Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9148/20.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL FERREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
ATUALIZAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
Nº do Documento: RP202407109148/20.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Mostra-se adequada e equitativa a quantia de € 35.000,00 atribuída a título de indemnização pelo défice funcional permanente, o denominado “dano biológico”, a um lesado com 19 anos de idade à data da consolidação das lesões, com um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 4 pontos, sendo as sequelas compatíveis com o exercício da actividade habitual (analista de sistemas), mas implicando esforços suplementares por dor de baixo grau no punho e 5º dedo da mão direitos aquando da utilização repetida do rato de computador.
II – Igualmente se mostra adequada e equitativa a quantia de € 30.000,00 a título de compensação pelos danos não patrimoniais do mesmo lesado, que sofreu fractura exposta da diáfise do cúbito direito, fractura de M1 e M2 e de F1 de D3 da mão direita, esfacelo da mão (face cubital) e punho distal (face cubital), ficou com dificuldades de utilização da mão direita, sendo destro, na execução de algumas tarefas profissionais e actividades pessoais e de lazer, deixou de jogar futsal (era guarda-redes e atleta federado), e apresenta cicatrizes na mão direita, fixando-se o quantum doloris no grau 4/7, o dano estético no grau 4/7 e a repercussão nas actividades desportivas e de lazer no grau 2/7.
III – A decisão actualizadora a que se refere o acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2002 é aquela que expressamente indica que utilizou, no cálculo da indemnização, o critério da diferença e considerou, no valor encontrado, a compensação pela desvalorização do valor da moeda.
IV – Sendo dois os veículos responsáveis pela ocorrência do acidente de viação e, consequentemente, pelos danos sofridos pelo A., que seguia como passageiro num deles, cada uma das seguradoras respectivas é responsável perante o lesado pela totalidade da indemnização, uma vez que a sua responsabilidade é solidária, interessando a proporção da responsabilidade apenas para as relações internas entre os co-obrigados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 9148/20.4T8PRT.P1
(Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 7)

Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Maria Manuela Machado
2ª Adjunta: Francisca Mota Vieira
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I AA intentou, no Juízo Central Cível do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, acção declarativa, com processo comum, contra “A... – Companhia de Seguros, S.A.”, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de € 80.000,00, as quantias “a liquidar em execução de sentença ou ampliação do pedido relativo às despesas inerentes à necessidade de ajudas técnicas”, conforme alegado no art. 142º da petição inicial, e os juros moratórios, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou para tal ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais no referido montante, bem como necessitar de utilizar no futuro cremes de protecção solar na zona das cicatrizes e poder necessitar de proceder à extracção do material de osteossíntese, na sequência de acidente de viação em que foram intervenientes o veículo automóvel em que seguia como passageiro, segurado na Ré, e dois outros veículos automóveis, cuja responsabilidade imputa ao condutor do veículo em que seguia.
A R. contestou, impugnando parcialmente os factos atinentes à dinâmica do acidente, cuja responsabilidade imputa em parte ao condutor do veículo seu segurado e em parte a outro dos veículos intervenientes, “sem prejuízo da assumpção da responsabilidade de reparação dos danos perante o Autor, nos termos do artigo 497.º, n.º 1 do Código Civil e sem prejuízo do direito de regresso contra o terceiro co-responsável”, e os factos respeitantes aos danos alegados.
Foi dispensada a realização da audiência prévia, foi elaborado despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Procedeu-se seguidamente a julgamento.
Após, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar a R. a pagar ao A. a quantia de € 33.750,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar da citação até integral pagamento, bem como metade do valor da eventual extracção do restante material de osteossíntese a liquidar oportunamente nos termos do art. 609º, nº 2, do C.P.C., absolvendo-a do demais peticionado.
Desta decisão veio o A. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«I. O presente recurso vai interposto contra a douta sentença, que julgou a presente ação de processo comum parcialmente procedente, designadamente, contra aquele segmento que entendeu que a responsabilidade da seguradora recorrida se deverá limitar à medida da culpa que foi atribuída do seu segurado;
II. Salvo o devido respeito, entende o Recorrente que a decisão recorrida incorreu em manifesto erro de julgamento, já que, como sabemos, havendo vários responsáveis pelos danos, será solidária a sua responsabilidade (vide art. 497.º, n.º 1 do CC);
III. No caso em concreto, o tribunal a quo fixou a responsabilidade de cada um dos condutores dos veículos intervenientes no acidente de viação sub judice, em 50%;
IV. Pelo que, como nos presentes autos apenas está demandada a seguradora de um desses veículos que a sentença recorrida veio a considerar como responsável pelo sinistro (à razão de 50%), o tribunal veio a responsabilizá-la “apenas” pelo pagamento de 50% da indemnização fixada;
V. Ora, determina o artigo 497.º, n.º 1 do CC que “Se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade.
VI. Por sua vez, o artigo 519.º, n.º 1 do mesmo diploma legal consagra “O credor tem o direito de exigir de qualquer um dos devedores toda a prestação, ou parte dela, proporcional ou não à quota do interpelado”.
VII. O regime da solidariedade pressupõe que a seguradora tenha de pagar a totalidade da indemnização, mesmo que o seu segurado não seja o único responsável pelo acidente, sem prejuízo de, efetuado esse pagamento, poder exigir dos outros coobrigados aquilo que pagou para além do que lhe competia;
VIII. Mal andou o Tribunal quando não aplicou o princípio da responsabilidade solidariedade constante do artigo 497.º do Código Civil e limitou a indemnização do Recorrente à percentagem de responsabilidade/culpa do segurado da Recorrida;
X. O Tribunal violou ostensivamente as normas constantes dos artigos 497.º, n.º 1 e 519.º, n.º 1 do Código Civil

Nestes termos,
A douta sentença recorrida deve ser revogada, dando-se provimento ao presente recurso e determinando-se a sua substituição por outra que condene a Ré no pagamento ao Autor da totalidade da indemnização fixada, ou seja, no pagamento de € 67.500.00 (sessenta e sete mil e quinhentos euros), acrescido de juros de mora à taxa de 4% ao ano desde a citação até integral pagamento, bem como a totalidade do valor da eventual extração do restante material de osteossíntese a liquidar oportunamente, tudo de acordo com as conclusões supra,

…Como é da mais elementar JUSTIÇA!».
A R. apresentou contra-alegações, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso, e interpôs ainda recurso subordinado da sentença, na parte respeitante aos valores de indemnização fixados na sentença, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«I. A indemnização arbitrada pela incapacidade ou défice funcional permanente de 4 pontos sofrido pelo Autor revela-se totalmente desproporcionada e, até mesmo, violadora dos princípios da equidade e da igualdade quando comparado com outras decisões dos tribunais superiores – veja-se, a título de exemplo, os seguintes acórdãos: Ac. do STJ de 03.02.2022, (proc. nº 24267/15.0T8SNT.L1.S1) (relator Tibério Nunes da Silva); Ac. do STJ de 18.03.2021 (proc. nº 1337/18.8T8PDL.L1.S1 (relator Ferreira Lopes); Ac. do STJ de 21.01.2021 (proc. nº 6705/14.1T8LRS.L1.S1) (relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza); Ac. do STJ de 29.10.2020, (proc. nº 111/17.3T8MAC.G1.S1) (relatora Maria da Graça Trigo), Ac. do STJ de07.03.2019, (proc. nº 203/14.0T2AVR.P1.S1) (relator Tomé Gomes); Ac. do STJ de 30.05.2019 (proc. nº 3710/12.6TJVNF.G1.S1) (relator Bernardo Domingos); Ac. do STJ de 29.10.2019 (proc. nº 7614/15.2T8GMR.G1.S1) (relator Henrique Araújo); Ac. do STJ de 10.12.2019 (proc. nº 497/15.4T8ABT.E1.S1) (Relator António Magalhães) e Ac. do STJ de 10.12.2019 (proc. nº 497/15.4T8ABT.E1.S1).
