Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MANUEL DOMINGOS FERNANDES | ||
Descritores: | EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA FALTA DE CITAÇÃO DO CÔNJUGE DO EXECUTADO ANULAÇÃO DA VENDA | ||
Nº do Documento: | RP2024071015990/18.9T8PRT-D.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - Nas execuções para pagamento de quantia certa a falta de citação do cônjuge do executado tem por efeito a anulação de todo o processado após a efetivação da penhora, sem prejuízo das vendas, adjudicações, remições e pagamentos já realizados, nos termos prescritos no n.º 6 do art.º 786.º do CP Civil. II - A justificação é linear: entre o interesse do cônjuge do executado ou do credor prejudicado pela falta de citação e o interesse do comprador, adjudicatário, remidor ou interessado que obteve um pagamento a lei dá prevalência a estes últimos interesses. III - Não se verifica a factie species do nº 6 do citado normativo se, ainda que formalmente o bem imóvel não tenha sido adquirido pela sociedade exequente, mas antes por sociedade materialmente sem qualquer autonomia em relação àquela, porquanto foi constituída exclusivamente para “parquear” os imóveis adquiridos da mesma, ela foi a exclusiva beneficiária da venda do imóvel penhorado nos autos e não existam credores reclamantes cujos interesses tenham de ser salvaguardados. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo nº 15990/18.9T8PRT.P1-Apelação Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Execução do Porto-J4 Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes 1º Adjunto Des. Drª Fátima Almeida Andrade 2º Adjunto Des. Dr. José Eusébio Almeida Sumário: ……………………………… ……………………………… ……………………………… * Acordam no Tribunal da Relação do Porto:I-RELATÓRIO Nos autos de execução sumária que a Banco 1..., Empresa Bancária Av. ..., n.º ... move contra AA, residente na Rua ..., ..., ..., Gondomar, veio BB, invocando a qualidade de cônjuge da aqui executada, arguir a nulidade por não ter sido feita pela Sra. AE a sua citação, nos termos do disposto no art.º 786.º, n.º 1, al. a), do CPC. * A Sra. AE e a interveniente/adquirente do imóvel ofereceram oposição, como consta dos autos, pugnando pelo indeferimento da nulidade invocada.* Conclusos os autos foi proferida decisão que julgou improcedente a nulidade invocada.* Não se conformando com o assim decidido veio a o Requerente interpor o presente recurso concluindo da seguinte forma:I. Como resulta dos presentes autos, a arguição de nulidade é fundada necessariamente e sobretudo da circunstância de o mesmo não ter sido citado para os termos da presente ação executiva, já que o imóvel penhorado e vendido constitui a sua casa de morada de família, o que vai contra a decisão tomada pelo a quo o que com o devido respeito, carece de senso jurídico e sobretudo de fundamentação válida e convincente para a comunidade jurídica assim como o próprio entendimento do Apelante que se viu privado da possibilidade de se pronunciar quanto à penhora e posterior ; II. O despacho recorrido já confirmou a nulidade arguida pelo aqui Apelante; III. Não obstante esse reconhecimento, o despacho recorrido entendeu que tal nulidade não acarretava a anulação da venda do imóvel penhorado por existirem outros interesses de terceiros a salvaguardar. IV. Designadamente, do Adquirente do imóvel, Adquirente esse que já reconheceu expressamente ser contemporaneamente Exequente cf. requerimento seu junto aos autos com a ref.ª n.º 44878057, datado de 02.03.2023, e do único Credor Reclamante Graduado em primeiro lugar, o qual atualmente inexiste, por força de créditos fiscais referentes ao Imposto Municipal Sobre Imóveis dos anos de 2016 e 2017, já terem sido voluntariamente liquidados pela Executada, conforme informação que consta dos autos a fls com a ref.ª n.º 39012985, datado de 12.05.2024 e 6 (seis) documentos emitidos pela AT, juntos sob doc. n.º 1 (um) a 6 (seis), ambos para efeitos de exclusão do art.º 786.º, n.