Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
406/14.8TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: FUNÇÃO DO NOTÁRIO
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
NEXO DE CAUSALIDADE
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RP20161205406/14.8TBMAI.P1
Data do Acordão: 12/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º638, FLS.177-191)
Área Temática: .
Sumário: I - Mostra-se consagrado entre nós o denominado sistema ou modelo do notariado latino, sendo que à luz deste sistema o notário é um jurista ao serviço das relações jurídico-privadas encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim, mas ao mesmo tempo é um oficial público que recebe uma delegação da autoridade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública.
II - Entre o notário e as partes não se estabelece qualquer vínculo de cariz negocial, pelo que a eventual responsabilidade em que aquele incorra no exercício das suas funções assumirá natureza extracontratual.
III - A função do notário não consiste em dar fé a tudo o que veja ou oiça, seja válido ou nulo, mas em dar fé em conformidade com a lei, competindo-lhe, por isso, o controlo da legalidade do negócio, visando, designadamente, detetar incapacidades, erros de direito ou de facto, coações encobertas, fraudes à lei, e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas.
IV - O notário, enquanto operador jurídico, da lei e da vontade das partes, não pode recusar a sua intervenção com fundamento na anulabilidade ou ineficácia do ato, devendo, contudo, por mor do disposto no nº 3 do art. 11º do DL nº 26/2004, de 4 de fevereiro, advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita.
V - O referido normativo assume natureza de norma de proteção, porquanto - ao impor ao notário (qual “conselheiro” das partes) o dever de advertir os outorgantes da existência de qualquer vício que, em alguma medida, possa condicionar a manifestação da sua vontade negocial - visa tutelar o interesse destes últimos, obstando à prática de ato que possa revelar-se patrimonialmente lesivo.
VI - O facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto.
VII - O estrito cumprimento do poder funcional estabelecido na alínea b) do nº 2 do art. 590º do Código de Processo Civil implica que o tribunal não pode deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado que se revele deficiente e, mais tarde (no despacho saneador ou na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado.
VIII - O conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 406/14.8TBMAI
Origem: Comarca do Porto, Póvoa de Varzim - Instância Central – 2ª Secção Cível, Juiz 2
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. José Sousa Lameira
*
Sumário

I- Mostra-se consagrado entre nós o denominado sistema ou modelo do notariado latino, sendo que à luz deste sistema o notário é um jurista ao serviço das relações jurídico-privadas encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim, mas ao mesmo tempo é um oficial público que recebe uma delegação da autoridade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública.
II- Entre o notário e as partes não se estabelece qualquer vínculo de cariz negocial, pelo que a eventual responsabilidade em que aquele incorra no exercício das suas funções assumirá natureza extracontratual.
III- A função do notário não consiste em dar fé a tudo o que veja ou oiça, seja válido ou nulo, mas em dar fé em conformidade com a lei, competindo-lhe, por isso, o controlo da legalidade do negócio, visando, designadamente, detetar incapacidades, erros de direito ou de facto, coações encobertas, fraudes à lei, e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas.
IV- O notário, enquanto operador jurídico, da lei e da vontade das partes, não pode recusar a sua intervenção com fundamento na anulabilidade ou ineficácia do ato, devendo, contudo, por mor do disposto no nº 3 do art. 11º do DL nº 26/2004, de 4 de fevereiro, advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita.
V- O referido normativo assume natureza de norma de proteção, porquanto - ao impor ao notário (qual “conselheiro” das partes) o dever de advertir os outorgantes da existência de qualquer vício que, em alguma medida, possa condicionar a manifestação da sua vontade negocial - visa tutelar o interesse destes últimos, obstando à prática de ato que possa revelar-se patrimonialmente lesivo.
VI- O facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto.
VII- O estrito cumprimento do poder funcional estabelecido na alínea b) do nº 2 do art. 590º do Código de Processo Civil implica que o tribunal não pode deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado que se revele deficiente e, mais tarde (no despacho saneador ou na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado.
VIII- O conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito.
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

B…, solteiro, de nacionalidade francesa, residente na …, Rue … – ….. – Lyon, França instaurou a presente ação declarativa de condenação contra C…, Notário no Cartório Notarial sito na Rua …, n.º …, Maia, alegando, em síntese, que:
- Em 15.09.2011, adquiriu um imóvel, pelo valor de €30.000,00, no Cartório Notarial sito na Rua …, Maia, perante o réu;
- O vendedor do imóvel exigiu que a escritura fosse realizada no dito Cartório e não em mais nenhum;
- Durante as negociações que levaram ao negócio, o vendedor sabia que o dito imóvel estava onerado, mas ocultou tal informação do autor, bem sabendo que se tivesse conhecimento da penhora, o autor não teria realizado o negócio;
- É estrangeiro, desconhece a legislação nacional e necessita de apoio de terceiros para compreender os passos do negócio;
- Quando outorgou a escritura desconhecia que o imóvel estava onerado com uma penhora registada desde 07.09.2011 e o réu não fez a advertência às partes de que sobre o imóvel estava registada uma penhora, nem fez constar da escritura celebrada ter efetuado tal advertência;
- Na escritura, o réu menciona ter consultado a certidão predial permanente;
- Porém, por não ter analisado a certidão com a atenção que se impunha, o réu não se apercebeu de que sobre o prédio impendia uma penhora;
- A penhora em causa veio a ser cancelada por o autor ter procedido ao pagamento da quantia exequenda do processo à ordem do qual o prédio fora penhorado, no montante de €46.000,00;
- A conduta do réu viola os deveres deontológicos previstos no Estatuto do Notariado, tendo o mesmo sido condenado no processo disciplinar, numa multa de €.2500,00;
- A Ordem dos Notários subscreveu seguro que inclui a responsabilidade civil profissional dos notários em consequência de erro, omissão ou negligência e que garante as indemnizações emergentes dos atos praticados pelos Notários no exercício das suas funções que causem danos patrimoniais a terceiros.