II. No presente caso temos um sinistrado com 18 anos de idade à data do acidente, com um défice funcional permanente de 4 pontos, sendo este compatível com o exercício da profissão habitual, pelo que o valor a arbitrar ao mesmo não deverá ser superior a € 20.000,00/€22.000,00, requerendo-se, nessa medida, seja a decisão recorrida revogada nesta parte, substituindo-se a mesma por uma outra que determine tais montantes.
III. Também no que tange aos danos não patrimoniais o tribunal recorrido pecou por excesso, arbitrando valor muito superior ao devido atentas as consequências do sinistro para o Autor - quantum doloris de 4/7, repercussão nas actividades físicas e de lazer de grau 4 e dano estético de grau 2 – e tendo uma vez mais por referência decisões de tribunais superiores em situações similares – veja-se os supra referidos acórdãos de 10.02.2022, de 30.05.2019 e de 29.10.2019 e ainda o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 14.12.2017 (proc. nº 589/13.4TBFLG.P1.S1) (relator Fernanda Isabel Pereira); Ac. do STJ de 02.06.2016 (2603/10.6TVLSB.L1.S1) (relator Tomé Gomes). Pelo que, também neste ponto, deverá a sentença recorrida ser revogada, substituindo-se a mesma por decisão fixe tal indemnização em montante não superior a € 15.000,00 a título de danos não patrimoniais.
IV. O montante fixado pelo tribunal recorrido para compensação do Autor pelo protector solar que terá de aplicar nas cicatrizes de que ficou a padecer, para além não ter sido devidamente justificado pelo tribunal, não bastando para o efeito que se diga que tal valor foi fixado por recurso à equidade, é excessivo. Tendo em conta o custo de um protector solar adequado de cerca de € 20,00 por embalagem, a utilização de uma por ano atenta a extensão das cicatrizes e o número de anos de vida que restarão ao Autor, a quantia de € 1.200,00 será suficiente para o efeito.
V. A condenação da ré no pagamento de juros desde a citação sobre os montantes arbitrados a título de dano biológico e de compensação pelo custo do protector solar não faz sentido. Quanto ao primeiro, o tribunal necessariamente teve em consideração um valor atualizado caso contrário não faria referência a um eventual valor remuneratório futuro do Autor. No que se refere ao segundo, tratam-se de despesas futuras, na quais o Autor ainda não incorreu, não podendo a ré ser condenada a pagar juros de mora sobre as mesmas.

TERMOS EM QUE, pela procedência do atrás concluído, o recurso principal deverá ser rejeitado ou, se assim se não entender, deverá então o recurso subordinado ser julgado procedente, reduzindo-se as compensações a pagar ao Autor nos termos atrás concluídos, com o que se fará
JUSTIÇA!».
Não foram apresentadas contra-alegações relativamente ao recurso subordinado.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II – Considerando que o objecto dos recursos interpostos, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas respectivas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar, por ordem lógica de precedência:
a) montantes indemnizatórios atribuídos;
b) responsabilidade solidária da R..
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Vejamos a primeira questão.
São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida (transcrição):
«1. No dia 15 de abril de 2018, pelas 22.30 horas, na Avenida ..., na freguesia ..., concelho de Gondomar, ocorreu um acidente de viação em que intervieram os seguintes veículos, o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-FA, de marca Hyundai, modelo ..., propriedade de BB e conduzido por CC; o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-EZ, de marca Mercedes, modelo ..., conduzido pelo seu proprietário DD, e o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-HZ, de marca Ford, modelo ..., desconhecendo-se a identificação deste condutor.
2. O aqui Autor seguia como passageiro do veículo de matrícula ..-..-FA, sendo transportado gratuitamente.
3. A Avenida ..., no local do sinistro, descreve-se em reta de boa visibilidade, com uma extensão superior a 250 metros, sendo constituída por dois corredores de circulação, cada um afeto ao seu sentido de marcha, sendo um reservado ao sentido norte – sul e o outro reservado ao sentido contrário.
4. O piso era em asfalto e o mesmo estava seco e em razoável estado de conservação.
5. O limite máximo de velocidade naquela artéria era de 50km/h, sendo que junto ao prédio com o número ... de polícia, existe uma passagem para peões (devidamente assinalada) e de entroncamentos, quer à direita, quer à esquerda.
6. Momentos antes de ter ocorrido o acidente de viação em crise nos presentes autos, o veículo de matrícula ..-..-FA transitava pela Avenida ..., no sentido sul – norte, a uma velocidade não concretamente apurada, nunca inferior a 70 Km/h.
7. Os veículos de matrícula HZ e EZ transitavam pela mesma Avenida em sentido contrário ao sentido do FA.
8. Quando o veículo de matrícula FA se aproximava do entroncamento formado pela artéria por onde transitava e a rua ... que se apresentava à sua direita, encontrando-se a cerca de 15 metros desse entroncamento, depara-se com uma manobra de mudança de direção à esquerda realizada pelo condutor do veículo de matrícula HZ, no sentido de aceder à sobredita rua ..., atravessando-se à sua frente.
9. O condutor do veículo de matrícula FA ao ver o seu sentido de marcha obstruído, atrapalhou-se.
10. Perdeu o domínio do veículo que conduzia, vindo a embater com a sua frente lateral direita, na parte lateral direita (sobre a traseira) do veículo de matrícula HZ.
11. Imediatamente após essa colisão, o condutor do veículo de matrícula HZ continuou a sua marcha, colocando-se em fuga.
12. Entretanto, o condutor do veículo de matrícula FA perdeu completamente o controlo do veículo que conduzia, prosseguindo a sua marcha, completamente desgovernado.
13. Acionando o seu condutor o sistema de travagem do seu veículo.
14. Não conseguindo, contudo, evitar um novo embate, entre a sua frente e a frente do veículo de matrícula EZ, que circulava atrás do veículo de matrícula HZ.
15. Ainda antes deste segundo embate, o veículo de matrícula FA deixou marcado no pavimento, um rasto de travagem marcado no pavimento com uma extensão mínima de 31 metros.
16. O proprietário do veículo de matrícula FA, através da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice n.º ..., transferiu a sua responsabilidade civil emergente da circulação do referido veículo para a Ré A..., encontrando-se tal contrato de seguro válido e eficaz na data em que ocorreu o acidente.
17. Como consequência direta e necessária do referido acidente, o aqui Autor sofreu lesões corporais.
18. O Autor conseguiu sair do veículo pelos seus próprios meios e ficou a aguardar a chegada dos meios de socorro na via pública.
19. O Autor queixava-se de fortes dores no seu membro superior direito.
20. E estava bastante angustiado e preocupado.
21. Atenta a gravidade da situação, foram imediatamente acionados os meios técnicos de socorro, tendo sido requerida a presença de uma equipa do INEM pelo CODU (Centro Operacional de Doentes Urgentes).
22. Após a sua chegada, os técnicos do INEM procederam à imobilização do Autor em plano duro.
23. Tendo o A. sido transportada de urgência para o Centro Hospitalar ..., EPE, ..., local onde lhe foram ministrados os devidos cuidados hospitalares.
24. Nessa instituição hospitalar foram-lhe diagnosticadas as seguintes lesões:
i. Fratura exposta da diáfise do cúbito direito;
ii. Fratura de M1 e M2 e de F1 de D3 da mão direita;
iii. Esfacelo da mão (face cubital) e punho distal (face cubital).
25. E obstrução temporária da visão.
26. Tomou medicação, designadamente analgésicos.
27. Nessa instituição hospitalar realizou vários exames complementares de diagnóstico.
28. Foi observado pelas especialidades de cirurgia geral e ortopedia.
29. Esteve internado durante dois dias naquela unidade hospitalar e foi intervencionado cirurgicamente para correção do esfacelo e redução aberta com osteossíntese da fratura do cúbito com placa 3.5 e parafusos, e redução fechada e osteossíntese das fraturas dos metacarpianos com fios Kirschner.
30. Neste período, o Autor equacionou a possibilidade de perder a mão, o que muito o perturbou e abalou.
31. Teve alta hospitalar no dia 18.4.2018, sendo acompanhado em ambulatório pela consulta externa, onde realizou tratamentos de pensos no Centro de Enfermagem da sua área de residência.