º 6 do CPC; V. Desta forma, no caso em apreço e ao contrário do entendimento plasmado no despacho recorrido, não há quaisquer interesses de terceiros a salvaguardar, porquanto a entidade Adquirente do imóvel é materialmente a mesma entidade que figura como Exequente nesta ação executiva; VI. Por outro lado, como sobredito no caso dos autos também não existem credores reclamantes cujos interesses tenham de ser salvaguardados, porquanto o (único) credor que reclamou créditos, já viu o seu crédito voluntariamente satisfeito pela aqui Executada muito tempo antes da venda do imóvel; VII. Pelo exposto in casu não se verificando a previsão normativa do citado art.º 786.º, n.º 6, 2.ª parte do CPC, que exime da anulação as vendas, adjudicações, remições ou pagamentos já efetuados, justamente porque a Exequente foi a sua exclusiva beneficiária, sendo indivisivelmente a mesma entidade que a nestes autos Adquirente; VIII. Assim sendo, a consequência da nulidade da falta de citação do cônjuge da Executada (nulidade essa que o despacho recorrido já reconheceu) é a prevista no art.º 195.º, n.º 2 do CPC, não sendo aqui aplicável a norma especial contida no art.º 786.º n.º 6, 2.ª parte do CPC, porquanto, como se disse, a sociedade Exequente foi a exclusiva beneficiária da venda do imóvel penhorado e não havia credores reclamantes cujos créditos houvessem de ser salvaguardados; IX. A norma contida no citado art.º 786.º, n.º 6, 2.ª parte do CPC, na interpretação efetuada no despacho recorrido, abstrai-se totalmente da circunstância de, no caso concreto, não existirem interesses de terceiros que sejam necessários proteger, o que leva a um resultado puramente formalista e, por isso, materialmente injusto; X. Ao fazê-lo, o Tribunal salvo melhor entendimento, não analisou, oportunamente a matéria dos autos, ao invocar uma exceção fundado em pretensos terceiros, invocando a previsão do art.º 786.º n.º 6, 2.ª parte do CPC, e afastando as normas previstas nos art.ºs 786.º n.º 1 ex vi n.º 6, 1.ª parte e 787.º n.º 1, ambos do CPC, sem que verdadeiramente existam, deixou por via disso, simultaneamente, de conhecer os factos alegados pelas partes, alicerçando-se somente na sua convicção pessoal, subjetiva e sobretudo discricionária, o que se revela manifestamente injusto, face ao já declarado total desconhecimento do Apelante, tudo ocasionado pelo lapso da Sr.ª AE. XI. E isto porque tal interpretação abstrai-se da ratio legis de tal norma que é, sim, a de proteger interesses de terceiros, mas desde que esses interesses existam, de facto, no caso concreto, o que não sucede nestes autos. XII. Esta interpretação é materialmente inconstitucional, por violação dos comandos ínsitos nos art.ºs 1.º, 3.º n.º 3, 12.º n.º 1, 13.º, 18.º, 20.º n.ºs 1, 4 e 5, 22.º, 36.º, 62.º n.º 1, 65.º n.º 1, 67.º e 202.º n.º 2, todos da CRP uma vez que constitui uma compressão intolerável dos direitos à soberania e legalidade, universalidade, igualdade, acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, responsabilidade das entidades públicas, à propriedade privada, à habitação, à família e viola o dever de os tribunais assegurarem a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, sendo que a República Portuguesa é um Estado de Direito, em cuja CRP constitui a trave mestra do ordenamento jurídico, e por isso todos eles têm de ser constitucionalmente garantidos ao aqui Apelante. XIII. Com efeito, não existindo in casu outros interesses a proteger - para além do direito da Exequente à satisfação do seu crédito, o qual já se encontra integralmente cumprido; XIV. Pelo que nenhuma razão existe para não operar em toda a sua plenitude os efeitos da declaração de nulidade decorrente da total omissão da citação do ora Apelante no exercício dos seus direitos de defesa quanto à casa de morada de família, a qual configura uma dimensão essencial da constituição, desenvolvimento e plena comunhão de vida de qualquer agregado familiar, de que este não é exceção. XV. Tal como se retira dos autos e consta como assente no douto despacho recorrido, o imóvel em causa constitui bem próprio da Executada, pelo que a mesma, no decurso da presente execução, para preservação da saúde do marido e por convicção própria, sempre tentou resolver sozinha este assunto, sem envolver os seus familiares, particularmente aquele, convicta de que o iria lograr com êxito; XVI. Por essa razão, só na iminência da entrega do imóvel é que a Executada acabou por colocar o seu cônjuge ao corrente da situação que o mesmo desconhecia de todo - altura em que o ora Apelante, de