de defesa, encontrando expressão correspondente em normas como o artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa e artigos 3.º e 4.º da lei processual civil.

         Daí a necessidade da lei prever e regulamentar detalhadamente todo o procedimento relativo ao acto de citação, como resulta do complexo normativo dos artigos 219.º e seguintes do Código de Processo Civil, estabelecendo para a falta de citação ou para a nulidade da mesma[3] consequências de repercussões processuais assinaláveis, e submetendo-as a específica disciplina de conhecimento e arguição[4].

         Vários vícios podem afectar o acto de citação, distinguindo a lei a falta e nulidade da citação.

         Há falta de citação quando o acto é completamente omitido ou quando ocorra alguma das demais circunstâncias elencadas no n.º 1 do artigo 188.º do Código de Processo Civil.

A falta de citação, vício de conhecimento oficioso[5], tem como consequência, nos termos do disposto no artigo 187.º, a) do Código de Processo Civil, a anulação de todo o processo após a petição inicial, salvando-se apenas esta.

A anulação deixa de operar, por se considerar sanada, se o réu intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, como resulta do artigo 189.º do Código de Processo Civil.

Noutros casos, a citação é efectuada, mas com vícios que afectam o acto. Verifica-se então a nulidade da citação, isto é, quando esta é realizada, mas com inobservância das formalidades prescritas na lei[6]. Essas formalidades são as previstas nos artigos 222.º a 246.º do Código de Processo Civil.

Nem todas as omissões de formalidades relativas à citação determinam a sua nulidade: esta só ocorrerá quando a formalidade omitida comprometer o direito de defesa do réu; tal como resulta do n.º 4 do artigo 191.º do Código de Processo Civil, “a arguição só é atendida se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado”.

Ao contrário da falta de citação, a nulidade da citação não é de conhecimento oficioso, estando antes dependente da sua arguição pela parte interessada na observância da formalidade, que o deverá fazer nos prazos para tanto fixados no artigo 198.º do Código de Processo Civil, sob pena de se ter o vício por sanado.

 Na situação em debate nos autos, claramente foi omitida a citação do Réu CC, porquanto se entendeu no despacho recorrido que se tratava de um acto inútil, cuja prática a lei proíbe, uma vez que aquele Réu constituiu mandatário e juntou espontaneamente aos autos procuração outorgada a este.

De acordo com o disposto no artigo 189.º do Código de Processo Civil, “Se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade”.

Em comentário ao normativo em causa, esclarecem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[7]: “A solução aqui consagrada radica no seguinte entendimento: se, não obstante o vício, quem deveria ter sido citado está no processo, o intuito informativo típico da citação está, afinal, assegurado. Mas para o efeito, «intervir no processo» pressupõe que o réu ou o Ministério Público estão em condições que permitem concluir que está superada uma situação de revelia absoluta.”.

Segundo o acórdão da Relação de Coimbra de 24.04.2028[8], “O conceito de intervenção do processo, de que de fala o artº. 189º do CPC para efeitos de sanação de nulidade decorrente da falta de citação, deve ser interpretado no sentido de pressupor uma atuação ativa no processo da parte demandada através da prática ou intervenção em acto judicial, que lhe permitam tomar pleno conhecimento de todo o processado ou, pelo menos, que façam presumir esse efetivo conhecimento”, acrescentando que “A simples junção autos de uma procuração forense pela parte demandada não se integra, só por si, nesse conceito de intervenção no processo”.

O acórdão da Relação de Évora de 3.11.2016[9], após dissertação sobre os pressupostos inerentes à interpretação da lei, conclui que “Tendo presente a realidade social, económica e a própria evolução tecnológica, inclusivamente na dimensão do acesso ao direito através do recurso a ferramentas informáticas, de acordo com os cânones de uma boa interpretação, estando a hermenêutica actualista legitimada pelo Código Civil e pela Teoria do Direito, o julgador tem de tomar em consideração as circunstância de tempo e de modo em que a lei deve ser aplicada e, como corolário lógico, no domínio da Tramitação Electrónica dos Processos Judiciais preconizada pela Portaria nº280/2013, de 26/08, não é legítima a conclusão que a simples apresentação de uma procuração, que é condição de acesso ao sistema electrónico e constitui pressuposto de qualquer actuação processual futura, implica a sanação de eventual falta de citação de uma das partes e preclude a hipótese de suscitar a competente nulidade”.

Por sua vez, o acórdão da Relação do Porto de 17.12.2008[10] sustenta que a intervenção que releva para o efeito do citado artigo 189.º é a que a envolva ou pressuponha “o conhecimento pelo réu da pendência do processo declarativo, o conhecimento que lhe seria dado pela citação./ A intervenção deve mostrar que o interessado teve, do processo, aquele conhecimento que a citação lhe deveria dar, e revela que a falta o não impediu de vir a juízo pugnar pelo seu direito. A intervenção relevante deve, como acima se referiu, preencher as finalidades da citação; pressupõe, portanto, o conhecimento do processo que esta propiciaria. Só assim seria legítimo presumir que o réu prescindiu conscientemente de arguir a falta de citação.”

