Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1854/23.8T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
AÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
PRAZO DA DENÚNCIA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP202407101854/23.8T8VNG.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A ação de indemnização fundada na venda de coisa indeterminada de certo género defeituosa está submetida ao prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do Código Civil.
II - O ónus da prova da efetivação da denúncia cabe ao comprador, dada a sua condição de exercício de direitos (artigo 342.º nº 1 do Código Civil), competindo ao vendedor, o ónus da prova do decurso do prazo de denúncia (artigo 342.º nº 2 do Código Civil).
III - A declaração de denúncia, mediante a qual se comunicam, os defeitos de que a coisa padece, apesar de não ter forma especial para ser emitida, é uma declaração negocial recetícia, tornando-se eficaz, quando chega ao conhecimento do destinatário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1854/23.8T8VNG.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 2

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízes Desembargadores Adjuntos:

João Diogo Rodrigues

Maria da Luz Seabra

SUMÁRIO:

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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO:

A..., S.A., com sede na Avenida ..., Zona Industrial ..., ... ..., intentou a presente ação de condenação, sob a forma comum, contra B... S.A., com sede na Rua ..., ..., ... ..., ..., pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de €109.222,84, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos à presente data, sem prejuízo de outros ainda não mensuráveis e a apurar em sede incidental, a tudo acrescendo os juros de mora contados à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Para tanto alega, em síntese, que tem como atividade comercial o fabrico e venda de componentes para calçado e nesse contexto foi contratada pela sociedade C..., Lda para produzir solas de sapatos em cortiça que se destinavam a integrar calçado por esta produzido e para ser vendidos ao grupo D... – ....

Mais alega que para produzir as solas encomendou à Ré, com quem se relaciona comercialmente há mais de vinte anos, 73 blocos de cortiça por esta produzida, identificada pelas referências n.ºs 9153 (com EVA) e 9431 (sem EVA).

Produzidas as solas, foram as mesmas integradas em 2700 pares do modelo Arianne e 712 pares do calçado correspondente ao modelo Lara pela C..., Lda, os quais foram entregues à D... que os destinou a consumidores finais.

Mais alega que os primeiros blocos de cortiça adquiridos tinham a referência n.º 9431 (sem EVA) e os seguintes a referência n.º 9153 (com EVA), o que se deveu à falta de stock daquela primeira referência no mercado e à sugestão da Ré, sempre no pressuposto de que o material adquirido se destinava à produção de solas de calçado pela Autora, tendo-lhe sido assegurado a adequação do mesmo para essa concreta finalidade.

Tendo-se verificado nos meses subsequentes sucessivas reclamações perante a D... de consumidores finais, esta apresentou em 13.07.2022 uma reclamação perante a C..., com a emissão de uma nota de débito no valor de €87.099,06.

Por sua vez, a C... formalizou, perante a Autora, em 27.07.2022, a sua reclamação, apresentando a sua nota de débito, no valor total de €109.222,84, tendo por base a recolha de 1.696 pares de sapatos com a referência Arianne, ao custo de €42,80 por recolha/par, no valor total de €72.588,80 e 326 pares de sapatos com a referência Lara, ao custo de €44,51, por recolha/par, no valor total de €14.510,26.

Tais reclamações tiveram por base o facto do calçado em causa não suportar o peso do seu utilizador, cedendo a parte inferior da sola mesmo após uma escassa utilização e exposição a um ambiente de humidade, o que impossibilita a sua utilização e determinou a retirada do mercado de todos os pares de calçado produzidos.

Mais alega que dirigiu à Ré uma denúncia em 30.08.2022 tendo obtido como resposta desta a não aceitação de qualquer responsabilidade.

Citada a ré, defendeu-se por exceção para invocar a caducidade do direito da Autora a propor a presente ação, pelo decurso do prazo de seis contados desde a data da denúncia do defeito, que entende ter ocorrido, no máximo, em 30 de abril de 2022.

No demais, defende-se por impugnação.

A Autora pronunciou-se sobre a matéria de exceção deduzida na contestação, pugnando pela sua improcedência.

Em 28.06.2023 realizou-se a audiência prévia, saneando-se o processo tabelarmente, relegando-se para final a apreciação da excecionada caducidade, sendo fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

Realizou-se a audiência de julgamento e no final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas, decido julgar procedente a exceção de caducidade invocada e, em consequência, absolver a Ré do pedido.

Custas pela Autora.

Inconformada, a autora, A..., S.A., veio interpor o presente recurso de apelação, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1.º A decisão recorrida violou e fez errada aplicação do disposto nos artigos 217.º, 219.º, 224.º, 236.º a 238.º e 917.º, todos do Código Civil.

2.º Não se conforma a. com a redação e sentido dado aos factos 12), 16), 22), 48), 49), 58) e 68), dados como provados.

3.º Tal como, também não se conforma com os factos a), b), m), r) e s), dados como não provados.

4.º A Mma. Juiz a quo deu como não provado o facto m), alegado pela Autora, ora Recorrente, que resulta do articulado de resposta às exceções deduzidas pela Ré/Recorrida.

5.º Este facto deveria ser dado como provado, com base nos seguintes elementos de prova: Doc. 9 junto com a Contestação, bem como depoimento da testemunha AA [Diligencia_1854-23.8T8VNG_2023-11-14_11-18-31 - AA], do minuto 27:20 ao minuto 29:00, conforme transcrição supra efetuada.

6.º Com efeito, o conhecimento do defeito ocorreu em Agosto (aquando da receção dos sapatos não vendidos remetidos pela C... e imediato uso / teste por parte das trabalhadoras da Autora).

7.º De qualquer modo, sempre diremos que o ónus da prova do específico momento do conhecimento para efeito da verificação da exceção é ónus que recai sobre a Ré, sendo que, no caso sub judice, esta não logrou provar o que quer que fosse.

8.º De todo o modo, em Agosto a Autora verificou que o produto vendido pela Ré padecia de um defeito – conclusão a que não poderia ter chegado antes, uma vez que nunca tinha tido sapatos acabados e não usados para analisar (conforme também resulta do facto n.º 32) dado como provado).