Conclui pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de €76.000,00, sendo €30.000,00 correspondente ao preço do imóvel e €46.000,00 referente ao montante que teve de pagar para obter o cancelamento da penhora que incidia sobre tal imóvel.
*
O réu, regularmente citado, veio contestar a ação, alegando, em suma, que:
- O imóvel foi vendido por preço inferior ao valor patrimonial, não constando da escritura que o imóvel é vendido livre de ónus e encargos e sendo que o preço foi pago antes da celebração da escritura. O referido leva a crer que as partes conheciam a existência da penhora e que mesmo assim o autor quis adquirir a fração;
- Desconhece as negociações ocorridas entre as partes e limitou-se a reproduzir na escritura a vontade das partes;
- Não há qualquer violação ilícita dos direitos do autor por parte do réu, enquanto nexo causal dos alegados danos;
- Crê que o vendedor comunicou ao autor que a fração estava penhorada, pois apenas por essa razão se compreende que o preço tenha sido fixado abaixo do valor patrimonial;
- Encontrando-se o comprador devidamente informado, não pode ser imputada qualquer responsabilidade ao réu;
- Mesmo que o autor não tenha sido informado, era ao vendedor que incumbia tal dever, pelo que se está no âmbito da responsabilidade civil pré-contratual, não sendo o réu parte e, como tal, não lhe pode ser assacada qualquer responsabilidade;
- A violação de qualquer dever jurídico pelo réu, não fundamenta a ilicitude relevante para integrar a responsabilidade civil extracontratual;
- A actuação do réu não constitui causa adequada do dano sofrido pelo autor, pois o negócio foi acordado entre o autor e o vendedor, e se o vendedor não informou o autor, então, o autor deveria ter-se certificado de que podia adquirir o imóvel sem qualquer risco. O autor ao não ter observado os cuidados que se exigiam, foi a causa exclusiva, ou pelo menos contribuiu em grande parte para o dano que alega ter sofrido;
- O dano indemnizável apenas poderá corresponder ao valor do preço de aquisição, ou seja, €30.000,00;
- A culpa do réu, a existir, é meramente negligente, resultante de lapso na consulta da certidão predial;
- Ainda que o réu tivesse feito a advertência de que sobre o imóvel impendia uma penhora, o autor sempre adquiria o imóvel, como adquiriu;
- A Ordem dos Notários subscreveu um seguro de responsabilidade civil profissional que garante o pagamento de indemnizações até €.100.000,00 e o réu contratou uma apólice complementar de seguro de reforço com o capital mínimo de €.400.000,00 e, por isso, o réu não é responsável pelo pagamento de qualquer indemnização.
*
A fls. 118 e seguintes, o réu veio deduzir incidente de intervenção acessória provocada de D…, Lda. – Sucursal em Portugal, na Av. …, n.º …, Lisboa, alegando a existência de um contrato de seguro da Ordem dos Notários e uma apólice complementar de seguro de reforço.
*
Por despacho de fls. 139 foi admitida a intervenção acessória provocada da D…, Lda. – Sucursal em Portugal.
*
Citada a chamada, apresentou contestação, defendendo, em síntese, que:
- É parte ilegítima, pois é apenas um mediador de seguros e não uma seguradora, pelo que deve ser absolvida da instância;
- A apólice invocada não era a apólice que vigorava à data do alegado sinistro, sendo certo, de qualquer modo, que a reclamação foi apresentada fora do período de seguro coberto;
- Também a apólice individual não é aplicável, uma vez que o valor peticionado pelo autor fica dentro do capital seguro do seguro subscrito pela Ordem dos Notários;
- O réu não participou o sinistro como lhe competia, o que constitui uma causa de exclusão de cobertura e determina a sua absolvição do pedido;
- Os danos em causa também não estão protegidos pela apólice em causa, o que determina igualmente a absolvição do pedido;
- Dos factos alegados pelo autor não resultam preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, pois não há qualquer nexo de causalidade entre a conduta do réu e o dano do autor. A haver responsabilidade a mesma é do vendedor do imóvel, pois dolosamente omitiu que sobre o prédio impendia uma penhora.
Requereu ainda a intervenção principal provocada de E… e de F…, S.A. Portugal (por serem as seguradoras para quem estava transferida a responsabilidade civil desde 12.10.2011) e bem assim do vendedor do imóvel (G…).
*
O réu, notificado da contestação apresentada pela chamada, veio defender que a mesma é parte legítima (fls. 182 a 184).
*
Por despacho de fls. 187, foi indeferida a requerida intervenção provocada deduzida pela chamada D….
*
A fls. 196 e seguintes, o réu veio aos autos informar que, na sequência da contestação da chamada, foi averiguar da natureza da mesma e apurou junto do Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundo de Pensões que aquela é entidade autorizada enquanto mediadora de seguros e resseguros, pelo que, é parte legítima. Termina pedindo que a D… seja admitida a intervir nos autos como interveniente principal.
*
Por despacho de fls. 200, foi indeferida a intervenção da D… como interveniente principal, por extemporaneidade.
*
Foi realizada audiência prévia, conforme resulta da ata de fls. 212 a 214.
*
A fls. 237 e 238, o réu veio pedir a intervenção das seguradoras H…, S.A., F… e E…, o que foi deferido por despacho de fls. 249, que admitiu a intervenção principal das três seguradoras.