imediato, arguiu a nulidade da sua falta de citação; XVII. Não impendia, nem impende, sobre a ora Executada qualquer obrigação legal de dar conhecimento ao seu cônjuge daquela realidade; XVIII. Ademais, o que se apela aqui é a manifestação de um direito do marido da Executada, e não daquela, e para tal o Apelante manteve-se nesse âmbito em total desconhecimento destes autos, o qual nunca teve qualquer contacto ou informação referente ao processo até à data de arguição da nulidade invocada, o que já viu reconhecido e ora almeja que os seus subsequentes direitos não sejam postergados; XIX. A citação do cônjuge do Executado pressupõe que o mesmo não é Executado e que é admitido a intervir na execução para defesa de direitos seus, não podendo ser afetados os seus poderes processuais; XX. Já sobre a Sr.ª Agente de Execução impendia a obrigação legal de proceder à citação do cônjuge da Executada para exercício desses direitos, por estar em causa a casa de morada de família, ato que omitiu por completo e sendo certo que tal omissão também não foi, por qualquer forma, colmatada no decurso destes autos. XXI. Pelo que incumbe a V. EX. com todo o respeito que nos merecem, repor a legalidade referente ao ato omitido, ordenando a revogação do despacho proferido pelo tribunal a quo determinar a (omitida) citação do Apelante, na qualidade de cônjuge da Executada AA, devendo anular-se todos atos subsequentes, incluindo a venda do imóvel penhorado, cuja entrega deverá ser suspensa de imediato, por omissão de uma formalidade essencial, e admitir o Apelante a deduzir, no prazo de 20 dias, oposição à penhora e a exercer, nas fases da execução posteriores à sua citação, todos os direitos que a lei processual confere ao Executado, prosseguindo regularmente estes autos. * Não foram apresentadas contra-alegações.* Foram dispensados os vistos legais.* II- FUNDAMENTOSO objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil. No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir: a)- saber se se encontra, ou não, preenchida a factie species do artigo 786.º, nº 6 do CPCivil. * A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTOÉ a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido: 1.- O referido BB é o cônjuge da aqui executada, sendo casados no regime da separação de bens, desde 26/05/2012, e não foi citado pela Sra. AE, nos termos do disposto no art.º 786.º, n.º 1, al. a), do CPC, por o imóvel penhorado ser bem próprio da executada. 2.- O referido BB e a aqui executada vivem desde 2015 no referido imóvel aqui penhorado, que pertencia apenas à executada, juntamente com os filhos menores, sendo a sua habitação permanente, onde pernoitam, tomam as refeições, recebem os amigos, etc., constituindo o local de habitação de tal agregado familiar. 3.- O leilão eletrónico foi já aqui realizado, tendo sido encerrado em 05/07/2022, tendo sido depois já adjudicado pela Sra. AE em 21/02/2023 o imóvel penhorado aqui vendido, com emissão do respetivo título de transmissão e com o registo a favor da adquirente em 24/02/2023, como tudo consta dos autos. 4.- Por despachos de 05/07/2022, de 04/01/2023 e de 13/04/2023, transitados em julgado, foram já aqui indeferidas as nulidades antes invocadas pela aqui executada, considerando-se válido o leilão realizado. 5.- Foi aqui apresentada reclamação de créditos fiscais pelo Ministério Público, em representação do Estado Português-AT, com graduação em primeiro lugar dos créditos fiscais a favor da AT, como tudo consta da sentença de 25/11/2019 (apenso-B), cujo teor aqui se dá por reproduzido. A estes factos importa ainda acrescentar o seguinte: 6.- O crédito reclamado pelo Ministério Público, no âmbito do processo de reclamação de créditos apenso aos autos de execução referente IMI dos anos de 2016 e 2017, relativo ao imóvel penhorado nos autos e cujo prazo normal de cobrança ocorreu durante os meses de julho e novembro de 2017 e os meses de abril e julho de 2018, respetivamente, foi voluntariamente liquidado pela executada, de forma autónoma ao processo executivo ainda durante o ano de 2022.[1] III. O DIREITO Tal como supra se referiu é apenas uma a questão que cumpre apreciar e decidir: a)- saber se no caso se encontra, ou não, preenchida a factie species do artigo 786.