9.º A reclamação efetuada pela C... à Autora não se confunde com a reclamação efetuada pela Autora à Ré, a qual foi formalizada naquela carta expedida a 11 de Agosto.

10.º Assim, pelos fundamentos supra, deve o facto não provado m) ser dado como provado.

11.º Deve o facto 68) dado como provado, pois, em primeiro lugar, a Autora não produziu sapatos; produziu entressolas. Veja-se, a este propósito, os factos 4) e 5) dados como provados.

12.º Para tanto, invoca os seguintes elementos de prova: depoimento de AA, na sessão de julgamento de 14/11/2023 [Diligencia_1854-23.8T8VNG_2023-11-14_10-56-01 - AA], do minuto 04:40 ao minuto 06:40; depoimento de BB, comercial da Ré, a este respeito (sessão do dia 14/11/2023) [Diligencia_1854-23.8T8VNG_2023-12-11_11-06-38 – BB], do minuto 08:40 ao minuto 09:45 conforme transcrições supra efetuadas; Docs. 3 e 4 juntos com a Contestação.

13.º Assim, o facto 68) deve ser corrigido para a seguinte redação: “A Autora produziu entressolas utilizando matéria-prima que cuidou de verificar se era apropriada para aquele fim e design específico”.

14.º Parece-nos que o facto b) dado como não provado deve ser remetido para o leque de factos provados e corrigido (“b) A Autora remeteu à Ré amostras do calçado danificado;”).

15.º Relativamente ao facto b), o depoimento da testemunha AA, de 14/11/2023 [Diligencia_1854-23.8T8VNG_2023-11-14_11-18-31 - AA], do minuto 16:20 ao minuto 20:20, bem como o depoimento da testemunha BB, na sessão do dia 11/12/2023, em resposta às perguntas do Mandatário da Autora [Diligencia_1854-23.8T8VNG_2023-12-11_11-06-38 - BB], do minuto 23:40 ao minuto 27:10, conforme transcrições supra efetuadas, impõem que se considere esse facto como provado e, em simultâneo, corrigido, para o seguinte: “A Autora remeteu à Ré uma amostra do calçado danificado em Março de 2022.”

16.º Em alternativa, caso o Tribunal ad quem não se convença pelo facto de a amostra remetida estar danificada, deve o facto b) ser dado como provado com a seguinte redação: “A Autora remeteu à Ré uma amostra do calçado em Março de 2022.”

17.º Além disso, os factos 48) e 49) devem ser corrigidos, porquanto a forma como estão redigidos indicia que a Autora não alega coisa diferente do que resulta da redação desse facto – o que não sucede.

18.º Assim, e para que não sejam suscitadas dúvidas, devem os pontos 48) e 49) da douta sentença ser redigidos da seguinte forma:

48) A Ré, por sua vez, por carta datada de 21.09.2022, sustenta, em súmula, não aceitar “qualquer responsabilidade pelos alegados defeitos reportados (...) [pois que cabe ao cliente] realizar os testes internos adequados para se assegurar que o produto é apto ao fim que pretende.”;

Além disso, a Ré alega que “nunca nos foram remetidas amostras de produto não conforme, nem quaisquer resultados de testes periciais (...) pelo que ao departamento e qualidade da B... nunca foi permitido apurar da efetiva existência de um problema (...);

19.º Considera também a Recorrente os factos r) e s) devem ser dados como provados.

20.º A este propósito, vejam-se os testemunhos de CC, contabilista da C... (sessão de 14/11/2023) [Diligencia_1854-23.8T8VNG_2023-11-14_10-48-40 -CC], do minuto 03:00 ao minuto 03:30, e de DD, contabilista da E... (sessão de 14/11/2023) [Diligencia_1854-23.8T8VNG_2023-11-14_10-29-51 - DD], do minuto 09:20 ao minuto 09:40, conforme transcrições supra efetuadas, as quais referem a mesma realidade, embora por palavras distintas, não entrando em contradição, como foi erradamente julgado na sentença recorrida.

21.º Parece-nos que o facto a) dado como não provado não corresponde à realidade e que foi suficientemente produzida prova no sentido de se considerar esse facto provado.

22.º Para tanto, convocam-se os factos 1), 3), 8), 10) e 13) dados como provados; o Doc. 3 da Contestação; o Doc. 13 junto com a P.I.; o depoimento de EE, na sessão do dia 14/11/2023 [Diligencia_1854-23.8T8VNG_2023-11-14_09-44-45 - EE], do minuto 09:00 ao minuto 09:40 e do minuto 11:40 ao minuto 11:50; o testemunho de BB (sessão de audiência de julgamento de 11/12/2023), em resposta às perguntas da Mandatária da Ré e em resposta às perguntas feitas pela Magistrada Judicial [Diligencia_1854-23.8T8VNG_2023-12-11_11-06-38 - BB], do minuto 01:40 ao minuto 04:20, do minuto 06:20 ao minuto 09:40, e do minuto 36:00 ao minuto 36:20, conforme transcrições supra efetuadas.

23.º Requer-se, ainda, a alteração da redação dos factos provados n.ºs 12) e 22) e da apreciação do facto n.º 58) no sentido de ser dado como não provado.

24.º Para este efeito, convocam-se os Docs. 3 e 4 junto com a Contestação, bem como os factos 21), 50) a 54) dados como provados, além do testemunho de AA (sessão de audiência de julgamento do dia 14/11/2023) [Diligencia_1854-23.8T8VNG_2023-11-14_10-56-01 - AA] [Diligencia_1854-23.8T8VNG_2023-11-14_11-18-31 - AA], do minuto 15:20 ao minuto 18:12, e do minuto 00:00 a minuto 01:20, e o testemunho de FF, prestado na sessão de julgamento de 11/12/2023 [Diligencia_1854-23.8T8VNG_2023-12-11_10-23-51 - FF], do minuto 25:00 ao minuto 26:10, conforme transcrições supra efetuadas.