*
A fls. 260 e seguintes, veio a F… (ex-H…, S.A. – Sucursal em Portugal) apresentar contestação, onde defende que:
- Celebrou contrato de seguro do ramo profissional com a Ordem dos Notários, que vigorou entre 12.10.2011 e 31.05.2014, sendo que tal apólice produziu efeitos retroativos a Fevereiro de 2005, tendo ficado seguro o valor de €400.000,00, existindo uma franquia de €1.000,00 para cada evento;
- O réu foi considerado pessoa segura nesse período de tempo, sendo que a reclamação do ajuizado sinistro apenas ocorreu depois de terminado o período da apólice em causa;
- O autor ao efetuar o pagamento da quantia em dívida na ação executiva, prejudicou o direito de sub-rogação do réu e das chamadas, pelo que sempre o autor teria de responder perante o réu e chamadas;
- A ação deve ser julgada improcedente por culpa grosseira e exclusiva do autor.
*
A fls. 288 e seguintes, veio contestar a chamada E…, defendendo que:
- Não foi devidamente citada, pelo que o processado deve ser anulado após o despacho de citação, para além de que é parte ilegítima;
- Celebrou contrato de seguro do ramo profissional com a Ordem dos Notários, que vigorou entre 01.06.2014 e 01.06.2015, sendo que nesta data iniciou-se nova apólice;
- Os factos em que assenta a responsabilidade do réu eram conhecidos antes da celebração do contrato de seguro, pelo que tal sinistro se encontra excluído da cobertura da apólice;
- Apurando-se que o réu teve conhecimento dos factos antes de 01.06.2014, também determinará a exclusão do sinistro da proteção da apólice;
- Não existe nexo de causalidade entre os danos invocados pelo autor e a conduta do réu;
- Não incumbe ao Notário informar o comprador de que sobre o prédio não impendem ónus ou encargos, mas sim ao vendedor;
- A haver dano, o mesmo é de apenas €.30.000,00, que corresponde ao valor que o autor pagou pelo prédio;
- O autor pode exigir do vendedor o valor que pagou pelo imóvel.
*
A fls. 325 e 326, foi proferido despacho que julgou improcedentes as invocadas exceções de nulidade do processado e ilegitimidade passiva de E…. Foi igualmente indeferida a requerida intervenção de G… (vendedor do imóvel).
*
Foi proferido saneador/sentença no qual se decidiu absolver os réus C…, F… (também em representação da ex-H…, S.A. – Sucursal em Portugal) e E… do pedido.
Não se conformando com o assim decidido, veio o autor interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
1.O presente recurso tem por objecto a douta decisão do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim de 07-06-2016 na qual, a decisão foi absolver os réus C..., F… – Sucursal em Portugal (também em representação da ex-H…, S.A.- Sucursal em Portugal) e E… do pedido.
2. Em 15.09.2011, adquiriu um imóvel, pelo valor de € 30.000,00, no Cartório Notarial sito na Rua …, n.º ….,Maia, perante o Recorrido/Réu.
3.O vendedor do imóvel exigiu que a escritura fosse realizada no Cartório Notarial do Apelado/Réu e não em mais nenhum.
4. Durante as negociações que levaram ao negócio, o vendedor sabia que o dito imóvel estava onerado, mas ocultou tal informação ao Recorrente/Autor, bem sabendo que se tivesse conhecimento da penhora, o Recorrente/Autor não teria realizado o negócio.
5. O Recorrente /Autor é estrangeiro, desconhece a legislação nacional e necessita de apoio de terceiros para compreender os passos do negócio.
6- O Recorrente/ Autor quando outorgou a escritura desconhecia que o imóvel estava onerado com uma penhora registada desde 07.09.2011 e o Recorrido/Réu não fez a advertência às partes de que sobre o imóvel estava registada uma penhora, nem inclui da escritura celebrada ter efectuado tal advertência.
7- Na escritura, o Recorrido/Réu menciona ter consultado a certidão predial permanente, documento este que menciona exaustivamente todos os ónus e vícios que impendiam sobre o imóvel objecto da escritura notarial em causa, incluindo penhora.
8- Porém, por não ter analisado a certidão com a atenção devida que se impunha no exercício da sua função notarial o Recorrido/Réu causou ao Recorrente/Autor graves prejuízos de ordem económica e emocional por não ter alertado o Recorrente/Autor que sobre o imóvel recaía uma penhora.
9- Com esta sua falta de zelo e diligência a penhora que recaía sobre o imóvel em causa veio a ser cancelada por o Recorrente/Autor ter procedido ao pagamento da quantia exequenda do processo à ordem do qual o prédio fora penhorado.
10- A conduta do Recorrido/Réu viola os deveres deontológicos previstos no Estatuto do Notariado, tendo o mesmo sido condenado no processo disciplinar, numa multa de €.2500,00.
11- A Ordem dos Notários subscreveu seguro que inclui a responsabilidade civil profissional dos notários em consequência de erro, omissão ou negligência e que garante as indemnizações emergentes dos actos praticados pelos Notários no exercício das suas funções que causem danos patrimoniais a terceiros.
12- O Recorrente/Autor por não ter sido informado, pelo Recorrido/ Réu sobre a existência da penhora, dever que lhe incumbia derivado a sua profissão de Notário, causou ao Recorrente/Autor os danos peticionados nos presentes autos.
13- O Recorrido/Réu violou o dever deontológico e jurídico de informar o Recorrente/Autor da existência do ónus do bem a escriturar o que fundamenta a ilicitude relevante para integrar a responsabilidade civil extracontratual.
14- A actuação do Recorrido/Réu constitui causa adequada do dano sofrido pelo Recorrente/Autor, pois o negócio celebrado entre o autor e o vendedor, e se o vendedor não informou o autor sobre a penhora, então, Recorrido/ Réu tinha o dever jurídico e profissional, e deveria ter-se certificado de que o Recorrente/Autor tinha conhecimento de que o imóvel estava com um ónus (Penhora), informando-o de acordo a certidão predial consultada por si no acto.
15- O Recorrido/Réu ao não ter observado os cuidados que se exigiam, foi a causa exclusiva, ou pelo menos contribuiu em grande parte para o dano que o Autor/Recorrente sofreu e que peticionou nos presentes autos.