32. O Autor foi igualmente seguido na Clínica ..., sita na ..., Porto.
33. O Autor realizou tratamentos fisiátricos na Clínica 1..., em ....
34. Tratamentos esses que se prolongaram por 60 sessões.
35. O Autor esteve medicado para as dores e teve o membro mobilizado durante vários meses.
36. Requerendo auxílio de terceira pessoa para o desempenho das suas atividades de vida diária, como sejam, vestir-se, lavar-se, comer, ir à casa de banho, ou simplesmente escrever, já que o Autor é destro.
37. O Autor foi observado nos serviços clínicos da Ré no dia 25.9.2018 – Hospital ... – em consulta inicial de avaliação de dano.
38. Foi avaliado em consulta do dano corporal em 23.10.2018, pelo Sr. Dr. EE, perito médico-legal nomeado pela Ré seguradora.
39. Nesse exame, o Autor queixou-se de perda de força no seu membro superior direito.
40. E de um quadro álgico relevante, designadamente com a realização de esforços com o seu membro superior direito.
41. Outrossim, o Autor apresentava diminuição de sensibilidade numa área da MCT de D5.
42. Aquando da realização do exame objetivo, o perito da Ré descortinou “nos membros superiores: diminuição da sensibilidade numa área com 3 cm ao longo da articulação metacarpo-falângica do 5º dado; é palpável calo ósseo no dorso da mão, ao nível M2. Apresenta uma flexão do punho simétrica, de 76º bilateralmente. A extensão do punho direito é de 54º, sendo a do esquerdo de 64º. Sem dismetria nos desvios radial e cubital ou na prono-supinação.
43. Apresenta uma cicatriz no antebraço, uma com 7,5 cm, uma arciforme, com 6,5x0,5 cm no bordo cubital do punho. Apresenta uma cicatriz na face palmar de D5, com 4,5 cm. Apresenta dispersa na mão outras 7 áreas cicatriciais, sendo a maior destas com 1,5x1,5cm. Sem diminuição objetivável de força. Sem dismorfias ou desvios rotacionais dos dedos”.
44. Como problemas atuais, esse perito médico legal diagnosticou ainda queixas álgicas residuais e área com diminuição de sensibilidade no dorso da MCF de D5 mão direita.
45. Como períodos de incapacidade do Autor foram reconhecidos os seguintes: “ITA Geral – 15/04/2018 a 18/04/2018; ITP Geral – 19/04/2018 a 23/10/2018; ITA de Formação – 16/04/2018 a 1/05/2018; ITP de Formação – 02/05/2018 a 23/05/2018; IPG- 3 pontos (Na0225 – 1 ponto, pelas alterações de sensibilidade ao nível da MCF de D5; Ma0224 – 2 pontos, pelo défice de extensão); QD – 4/7; DE – 2/7; DF – Será de considerar a extração da placa do cúbito como dano futuro; PAP – 2/7.”
46. O Autor não consegue dispor do seu membro superior direito, como fazia antes do acidente.
47. O Autor tem dificuldades em fazer esforços com o seu membro superior direito.
48. Este acidente provocou uma interrupção no ano letivo, fazendo com que o Autor ficasse com uns módulos em atraso, com necessidade de recuperação dos mesmos posteriormente, de forma a não perder o curso na sua totalidade.
49. O Autor anda mais nervoso, impaciente e revoltado por não conseguir desempenhar a sua vida com fazia previamente ao evento.
50. Sente-se desgostoso com a sua imagem,
51. E menorizado com as suas limitações.
52. O Autor mantém quadro álgico no seu membro superior direito, embora de caráter esporádico com rigidez que se agrava com as mudanças climatéricas.
53. Mas sobretudo a nível do seu punho, de características mecânicas.
54. O Autor sente dificuldades na execução de algumas tarefas profissionais com a mão direita, como por exemplo, a utilização do rato de um computador ou quando tem de escrever durante algum tempo, implicando várias interrupções involuntárias ao longo do seu período de trabalho para descanso da mão.
55. Tal também sucede também em algumas atividades pessoais ou de lazer, como seja, por exemplo, ir a um ginásio e saber que não pode fazer exercícios com a sua mão direita.
56. O A. deixou de jogar futsal, devido às dores que sentia, atenta a função específica que tinha (guarda-redes).
57. O Autor era um atleta federado na Federação Portuguesa de Futebol, ao serviço no clube ..., no qual desempenhava a posição de guarda-redes.
58. A prática dessa atividade desportiva dava-lhe imensa satisfação e prazer pessoal.
59. A repercussão nas atividades desportivas e de lazer deverá ser significativamente valorada, principalmente naqueles casos em que os lesados são atletas federados.
60. O Autor era um jovem ativo, muito dinâmico e que tinha muito gosto e orgulho na sua atividade desportiva.
61. E bem assim ambições a este nível.
62. As quais se goraram completamente após este acidente.
63. As mudanças de temperatura ou de estação e as variações de humidade, têm influência nas dores de que o Autor vai padecendo.
64. O Autor tem complexos em mostrar a sua mão em público ou no uso de roupas mais frescas devido a exposição das cicatrizes.
65. Evitando o simples cumprimento de mão pelo mesmo motivo.
66. Passados mais de dois meses do acidente o Autor deparou-se com vidros a sair da sua mão.
67. Em múltiplas situações as pessoas perguntam o que se passou levando-o a ter de explicar e rememorar o acidente, ainda que involuntariamente.
68. Todo este quadro provoca no Autor um estado de frustração e irritabilidade, bem como alguma revolta, pois, por várias vezes, refere não ter tido qualquer culpa no que aconteceu.
69. De uma pessoa alegre, bem-disposta, extrovertida e com facilidade para as relações sociais, amante de uma vida ativa, passou a ser uma pessoa triste, de difícil contacto, desconcentrada e ansiosa.
70. O Autor temeu pela sua integridade física e suportou um choque e abalo quando tomou consciência das sequelas sofridas.
71. Com as lesões do acidente ajuizado o aqui Autor tornou-se numa pessoa mais introvertida.
72. A situação descrita supra entristece-o muito.
73. O A. nasceu a ../../1999.
74. O Autor sujeitou-se a um exame de avaliação do dano corporal à sua pessoa, realizado por um perito médico-legal independente, no caso pela Sra. Professora Doutora FF, no sentido de aferir da justeza e fiabilidade do exame efetuado pelos serviços clínicos da ré.
75. Tendo essa perita médico-legal concluído que:
(i) A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 9.10.2018;
(ii) O período de Défice Funcional Temporário Total fixável em 3 dias;
(iii) O período de Défice Funcional Temporário Parcial fixável em 174 dias;
(iv) O período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional fixável em 15 dias;
(v) O quantum doloris fixável no grau 4/7;
(vi) O Déficit Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 8 pontos;
(vii) As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da sua atividade profissional, mas implicam esforços acrescidos;
(viii) O dano estético permanente fixável no grau 3/7;
(ix) Repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 4/7;
(x) Necessidades permanentes ou futuras: cremes de proteção solar na zona de cicatrizes; possível necessidade de proceder à extração do material de osteossíntese.
76. À data do sinistro era estudante do ensino profissional estando a frequentar o curso de técnico de gestão de equipamentos informáticos, ministrado pela escola Profissional ...,
77. Posteriormente frequentou o nível 5 do curso técnico especialista de redes e sistemas informáticos no ....
78. Chegou a ponderar ingressar no ensino superior na área de informática.
79. Concomitantemente, o Autor está a trabalhar como analista de sistema na empresa B..., auferindo a quantia mensal de cerca de € 850,00.
80. Em consequência do supra descrito acidente, o A. sofreu um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de quatro pontos.
81. As sequelas descritas são compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicam esforços suplementares por dor de baixo grau no punho e 5.º dedo da mão direitos aquando da utilização repetida do rato de computador.
82. Autor necessitará no futuro de (i) cremes de proteção solar na zona de cicatrizes e (ii) possível necessidade de se proceder à extração do material de osteossíntese.