25.º A alteração dos factos 12) e 22) e a eliminação do facto 58), dados como provados, permite-nos chegar à mesma solução: mesmo que se concluísse, com certeza, que a Autora não cuidou de verificar se a cortiça com EVA (ref. 9153) seria ou não apta à finalidade em causa, a verdade é que ela é, em abstrato, apta à finalidade em causa.

26.º Razões pelas quais se pugna no sentido de que o ponto n.º 58) da matéria de facto dada como provada passe a constar do elenco de factualidade dada como não provada,

27.º Bem como se pugna que sejam os factos dados como provados nos pontos n.ºs 12) e 22) alterados, passando a constar daquele elenco com a seguinte redação:

“12) Tendo a Autora questionado a Ré quanto à existência de outro material, de outra referência, com caraterísticas semelhantes, que pudesse ser entregue mais rapidamente que o da 9431.”

“22) Toda a cortiça adquirida perante a Ré o foi sob o pressuposto de que a mesma se destinava exclusivamente à produção de solas de calçado pela autora.

28.º Foi tempestiva a propositura da presente ação judicial, porquanto, se deve considerar como denúncia a missiva que foi enviada pela Autora à Ré, na data de 11/08/2022, e por aquela recebida na data de 30/08/2022.

29.º Verificados os demais e-mails que foram alvo da apreciação do tribunal recorrido, em nenhum deles procede a Autora a qualquer imputação efetiva quanto à origem e à causa do defeito verificado.

30.º São várias as conclusões que, com o devido respeito, de uma forma errada acabam a ser extraídas pelo tribunal recorrido.

31.º A primeira dessas conclusões é de que “a Autora remete à Ré um email, reencaminhando o da sua cliente, do qual já constam fotografias e a informação que o calçado será devolvido à C... e desta à Autora (...)”, quando não é isso o que consta do e-mail, nem foi isso o que na prática sucedeu.

32.º O que a. refere naquela comunicação é que “No que toca à devolução dos pares, a mercadoria só poderá ser enviada para a C...”, nada chegando a referir quanto ao envio desses mesmos pares para a.

33.º Sendo certo, em todo o caso, que por ocasião do e-mail de 30/04/2022 já a R. tinha na sua posse amostras do calçado que lhe permitiam “efetuar todos os testes que entendesse como necessários” – factos provados n.ºs 64 e 65.

34.º A segunda conclusão a que erradamente chegou o tribunal recorrido foi no sentido de que “Ou seja, através do reencaminhamento deste email, a Autora informa a Ré que na sequência de defeitos nas solas fabricadas com a cortiça 9153 e 9431 (informação de novembro) serão devolvidos 1696 pares do modelo Arienne, ao custo unitário de €42,80, e 326 do modelo Lara, ao custo unitário de €44,51”.

35.º De facto, do e-mail enviado na data de 14/04/2022, pela C... à A., e do e-mail enviado pela A. à R. em 30/04/2022, nenhuma referência é feita quanto aos “defeitos” ou “solas”, tampouco quanto à “cortiça 9153 e 9431”, e muito menos quanto à Ré!

36.º Na verdade, nenhuma referência é feita quanto à origem do defeito, nem quanto à imputação do mesmo a qualquer uma das partes envolvidas na cadeia de produção do calçado.

37.º Caminhou mal o tribunal recorrido quando julgou, nos termos da sentença proferida, que “a Autora informa a Ré que na sequência de defeitos nas solas fabricadas com a cortiça 9153 e 9431”, uma vez que essa comunicação nunca foi Autora.” feita no corpo do e-mail datado de 30/04/2022, mas apenas por via da missiva remetida na data de 11/08/2022.

38.º Não se compreende como é que, tendo o tribunal recorrido considerado que os emails de 25/11/2021 e 21/02/2022 visavam dar conhecimento à R. da existência de anomalias e colocá-la a par das informações que a esse respeito eram veiculadas por entidades terceiras (C... e D...), acaba depois a considerar que da afirmação (email de 30/04/2022) “Infelizmente, o que tenho é o conteúdo deste mail. Ligue-me quando lhe for possível” se deve ter como formalizada a denúncia do defeito.

39.º É precisamente pela missiva datada de 11/08/2022 que, pela primeira vez, a A. surge a imputar, direta e inequivocamente, o facto de que o produto fornecido pela R. padece de defeito, quando ali denuncia a A. que “Se, por um lado, são já certos e quantificáveis prejuízos materiais no valor de 87.099,06 €, referentes ao calçado cujos defeitos verificados têm como causa direta a cortiça com a referência n.º 9153 que em todas as suas solas foi aplicada, por outro lado, são ainda difíceis de antecipar, nesta fase, as consequências e verdadeiro impacto que esta situação desencadeará nas relações comerciais que a nossa empresa venha a estabelecer com estes ou com outros clientes.”

40.º Nessa sequência, foi através da sua carta de resposta datada de 21/09/2022 que a R. surge, pela primeira vez, a recusar “qualquer responsabilidade pelos alegados defeitos reportados por V. Exas. na referida missiva (...) [e] rejeitar e devolver a vossa fatura n.º FAC 2022/1000 de 31/08/2022”.

41.º Coisa que a R. nunca havia feito em nenhuma das anteriores comunicações, o que, aliás, faz sentido, porque até então não tinha havido qualquer comunicação da A. passível de ser concebida como uma denúncia, nem qualquer responsabilidade tinha até ali sido imputada à R., com base na venda de cortiça defeituosa.

42.º Verificada a comunicação da denúncia efetuada pela A. na data de 11/08/2022 e recebida pela R. em 30/08/2022, e verificado que a resposta da R. àquela denúncia é efetuada por carta datada de 21/09/2022, por via da qual a R. “não aceita qualquer responsabilidade pelos alegados defeitos reportados por V. Exas. na referida missiva”, tendo a ação sido interposta na 28/02/2023, ter-se-á de concluir pela sua tempestividade, por se mostrar cumprido o prazo de seis meses preceituado no artigo 917.º do Código Civil.