E do acórdão da Relação de Lisboa de 6.07.2017[11] pode retirar-se: “com a implementação da reforma dirigida para a DESMATERIALIZAÇÃO DE PROCESSOS  com a Portaria n.º 114/2008, de 06 de Fevereiro, entretanto revogada pela Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto ], e passando doravante [com o desaparecimento do suporte físico do processo ] a consulta dos processos - por via electrónica - pelos advogados das partes a exigir o prévio registo dos mesmos nos termos do nº2 do artigo 5º ( da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto) , então a junção da procuração [acto este que é condição de acesso ao sistema electrónico e constitui pressuposto de qualquer actuação processual futura], não deve já consubstanciar por si só intervenção relevante para efeitos de preclusão da possibilidade de arguição de vicio de nulidade por falta de citação”.

No seguimento deste último entendimento também o acórdão desta Relação de 9.01.2020[12] veio defender: “...parece-nos, pois, que o elemento interpretativo decisivo é o sistemático, que permite aplicar o princípio de cognoscibilidade e auto - responsabilidade ínsito no art. 199º, do CPC[...]. Esta norma, que mantém, a sua redacção anterior permite presumir o conhecimento da nulidade na esfera da parte, desde que “se deva presumir que que então tomou conhecimento (…) ou quando dela pudesse conhecer agindo com a devida diligência”. Ora, com a junção da procuração e acesso electrónico aos autos o executado soube que ainda não tinha sido citado (na sua óptica não tinha ainda recebido cópia do requerimento inicial) e pelo menos dez dias depois com a mínima diligência teve conhecimento de todos os elementos do processo.

Parece-nos, pois que a junção dessa procuração é um acto processual relevante (implica por exemplo o exercício do contraditório entre mandatários, etc); concede direitos e deveres ao mandatário, e permite efectivar o seu direito de defesa ao ter acesso a todos os termos do processo e ser notificado de todos os despachos proferidos. Note-se aliás, a abissal diferença entre esse acto e a simples consulta do processo executivo pela parte, actualmente possível, por aplicação do MJ.[...] Ou seja, uma coisa é a simples consulta do processo, outra inteiramente diferente a junção de uma procuração que implica a prática de actos próprios, únicos e distintos, que afectam e condicionam todos os restantes intervenientes.”

E adianta o mesmo acórdão: “Aliás, se assim não for e se a junção da procuração não for um acto processualmente útil então importa considerar que o apelante não apenas violou o art. 130º, do CPC, mas fundamentalmente, o acesso eletrónico que lhe foi concedido para o exercício dos seus direitos de nada serviu e a mesma nunca consultou o requerimento inicial da execução.

Logo teremos de concluir que a junção dessa procuração lhe permitiu em concreto:

a) Conhecimento dos elementos objectivos e subjectivos da acção

b) Exercício do seu direito de defesa

c) Arguição da (nessa data) falta de citação”.

Segundo o acórdão igualmente desta Relação de 7.04.2022[13], “A junção de procuração outorgada a Advogado não implica, de forma automática, que possa ser considerada intervenção relevante para efeitos do art.º 189º do CPC, havendo que ponderar qual o sentido e/ou objetivo com que foi junta a procuração e as circunstâncias em concreto”.

Independentemente do entendimento que possa, em concreto, ser acolhido, sempre há que questionar se os vícios da falta ou nulidade da citação podem ser directamente arguidos nesta instância de recurso e se a ela cabe, também directamente, reconhecer e declarar algum desses vícios.

Como já Alberto dos Reis[14] fazia notar, “a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente”.

E, de acordo com idêntica orientação, defendia o Prof. Manuel de Andrade[15] que “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se»”.

Esse é também o entendimento sustentado pelos Profs. Antunes Varela[16] e Anselmo de Castro[17] .

Afirma o primeiro que “se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”, enquanto o segundo refere que “tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso (…)”.

Esclarecem Luís Mendonça e Henrique Antunes[18]: “A reclamação por nulidade e o recurso articulam-se (…) de harmonia com o princípio da subsidiariedade: a admissibilidade do recurso está na dependência da dedução prévia da reclamação.

Assim, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade – e não a nulidade ela mesma. A perda do direito à impugnação por via da reclamação – caducidade, renúncia, etc. – importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário.

Isto só não será assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades – exceções – que sejam oficiosamente cognoscíveis.”.

Teixeira de Sousa[19] sustenta, por sua vez, que “(…) quando a reclamação for admissível, não o pode ser o recurso ordinário, ou seja, esses meios de impugnação não podem ser concorrentes; - se a reclamação for admissível e a parte não impugnar a decisão através dela, em regra está precludida a possibilidade de recorrer dessa mesma decisão”.