83. A data da consolidação médico-legal das lesões do A. foi fixável em 25/10/2018.
84. O período de défice funcional temporário total foi de 4 dias.
85. O período de défice funcional temporário parcial foi de 190 dias.
86. O período de repercussão temporária na actividade de formação total foi de 39 dias.
87. O período de repercussão temporária na actividade de formação parcial foi de 55 dias.
88. O quantum doloris foi de 4/7.
89. O dano estético permanente foi fixável no grau de 2/7.
90. A repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer foi fixável no grau 4/7.».
Pretende a recorrente R. que:
1) o montante de € 35.000,00 arbitrado a título de indemnização pelo défice funcional permanente é excessivo, não devendo ultrapassar os € 20.000,00 a € 22.000,00;
2) o montante de € 30.000,00 fixado a título de compensação por danos não patrimoniais é excessivo, devendo antes fixar-se o montante de € 15.000,00;
3) o valor de € 2.500,00 fixado a título de indemnização por despesas futuras com aquisição de protector solar de índice mais elevado é excessivo, devendo fixar-se antes valor não superior a € 1.200,00;
4) a condenação em juros quanto aos montantes da indemnização pelo “dano biológico” e pelas despesas futuras deve ser apenas a partir da sentença e não a partir da citação.
Apreciemos então.
1) Está aqui em causa o denominado “dano biológico”, respeitante à repercussão das lesões e sequelas decorrentes do acidente na vida futura, incluindo a actividade profissional, do A..
Da matéria de facto apurada na primeira instância, definitivamente fixada por não ter sido impugnada, e acabada de transcrever, resulta que as lesões que o A. sofreu e as sequelas de que ficou a padecer em consequência dessas lesões determinam-lhe um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 4 pontos, sendo compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicando esforços suplementares por dor de baixo grau no punho e 5º dedo da mão direitos aquando da utilização repetida do rato de computador (pontos 80 e 81), sendo que a consolidação médico-legal das lesões ocorreu em 25/10/2018 (ponto 83).
Não obstante não ter resultado apurada em concreto a existência de uma efectiva perda futura de rendimentos por parte do A. (porque a incapacidade é compatível com o exercício da actividade habitual – embora no caso, o concreto A. sinta dor de baixo grau no punho e 5.º dedo da mão direitos aquando da utilização repetida do rato de computador), estamos perante um dano indemnizável mesmo na sua vertente patrimonial, traduzido num lucro cessante (cfr. o art. 564º, nº 1, 2ª parte, do C.C.), sendo um dano resultante do acidente (cfr. os arts. 562º e 563º do C.C.).
Na verdade, como se diz no Ac. da R.P. de 14/09/2006, publicado na Internet, em www.dgsi.pt/jtrp, com o nº de processo 0633338 (passagem que se transcreve, com a devida vénia, por ser da nossa completa concordância, mantendo-se perfeitamente actual):
A perda ou diminuição da capacidade laboral por morte ou por incapacidade permanente total ou parcial pode originar a perda de um rendimento que se repercute em prejuízos sofridos e a sofrer pelo lesado ou por aqueles que viviam ou vivem na sua dependência económica. (…)
Pode suceder, no entanto, que a IPP de que o lesado ficou portador não se traduza numa perda de rendimentos.
A jurisprudência vem entendendo, de forma dominante, que, mesmo assim, a IPP representa um dano patrimonial autónomo, indemnizável independentemente da perda ou diminuição imediata da retribuição salarial.
A afectação que a IPP, do ponto de vista funcional, traduz, determina, no âmbito do que vem sendo denominado dano biológico, consequências negativas ao nível da actividade geral do lesado (…).
Na chamada incapacidade funcional ou fisiológica, vulgarmente designada por “handicap”, a repercussão negativa da respectiva IPP centra-se precisamente na diminuição da condição física, resistência e capacidade de esforços, por parte do lesado, o que se traduz numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo, no desenvolvimento das actividades pessoais, em geral, e numa consequente e, igualmente, previsível maior penosidade, dispêndio e desgaste físico na execução das tarefas que, no antecedente, vinha desempenhando, com regularidade (…).
A incapacidade funcional tem, em princípio, uma abrangência maior que a perda da capacidade de ganho e pode não coincidir com esta, tudo dependendo do tipo ou espécie de trabalho efectivamente exercido (…).
Por isso, o valor indemnizatório decorrente da perda de capacidade é autónomo em relação ao sofrimento causado por tal perda (este de natureza não patrimonial) (…).
Sendo assim, o lesado não tem de alegar e provar a perda de rendimentos laborais para que o tribunal lhe atribua indemnização pelo dano decorrente da IPP, bastando a alegação e a prova da incapacidade (…).
A fixação da indemnização pelos danos futuros decorrentes da incapacidade para o trabalho deve fazer-se sempre com recurso à equidade, nas fronteiras dos artºs 564º, nº 2, 566º, nº 3, 496º, nº 3 e 494º, como vem sendo entendimento unânime da jurisprudência (…).
(…)
Quando a incapacidade geral não corresponde a uma perda efectiva de ganho ou mesmo da capacidade de ganho, na ponderação do quantum indemnizatório deve mitigar-se a sua repercussão de harmonia com a normal e previsível evolução e reacção das pessoas perante as circunstâncias da vida (…)”.
Neste mesmo sentido, podem ver-se ainda, entre outros, na jurisprudência mais recente, o Ac. da R.G. de 21/05/2020, nº de processo 5573/17.6T8BRG.G1, e os Acs. da R.P. de 28/04/2020, nº de processo 3612/13.9TBVNG.P1, de 15/06/2020, nº de processo 1230/17.1T8AVR.P1, de 24/09/2020, nº de processo 393/17.0T8PVZ.P1, de 09/12/2020, nº de processo 264/18.3T8VLG.P1, de 29/04/2021, nº de processo 1156/18.1T8PVZ.P1, de 29/04/2021, nº de processo 2834/17.8T8PNF.P1, de 21/06/2021, nº de processo 730/17.8T8PVZ.P1, e de 12/07/2021, nº de processo 3924/18.5T8AVR.P1, todos publicados em www.dgsi.pt.
Aliás, esta jurisprudência é tão adequada ao caso concreto dos autos, na medida em que está provado que a incapacidade de que o A. ficou a padecer implica esforços suplementares no exercício da actividade profissional.
Ademais, considerando esta circunstância acabada de referir e porque se trata de danos futuros, nada permite afirmar que, apesar de na data do julgamento não resultar demonstrada a quebra de rendimentos por força da incapacidade, no futuro tal quebra não ocorrerá (e, tendo presente os critérios de razoabilidade e previsibilidade, deverá até afirmar-se que em princípio ocorrerá – cfr. neste sentido, o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 23/10/2003, disponível em www.dgsi.pt).
Por outro lado, estando em causa a afirmação da perda de capacidade de trabalho, se no caso concreto o lesado mantém o mesmo nível de rendimento tal dever-se-á necessariamente a um esforço acrescido que desenvolve, de tal forma que razoavelmente será de supor que sem a incapacidade para o trabalho de que padece estaria apto a angariar rendimentos de nível superior (cfr. neste sentido, o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 18/11/1999, disponível em www.dgsi.pt).
Finalmente, há ainda que considerar que se a incapacidade pode não afectar sensivelmente o rendimento actual auferido pelo lesado, já, todavia, pode interferir com a sua progressão na carreira, impedindo-a ou retardando-a, o que, tendo presente que tal progressão acarreta necessariamente aumentos de vencimento, configura uma diminuição de rendimento, na medida em que determina que um rendimento que seria aumentado não o seja ou venha a sê-lo somente mais tarde.
Sendo certo que a progressão profissional pode passar igualmente por mudanças de carreira e possibilidade de exercício de outras funções, com tarefas diferentes, até passando por mudanças de entidade patronal, e que o facto de a incapacidade não afectar o exercício da profissão actual não significa que não afecte, ou mesmo impeça, o exercício de outra profissão diferente (ainda que dentro do âmbito das habilitações profissionais do lesado) que, não fora a incapacidade, o lesado poderia aspirar vir a exercer no futuro (cfr., por ex., o Ac. da R.P. de 24/01/2023, com o nº de processo 3398/20.0T8PNF.P1, publicado em www.dgsi.pt).