16- O dano indemnizável corresponde ao valor do preço de aquisição, ou seja, €.30.000,00 mais o valor que o Recorrente/Autor teve de desembolsar para cancelar a penhora e outros encargos a ela inerentes.
17- A culpa do Apelado/Réu existe, ainda que seja meramente negligente, resultante da falta de informação e zelo que deveria ter tido aquando do acto notarial, informando o Apelante/Autor da existência de uma penhora que teve conhecimento pela consulta da certidão predial.
18- Se o Recorrido/ Réu tivesse feito a advertência de que sobre o imóvel impendia uma penhora, o Recorrente/autor nunca adquiriria o imóvel, como adquiriu.
19- A Ordem dos Notários subscreveu um seguro de responsabilidade civil profissional que garante o pagamento de indemnizações até €100.000,00 e o réu contratou uma apólice complementar de seguro de reforço com o capital mínimo de €400.000,00.
20- Constituiu a acção negligente a conduta do notário que, ao lavrar escritura pública de compra e venda não advertiu o comprador aqui Apelante de que o imóvel estaria onerado com uma penhora.
21. Tendo essa omissão ocorrido num contexto em que estava preparada uma escritura de compra e venda de um imóvel em que o outorgante vendedor fez questão de ser celebrado no cartório notarial do Apelado e em mais nenhum.
22. Existe nexo de causalidade entre a conduta do notário e os danos do comprador/Apelante, correspondentes à quantia que entregou ao exequente para cancelar a penhora e mais encargos que teve derivado à falta de zelo e negligência do Apelado/Notário, no valor de €76,000.00 (setenta e seis mil euros), uma vez que a norma que impõe ao notário a análise da certidão predial permanente se destina a proteger os interesses dos intervenientes no ato, na perspetiva da emissão de vontade pelo outorgante comprador, e não a evitou o resultado danoso de que o comprador/Apelante foi vítima, ocorreu no circulo de interesses da “…disposição legal destinada a proteger interesses alheios…”, a que se reporta o art.º 483.º, n.º 1, do C. Civil.
*
O réu C… e as intervenientes F…, S.A. e E… apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Após os vistos legais cumpre decidir.
***
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, o objeto do presente recurso está circunscrito à apreciação da questão de saber se os elementos constantes dos autos permitem, numa fase interlocutória do processo (despacho saneador), a prolação de uma decisão de mérito a julgar improcedente o pedido por aquele formulado “por ausência de nexo de causalidade entre a conduta do réu e os danos alegadamente sofridos pelo autor”.
***
III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A factualidade a atender é a que dimana do antecedente relatório, havendo ainda a considerar a seguinte materialidade que o tribunal a quo considerou estar assente nos autos:
No dia 15 de Setembro de 2011, no Cartório Notarial sito na Rua …, n.º …., na Maia, perante o réu C…, Notário do Cartório, foi celebrada escritura pública de compra e venda.
De tal escritura resulta que:
«Primeiro – I…
Segundo – B…
Declarou o primeiro outorgante:
Que, pela presente escritura, mediante o preço de €.30.000,00 que já recebeu, vende ao segundo outorgante o seguinte imóvel:
Fracção autónoma designada pela letra “I3”, correspondente a uma habitação, no terceiro andar direito, com entrada pelo n.º .., do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Praça …, n.ºs .., .. e .., freguesia …, concelho do Porto, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 1651 – …, com o titulo constitutivo da propriedade horizontal registado pela inscrição da apresentação n.º 1 de 24/02/1979 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 10.414.
Que esta fracção tem o valor patrimonial de €.41.040,00, e está registada na referida Conservatória a seu favor pela inscrição da apresentação n.º 4971 de 30.08.2010.
Declarou o segundo outorgante:
Que aceita esta venda nos termos exarados e que a fracção comprada se destina exclusivamente a sua habitação própria e permanente.
Mais declararam os outorgantes
Que este contrato não foi objecto de mediação imobiliária; tendo sido advertidos do disposto no n.º 2 do art. 50.º do Decreto-Lei n.º 211/2004, de 20 de Agosto.
Assim o disseram e outorgaram.
(…)
Exibidos: a) Certidão predial permanente, disponível na internet, com código PP-….-…..-…………., pela qual verifiquei os indicados elementos de registo;
b) Uma caderneta predial urbana, obtida hoje via internet, pela qual verifiquei os indicados elementos da matriz; (…)» (vide certidão da escritura de fls. 24 a 27 dos autos).
A dita fração autónoma designada pela letra “I3”, correspondente a uma habitação, no terceiro andar direito, com entrada pelo n.º .., do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Praça …, n.ºs .., .. e .., freguesia …, concelho do Porto, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 1651 – …, com o titulo constitutivo da propriedade horizontal registado pela inscrição da apresentação n.º 1 de 24/02/1979 e inscrito na respetiva matriz sob o artigo 10.414, estava onerada com uma penhora registada pela apresentação n.º 2414 de 2011/09/07, para garantia do pagamento da quantia de €.70.199,43, à ordem do processo executivo n.º 2559/10.5YYPRT, do Tribunal do Porto – 1.º e 2.º Juízos, e no qual era exequente J…, Lda. e executados I… e K… (documentos de fls. 78 a 98 dos autos).
Na celebração da escritura referida, o réu não advertiu as partes de que sobre o referido imóvel existia uma penhora, como resultava da certidão predial permanente disponível na internet, exibida e mencionada na escritura e com o código PP-….-…..-……-…….., sendo que da escritura pública também não consta que o réu tenha feito tal advertência.
Por causa destes factos, em 18 de Setembro de 2013, o réu C… foi condenado pela Ordem dos Notários pela violação culposa dos deveres deontológicos previstos nos artigos 11.º, n.º 3 do Estatuto do Notariado, 38.º, n.º 2 do Estatuto da Ordem dos Notários e 4.º, n.º 1 do Código do Notariado, numa pena de multa de €.2500,00 (documento de fls. 206 a 211 dos autos).