º, nº 6 do CPCivil. Tendo a decisão recorrida concluído pela existência da nulidade, consubstanciada na falta de citação do cônjuge da executada para a execução, o objeto do recurso ficou circunscrito à questão de saber se está, ou não verificada, a factie species do artigo 786.º, nº 6 do CPCivil. Deste entendimento dissente o Requerente alegando, em suma, que ao contrário do entendimento plasmado no despacho recorrido, não há quaisquer interesses de terceiros a salvaguardar, porquanto a entidade adquirente do imóvel é materialmente a mesma entidade que figura como exequente nesta ação executiva, para além de que também não existem credores reclamantes cujos interesses tenham de ser salvaguardados, porquanto o (único) credor que reclamou créditos, já viu o seu crédito voluntariamente satisfeito pela aqui Executada muito tempo antes da venda do imóvel. Quid iuris? Preceitua o artigo 786.º do CPCivil, sob a epígrafe: “Citações” que: - Concluída a fase da penhora e apurada, pelo agente de execução, a situação registral dos bens, são citados para a execução: a) O cônjuge do executado, quando a penhora tenha recaído sobre bens imóveis ou estabelecimento comercial que o executado não possa alienar livremente, ou quando se verifique o caso previsto no n.º 1 do artigo 740.º. (…) Ora, no caso dos autos, foi penhorado um imóvel que, sendo embora um bem próprio da executada e vigorando entre esta e o ora requerente o regime de bens de casamento da separação de bens, constitui a casa de morada de família do casal da aqui executada (cf. ponto 2. dos factos provados), pelo que se trata de um bem que a executada não podia alienar livremente (cfr. artigo 1682.º-A, nº 2 do CCivil) e, nessa medida, teria necessariamente o cônjuge da executada de ser citado para a presente execução (nos termos do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 786.º do CPC) para aí exercer os direitos que o referido artigo 787.º, nº 1 do CPC lhe confere (deduzir, no prazo de 20 dias, oposição à penhora e a exercer, nas fases da execução posteriores à sua citação, todos os direitos que a lei processual confere ao executado.). Com tal citação, este cônjuge passa a ter um estatuto paralelo ao do próprio executado (cf. art.º 787.º do CP Civil), podendo deduzir oposição à penhora e exercer todos os demais direitos que a lei processual confere ao executado.[2] Contudo, a falta da sua citação não tem os efeitos gerais decorrentes dos art.º 186.º e ss. do CPCivil, cabendo-lhe um regime especial, nos termos do nº 6 do citado artigo 786.º que estipula que: (…) 6- A falta das citações prescritas tem o mesmo efeito que a falta de citação do réu, mas não importa a anulação das vendas, adjudicações, remições ou pagamentos já efetuados, dos quais o exequente não haja sido exclusivo beneficiário; quem devia ter sido citado tem direito de ser ressarcido, pelo exequente ou outro credor pago em sua vez, segundo as regras do enriquecimento sem causa, sem prejuízo da responsabilidade civil, nos termos gerais, da pessoa a quem seja imputável a falta de citação. Escreve a este propósito Rui Pinto:[3] “(…) esta anulação é relativa ou restrita. Assim, em primeiro lugar, relativamente aos atos executivos, a anulação tem somente por objeto os atos de que o credor exequente haja sido “beneficiário exclusivo”. Será beneficiário exclusivo o exequente a quem couber em pagamento todo o preço da coisa adquirida por terceiro ou que foi comprador ou adjudicatário do bem, sem que sobrevenham preferências ou remissões. Esta anulação é possível porque não tem que ter em linha de conta a proteção dos direitos de terceiros adquirentes ou de outros credores. A contrario não se anulam as “vendas, adjudicações, remições ou pagamentos já efetuados, dos quais o exequente não haja sido exclusivo beneficiário”. Por outras palavras, anular-se-ão as vendas, adjudicações, remições ou pagamentos já efetuados “se os bens forem adquiridos pelo exequente e para ele houver revertido todo o seu produto” (ANSELMO DE CASTRO), mas, ao contrário, já não se anularão esses atos se (i) os credores reclamantes beneficiarem de algum dos modos de pagamento (cf. Artigo 795 nº 1) ou se (ii) terceiros exercerem o direito de remição sobre os bens (cf. artigo 842º). Visa-se, assim, por um