Assim, de acordo com o que acabou de referir-se, conclui-se, no caso concreto, que o A. – tendo resultado provado que ficou portador de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 4 pontos, mas não que esta incapacidade lhe acarrete uma efectiva perda de rendimentos do trabalho – tem direito, não a ser indemnizado pela perda de capacidade de obtenção de rendimentos do trabalho, mas a ser indemnizado pela diminuição da sua condição física em que se traduz aquela incapacidade, nomeadamente na vertente de, para manter o mesmo rendimento, ter de recorrer a um esforço suplementar que lhe permita manter a produtividade e a qualidade de trabalho que possuía quando não padecia de qualquer incapacidade, o que constitui um dano específico e autónomo.
Nesta situação, mais do que o recurso ao método auxiliar de utilização de tabelas financeiras (não o deixando, contudo, de ter presente, mais não seja como termo de comparação), o cálculo da indemnização haverá de ancorar-se primordialmente na equidade, nos termos previstos no art. 566º, nº 3, do Código Civil, tendo esta por base as circunstâncias específicas do caso concreto do A..
Há, pois, que ter em conta que o A. nasceu em ../../1999 (ponto 73), tendo, portanto, 19 anos na data de 09/10/2018 (da consolidação médico-legal das lesões), e que ficou a padecer de um défice funcional permanente de 4 pontos.
Há que considerar ainda a evolução da esperança média de vida à nascença em Portugal, a qual, no ano de 2018, de acordo com dados constantes do portal pordata.pt, se situava em 78 anos para os homens e 83,50 anos para as mulheres, situando-se a geral em 80,09 anos – de acordo com o entendimento jurisprudencial mais recente, e com o qual concordamos, tendo em conta o que está em causa neste tipo de dano, não uma perda de rendimento efectivo mas um comprometimento da aptidão funcional do lesado, há que ponderar não apenas o tempo de vida laboral, mas todo o tempo da sua vida (cfr., por todos, o citado Ac. da R.P. de 12/07/2021).
Bem como um valor próximo do salário médio nacional quanto ao rendimento anual a considerar para efeitos do valor-base a atender, posto que, nos casos, como o dos autos, em que “não há (imediata) perda de capacidade de ganho, não existindo, como não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efetiva por causa da incapacidade, por só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento”. Assim, “na busca do tratamento paritário, no cálculo que efetue, o julgador terá que partir de uma base uniforme que possa utilizar em todas as situações, para depois temperar o resultado final com elementos do caso que eventualmente aconselhem uma correção, com base na equidade”, só assim sendo “possível uniformizar minimamente o tratamento conferido aos lesados” (cfr. Ac. da R.P. de 04/10/2021, proferido no âmbito do processo nº 5694/20.8T8PRT do Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia (J3), Ac. da R.P. de 17/04/2023, com o nº de processo 1974/21.3T8PNF.P1, publicado em www.dgsi.pt, e Rita Mota Soares, O dano biológico quando da afectação funcional não resulte perda da capacidade de ganho - o princípio da igualdade, in Revista Julgar, nº 33, págs. 121 a 135) – daí que não colha a objecção da recorrente Ré, posto que a consideração, como um dos elementos a ter em conta, do salário médio da profissão de analista de sistemas (a profissão actual do A. – ponto 79 da matéria de facto) está efectivamente justificada, sendo que, tendo em conta o intervalo de valores que esse salário pode alcançar (veja-se, por exemplo, a informação constante da página da Internet “Meusalario.pt”, no endereço https://meusalario.pt/emprego/portugal-emprego-e-salario/analistas-de-sistemas, da qual resulta que no nível inicial o salário mensal “varia de 1.152 € a 2.186 €”, depois de 5 anos de experiência o rendimento situa-se “entre 1.381 € e 2.825 € por mês” e a maioria dos analistas de sistemas “ganha um salário entre 1.152 € e 4.647 € por mês em 2024”), a sentença recorrida até considerou um valor nada excessivo nessa parte.
Finalmente, há que tomar em consideração igualmente, como o exige o recurso à equidade, a circunstância de existir uma antecipação do pagamento da totalidade do capital e outros factores (imponderáveis) como a incerteza sobre as alterações ao estado de saúde em cada momento e o efectivo tempo de vida, as alterações das taxas de remuneração do capital e da inflação, a evolução dos índices económicos (cfr. os Acs. citados), bem como, questão cada vez mais premente na actualidade, as alterações aos valores de remuneração do trabalho (que têm sofrido baixas nos últimos anos, nomeadamente no que respeita aos rendimentos líquidos), e a imprevisibilidade, cada vez maior, da possibilidade de manutenção dos postos de trabalho.
E ainda a própria previsível evolução das lesões e sequelas do A. e a evolução da medicina, que, sendo um imponderável, pode no futuro alterar a actual situação deste, quer ao nível da percentagem da sua incapacidade, quer do grau de esforço que a realização de tarefas profissionais lhe acarreta.
Donde, em face de tudo quanto se expôs e considerando todos os factores aludidos, afigura-se que a quantia de € 35.000,00 fixada na sentença recorrida, a título de indemnização pela diminuição da condição física do A. resultante da incapacidade, ou défice, de que ficou a padecer, se mostra adequada e equitativa, estando em linha com outras indemnizações para situações semelhantes fixadas na jurisprudência – a título de exemplo, no Ac. da R.P. de 24/01/2023, já referido, considerou-se adequado o valor de € 40.000,00 numa situação em que a lesada é enfermeira, ficou com um défice de 6 pontos e tinha 23 anos de idade; e no Ac. da R.P. de 17/04/2023, também já referido, considerou-se adequado o valor de € 30.000,00 numa situação em que a lesada é funcionária de supermercado, ficou com um défice de 5 pontos e tinha 22 anos de idade.
Como se diz no Ac. da R.P. de 06/02/2023, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de processo 8402/12.3TBMTS.P1, “na fixação e reapreciação do valor indemnizatório em análise, releva ainda ter presente o reiterado entendimento jurisprudencial de que a fixação de um quantum indemnizatório em que se recorre a juízos de equidade (…) porque assente na ponderação das circunstâncias apuradas e relevantes de cada caso concreto e não em razões estritamente normativas, apenas deverá ser alterado quando evidencie desrespeito pelas normas que justificam o recurso à equidade ou se mostre em flagrante divergência com os padrões jurisprudenciais sedimentados e aplicados em casos similares” (sublinhados nossos).
2) De acordo com o previsto no art. 496º do Código Civil devem ser ressarcidos os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
O tribunal deve fixar ao lesado uma compensação em dinheiro em termos equitativos (arts. 496º e 566º, nº 3, do C.C.), atendendo ainda às circunstâncias referidas no art. 494º do Código Civil.
Nesta sede não está em causa uma verdadeira reparação, com a finalidade de reconstituir a anterior situação do lesado (como acontece, em regra, na obrigação de indemnizar - art. 562º do C.C.), não só porque a situação anterior não pode mais ser reposta, mas também porque os danos sofridos são insusceptíveis de tradução monetária.
Antes se trata de uma compensação ou satisfação que contrabalance os sofrimentos do lesado em virtude de toda a situação resultante do acidente.
Com esta indemnização pretende-se, enfim, proporcionar um quantitativo em dinheiro susceptível de propiciar situações de prazer e alegria que, de certa forma, compensem aquele sofrimento físico e moral (neste sentido, Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, Coimbra, págs. 275 e 276).
Daqui se pode, desde logo, concluir que a quantificação da justa medida da compensação pelos danos não patrimoniais encontra dificuldades inerentes à própria natureza dos mesmos (atingem valores de carácter moral ou espiritual) e afigura-se de grande complexidade, atenta a sua não mensurabilidade.
No entanto, é óbvio que estas dificuldades práticas do cálculo do quantitativo da indemnização por tais danos não podem fazer com que eles fiquem sem indemnização, sendo imprescindível o recurso a juízos de equidade e ao prudente arbítrio do julgador, por forma até a que a compensação tenha um alcance significativo e não meramente simbólico.