Em idêntico sentido, defende Abrantes Geraldes[20] que “as nulidades que não se reconduzam a alguma das situações previstas no Art. 615º, al.s b) a e), estão sujeitas a um regime de arguição que é incompatível com a sua invocação apenas no recurso a interpor da decisão final. A impugnação que neste recurso eventualmente se possa enxertar deve restringir-se às decisões que tenham sido proferidas sobre arguições oportunamente deduzidas com base na omissão de certo ato, na prática de outro que a lei não admitia ou na prática irregular de ato que a lei previa”.

Ao contrário do que argumenta o recorrente, nenhum excesso de pronúncia, passível de enquadrar a previsão do artigo 615.º, n.º, al. d), do Código de Processo Civil, afecta a decisão de que recorre.

Ocorrendo falta ou nulidade de citação, como sobejamente invoca agora o recorrente, devia ter arguido qualquer dos vícios, sob pena de os mesmos ficarem sanados pelo decurso do prazo, no processo em que os mesmos ocorreram, podendo, caso a reclamação fosse desatendida, e só então, interpor recurso da respectiva decisão.

Em resumo: só a decisão proferida sobre a nulidade é passível de recurso.

Cabe, por isso, à parte interessada no reconhecimento dos vícios decorrentes da falta ou nulidade da citação argui-los no processo onde foram cometidas ou omitidas as formalidades que a eles deram origem, só posteriormente podendo impugnar recursivamente a decisão que haja indeferido a reclamação da nulidade.

No caso vertente, o apelante não suscitou perante o tribunal recorrido a falta ou nulidade da sua citação. Ao invés, socorreu-se do recurso para esta Relação para invocar nulidade processual decorrente da falta de citação e, ao que se julga, subsidiariamente, também o vício de nulidade da citação.

Ao proceder assim, incorreu o recorrente em erro no meio processual, previsto no artigo 193.º do Código de Processo Civil[21].

Este erro é susceptível de correcção oficiosa, como resulta do n.º 3 do mencionado normativo, com o máximo aproveitamento dos actos já praticados.

Haverá, por conseguinte, que determinar a convolação do recurso de apelação em incidente de arguição de nulidades processuais, ordenando-se, para esse efeito, a remessa dos autos à primeira instância[22], que apreciará, entre o mais, a tempestividade da arguição das nulidades invocadas pelo apelante.


*

Síntese conclusiva:

…………………..

…………………..

…………………..


*


Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em determinar a remessa dos autos à primeira instância para que aí sejam apreciadas as nulidades decorrentes da falta/nulidade da citação do Réu CC.

Custas – pelo apelante.

Notifique.


Porto, 20.06.2024

Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.

Judite Pires

Isabel Peixoto Pereira

Paulo Duarte Mesquita Teixeira


________________________
[1] Artigo 219.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
[2] Código de Processo Civil Anotado - Parte Geral e Processo de Declaração, Vol. I, Almedina, 2019, pág. 251.
[3] Respectivamente, artigo 188.º e 191.º do Código de Processo Civil.
[4] Cfr., designadamente, artigos 187.º, n.º 1, a), 191.º, 195.º, 196.º, 198.º, 199.º e 200.º, todos do Código de Processo Civil.
[5] Artigo 196.º do Código de Processo Civil.
[6] Artigo 191.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
[7] Código de Processo Civil Anotado - Parte Geral e Processo de Declaração, Vol. I, Almedina, 2019, pág. 228.
[8] Processo n.º 608 /10.6TBSRT-B.C1, www.dgsi.pt.
[9] Processo n.º 1573/10.5TBLLE-C.E1, www.dgsi.pt.
[10] Processo n.º 0835621, www.dgsi.pt.
[11] Processo n.º 21296/12.0YYLSB-A.L1-6, www.dgsi.pt.
[12] Processo n.º 2087/17.8T8OAZ-A.P1, www.dgsi.pt.
[13] Processo n.º 789/12.4TBAMT-A.P1, www.dgsi.pt.
[14]Comentário ao Código de Processo Civil”, II, págs. 507, 508.
[15]Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, pág. 183.
[16]Manual de Processo Civil”, 1985, pág. 393.
[17]Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, 1982, pág. 134.
[18] Dos Recursos, Quid Juris, pág. 52.
[19] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 372.
[20] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 162.
[21] Neste sentido, cfr. acórdão da Relação de Lisboa de 14.07.2020, processo n.º 574/19.2T8LRS.L1-7, www.dgsi.pt.
[22] Cfr., além do citado acórdão da Relação de Lisboa de 14.07.2020, os acórdãos da Relação do Porto de 1.03.2010, processo n.º 151/09.6TTGDM.P1; da Relação de Évora, de 18.10.2012, processo n.º 1027/11.2TTSTB.E1, ambos em www.dgsi.pt.