lado, a proteção do adquirente dos bens, estranho à execução, e, indiretamente, a segurança da venda; e, por outro lado, a proteção dos credores a quem tenham já sido liquidados os seus créditos”. A interpretação deste preceito é absolutamente linear e tem sido feita de forma coincidente pela doutrina e pela jurisprudência. Aliás, a respetiva justificação é facilmente percetível: entre o interesse do cônjuge do executado ou do credor prejudicado pela falta de citação e o interesse do comprador, adjudicatário, remidor ou interessado que obteve um pagamento a lei dá prevalência a estes últimos interesses. Como referem Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo[4] “Compreende-se esta limitação imposta pelo legislador. Ao fazer depender a manutenção das vendas e de outros atos processuais da circunstância de não ter sido e exequente o exclusivo beneficiário, pretende-se tutelar os legítimos interesses e direitos das outras partes processuais e dos terceiros de boa-fé.” Ou, no mesmo sentido, Marco Gonçalves[5] “Com efeito, conforme tem vindo a ser pacificamente entendido pela jurisprudência, esta regra visa proteger o adquirente do bem vendido em sede executiva–o qual é alheio a esta anomalia processual–e, indiretamente, acautelar a posição dos credores reclamantes a quem já tenham sido liquidados os seus créditos.” Isto dito, decorre dos autos que a inicialmente exequente “Banco 1..., S.A.” cedeu o seu crédito, objeto da presente execução, à sociedade “A...”, a qual foi habilitada nestes autos como cessionária do crédito da exequente, por decisão transitada em julgado. Nessa medida e nos termos legais, a sociedade “A...” passou a ocupar, na presente lide, a qualidade de exequente em substituição da “Banco 1..., S.A.” [cfr. artigos 262.º, al. a) e 263.º do CPCivil]. Tal como também decorre dos autos, a entidade que formalmente adquiriu o imóvel penhorado nos autos foi a sociedade “B..., SA. Acontece que, a referida adquirente mais não é de que “um veículo criado pela A... para “adjudicar” os imóveis com hipoteca registada a seu favor em sede de processos judiciais ou extrajudiciais”, “Não podendo a A... agir no pleno gozo dos seus direitos na qualidade de Exequente nos autos, sem a intervenção da B..., S.A.”, conforme admitido pela própria exequente “A...” no requerimento que juntou aos autos a 02/03/2023 (refª. N.º 44878057), declarações que não foram retiradas dos autos (cf. artigos 46.º e 465.º, nº 2 do CPCivil) e cujo teor é o seguinte: “A..., Exequente nos autos à margem identificados, em que é Executada AA, notificada do despacho proferido a 14-02-2023 (Refª 445182943), vem, muito respeitosamente, expor e requerer o seguinte: 1. Nos termos da Declaração de Constituição da A... a mesma tem como objeto a aquisição, detenção, administração e alienação de participações e todos os interesses sobre qualquer forma em sociedades na Irlanda e no estrangeiro ou em outras entidades, empresas ou investimentos, aquisição por compra, subscrição ou por qualquer outro meio, mesmo a cessão por venda troca ou outro meio de ações, obrigações, certificados de dívida, títulos obrigacionistas, créditos, empréstimos, participações em empréstimos, certificados de depósitos ou qualquer outro tipo de valores mobiliários, instrumentos ou ativos financeiros bem como a detenção, administração, desenvolvimento e administração da sua carteira, cfr. doc. 1 que ora se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais; 2. Ou seja, o objeto da A... é conhecido como a compra e venda de non-performing loans; 3. No caso em apreço, a A... comprou uma carteira de non-performing loans à Banco 1...; 4. Por sua vez, a B..., S.A., destina-se à compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, bem como a administração dos imóveis propriedade da sociedade, incluindo o seu arrendamento, e quaisquer outros atos ou transações diretamente relacionadas com as mencionadas atividades, cfr. doc. 2 que ora se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais; 5. Ora, como podemos observar, o objeto de ambas as sociedades complementam-se; 6. Não podendo a A... agir no pleno gozo dos seus direitos na qualidade de Exequente nos autos, sem a intervenção da B..., S.A.; 7. Por um lado, a A... adquire as carteiras de