43.º A denúncia não requer a observância de nenhuma forma especial, de acordo o disposto no art.º 219.º do CC, podendo ser veiculada por qualquer meio, desde que tal se revele adequado a comunicar a existência de um concreto defeito e proceda à sua inequívoca imputação ao vendedor.

44.º Ora, de nenhum dos e-mails equacionados pelo tribunal recorrido para aferir da data da realização da denúncia se constata a referência ao facto de a devolução do calçado se prender com a existência de defeitos na cortiça vendida pela R. e utilizada na sua conceção, e isso também não decorre, de forma alguma, do email de 30/04/2022, onde a A. apenas refere que “Infelizmente, o que tenho é o conteúdo deste mail. Ligue-me quando lhe for possível.”

45.º Nem o mero reencaminhamento que a A. se limita a fazer do e-mail da sua cliente, C..., datado de 14/04/2022, serviria para se dar como verificado que aquela comunicação de denúncia teria sido tacitamente efetuada, já que também não procede aquela entidade à indicação da natureza ou origem de qualquer defeito, e muito menos o faz com referência à matéria-prima vendida pela R., ou com imputação àquela.

46.º Ademais, e para efeitos de realização tácita da denúncia, não pode o mero reencaminhamento de informação pela A. ser reconduzido a “factos que, com toda a probabilidade, revelam” uma denúncia.

47.º Certo é que, foi por via da carta remetida pela A. à R. na data de 11/08/2022, e por aquela recebida em 30/08/2022, que a A. procedeu à denúncia do defeito da cortiça que tinha adquirido à R. para produção das solas que vieram, posteriormente, a integrar o produto final concebido por terceiro.

48.º Salvo melhor opinião, acabou o tribunal a quo por incorrer na mesma confusão conceptual que também a R. havia demonstrado na sua contestação, ao denominar, como o faz, indistintamente, os conceitos de anomalia e defeito, quando um e outro conceito não representam a mesma realidade de facto.

49.º A não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor ocorre sempre que este tenha certificado ao comprador a existência de determinadas qualidades na coisa e, posteriormente, se venha a constatar que essa certificação não corresponde à realidade. Sendo que essa certificação pelo vendedor de que a coisa possui certas qualidades, tanto pode ser efetuada de uma forma expressa, como tácita, nos termos gerais (art.217.º do CC).

50.º Essa certificação teve efetivamente lugar no caso dos autos e de uma forma expressa, considerando que i) pela R. foi emitida a declaração junta aos autos como Doc.12, da PI, ii) foram enviadas para a A. as fichas técnicas das cortiças 9431 e 9153, bem como, iii) foi pela R. divulgado no seu site o catálogo do qual consta que as referências encomendadas pela A. são próprias para calçado, iv) de ter sido a própria R. quem sugeriu a cortiça 9153 como sendo apta a substituir a cortiça 9431, e, ainda, iv) que A. e R. têm relações comerciais há mais de 20 anos, sempre nos mesmos e exatos termos.

51.º Concluindo-se, portanto, que a cortiça vendida pela R. à A. padece de um defeito intrínseco que a afeta e, mais do que isso, impede a utilização do produto final onde a cortiça veio a ser aplicada, já que a entressola que integra o sapato onde a cortiça foi utilizada não é capaz de sustentar o peso do seu utilizador.

52.º Além disso, até agosto de 2022, a A. apenas tinha tido acesso a um reduzido número de exemplares que não permitiam, de resto, averiguar a existência de defeitos, ou a sua origem.

53.º Só em agosto de 2022 é que a A. passou a estar na posse de elementos suficientes que lhe permitiram concluir que i) em causa estava um defeito e não uma anomalia, e que esse defeito impedia a utilização do produto final; ii) que esse defeito estava presente num número significativo de sapatos; iii) e que esse defeito era imputável à cortiça adquirida à R.

54.º Por raciocínio inverso, foi na mesma data que a A. passou a descartar a hipótese de se tratar de uma mera anomalia, ou de qualquer utilização anómala por parte do consumidor final.

55.º Em matéria de interpretação e integração da declaração negocial, vigora entre nós a chamada teoria da impressão do destinatário, com expressão, desde logo, nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil.

56.º Ora, é sobre o valor jurídico que nos autos é atribuído à missiva com data de 11/08/2022 e que foi enviada pela A. à R., que reside o ponto nevrálgico da problemática suscitada em sede de valoração e interpretação do sentido da declaração negocial.

57.º A primeira e única vez onde os termos da denúncia do defeito são expostos pela A., com imputação direta e inequívoca ao produto vendido pela R., e com pedido de ressarcimento pelos prejuízos causados na esfera da A., resulta, de forma clara, da carta remetida em 11/08/2022.

58.º Veja-se então que a R., que até aí nunca havia refutado qualquer responsabilidade quanto à existência de defeitos na cortiça vendida ou quanto aos prejuízos daí decorrentes, vem, pela primeira vez, e através da carta datada de 21/09/2022, enjeitar “qualquer responsabilidade pelos alegados defeitos reportados por V. Exas. na referida missiva”.

59.º É o próprio teor da resposta dada pela R. que primeiramente acaba por revelar o sentido e o alcance com que aquela recebeu a carta remetida pela A. e lhe atribuiu.

60.º Até por apelo às regras da experiência comum se deverá concluir que, à recusa de responsabilidade por defeitos imputados a determinado produto, há-de preceder uma primeira (e única) comunicação de denúncia de venda de produto defeituoso.

61.º De facto, é a própria R. quem acaba a afirmar na sua resposta de 21/09/2022 que “Acusamos a vossa carta datada de 10 de agosto de 2022, a qual mereceu a nossa melhor atenção. A B..., S.A. não aceita qualquer responsabilidade pelos alegados defeitos reportados por V. Exas. Na referida missiva.”

62.º Torna-se, de igual modo, evidente que é a carta enviada pela A. em 11/08/2022 que é pela R. expressamente reconhecida como o momento de formalização da denúncia, e nenhuma outra.