Deve, então, o tribunal fixar ao lesado uma compensação em dinheiro em termos equitativos (arts. 496º e 566º, nº 3, do C.C.), atendendo ainda às circunstâncias referidas no art. 494º do C.C. e à gravidade do dano, e tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência e bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida (neste sentido, P. Lima - A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., em anotação ao art. 496º, e Ac. do S.T.J. de 10/2/98, C.J.S.T.J., tomo 1, pág. 65).
Apuraram-se os seguintes factos:
- À data do acidente o A. tinha 18 anos de idade;
- Como consequência directa e necessária do acidente, sofreu lesões corporais;
- O A. conseguiu sair do veículo pelos seus próprios meios e ficou a aguardar a chegada dos meios de socorro na via pública;
- O A. queixava-se de fortes dores no seu membro superior direito e estava bastante angustiado e preocupado;
- Após a sua chegada, os técnicos do INEM procederam à imobilização do A. em plano duro;
- O A. foi transportado de urgência para o Centro Hospitalar ..., EPE, ..., local onde lhe foram ministrados cuidados hospitalares;
- Foi-lhe diagnosticado fractura exposta da diáfise do cúbito direito, fractura de M1 e M2 e de F1 de D3 da mão direita, esfacelo da mão (face cubital) e punho distal (face cubital) e obstrução temporária da visão;
- Tomou medicação, designadamente analgésicos, realizou vários exames complementares de diagnóstico, e foi observado pelas especialidades de cirurgia geral e ortopedia;
- Esteve internado durante dois dias naquela unidade hospitalar e foi intervencionado cirurgicamente para correcção do esfacelo e redução aberta com osteossíntese da fractura do cúbito com placa 3.5 e parafusos, e redução fechada e osteossíntese das fracturas dos metacarpianos com fios Kirschner;
- Neste período, o A. equacionou a possibilidade de perder a mão, o que muito o perturbou e abalou;
- Teve alta hospitalar no dia 18/04/2018, sendo acompanhado em ambulatório pela consulta externa, onde realizou tratamentos de pensos no Centro de Enfermagem da sua área de residência;
- O A. realizou tratamentos fisiátricos na Clínica 1..., em ..., que se prolongaram por 60 sessões;
- O A. esteve medicado para as dores e teve o membro imobilizado durante vários meses, requerendo auxílio de terceira pessoa para o desempenho das suas actividades de vida diária, como sejam, vestir-se, lavar-se, comer, ir à casa de banho, ou simplesmente escrever, já que é destro;
- Apresenta uma cicatriz no antebraço, uma com 7,5 cm, uma arciforme, com 6,5x0,5 cm no bordo cubital do punho. Apresenta uma cicatriz na face palmar de D5, com 4,5 cm. Apresenta dispersa na mão outras 7 áreas cicatriciais, sendo a maior destas com 1,5x1,5cm;
- O A. não consegue dispor do seu membro superior direito, como fazia antes do acidente;
- O A. tem dificuldades em fazer esforços com o seu membro superior direito.
- O acidente provocou uma interrupção no ano lectivo, fazendo com que o A. ficasse com uns módulos em atraso, com necessidade de recuperação dos mesmos posteriormente, de forma a não perder o curso na sua totalidade;
- O A. anda mais nervoso, impaciente e revoltado por não conseguir desempenhar a sua vida com fazia previamente ao evento, sente-se desgostoso com a sua imagem e menorizado com as suas limitações;
- O A. mantém quadro álgico no seu membro superior direito, embora de carácter esporádico com rigidez que se agrava com as mudanças climatéricas, mas sobretudo a nível do seu punho, de características mecânicas;
- O A. sente dificuldades na execução de algumas tarefas profissionais com a mão direita, como por exemplo a utilização do rato de um computador ou quando tem de escrever durante algum tempo, implicando várias interrupções involuntárias ao longo do seu período de trabalho para descanso da mão;
- Tal também sucede em algumas actividades pessoais ou de lazer, como seja, por exemplo, ir a um ginásio e saber que não pode fazer exercícios com a sua mão direita;
- O A. deixou de jogar futsal, devido às dores que sentia, atenta a função específica que tinha (guarda-redes);
- O A. era um atleta federado na Federação Portuguesa de Futebol, ao serviço no clube ..., no qual desempenhava a posição de guarda-redes;
- A prática dessa actividade desportiva dava-lhe imensa satisfação e prazer pessoal;
- O A. era um jovem activo, muito dinâmico e que tinha muito gosto e orgulho na sua actividade desportiva, e bem assim ambições a este nível, as quais se goraram após este acidente;
- As mudanças de temperatura ou de estação e as variações de humidade têm influência nas dores de que o A. vai padecendo;
- O A. tem complexos em mostrar a sua mão em público ou no uso de roupas mais frescas devido a exposição das cicatrizes, evitando o simples cumprimento de mão pelo mesmo motivo;
- Passados mais de dois meses do acidente o A. deparou-se com vidros a sair da sua mão;
- Em múltiplas situações as pessoas perguntam o que se passou levando-o a ter de explicar e rememorar o acidente, ainda que involuntariamente;
- Todo este quadro provoca no A. um estado de frustração e irritabilidade, bem como alguma revolta, pois, por várias vezes, refere não ter tido qualquer culpa no que aconteceu;
- De uma pessoa alegre, bem-disposta, extrovertida e com facilidade para as relações sociais, amante de uma vida activa, passou a ser uma pessoa triste, de difícil contacto, desconcentrada e ansiosa;
- O A. temeu pela sua integridade física e suportou um choque e abalo quando tomou consciência das sequelas sofridas;
- Com as lesões do acidente o A. tornou-se numa pessoa mais introvertida;
- A situação descrita entristece-o muito;
- Em consequência do acidente, o A. sofreu um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 4 pontos;
- As sequelas descritas são compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicam esforços suplementares por dor de baixo grau no punho e 5º dedo da mão direitos aquando da utilização repetida do rato de computador;
- A data da consolidação médico-legal das lesões do A. foi fixável em 25/10/2018, tendo sido de 4 dias o período de défice funcional temporário total, de 190 dias o período de défice funcional temporário parcial, de 39 dias o período de repercussão temporária na actividade de formação total, e de 55 dias o período de repercussão temporária na actividade de formação parcial;
- O quantum doloris foi de 4/7;
- O dano estético permanente foi fixável no grau de 2/7; e
- A repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer foi fixável no grau 4/7.
Ora, analisando o caso concreto dos autos à luz das considerações supra expostas e tendo em conta todos os factos acabados de referir, considerando a idade do A., a natureza das lesões por si sofridas e das sequelas daí resultantes, as limitações que as mesmas trouxeram à sua vida (nomeadamente tendo em conta que o membro afectado foi a mão direita, sendo o A. destro), a natureza e a duração dos tratamentos que teve de efectuar, as dores, o abalo e todos os incómodos que sofreu, bem como a jurisprudência mais recente nesta matéria, afigura-se-nos ser adequada a quantia de € 30.000,00 fixada na sentença recorrida a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo A..
Anote-se que também quanto a estes danos vale o que já se disse supra, de que o montante fixado com recurso a juízos de equidade apenas deve ser alterado “quando evidencie desrespeito pelas normas que justificam o recurso à equidade ou se mostre em flagrante divergência com os padrões jurisprudenciais sedimentados e aplicados em casos similares”.