non performing loans; 8. E, por outro, a B..., S.A. compra imóveis com hipoteca registada a favor da A..., quando processualmente se justifica a sua aquisição, o que no caso em apreço se verificou; 9. Nesse sentido, não estando no escopo social da A... a compra de imóveis, a B..., S.A. é um veículo criado pela A... para “adjudicar” os imóveis com hipoteca registada a seu favor em sede de processos judiciais ou extrajudicialmente; 10. E apenas o faz no estrito benefício de que tal possa oferecer à A..., ou seja, a B..., S.A. apenas apresenta propostas em situações cuja compra é benéfica para a primeira ou, como no caso em apreço, em situações de estrita necessidade; 11. Relembre-se que, nos presentes autos, desde o início das diligências de venda, ou seja, desde 2019, apenas houve 2 propostas, uma delas a da B..., S.A., sendo que a proposta anterior não se concretizou face à não concretização do depósito do preço; 12. De facto, verifica-se que desde a primeira diligência de venda até à proposta apresentada pela B..., S.A. decorreram cerca de 3 (três) anos; 13. Pelo que, com vista à breve resolução do presente processo, que já deu entrada em 12/07/2018, a B..., S.A. apresentou proposta para aquisição do imóvel penhorado nos presentes autos; 14. Proposta essa, superior ao valor mínimo indicado pelas partes, e aceite pelo douto tribunal, indeferindo o requerido pela executada; 15. Com efeito, a B..., S.A. apresentou proposta de aquisição do imóvel penhorado por valor superior ao valor mínimo e igualmente superior ao valor da quantia exequenda, isto é, ao valor de €271.993,10 (duzentos e setenta e um mil novecentos e noventa e três euros e dez cêntimos), não existindo neste sentido qualquer conflito de interesses; 16. Conforme o exposto, se requer desde já a V/Exa. que se digne a prosseguir com os trâmites normais dos presentes autos, uma vez que não existe qualquer desconformidade jurídica/legal na aquisição por parte da sociedade B..., S.A.”.[6] Daqui resulta que as sociedades “B..., S.A.” e “A...” só formalmente se apresentam como entidades distintas entre si, não tendo a sociedade “B..., S.A.”, materialmente, qualquer autonomia em relação à sociedade “A...”, porquanto foi constituída exclusivamente para “parquear” os imóveis adquiridos para a sociedade ora exequente, pelo que não pode tal sociedade “B..., S.A.” ser considerada um terceiro alheio ao presente processo executivo e às suas vicissitudes, designadamente, alheia à total falta de citação do ora requerente para os termos da presente ação. Verifica-se, assim, que quem, efetivamente, adquiriu o imóvel penhorado nestes autos foi a exequente “A...”, tendo simplesmente, para esse efeito, utilizado/servindo-se da sociedade “B..., S.A.” (que faz parte do seu grupo económico) uma vez que o seu objeto social não está vocacionado para a compra e venda de imóveis (mas apenas para compra e venda de non-performin loans), conforme explicitado pela no requerimento supratranscrito. Diante do exposto torna-se incontornável a conclusão de que foi a aqui exequente “A...” a exclusiva beneficiária da venda do imóvel penhorado, o que a mesma confessa expressamente nos autos ao referir que: “(…) apenas o faz no estrito benefício de que tal possa oferecer à A..., ou seja, a B..., S.A. apenas apresenta propostas em situações cuja compra é benéfica para a primeira ou, como no caso em apreço, em situações de estrita necessidade”. * Por outro lado, não existem credores reclamantes cujos interesses tenham de ser salvaguardados, pois que o credito reclamado pelo Ministério Público em representação do Estado (AT), já se encontrava pago desde 2022 (cf. ponto 6. dos factos provados). * Como assim, torna-se evidente não se encontrar preenchida a factie species do nº 6 do citado artigo 786.º do CPCivil, que exime da anulação as vendas, adjudicações, remições ou pagamentos já efetuados, justamente porque, in casu, a exequente “A...” foi a sua exclusiva beneficiária. * Assim sendo, a consequência da nulidade da falta de citação do cônjuge do executado é a prevista no artigo 195.º, nº 2 do CPCivil. Na verdade, no caso vertente, o cumprimento da obrigação legal de citação do cônjuge da executada (nos termos e para os efeitos supratranscritos) foi totalmente omitido, quer por parte da Sra. Agente de Execução nomeada nos autos, quer por parte do Tribunal recorrido. Tal omissão configura falta de citação, para efeitos do disposto no artigo 188.