63.º Como sucede na interpretação da lei, a busca do sentido relevante da declaração negocial, quando documentada – como sucede in casu – deve partir da sua expressão literal, o que, considerada a denúncia efetuada por carta em 11/08/2022, bem como a resposta dada pela R. em 21/09/2022, acaba por nos conduzir à mesma solução.

64.º De tal modo que, seguindo de perto o critério da vontade real das partes, concluir-se-ia que apenas a carta remetida pela A. em 11/08/2022 poderá ser tida como denúncia.

65.º A mesma solução é, de resto, também alcançada pelo critério do sentido normal da declaração, aferido pelo n.º 1 do art.236.º do CC.

66.º Assim é que, tendo presente o quadro contratual em causa, deve o sentido normal da declaração ínsita na carta da A. de 11/08/2022 ser aquele que ali consta, em termos expressos: “calçado cujos defeitos verificados têm como causa direta a cortiça com a referência n.º 9153 que em todas as suas solas foi aplicada”.

67.º Submetida também ao teste do sentido normal da declaração a comunicação reencaminhada pela A., da autoria da C... e que data de 14/04/2022, alcançasse a mesma conclusão.

68.º Ainda que também o critério do sentido normal da declaração se mostrasse ineficaz para responder a esta problemática – o que não é o caso – restava, ainda, o apelo ao critério definido no art.237.º do CC.

69.º Ora, sendo o negócio em causa (compra e venda) um negócio oneroso, estava a A. convencida de que estaria a adquirir, mediante uma contrapartida patrimonial, um produto conforme, o que se mostrava reforçado quer pelas fichas técnicas e pela declaração (Doc. 12, da PI) emitidas pela R., quer pelo catálogo de vendas disponível, como pelo histórico de relacionamento comercial entre as partes que perdurava há mais de duas décadas.

70.º Foi, dessa forma, por via da declaração de denúncia emitida pela A. Em 11/08/2022 que se iniciou o caminho para a reposição do equilíbrio contratual a que alude o art.237.º do CC, quando em causa estão negócios onerosos.

71.º Aliás, a manutenção da solução perfilhada pelo tribunal recorrido ao considerar que denúncia da A. se fez pelo e-mail de 30/04/2022, e não pela carta de 11/08/2022, serve apenas, à luz do que preceitua o art.237.º do CC, para concentrar na esfera da A. a totalidade dos prejuízos originados pela devolução do calçado, que, por sua vez, teve como causa direta e adequada a aplicação da cortiça com defeito vendida pela R.

72.º Nunca poderia ter sido esse o trilho decisório percorrido pelo tribunal a quo, na medida em que, não tendo submetido as comunicações aos critérios de integração e interpretação das declarações negociais, como se lhe impunha, caminhou mal ao desconsiderar como denúncia a carta da A., datada de 11/08/2022, e de, por via disso, acabar por concluir pela caducidade do direito da A. de propor a ação.

73.º Mas mesmo que persistisse em dúvida quanto ao sentido das declarações negociais, acabou o tribunal recorrido por também não cuidar de apurar a solução que prosseguiria o maior equilíbrio contratual, nos termos do art.237.º do CC, e que passaria pelo julgamento da tempestividade da propositura da presente ação.”

A Ré  B..., SA, veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo da seguinte forma:

1. “A Autora não apresenta uma única razão jurídica digna de caber neste infeliz recurso, que, por manifesta ausência de fundamentos, mais não visa do que atrasar o que foi decidido pelo Tribunal a quo – sublinhe-se - com rigor, tanto em matéria de facto, como em qualidade e precisão jurídica.

2. Analisados que sejam estes autos de recurso, resultará inatacável que:

a) o prazo legal de seis meses para a propositura da ação já tinha caducado aquando da apresentação da petição inicial;

b) a Autora não logrou provar, como era seu ónus, que a cortiça fornecida tivesse algum defeito imputável à Ré, porquanto: i) as características que a Ré certificou estavam presentes; ii) a cortiça cumpria as specs das fichas técnicas e as referências fornecidas são, tal como atestado, aptas para a produção de calçado; iii) a Autora, confessadamente, não cuidou de previamente analisar, ou mandar verificar, da aptidão da referência 9153 para a específica finalidade por si pretendida (que, nunca permitiu, fosse do conhecimento da Ré) – como, aliás, antes fez para a referência 9431);

c) Mais a mais, julgou-se demonstrado que a produção de calçado é um processo complexo que envolve diversos componentes, processos químicos e físicos até à sua conclusão, tudo quanto pode afetar a qualidade do sapato produzido ou até causar alteração em qualquer dos seus componentes, como ainda, que é o próprio design e conceção do calçado que definem as características dos componentes necessários, designadamente as forças, os esforços e as resistências a que cada um dos componentes é sujeito; e, por fim,

d) A Autora não logrou provar qualquer dano ou prejuízo por si sofrido. Página 25 de 25

1. não existe a mais pequena contradição, erro, incoerência ou deficiente apreciação ou valoração da prova no Julgamento da Matéria de Facto;

2. afigura-se inteiramente correta e inatacável a motivação da decisão sobre a matéria de facto;

3. afigura-se inteiramente correta e inatacável a decisão de Direito.

Termos em que, o presente recurso de apelação deve ser julgado manifestamente infundado, à luz do disposto no artigo 656º do CPC.

Caso assim se não entenda, em qualquer caso, deve ser-lhe negado provimento, confirmando-se in totum a Douta Sentença recorrida, com todas as consequências legais.”

O Recurso foi admitido como Apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - OBJETO DO RECURSO:

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões do recurso, que, assim, definem e delimitam o objeto do mesmo.

As questões a dirimir, delimitadas pelas conclusões do recurso são as seguintes:

- modificabilidade da decisão de facto por reapreciação das provas produzidas e eventual alteração da decisão de direito em consequência de tal modificação.