A propósito da jurisprudência sobre este tipo de danos, em situações comparáveis à dos autos, citam-se apenas a título de exemplo os já referidos Ac. da R.P. de 12/07/2021 [lesado de 52 anos de idade, com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14%, quantum doloris no grau 5/7, dano estético permanente no grau 3/7, compensação de € 40.000,00], e Ac. da R.P. de 17/04/2023 [lesada de 22 anos de idade, com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 5 pontos, quantum doloris no grau 4/7, dano estético no grau 4/7, repercussão nas actividades desportivas e de lazer no grau 2/7, repercussão na actividade sexual de 1/7, compensação de € 35.000,00], o Ac. da R.P. de 21/05/2024, com o nº de processo 615/20.0T8PVZ.P1 [lesado de 29 anos de idade, com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 10 pontos, quantum doloris no grau 5/7, dano estético no grau 3/7, repercussão nas actividades desportivas e de lazer no grau 1/7, compensação de € 25.000,00], o Ac. da R.P. 04/06/2024, com o nº de processo 9073/21.1T8PRT.P1 [lesada de 63 anos de idade, com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 15 pontos, quantum doloris no grau 5/7, dano estético no grau 3/7, repercussão nas actividades desportivas e de lazer no grau 2/7, compensação de € 35.000,00], o Ac. da R.E. de 23/05/2024 com o nº de processo 1102/21.5T8FAR.E1 [lesada de 39 anos de idade, com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 11,5 pontos, quantum doloris no grau 4/7, dano estético no grau 2/7, compensação de € 38.000,00], o Ac. do S.T.J. de 07/04/2016 com o nº de processo 237/13.2TCGMR.G1.S1 [lesado de 22 anos de idade, com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 8 pontos, quantum doloris no grau 4/7, dano estético no grau 3/7, repercussão nas actividades desportivas e de lazer no grau 1/7, compensação de € 50.000,00], e o Ac. do S.T.J. de 09/05/2023 com o nº de processo 7509/19.0T8PRT.P1.S1 [lesado de 33 anos de idade, com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6 pontos, quantum doloris no grau 4/7, dano estético no grau 3/7, repercussão nas actividades desportivas e de lazer no grau 4/7, compensação de € 40.000,00], todos publicados em www.dgsi.pt.
3) Conforme consta do ponto 82 dos factos provados, o A. necessitará no futuro de cremes de protecção solar na zona de cicatrizes, sendo um facto notório, conhecido da generalidade das pessoas, que as zonas da pele com tecido cicatricial necessitam de protecção solar superior às zonas de pele sem “mazelas”.
Tratando-se de um dano futuro, não é possível calcular exactamente o montante que terá que ser despendido pelo A. na aquisição dos protectores solares de índice de protecção adequado ao caso, pelo que, de acordo com o disposto no art. 566º, nº 3, do Código Civil, há que recorrer à equidade, para a fixação em dinheiro da indemnização a atribuir ao A. em virtude de tal dano, como foi feito na sentença recorrida (e a recorrente não põe em causa, questionando apenas o valor encontrado).
Na fixação equitativa dos danos, o tribunal “deve ponderar as circunstâncias do caso concreto e atender ao montante que normal ou ordinariamente terão atingido nessas circunstâncias os danos causados ao lesado” (Abílio Neto, Código Civil anotado, 1996, pág. 442, anotação ao art. 566º).
Ponderando a situação que está em causa, e considerando que, tratando-se da mão do A., a necessidade do protector solar será durante todo o ano, sempre que houver dias de sol (e não só no verão), e durante toda a vida (rondando as 3-4 embalagens por ano), bem como que o preço médio de um protector eficaz e adequado ao caso ronda os € 15,00-€ 18,00 (os preços encontrados, em pesquisa na Internet, vão desde cerca de € 9,00 até mais de € 26,00), verifica-se que a quantia de € 2.500,00 fixada na sentença recorrida não é excessiva, como invocado pela recorrente, antes pelo contrário, situando-se dentro do intervalo mínimo da média encontrada, afigurando-se-nos adequada e equitativa para indemnizar tal dano.
4) A sentença recorrida condenou a recorrente Ré em juros de mora desde a citação sobre a quantia total de € 33.750,00, que engloba a indemnização pelo “dano biológico” e a indemnização pelo dano futuro com a aquisição de protectores solares. Pretende a recorrente que quanto a estas duas parcelas os juros são devidos apenas a partir da sentença.
Anote-se antes de mais que não está em causa se o A. já teve ou não as despesas, mas tão somente que a R. lhe tem de pagar determinado valor a título de indemnização e que esse valor é devido desde já, independentemente da data em que o A. vá proceder aos gastos respectivos, sendo certo que, nos termos do art. 805º, nº 3, do Código Civil, em caso de responsabilidade por facto ilícito, a indemnização é devida pelo menos desde a citação, vencendo juros a partir desta data, posto que com este acto o devedor fica ciente dos montantes concretos que o lesado lhe reclama. Só assim não sendo se se estiver perante um pedido ilíquido, em que os juros se vencem apenas a partir da liquidação.
No caso, o A. formulou um pedido líquido na petição inicial quanto ao denominado “dano biológico”, num total de € 60.000,00, e um pedido ilíquido quanto à necessidade de protectores solares, pelo que o montante indemnizatório quanto a este dano só foi liquidado na sentença, quando foi fixado num valor concreto.
Assim, realmente quanto ao montante respeitante à indemnização pela necessidade de uso de protectores solares, verifica-se que os juros só se vencem a partir da liquidação da quantia, ou seja desde a data da sentença, procedendo o recurso subordinado nesta parte.
Já assim não ocorre quanto ao montante atribuído a título de “dano biológico”.
Com efeito, não se tratando de pedido ilíquido, o vencimento de juros a partir da data da sentença só teria lugar se se estivesse perante uma situação em que a indemnização tivesse sido actualizada na decisão, atento o teor do Ac. do S.T.J. de uniformização de jurisprudência nº 4/2002, publicado no D.R., I-A, de 27/06, onde se fixa jurisprudência no sentido de que sempre que a indemnização por facto ilícito ou pelo risco tiver sido actualizada, esta vence juros desde a decisão actualizadora e não desde a citação.
Como se explica no Ac. do S.T.J. de 13/07/2004, publicado no mesmo sítio da Internet, com o nº de processo 04B2616, “resulta do referido acórdão de uniformização de jurisprudência, tendo em conta o seu conteúdo, (…), a ideia de uma decisão actualizadora da indemnização em razão da inflação no período compreendido entre ela e o momento do evento danoso causador do dano, sob a invocação do nº. 2 do artigo 566º do Código Civil, que consagra o critério derivado do confronto da efectiva situação patrimonial do lesado na data mais recente atendível pelo tribunal e a que teria nessa data se não tivesse ocorrido o dano.
A prolacção dessa decisão actualizadora, tendo em conta a motivação do referido acórdão de uniformização de jurisprudência, tem que ter alguma expressão nesse sentido, designadamente a referência à utilização no cálculo do critério chamado da diferença na esfera jurídico-patrimonial constante no artigo 566º, nº. 2, do Código Civil e à consideração no cômputo da indemnização ou da compensação da desvalorização do valor da moeda”.
Ou seja, a decisão actualizadora a que se refere o acórdão de fixação de jurisprudência é aquela que expressamente indica que utilizou, no cálculo da indemnização, o critério da diferença e considerou, no valor encontrado, a compensação pela desvalorização do valor da moeda.
Se nada for dito sobre ter havido ou não actualização não se pode presumir que ela existiu, tendo de concluir-se que não foi feita – cfr. Ac. da R.L. de 27/09/2012, com o nº de processo 443/08.1TVLSB.L1-2, publicado no mesmo sítio da Internet [“sendo a actualização uma componente específica” do processo de cálculo da indemnização, “só poderá dizer-se que houve actualização dos valores da indemnização se isso resultar inequivocamente da própria decisão. Nada sendo dito sobre essa questão, terá de concluir-se que a actualização não foi feita.”].
Ora, no caso, vendo a sentença recorrida, verifica-se que nela não foi feita qualquer operação de actualização do valor fixado a título de dano, tendo-se atribuído a indemnização pelo atraso por referência à fixação de juros de mora desde a citação.
Aliás, ainda que não dito expressamente, da análise da decisão recorrida decorre que se teve em conta o pedido inicialmente formulado pelo A. e se consideraram os factos conforme alegados à data da propositura da acção.
