Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
445/09.0TBAMT-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: RECLAMAÇÃO DA NOTA DE CUSTAS DE PARTE
DEPÓSITO PRÉVIO
Nº do Documento: RP20240606445/09.0TBAMT-F.P1
Data do Acordão: 06/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O indeferimento da apreciação duma reclamação da nota de custas de parte com o único fundamento de não ter sido efetuado o depósito prévio por parte do Reclamante viola o direito de acesso à justiça e aos tribunais e o princípio da proporcionalidade: art.º 20º nº 1 e 18º nº 2, ambos da CRP.
II - A exigência desse depósito prévio deve ser procedida de uma ponderação em concreto, por referência ao montante da nota de custas e às condições económicas do Reclamante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 445/09.0TBAMT-F.P1






ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


I – Resenha do processado

1. Correram termos ações, apensadas, instauradas por AA e BB, contra A..., SA (denominação atual), com fundamento em responsabilidade civil decorrente de acidente de viação.
Proferida sentença, e posterior acórdão da Relação, transitado em julgado, veio a Ré A... apresentar nota discriminativa e justificativa de custas de parte, no valor total de € 8.190,93.
O Autor AA apresentou reclamação dessa nota.
Os autos foram ao Ministério Público (Mº Pº), que promoveu o indeferimento da reclamação por o Autor “não ter procedido ao depósito da totalidade do valor da nota a que alude o art.º 26º-A, nº 2 do Regulamento das Custas Processuais”.
A Mmª Juíza emitiu o seguinte despacho:
«Não se admite a reclamação apresentada pelo Autor AA à nota discriminativa e justificativa de custas de parte junta aos autos pela Ré A..., dado o Autor não ter procedido ao depósito da totalidade do valor da nota a que alude o art.º 26º-A, nº 2 do Regulamento das Custas Processuais, conforme se refere na douta promoção que antecede.»

2. Inconformado com tal decisão, dela apelou o Autor AA, formulando as seguintes conclusões:
1 - O despacho recorrido constitui um manifesto erro de direito.
2 - Ao não admitir a reclamação apresentada pelo Recorrente da nota justificativa de custas de parte da Ré Seguradora pelo simples facto de não ter procedido ao depósito da totalidade do valor daquela nota justificativa a que alude o artº 26ºA, nº 2 do RCP, sem ter considerado o caso concreto em análise, nomeadamente a situação económico-financeira do reclamante, o valor da nota justificativa e se a reclamação apresentada incidia, ou não, sobre parte significativa do valor reclamado, violou o direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente do n.º 2 do artigo 18.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
3 Neste sentido se vem pronunciando o Tribunal Constitucional nos seus arestos mais recentes, Acórdão nº 153/22, Acórdão nº 446/2023 e Acórdão 602/2023.
4 Nomeadamente o Acórdão do TC nº 602/2023 que se aplica como uma luva ao caso concreto dos presentes autos.
5 A nota justificativa das custas de parte apresentada pela Ré (Seguradora) no valor é não só manifestamente onerosa para o Autor, já reformado, como também o valor reclamado é manifestamente arbitrário como decorre da análise da reclamação apresentada pelo Recorrente.
6 - Na reclamação da nota justificativa o Recorrente levanta as seguintes questões:
- Referência errada à decisão invocada com base na qual foi feita a nota justificativa, a parte condenatória consta de um despacho de aclaração do Acórdão e não do próprio Acórdão como alega certamente por lapso a Ré Seguradora;
- Mais de 60% dos valores reclamados na nota não são devidos, uns porque não são mesmo devidos e outros em que há duplicação.
- Está em causa saber se o critério que deve servir de base á elaboração das notas justificativas é o do decaimento de cada uma das partes ou o que ficou definido no Acórdão da Relação do Porto de 2/3 para os Autores e 1/3 para a Ré.
- A própria Ré Seguradora vem a reconhecer a posteriori que houve erros nos valores pedidos relacionados com a percentagem que serviu de cálculo à nota de custas de parte.
7 - A omissão na fundamentação do despacho recorrido das circunstâncias relevantes para aferir da onerosidade da nota e da sua arbitrariedade constituem no caso presente uma evidente violação dos princípios constitucionais de acesso ao à justiça e aos tribunais em conjugação com o princípio da proporcionalidade.
8 - Em conclusão, o despacho recorrido ao não admitir a reclamação da nota justificativa do Recorrente por falta de depósito prévio, sem fazer a devida ponderação do caso concreto em análise, nomeadamente da situação económica e financeira do reclamante, do montante de tais custas e da sua eventual arbitrariedade violou o direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente do n.º 2 do artigo 18.º, ambos da Constituição da República Portuguesa
Termos em que, deve a presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, revogar-se a decisão recorrida, ordenando-se que o processo baixe á 1ª instância para que a reclamação, apresentada pelo Recorrente, da nota justificativa de custas de parte da Ré seja apreciada sem necessidade do prévio depósito do valor da nota. Com o que será feita JUSTIÇA

3. A Ré não contra-alegou.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



II - FUNDAMENTAÇÃO

4. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, trata-se de decidir se o indeferimento da reclamação, com o respetivo fundamento, viola preceitos constitucionais, designadamente o direito de acesso à justiça e aos tribunais (nº 1 do artigo 20º), o princípio da proporcionalidade (nº 2 do artigo 18º), ambos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Decidindo.