***
IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

No caso em apreço, como deflui da exegese da petição inicial, verifica-se que o autor/apelante filia a concreta pretensão de tutela jurisdicional que aduz no presente processo no facto de o réu C…, aquando da celebração da escritura pública destinada a documentar o contrato de compra e venda que teve por objeto mediato o imóvel identificado nesse articulado - na qual o autor interveio na qualidade de comprador -, não ter cumprido os seus deveres enquanto notário, posto que, nesse ato, não fez, como se impunha, a advertência às partes outorgantes de que o imóvel se encontrava onerado por uma penhora.
A presente ação, tal como o autor a configura, integra um caso de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, domínio em que imperam, fundamentalmente, os arts. 483º a 498º do Código Civil[1].
Dispõe, com efeito, o nº 1 do art. 483º que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Do inciso normativo transcrito resulta, como, praticamente una voce, tem sido considerado pela doutrina[2], que os pressupostos, requisitos ou elementos da responsabilidade civil por factos ilícitos são o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Assim, para que exista obrigação de indemnizar, baseada em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, torna-se mister que se verifiquem todos os descritos pressupostos, sendo certo que, por força do critério geral estabelecido no art. 342º, complementado neste particular pelo disposto no art. 487º, incumbe a quem invoque a seu favor o direito à indemnização alegar e provar os factos pertinentes.
No ato decisório sob censura considerou-se[3] não estarem, in casu, reunidos os pertinentes pressupostos ou requisitos da aludida fonte de obrigações, mormente por ausência de nexo de causalidade entre o comportamento do réu C... e os danos cuja reparação o autor reclama na presente demanda.
É exatamente neste ponto que se situa o âmago do objeto do presente recurso, já que é primordialmente em relação à afirmação da ausência do apontado nexo causal que se reporta, em termos úteis, a divergência recursiva apresentada pelo apelante, que esgrime argumentação no sentido de que é manifesta a existência de nexo de causalidade (seja à luz da teoria da causalidade adequada, seja sob o enfoque da teoria do fim da norma) entre o comportamento omissivo do réu e os danos que afirma ter sofrido em consequência do mesmo.
Na resolução da enunciada questão importa, como prius, caraterizar, ainda que em termos necessariamente sumários, o concreto estatuto dos notários, sendo que nos autos não é fundadamente posto em crise que a ajuizada escritura pública foi formalizada pelo réu na sua qualidade de notário.
Como é consabido, desde, pelo menos, a reforma levada a cabo pelos Decretos-Leis nºs 26/2004 (que aprovou o Estatuto do Notariado) e 27/2004 (que criou a Ordem dos Notários e o respetivo Estatuto), ambos de 4 de fevereiro, mostra-se consagrado entre nós o denominado sistema ou modelo do notariado latino[4], sendo que à luz deste sistema o notário é um profissional de direito encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim e conferindo-lhes autenticidade. Ou seja, notário é um jurista ao serviço das relações jurídico-privadas mas ao mesmo tempo é um oficial público que recebe uma delegação da autoridade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública. Assim, é simultaneamente um oficial público e um profissional do direito, como, aliás, expressamente preceitua o nº 2 do art. 1º do DL nº 24/2004, dispondo ainda o nº 3 do mesmo normativo que “a natureza pública e privada da função notarial é incindível”.
Como oficial público exerce a fé pública notarial que tem e sustenta um duplo conteúdo: na esfera dos factos, a exatidão dos que o notário vê, ouve ou percebe pelos seus sentidos; na esfera do direito, a autenticidade e força probatória das declarações de vontade das partes no instrumento público, redigido segundo as leis. Deste modo, exerce uma função pública, documental ou de autenticação; função dirigida ao documento, na sua expressão externa de autenticidade dos factos ou das declarações de vontade, do ato ou da relação jurídica. Já como profissional de Direito exerce uma função jurídica privada: função assessora, de assistência, conselho e formação da vontade das partes e de adequação ou conformação daquela vontade ao ordenamento jurídico. Dito de outro modo, a função jurídica privada refere-se à preparação do documento, à recolha da vontade das partes, ao conselho, à pedagogia e auxílio dessa vontade e à sua interpretação, bem como à expressão da vontade das partes, à redação e conformação do ato ou relação jurídica.
Daí que o notário venha sendo considerado um terceiro imparcial, que deve estar sempre acima dos interesses comprometidos: a sua profissão obriga-o a proteger as partes com igualdade, libertando-as, com as suas explicações imparciais e oportunas, dos enganos a que poderia conduzi-las a sua ignorância. O notário tem pois o dever (legal) de cuidar dos interesses de ambas as partes e, buscando o ponto de equilíbrio, servir a vontade comum, obtendo uma composição duradoura, e se possível definitiva, dos interesses opostos. O notário serve as partes e nenhuma em particular. Para o notário não há clientes, há apenas outorgantes, e todos merecem o mesmo tratamento e proteção. Por via disso, não se estabelecendo entre o notário e as partes qualquer vínculo de cariz negocial, propendemos, pois, a considerar que a eventual responsabilidade em que aquele incorra no exercício das suas funções assumirá natureza aquiliana, que não contratual.
Portanto, no exercício desse múnus o notário (latino), a par da função estritamente documental, desempenha outrossim uma função jurídica privada[5] – que corresponde, além de outras tarefas, à adaptação, adequação ou conformação da vontade dos particulares ao ordenamento jurídico.
É certo que a segurança que o notário proporciona é, antes de tudo, uma segurança documental, derivada da eficácia do instrumento público, dotado de autenticidade, eficácia essa que se expande pelo tráfico jurídico, pelo processo e em variadas outras direções (eficácia probatória, executiva, legitimadora, etc.).