- contagem do início do prazo da caducidade, para o que se mostra necessário saber quando é que se mostra feita a denúncia dos defeitos.

III - QUESTÃO PRÉVIA:

Já neste Tribunal da Relação, veio a Recorrente juntar aos autos um requerimento contendo a transcrição integral do depoimento das testemunhas prestados na audiência de julgamento.

A Recorrida porém, veio opor-se a tal junção, alegando que não encontra pertinência na junção aos autos da transcrição apresentada pela Autora-Recorrente, nem o comando do artigo 651.º do CPC o permite. Não fica assegurado o estatuto de igualdade das partes (cfr. artigo 4.º do CPC)

Donde, se lhe afigura a prática de um ato inútil (artigo 130.º do CPC) por banda da Autora-Recorrente, pedindo por isso para que aquela transcrição ser desentranhada.

Cumpre apreciar.

Desde logo cumprirá clarificar que o que foi junto pela recorrente, já se encontrando os autos de recurso neste Tribunal, não foi um documento, cuja junção ficaria sujeita ás regras de admissibilidade excecionalmente permitida nas situações previstas no art. 651º do CPC.

Não estando nós perante a junção de prova documental, cumpre apreciar se é admissível a junção das transcrições dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, pela recorrente, que impugnou a matéria de facto no recurso que interpôs.

Não se destinando aquela junção a colmatar qualquer deficiências que se pudessem verificar no recurso interposto, considerando os ónus impostos ao recorrente pelo artigo 640º do CPC, concretamente no seu nº 2 alínea a), deficiências que não se verificam, só podemos interpretar tal junção, como feita ao abrigo da princípio da cooperação, principio esse com consagração expressa no art. 7º do C.P.C., permitindo dessa forma ao tribunal de recurso acompanhar a audição da gravação, com a transcrição escrita, o que revela manifesta utilidade.

Não se vê ainda que tal junção ofenda a igualdade das partes, sendo certo, que, a Recorrida, que respondeu ao recurso, poderia, querendo, usar de igual faculdade de colaboração com o tribunal.

Determina-se pois, que a transcrição fique nos autos.

IV - MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO:

Decorre do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa." (sublinhado nosso).

A “Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei nº 113/XII salientou o intuito do legislador de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada ao referir que “para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar insuficiente, obscura ou contraditória – são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede á reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material”.

A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes[1], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.

O Tribunal da Relação deve pois, exercer um verdadeiro e efetivo segundo grau de jurisdição da matéria de facto, sindicando os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos impugnados diversa da recorrida, e referenciar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações dos recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais.[2]

Porém, a possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta pois tal só é admissível quando os meios de prova reanalisados não deixem outra alternativa, ou seja, em situações que, manifestamente, apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo, melhor dizendo, “imponham decisão diversa”.

É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.

O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos consagrados pelo n.º 5 do art.º 607.º do C.P. Civil, sem olvidar porém, o princípio da oralidade e da imediação.

Na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância[3].

Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada[4].

Por último, há que atender ainda na tarefa de reapreciação da prova produzida que, a apreciação da modificabilidade da decisão de facto é atividade reservada a matéria relevante à solução do caso, devendo a Relação abster-se de conhecer da impugnação cujo objeto incida sobre factualidade que extravase o objeto do processo – sendo propósito precípuo da impugnação da decisão de facto, o de possibilitar à parte vencida a obtenção de decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido quanto à interferência na solução do caso, ou seja, fica a impugnação limitada àquela cuja alteração/modificação se mostre relevante para a decisão a proferir.

Assim sendo, sob pena de estar a levar a cabo atividade inútil, infrutífera, vã e estéril, deve a Relação abster-se de apreciar da impugnação da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto relativamente a factualidade que não interfere de modo algum na solução do caso, sendo alheia à sorte da ação.[5]

Tendo isto presente, após audição das gravações e análise da prova documental junta aos autos, importa apreciar as razões de discordância da Recorrente ao decidido na sentença, quanto aos factos aí julgados provados e não provados, sendo certo que se mostram por si observados na impugnação da matéria de facto a que procedeu, como já tivemos ocasião de referir, os ónus  impostos pelo art. 640º do CPC.

A Recorrente impugna por não se conformar com a redação e sentido dado aos factos 12), 16), 22), 48), 49), 58) e 68), dados como provados.

Tal como, também não se conforma com os factos a), b), m), r) e s), dados como não provados.

Relativamente ao facto indicado 16), a sua inclusão na factualidade impugnada ter-se-á devido a lapso, já que com exceção da sua inclusão na conclusão 2, nada mais é dito a seu respeito.

Quanto ao demais, vejamos.

Pretende a recorrente ver alterada a decisão relativa aos seguintes factos que foram julgados provados:

Facto 68:

68) A Autora produziu sapatos utilizando matéria-prima que não cuidou de verificar se era ou não apropriada para aquele fim e design específico;

Defende a Recorrente que o facto 68) deva passar a ter a seguinte redação: “A Autora produziu entressolas utilizando matéria-prima que cuidou de verificar se era apropriada para aquele fim e design específico”.

Para tanto invoca os depoimentos prestados pelas testemunhas AA, e BB, assim como os documentos 3 e 4 juntos com a Contestação.

Em primeiro lugar, ressalta desde logo uma imprecisão, na redação deste facto.

É que afirma-se aí que Autora produziu sapatos utilizando matéria-prima, quando a autora não produz sapatos.

Tal como emergiu provado a Autora foi contratada pela sociedade C... Lda, com vista à produção e posterior venda, pela primeira à segunda, de entressolas de sapatos em cortiça

As referidas entressolas vendidas pela Autora à C... destinavam-se, posteriormente, a integrar o calçado final produzido por esta última, o que assim veio a suceder (factos 4 e 5 dos factos provados).

Portanto a autora produz componentes de calçado, componentes esses que se destinam aos seus clientes, esses sim, fabricantes de sapatos.