Portanto, não sendo um caso de actualização, os juros são devidos desde a citação (cfr. Ac. da R.P. de 27/09/2018, nº de processo 75/10.4TBAMT.P1, publicado em www.dgsi.pt [“se o juiz não explica, nem demonstra, que tenha fixado a indemnização por danos não patrimoniais de forma actualizada, são devidos juros desde a citação, por aplicação das disposições conjugadas dos citados artºs 566º, nº 2 e 805º, nº 3 do CC.”]), tal como se determinou na sentença recorrida.
Assim, concluindo:
- merece provimento o recurso subordinado no que concerne aos juros incidentes sobre a indemnização pela necessidade de uso de protectores solares, que só são devidos desde a data da sentença;
- no mais, não merece provimento o recurso subordinado.
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Passemos à segunda questão.
Como resulta dos factos dados como provados na sentença recorrida e já transcritos, ocorreu um acidente de viação em que intervieram o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-FA, o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-EZ, e o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-HZ, seguindo o A. como passageiro no veículo ..-..-FA.
Quando o veículo FA se aproximava do entroncamento formado pela artéria por onde transitava e a rua ... que se apresentava à sua direita, encontrando-se a cerca de 15 metros desse entroncamento, depara-se com uma manobra de mudança de direção à esquerda realizada pelo condutor do veículo HZ, no sentido de aceder à sobredita rua, atravessando-se à sua frente.
O condutor do veículo FA, que seguia a velocidade não inferior a 70 km/hora, ao ver o seu sentido de marcha obstruído, atrapalhou-se, perdeu o domínio do veículo, vindo a embater com a sua frente lateral direita, na parte lateral direita (sobre a traseira) do veículo de matrícula HZ. Entretanto, aquele condutor perdeu completamente o controlo do veículo, prosseguindo a sua marcha, completamente desgovernado, accionando o sistema de travagem do seu veículo, mas não conseguindo evitar um novo embate, entre a sua frente e a frente do veículo EZ, que circulava atrás do veículo HZ.
Perante tal factualidade, entendeu a sentença recorrida que a responsabilidade na ocorrência do acidente foi em 50% do condutor do veículo FA e em 50% do condutor do veículo HZ, o que não foi posto em causa em qualquer dos recursos, tendo sido aceite pelas partes, estando definitivamente decidida essa questão.
Com base nessa proporção de responsabilidade, e sendo ré na acção apenas a seguradora do veículo FA, na sentença recorrida entendeu-se que a R. era “responsável por 50% do valor dos danos sofridos pelo A. em consequência do acidente dos autos”, e condenou-se a mesma a pagar a quantia de € 33.750,00, correspondente a metade de € 67.500,00, o montante total da indemnização líquida fixada pelos danos sofridos pelo A. e “metade do valor da eventual extração do restante material de osteossíntese a liquidar oportunamente”.
É desta decisão que recorre o A., entendendo que a R. deve ser responsável pela totalidade da indemnização, uma vez que a mesma é solidária, sem prejuízo do direito de regresso que lhe assista sobre o outro responsável pelo acidente.
No âmbito da responsabilidade civil por facto ilícito vigora o regime da responsabilidade solidária, nos termos previstos no art. 497º do Código Civil, que dispõe:
1. Se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade.
2. O direito de regresso entre os responsáveis existe na medida das respectivas culpas e das consequências que delas advieram, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis.
De acordo com o disposto no art. 512º, nº 1, do Código Civil, sendo a obrigação solidária cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles. No primeiro caso a solidariedade é passiva, no segundo caso é activa.
No presente caso trata-se de uma solidariedade passiva de fonte legal (cfr. art. 513º do C.C.).
Na solidariedade passiva:
- o devedor solidário demandado não pode opor o benefício da divisão e, ainda que chame os outros devedores à demanda, nem por isso se libera da obrigação de efectuar a prestação por inteiro (art. 518º do C.C.);
- o credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação, ou parte dela, proporcional ou não à quota do interpelado (art. 519º, nº 1, 1ª parte, do C.C.);
- a satisfação do direito do credor, por cumprimento, dação em cumprimento, novação, consignação em depósito ou compensação, produz a extinção, relativamente a ele, das obrigações de todos os devedores (art. 523º do C.C.);
- o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete (art. 524º do C.C.).
Daqui resulta que, no caso, não obstante se ter concluído que a responsabilidade pela ocorrência do acidente e, consequentemente, pelos danos sofridos pelo A. cabe ao condutor do veículo segurado da R. apenas na proporção de 50%, uma vez que a responsabilidade é solidária, a R. responde pela totalidade da indemnização perante o lesado, interessando a proporção da responsabilidade apenas para as relações internas entre os co-obrigados (no caso a R. e a seguradora do veículo HZ) – neste sentido, Ac. da R.C. de 20/02/2001, com o nº de processo 3351-2000, e Ac. da R.G. de 24/01/2019, com o nº de processo 274/12.4TBVCT.G1, ambos publicados em www.dgsi.pt.
A propósito, diz-se no Ac. da R.P. de 14/07/2020, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de processo 1843/13.0TBPVZ.P1: “O regime de solidariedade consagrado no artigo 497.º CC destina-se a tutelar o interesse do lesado, que pode exigir a totalidade da indemnização de qualquer dos obrigados, em vez de exigir a cada um a sua quota (cfr. artigos 512.º e 519.º, CC).
Isto não altera a medida da responsabilidade de cada um dos lesantes. Significa apenas que, num primeiro momento, pode um dos lesantes [pode] ter de responder pela totalidade da obrigação, mas goza de direito de regresso relativamente aos outros obrigados, por forma a obter deles, em sede de direito de regresso, aquilo que pagou a mais (artigos 497.º, n.º 2, e 524.º, CC).
A apelante poderá ter de pagar a totalidade da indemnização, embora o seu segurado apenas seja responsável por 25%; mas, efectuado o pagamento, poderá exigir dos outros co-obrigados (rectius das respectivas seguradoras, por se tratar de seguro obrigatório de responsabilidade civil) aquilo que pagou para além do que lhe competia.
Assim, aquele a quem for exigido a totalidade da indemnização garante o adiantamento da parte relativa aos outros lesantes, de quem poderá exigir o que pagou a mais.
A fixação de culpa não releva na relação com o lesado (credor), mas apenas nas relações internas (direito de regresso entre lesantes).”.
Portanto, o A. pode efectivamente, no caso, exigir a totalidade da indemnização da R., atendendo à natureza solidária da obrigação, não podendo esta opor o benefício da divisão.
Note-se que, não obstante se ter oposto à pretensão do recorrente em sede de contra-alegações, a própria R. havia reconhecido na contestação que, havendo, no seu entender, responsabilidades concorrentes entre o condutor do veículo seu segurado e o condutor do veículo terceiro, a sua responsabilidade era solidária, respondendo pela prestação integral perante o A. lesado, reservando-se o direito de exercer posteriormente o direito de regresso (cfr. arts. 6º a 13º da contestação), conforme já aflorado no relatório supra.
Assim, merece provimento o recurso do A., devendo a R. ser condenada a pagar-lhe, solidariamente, a totalidade da indemnização atribuída (seja na parte já liquidada, seja na parte ilíquida).
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela obtenção de provimento do recurso interposto pelo A. e pela obtenção parcial de provimento do recurso subordinado interposto pela R., nos termos analisados.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso interposto pelo A. e conceder provimento parcial ao recurso subordinado interposto pela R. e, em consequência:
a) condenar a R. a pagar, solidariamente, ao A. a quantia de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a citação até integral pagamento, bem como o valor da eventual extracção do restante material de osteossíntese a liquidar oportunamente nos termos do art. 609º, nº 2, do C.P.C.;
b) condenar a R. a pagar, solidariamente, ao A. a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a data da sentença recorrida até integral pagamento;
c) no mais, negar provimento ao recurso subordinado, confirmando-se a restante parte da sentença recorrida.
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Custas do recurso interposto pelo A. pela recorrida e custas do recurso subordinado interposto pela R. por esta, mesmo na parte em que obteve provimento, posto que não houve oposição da parte do A. (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente
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Porto, 10/7/2024
Isabel Ferreira
Manuela Machado
Francisca Mota Vieira