Mas a importância desta segurança formal não pode fazer esquecer que antes dela há uma outra – a segurança substancial – que requer que o ato ou contrato documentado seja válido e eficaz, segundo as prescrições do ordenamento jurídico. O instrumento público só pode ter por conteúdo um negócio válido. A função do notário não consiste em dar fé a tudo o que veja ou oiça, seja válido ou nulo, mas em dar fé em conformidade com a lei. Existe, por conseguinte, um controlo[6] da legalidade do negócio, cabendo ao notário detetar incapacidades, erros de direito ou de facto, coações encobertas, fraudes à lei, e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas. Por isso se tem justamente afirmado que a segurança preventiva é uma consequência ou resultado normal da sua intervenção[7].
Como se assinalou, o notário enquanto operador jurídico, da lei e da vontade das partes, tem de ser (é, por definição) completamente independente no exercício da sua função, autónomo e responsável, não subordinado, devendo obediência apenas à lei e à vontade das partes, encontrando-se outrossim obrigado a proteger os outorgantes com igualdade e imparcialidade, deveres estes que resultam juspositivados, designadamente, nos arts. 10º, 11º, 12º, 13º e 15º do DL nº 26/2004.
É com o assinalado propósito de defesa dos interesses das partes que surge um comando normativo como o que se mostra vertido no art. 11º do último diploma citado, que no seu nº 1 expressamente preceitua que “o notário deve apreciar a viabilidade de todos os atos cuja prática lhe é requerida, em face das disposições legais aplicáveis e dos documentos apresentados ou exibidos, verificando especialmente a legitimidade dos interessados, a regularidade formal e substancial dos referidos documentos e a legalidade substancial do ato solicitado”. Ainda com o mesmo desiderato, dispõe o seu nº 3 que “o notário não pode recusar a sua intervenção com fundamento na anulabilidade ou ineficácia do ato, devendo, contudo, advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita”.
Como se referiu, o demandante procura arrimo jurídico para a concreta pretensão de tutela jurisdicional que formula nos presentes autos, precisamente, na inobservância por banda do réu C… do dever (legal) estabelecido no último inciso normativo transcrito.
Tendo-se qualificado a (eventual) responsabilidade civil em que o notário incorra no exercício da sua atividade profissional como extracontratual, questão que, desde logo, se coloca é a de saber qual a natureza dessa norma.
Ora, na economia do preceito, a mencionada advertência (rectius, dever de informação legalmente imposto) destina-se a colocar os outorgantes em ato notarial em condições de emitirem as suas declarações negociais de forma esclarecida, livre e ponderada, visando outrossim afastar, tanto quanto possível, a ocorrência de vício que possa inquinar o respetivo processo volitivo. Como assim, o cumprimento desse dever impõe-se com particular acuidade quando os outorgantes não estejam assessorados por técnico de direito (v.g. advogado) ou, como parece ser o caso (cfr. art. 9º da petição inicial), um deles seja cidadão estrangeiro e não domine a língua portuguesa.
Deste modo, perante a assinalada ratio essendi, afigura-se-nos pois que a norma em causa assume natureza de norma de protecção[8], porquanto - ao impor ao notário (qual “conselheiro” das partes[9]) o dever de advertir os outorgantes da existência de qualquer vício que, em alguma medida, possa condicionar a manifestação da sua vontade negocial - visa tutelar o interesse destes últimos, obstando à prática de ato que possa revelar-se patrimonialmente lesivo.
Como assim, a sua violação será subsumível à segunda modalidade de ilicitude contemplada no nº 1 do art. 483º[10].
Ora, malgrado na decisão recorrida se tenha afirmado a antijuridicidade do comportamento do réu C… (por inobservância da referida regra legal), facto é que nela se concluiu pela inexistência de fundamento para a responsabilização dos réus, por inverificação do necessário nexo causal entre o descrito comportamento omissivo do identificado demandado e os danos que o autor afirma ter sofrido na sua esfera jurídica.
Este requisito da responsabilidade civil encontra consagração legal no art. 563º que, de acordo com a posição majoritariamente seguida, adota a denominada teoria da causalidade adequada na sua vertente negativa, devida a L…, segundo a qual “o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto”[11], formulação esta que o STJ vem reiteradamente perfilhando[12].
Como refere ANTUNES VARELA, do conceito de causalidade adequada podem extrair-se múltiplos corolários, e um deles é o de que “para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano”[13].
Ainda como ensina ALMEIDA COSTA, “é necessário não só que o facto tenha sido, em concreto, condição sine qua non do dano, mas também que constitua, em abstrato, segundo o curso normal da coisas, causa adequada à sua produção”[14].
Temos, pois, que, de acordo com a citada teoria da causalidade adequada (que a dogmática moderna tende a substituir pela designação de teoria ou doutrina da adequação), o facto que atua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o tenha produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excecionais, não pressupondo a exclusividade da condição, podendo ter colaborado na sua produção outros factos concomitantes ou posteriores. Dito de outro modo, um facto é causal de um dano quando é um de entre as várias condições sem as quais aquele se não teria produzido, sem perder de vista que o facto e o dano não são isoladamente considerados, mas valorizados no processo factual que, em concreto, conduziu ao dano, no âmbito da aptidão geral ou abstrata desse facto para produzir o dano.
Ainda a propósito da concretização deste elemento da responsabilidade civil, será de registar (até porque o apelante a ela alude nas suas alegações recursórias) o contributo que vem sendo aportado pela denominada teoria do escopo da norma violada, que uma parte significativa da doutrina pátria[15] vem acolhendo como constituindo a melhor forma de determinação do nexo de causalidade.
Defende tal teoria que para o estabelecimento do nexo de causalidade é apenas necessário averiguar se os danos que resultaram do facto correspondem à frustração das utilidades que a norma visava conferir ao sujeito através do direito subjetivo ou da norma de proteção. Assim, a questão da determinação do nexo de causalidade acaba por se reconduzir a um problema de interpretação do conteúdo e fim específico da norma que serviu de base à imputação dos danos.