Também não pode subsistir o demais aí afirmado, ou seja, que a autora não cuidou de verificar se era ou não apropriada para aquele fim e design específico, porquanto resulta da prova produzida que a autora, inteirando-se da falta de stock na ré da cortiça que habitualmente utilizava no fabrico de componentes de sapatos, (9431 sem EVA), o que a impedia de cumprir com as obrigações assumidas para com os seus clientes, foi informada pela testemunha BB, que da parte da ré era quem tratava diretamente com os clientes, que existia uma alternativa, informando-a da existência da cortiça 9431 com EVA, que tinha em stock e que podia ser utilizado para o mesmo fim (para componentes de calçado – solas).

A testemunha BB confirmou no seu depoimento que foi ela quem apresentou este produto à autora e que lhe disse que o mesmo poderia ser usado em substituição do encomendado, que era usado pela autora há muitos anos.

EE, responsável pela produção da autora que tratou diretamente com BB desta encomenda confirmou que o produto a ser comprado em alternativa à cortiça que se encontrava em falha de stock, foi-lhe apresentado por aquela, tendo-lhe sido dito que tinha o mesmo comportamento que o primeiro. Que aquela vendedora lhe garantiu que tinha igual comportamento ao da cortiça habitualmente adquirida.

Pediu a ficha técnica dos produtos, constatando apenas uma diferença no peso, que não era inconveniente para a produção de entressolas., aceitando dessa forma, comprar em vez da cortiça 9431, a cortiça que em alternativa foi indicada como substituta pela vendedora.

Não podemos ainda esquecer que a própria ré, (aqui já não através da sua funcionária, mas por si),  assegurou, por escrito, mediante declaração escrita que entregou à autora e que esta lhe havia solicitado (por se tratar de uma cortiça que nunca utilizara), a sua alta qualidade para ser utilizada na área do calçado. Ver o doc 13 junto com a pi (corresponde ao facto 8 dos factos provados) e o pedido feito pela autora – documento 5 junto com a contestação.

A Ré assegurou, com efeito, por escrito à autora, através da declaração datada de 23.12.2020 o seguinte: “B..., S.A. vem por este meio assegurar que os materiais de aglomerado de cortiça adquiridos pela empresa E..., S.A. foram especificamente desenvolvidos para a área do calçado, através de componentes e processos de alta qualidade.” (cfr. facto 8 dos factos provados) (sublinhado nosso).

Refere-se em geral à área do calçado, não podendo ser dela excluída naturalmente as entressolas e solas que constituem componentes do calçado.

Não se pode assim afirmar, a nosso ver, que a autora não se tenha informado das caraterísticas desde novo material de cortiça que pretendia usar no fabrico de componentes de calçado, produto esse que lhe foi indicado em alternativa pela ré, vendedora, como produto substituto da cortiça 9431 que havia sido encomendada, tendo a autora tido o cuidado (porque não conhecia o produto e porque o cliente final o exigia no caderno de encargos)   de pedir certificação do mesmo, que lhe foi concedida pela ré, tendo-lhe dessa forma sido assegurado a utilização em calçado.

Acresce que mantendo as partes entre si uma relação comercial de mais de duas décadas, a ré não podia desconhecer que o que a autora fabricava eram solas e confiança inerente a tão longa relação comercial, não justificava, em face das circunstâncias que a autora para além dos cuidados que teve, já mencionados, fizesse outros testes.

Impõe-se assim que o facto 68 seja julgado não provado.

Factos 48) e 49):

48) O que mereceu a resposta da Ré, por carta datada de 21.09.2022, e na qual esta sustenta, em súmula, não aceitar “qualquer responsabilidade pelos alegados defeitos reportados (...) [pois que cabe ao cliente] realizar os testes internos adequados para se assegurar que o produto é apto ao fim que pretende.”;

49) Com especial nota, ainda, para a alegação de que “nunca nos foram remetidas amostras de produto não conforme, nem quaisquer resultados de testes periciais (...) pelo que ao departamento e qualidade da B... nunca foi permitido apurar da efetiva existência de um problema (...)”;

Defende a recorrente que a forma como estão redigidos estes factos indicia que a Autora não alega coisa diferente do que resulta da redação desse facto – o que não sucede.  Assim, sugere uma redação diversa para os mesmos.

Sem razão, porém, porque os factos impugnados, reproduzem o teor da carta datada de 21.09.2022. Daí que não vejamos qualquer relevância, na pretensão da recorrente.

Dessa forma, mantém-se a aludida factualidade.

Factos 12) e 22) e da apreciação do facto n.º 58:

12) Tendo a Autora questionado a Ré quanto à existência de outro material, de outra referência, com caraterísticas semelhantes, que pudesse ser entregue mais rapidamente que o da 9431, sem que especificasse a que componente da sola se destinava;

22) Toda a cortiça adquirida perante a Ré o foi sob o pressuposto de que a mesma se destinava exclusivamente à produção de solas de calçado pela Autora, sem especificação de que se tratava de entressolas;

58) Aquando da encomenda, a Autora não apresentou a descrição de qual seria a aplicação do produto ao nível da sola;

Defende  a Recorrente que a alteração da redação dos factos provados n.ºs 12) e 22) e da apreciação do facto n.º 58) no sentido de serem dados como não provados.

 Para este efeito, indica os seguintes meios de prova: os Docs. 3 e 4 junto com a Contestação, bem como os factos 21), 50) a 54) dados como provados, além do testemunho de AA e o testemunho de FF.

Vejamos.

Relativamente a estes factos, objeto de impugnação, afigura-se-nos desde logo irrelevante a alteração da matéria de facto ora impugnada, importando mesmo uma “falsa questão”, dada sua irrelevância para a decisão.

Com efeito, através desta ação pretende a autora ser indemnizada pela ré, em consequência de venda de coisa defeituosa.

Dispõe o art. 913º nº 1 do C.C. que se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.

Mais dispõe o nº 2 que quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.

Distinguem-se aqui quatro categorias de vícios:

a) Vício que desvalorize a coisa;

b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada;

c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor;

d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina, por apelo à função normal das coisas da mesma categoria.