O art.º 26º-A foi aditado ao Regulamento das Custas Processuais (RCP) pela Lei nº 27/2019, de 28 de março, consignando no seu nº 2 que a reclamação da nota justificativa está sujeita ao depósito da totalidade do valor da nota.
Invoca-se que essa obrigação de depósito prévio do valor da nota como condição para se ver a reclamação apreciada, sem se atender às concretas condições do Reclamante, é desproporcional, violando assim o direito de acesso à justiça e aos tribunais, plasmado como direito fundamental na CRP.
O Tribunal Constitucional (TC), órgão judicial especialmente vocacionado para as questões constitucionais, assim o tem vindo também a entender.
Na verdade, apesar de em primeiros arestos se ter considerado o preceito em causa conforme aos princípios constitucionais (cf. acórdão do TC nº 370/2020), esse mesmo TC infletiu essa posição e tem vindo mais recentemente a decidir em sentido contrário.
Assim:
Acórdão nº 153/2022, de 17/02/2022, que se debruçou sobre uma decisão do Tribunal da Relação de Évora, que recusou a aplicação da norma contida no n.º 2 do artigo 26.º-A do RCP por considerar inconstitucional a o caráter matemático e impositivo desse preceito, sem conceder aos Tribunais a possibilidade de atender ao valor da nota de custas para poder dispensar o depósito, o TC decidiu:
a) Julgar inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais e à justiça, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, a norma contida no n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais (RCP), aditada pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março na interpretação segundo a qual o tribunal não pode dispensar o depósito do valor integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário.
Acórdão nº 446/2023, de 06/07/2023, abordando situação exatamente idêntica de desaplicação desse nº 2 do artigo 26.º-A do RCP por um Tribunal, o TC decidiu:
a) Julgar inconstitucional a norma contida no n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, aditado pela Lei n.º 27/2019, de 28/03, na interpretação segundo a qual o tribunal não pode dispensar o depósito do valor integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário, por violação do direito de acesso aos tribunais e à justiça, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
Acórdão nº 602/2023, de 28/09/2023, debruçando-se sobre situação em tudo idêntica à dos presentes autos, em que a reclamação da nota de custas não foi sequer apreciada com o fundamento de não ter sido junto o comprovativo do depósito do valor da nota de custas, o TC decidiu:
a) Julgar inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, aditada pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março, na interpretação segundo a qual a reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, depende, em todos os casos, e independentemente da ponderação do caso concreto em análise, nomeadamente da situação económica e financeira do reclamante e do montante de tais custas, do depósito prévio das mesmas, por violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente do n.º 2 do artigo 18.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Temos para nós que o princípio de “primeiro paga, depois reclama”, como critério matemático e sem qualquer controle, só por si já belisca com o sentido de justiça.
Nessa linha, a argumentação deste último aresto do TC é, a nosso ver, assaz convincente e eloquente:
«É este o juízo que cumpre acompanhar. O critério normativo fiscalizado — segundo o qual não é permitido ao tribunal dispensar o reclamante do depósito integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário — tem subjacente a falência dos «mecanismos de controlo interno» que garantiriam a sua conformidade constitucional. De acordo com a dimensão normativa sindicada, não existe mecanismo corretivo que, quando o tribunal considere o valor a depositar manifestamente excessivo ou arbitrário, assegure a tutela jurisdicional efetiva para questionar aquele mesmo valor, conduzindo, desse modo, à obrigação de depósito de valores manifestamente exagerados que não podem considerar-se necessários ao objetivo de racionalização das reclamações.» (…)
«A recusa, em termos absolutos, de um espaço de ponderação do julgador que permita dispensar o depósito da totalidade das custas de parte, nos casos em que se comprove que tal obrigação seria desproporcionada, não cumpre as exigências impostas pela CRP.»
Assim, considerando ser de proceder a uma ponderação em concreto (por referência ao montante da nota de custas e às condições económicas do reclamante), o indeferimento da apreciação da reclamação da nota de custas de parte não pode ter como único fundamento a omissão de depósito prévio por parte do Reclamante.




5. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO

6. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida.

Sem custas, face ao provimento da reclamação e à ausência de contra-alegações.






Porto, 06 de junho de 2024
Relatora: Isabel Silva
1º Adjunto: Ana Vieira
2º Adjunto: Paulo Duarte Teixeira