º, nº1, al. a) do CPC (há falta de citação quando o ato tenha sido completamente omitido), e gera nulidade absoluta e insuprível, nos termos do artigo 187.º, al. a), do mesmo diploma legal, a qual é, aliás, do conhecimento oficioso do tribunal ao abrigo do artigo 196.º do mesmo compêndio normativo. * Diante do exposto devem, pois, ser anulados todos os atos praticados subsequentes ao ato omitido (citação do cônjuge da executada), incluindo a venda do imóvel penhorado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195.º, nº 2, 1ª parte do CPCivil, devendo igualmente ser suspensa, de imediato, a ordenada entrega do imóvel. * Procedem, desta forma, as conclusões formuladas pelo apelante e, com elas, o respetivo recurso.* IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta procedente por provada e, consequentemente, revogando a decisão recorrida, anulam-se todos os atos praticados subsequentes ao ato omitido (citação do cônjuge da executada), incluindo a venda do imóvel penhorado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195.º, nº 2, 1ª parte do CPCivil, devendo igualmente ser suspensa, de imediato, a ordenada entrega do imóvel. * Custas da apelação pelo apelante que do recurso tirou proveito (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).* Porto, 10/7/2024Manuel Domingos Fernandes Fátima Andrade (dispensei o visto) José Eusébio Almeida (dispensei o visto) _________________ [1] Cfr. documentos emitidos pela Autoridade Tributária juntos pela executada com o requerimento impetrado em 12/05/2024. Num dos referidos documentos (o que a seguir se reproduz) atesta-se que o pagamento efetuado pela executada se refere aos créditos reclamados pelo Ministério Público. Nestes casos a Relação, limita-se a aplicar as regras vinculativas extraídas do direito probatório, devendo integrar na decisão o facto que considere provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado, pois que, nos termos do artigo 663.º, nº 2 do diploma citado, aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para a elaboração da sentença, entre as quais se insere o artigo 607.º, nº 3 do mesmo diploma legal, norma segunda a qual o juiz, na fundamentação, toma em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência. [2] Para mais desenvolvimentos, veja-se José Lebre de Freitas in A Acção Executiva à luz do código de processo civil de 2013, 7.ª Edição, Gestlegal, pág. 166, que defende que, após a citação, o cônjuge do executado passa a assumir a posição de uma parte principal. [3] A Ação Executiva, 2018, AAFDL Editora, págs. 788/789. [4] In A Acção Executiva Anotada e Comentada, 2017, 2.ª Edição, Almedina, pág. 414. [5] In Lições de Processo Civil Executivo, 3.ª Edição, Almedina, pág. 451. [6] Requerimento que foi apresentado na sequência da notificação para efeito e decorrente do requerimento que nos autos foi apresentado pela executada em 18/01/2023 do seguinte teor: “AA, Executada no processo à margem referenciado, Tendo sido notificada a fls., Vem mui respeitosamente comunicar a V. Exa. que, ainda não obteve resposta do Exequente relativamente à questão apresentada no requerimento enviado a 9/11/2022, nomeadamente: Pretende esclarecimentos, sobre a Empresa “B..., S. A.”, uma vez que, esta é detida, na totalidade do Capital Social, por empresa veículo holandesa que firma C... B.V., esta por sua vez é detida por outra empresa veículo holandesa que firma D... B.V., esta é ainda detida pela empresa mãe de nacionalidade holandesa que firma E... U.A., sociedade veículo detida indiretamente por fundos sob gestão da F.... (“Grupo F...”), GRUPO ONDE SE INCLUI A EXEQUENTE IRLANDESA QUE FIRMA A.... É, aliás do conhecimento público (vide Registos Oficiais irlandeses), que a EXEQUENTE serviu de garante às obrigações da Proponente em contrato de financiamento assinado junto de entidade bancária. Toda esta atuação é manifestamente duvidosa, nomeadamente o próprio valor de mercado atribuído ao imóvel que é bastante abaixo do real. Pelo exposto, requer a V. Exa. que, seja a Exequente notificada para se pronunciar sobre o assunto infra” |