As referidas teorias da adequação e do fim da norma, na essência, buscam uma delimitação do dano indemnizável, ainda que partindo de pontos de vista diferentes, se bem que, na generalidade dos casos, conduzirão a conclusões idênticas quanto à ocorrência (ou não) do nexo causal. A primeira verifica se um comportamento concreto aparece a um observador objetivo como perigoso em relação à verificação de um determinado dano; a segunda coloca antes a questão de saber quais os danos que um legislador terá razoavelmente querido impedir através da estatuição de uma determinada norma de comportamento.
Procurando tomar posição nesta querela, SINDE MONTEIRO[16], depois de dar notícia que a teoria do fim da norma teve a sua origem na problemática da lei de proteção (natureza de que comunga, como se referiu, o citado nº 3 do art. 11º do DL nº 26/2004), acaba por propender para considerar que, quando estejam em causa normas deste tipo, haverá como que uma secundarização do critério da adequação, “sendo em geral indiscutível que o fim de proteção da norma pode abranger a reparação de danos inadequados”[17].
Postas tais considerações, revertendo ao caso sub judicio, importa, desde logo, reter que o sentido decisório sufragado na sentença recorrida se ancorou primordialmente no entendimento de que “nada do que foi alegado permite ao Tribunal apurar pela existência de um nexo de causalidade entre a conduta do réu e o dano que o autor diz ter sofrido”, afirmando, ainda que em obicter dictum, que a violação do citado art. 11º, nº 3 do DL nº 26/2004 por parte do réu C… “não foi a causa direta e necessária do dano sofrido pelo autor”.
Ora, procedendo à exegese da petição inicial, apesar de essa peça processual não primar por uma cabal densificação factual do aludido requisito da responsabilidade civil, certo é que, ainda assim, dela deflui que o autor acaba por alegar (cfr. arts. 6º e 10º) que se soubesse que o imóvel estava onerado com uma penhora não realizaria o ajuizado contrato de compra e venda, adiantando outrossim que desconhecia a existência desse ónus aquando da celebração da escritura destinada a documentar esse ato alienatório.
Admite-se, neste particular, que o aludido articulado se revele deficiente[18] na exposição e concretização de substrato factual que permita afirmar, de forma concludente, que o demandante não teria despendido as quantias que alegadamente afirma ter desembolsado como consequência da celebração do ajuizado contrato de compra e venda, maxime quando, na economia da ação, pretende obter do réu C… (e das respetivas seguradoras) a reparação desse prejuízo por ausência da advertência de que o imóvel que constituía objeto mediato desse contrato se encontrava onerado por uma penhora.
Nessas circunstâncias justificar-se-ia, pois, que em despacho pré-saneador (art. 590º, nºs 2 al. b) e 4 do Cód. Processo Civil) ou até na audiência prévia (art. 591º, nº 1 al. c), 2ª parte do CPC) o demandante fosse convidado ao aperfeiçoamento do dito articulado, de molde a que se lograsse suprir a mencionada deficiência na alegação do nexo causal[19].
De qualquer modo, ainda assim, perante as afirmações de facto adrede alegadas pelo autor, não se nos afigura que - seja à luz dos ensinamentos da doutrina da adequação seja sob o enfoque da doutrina do escopo da norma - estejam causalmente arredados os danos alegadamente sofridos pelo autor em consequência do descrito comportamento omissivo do réu.
Como assim, não estariam verificados os pressupostos da antecipação, para o despacho saneador, do conhecimento do mérito da causa.
Na verdade, como decorre do art. 596º do CPC, no plano das funções atribuídas a esse despacho, a apreciação dos aspetos jurídico-processuais da ação constitui o conteúdo essencial do mesmo, sendo o conhecimento do mérito apenas uma sua finalidade eventual: o despacho saneador visa fundamentalmente evitar a que se atinja a fase da sentença sem qualquer controlo sobre a admissibilidade da apreciação do mérito da causa e que, por isso, se possa frustrar a função essencial dessa sentença.
É certo que, em certas condições, a apreciação desse mérito pode ser antecipada para o despacho saneador: o tribunal pode fazê-lo nesse despacho “sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória” (art. 595, nº 1 al. b) do CPC).
Portanto, o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objeto da ação. De maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final.
No caso, o despacho saneador, por entender que o processo continha já todos os elementos indispensáveis ao conhecimento do mérito do pedido, conheceu logo dele, julgando-o improcedente.
É curial que a decisão jurisdicional seja pronta; mas é igualmente conveniente que seja justa.
Em nítida obediência aos princípios da celeridade e da economia processuais, a lei quer que o mérito da causa seja arrumado logo no saneador. Mas não sacrificou a esses princípios outras exigências também axiologicamente relevantes. O mérito da causa será julgado no despacho saneador tão-somente se a questão puder ser decidida nesse momento, ou seja se essa apreciação, segundo as vários enquadramentos jurídicos possíveis do seu objeto, não demandar a produção de mais provas e, portanto, poder, com inteira justificação, ser antecipada para o despacho saneador.
Não é essa, todavia, a situação vertente.
Com efeito, as considerações supra expendidas revelam a existência de factos controvertidos carecidos de prova, com indiscutível relevância para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, isto é, segundo todos os possíveis enquadramentos jurídicos do objeto da ação.
Portanto, contrariamente ao afirmado no ato decisório sob censura, o processo não possibilitava o conhecimento imediato do mérito do pedido, logo no despacho saneador. Se os elementos fornecidos pelo processo não justificavam essa antecipação – por existir outra solução plausível da questão de direito - é meramente consequencial a revogação desse despacho e a sua substituição por outra decisão que ordene o prosseguimento da causa.
***
V- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em revogar a decisão recorrida, determinando a sua substituição por outra que ordene, como for de direito (inclusive operando convite ao suprimento das insuficiências na concretização da matéria de facto alegada no concernente ao nexo causal), o prosseguimento da instância.
Custas pela parte vencida a final.

Porto, 5.12.2016
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Sousa Lameira
___
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Cfr., por todos, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, págs. 418 e seguintes; ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, págs. 367 e seguintes e GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, págs. 215 e seguintes.
[3] Aí se escrevendo que «mesmo provando-se todos os factos alegados pelo autor na petição inicial, o réu C… não poderia, nem pode, ser responsabilizado pelo alegado dano de €76.000,00 que o autor alega ter sofrido, pois não há nexo de causalidade entre a conduta do réu e o referido dano».
[4] Para uma análise do atual regime do notariado, vide, inter alia, ALBINO MATOS, O estatuto natural do notário, in Temas de Direito Notarial, págs. 181 e seguintes e MÓNICA JARDIM, in Escritos de Direito Notarial e Registal, págs. 25 e seguintes, passim.
[5] Tem-se, de facto, entendido que a função do notário é de exercício privado, uma vez que nela vão indissociavelmente ligados aspetos de interesse privado, em causa estão relações privadas, dos particulares entre si, não qualquer relação indivíduo-Estado, ou seja, interesses somente privados que os respetivos sujeitos particulares dispõem ou regulamentam, como entendem, exercendo a autonomia privada.
[6] Sendo que para uma correta e diligente realização desse controlo, o notário deve, por mor do disposto no nº 2 do art. 38º do DL nº 27/2006, “estudar com cuidado e tratar com zelo as questões que lhe são solicitadas no exercício das suas funções, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e atividade”.
[7] Isso mesmo é posto em evidência por MÓNICA JARDIM, A segurança jurídica preventiva como corolário da atividade notarial, in Escritos de Direito Notarial e Direito Registal, págs. 7-17, onde sublinha que a função do notário (latino), com o seu amplo conteúdo de assessoria, assegura a realização pacífica e espontânea do Direito, prevenindo futuros litígios baseados no desconhecimento do ordenamento jurídico. A certeza que acompanha a intervenção notarial, gera verdade, credibilidade, confiança e, assim, segurança jurídica.
[8] Cfr., sobre a caracterização das normas de proteção, inter alia, ADELAIDE MENEZES LEITÃO, Normas de proteção e danos puramente patrimoniais, págs. 569 e seguintes e MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II Direito das Obrigações, tomo 3º, págs. 448 e seguintes, que ressalta o facto de este tipo de normas serem hoje entendidas como “correias de transmissão” de valores apurados, noutros âmbitos jurídicos, para o domínio aquiliano.
[9] Na expressão de MAIA RODRIGUES, A responsabilidade civil dos notários, in Boletim dos Registos e do Notariado nº 2/2003, pág. 20, o qual salienta igualmente que, não raras vezes, as partes recorrem ao notário levando consigo apenas “o problema a resolver”, alguns documentos que lhe confiam e esperam que seja este a encontrar a solução legal que se aproxime o mais possível dos efeitos práticos pretendidos.
[10] Sendo de registar, contudo, que a doutrina pátria (cfr., por todos, MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, pág. 297, ALMEIDA COSTA, ob. citada, pág. 563 e ANTUNES VARELA, ob. citada, pág. 533) vem considerando que a inobservância de uma norma deste tipo somente legitimará a reclamação de uma indemnização caso se mostre preenchida uma grelha de requisitos relativa à sua aplicação, concretamente: i) exige-se, em primeiro lugar, que alguém tenha desrespeitado determinado comando, sem o que não haverá base para estabelecer o juízo de ilicitude; ii) exige-se que o fim da norma consista especificamente na tutela de interesses particulares e não do interesse geral - se a norma for dirigida a proteger o interesse público e só reflexamente atingir interesses particulares, estará naturalmente excluída a possibilidade de um particular exigir indemnização -; iii) finalmente, exige-se que o dano se verifique no círculo de interesses que a norma visa tutelar.
[11] Cfr., ANTUNES VARELA, ob. citada, págs. 919/920 e 928 a 930.
[12] Cfr., por todos, acórdãos de 17.04.07 (processo nº 07A701), de 13.01.05 (processo nº 04B4063), de 11.01.11 (processo nº 2226/07-7TJVNF.P1.S1) e de 4.12.12 (processo nº 714/09.0TVLSB.L1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[13] Ob. citada, pág. 924.
[14] Ob. citada, pág. 763 e seguintes.
[15] Assim, MENEZES CORDEIRO, Da responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, págs. 532 e seguintes e MENEZES LEITÃO, A responsabilidade do gestor perante o dono do negócio no Direito Civil Português, págs. 281 e seguintes e, do mesmo autor, Direito das Obrigações, vol. I, pág. 327.
[16] In Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, pág. 269 e seguintes, onde dá nota que parte da doutrina entende, no caso das leis de proteção, que há razões particulares para pôr de lado o requisito da adequação, deixando atuar isoladamente a ideia do fim de proteção da norma.
[17] Ob. citada, págs. 276 e seguintes, maxime fls. 280.
[18] Como emerge do nº 4 do art. 590º do Cód. Processo Civil, o articulado deficiente é aquele que apresenta insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada, isto é, é aquele que contém uma exposição de facto que é inconcludente e que, portanto, não é suficiente para assegurar a procedência do pedido.
[19] Como adverte TEIXEIRA DE SOUSA, In Omissão do dever de cooperação do Tribunal: que consequências?, pág. 7 e seguinte, disponível no blog do IPPC, a omissão do poder-dever que compete ao tribunal por força do disposto no art. 590º do CPC “constitui, nos termos do art. 195º, nº 1 do mesmo diploma, uma nulidade processual (decorrente, naturalmente, de uma omissão do tribunal)”, acrescentando, com o concordamos, que “o que o tribunal não pode é deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado e, mais tarde (no despacho saneador ou na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado”.