Para o que ora interessa, o fim da coisa vendida – cortiça – era a sua incorporação em componentes para calçado.

É irrelevante a nosso ver, tendo em consideração, o defeito verificado – o calçado em causa não é capaz de suportar o peso do seu utilizador – se o material vendido pela ré era para ser usado como sola ou entressola. Um e outro tinham necessariamente de conseguir suportar o peso do consumidor!

A entressola, é um componente da sola, em sentido amplo.

E analisando as fotografias juntas aos autos, pensamos até que os danos teriam sido mais gravosos, se a cortiça tivesse sido aplicada na sola, em contacto mais próximo com o solo. Provavelmente ter-se-ia desintegrado nos primeiros passos…

Ora provou-se que, (factos 42 e ss) tanto das reclamações apresentadas pela D... e pela C..., como das reclamações dos consumidores finais que deram origem àquelas, resultou a comum indicação de que o calçado em causa não é capaz de suportar o peso do seu utilizador, cedendo a parte inferior da entressola mesmo após uma escassa utilização e exposição a um ambiente de humidade, impossibilitando, assim, a utilização do calçado no qual se procedeu à aplicação da cortiça produzida e vendida pela Ré à Autora.

E tendo a autora mais tarde precedido a analise técnica dos sapatos produzidos pela sua cliente, feita perante o Centro Tecnológico do Calçado de Portugal, aquele concluiu, no sentido de que “O tipo de separação observado em todos os provetes ensaiados consiste em rasgamento do material que constitui a plataforma e que “Face ao acima exposto parece-nos que as possíveis causas que terão originado a separação/ descolagem entre os materiais estarão relacionadas com uma baixa resistência física do material de cortiça que constitui a plataforma, sendo que esta rasga a valores considerados baixos.”

Clarificando, ainda, a este propósito que “O baixo valor obtido não pode ser atribuído a um processo de colagem inadequado, mas sim a uma baixa resistência física da cortiça (rasga a valores baixos)”.

Ou seja, esta cortiça, usada como entressola (ou sola), rasga, não permitindo que seja utilizada em calçado.

Daí que, para o desfecho desta ação, mostra-se irrelevante a questão (discutida é certo na ação, porque suscitada na defesa da Ré), de saber se a ré sabia ou não concretamente que para esta componente a cortiça ia ser utilizada em entressola e não na sola.

O que não podia desconhecer, atenta a relação comercial de mais de 20 anos, é que a autora destinava a cortiça componentes de calçado tais como a sola, que tem de suportar o peso do consumidor de sapatos.

Como vimos já, a Ré assegurou, por escrito á autora, por escrito, que a cortiça adquirida pela autora foi especificamente desenvolvida para a área do calçado, através de componentes e processos de alta qualidade.

Também a publicidade da marca usada pela ré ...®, conforma resulta dos documentos juntos pela própria ré, na contestação assegura que “...® é uma marca da B... exclusivamente dedicada ao desenvolvimento e fornecimento de soluções e materiais para a indústria do calçado.

A cortiça é reconhecida pela sua natureza inovadora e por permitir uma fácil adaptação aos processos de transformação.

As principais características da cortiça, tais como a leveza, o isolamento térmico, a respirabilidade, a impermeabilidade e a compressão/recuperação, oferecem um desempenho notável, auxiliando na distribuição de pressão e controlo da temperatura, assegurando um maior conforto.

Há décadas que os seus benefícios em aplicações ortopédicas para a indústria do calçado têm vindo a ser comprovados de forma consistente.”

E ainda que “...® é a marca da B... dedicada exclusivamente ao desenvolvimento e fornecimento de soluções e materiais para a indústria do calçado. Com três linhas de produtos - moda, conforto e ortopedia - é centrada na investigação e aplicação dos benefícios da cortiça para maximizar o conforto dos pés. A vasta experiência da B... na indústria do calçado, juntamente com os seus clientes e parceiros, resultou na elevada competência técnica dos seus produtos e posicionou a indústria do calçado como um sector estratégico para a empresa.

Os materiais ...® estão disponíveis em folhas e rolos e consistem em matérias-primas cuidadosamente selecionadas que permitem uma utilização simples e termomoldação. As diferentes composições e a diversidade da granulometria das matérias-primas cuidadosamente selecionadas possibilitam a modelação de produtos simples e confortáveis que satisfaçam os requisitos mais exigentes dos clientes.

Os fabricantes conhecem as vantagens do uso da cortiça na produção de calçado há muitos anos. Desde modelos ortopédicos especializados a visuais modernos, a cortiça oferece uma ampla gama de aplicações para calçado, garantindo um elevado desempenho em termos de conforto, leveza, distribuição do peso corporal, absorção de impactos, recuperação de compressão e excelente isolamento térmico. A cortiça assegura um processo fácil que torna o fabrico dos componentes uma tarefa simples e económica.”

Ou seja a Ré assegura aos seus clientes que a cortiça que vende é apropriada e benéfica na sua utilização na área do calçado.

Desta forma, por se tratar de atividade inútil, não se conhece da impugnação destes factos, uma vez que é indiferente aos desfecho da ação saber se especificamente a ré sabia que a cortiça ia ser usada na entressola e não na sola do calçado.

Quanto aos factos não provados, a Recorrente impugna a resposta dada aos seguintes factos:

Facto m):

m) Só em agosto de 2022, quando a Autora teve finalmente acesso aos lotes de sapatos recolhidos e pôde concluir, tal qual recentemente o tinha feito a C..., que as anomalias reportadas eram na realidade defeitos cuja causa era a cortiça fornecida pela Ré;

Alega a Recorrente que, este facto deveria ser dado como provado, com base nos seguintes elementos de prova: Doc. 9 junto com a Contestação, bem como depoimento da testemunha AA.

Que o conhecimento do defeito ocorreu em Agosto (aquando da receção dos sapatos não vendidos remetidos pela C... e imediato uso / teste por parte das trabalhadoras da Autora).

Em Agosto a Autora verificou que o produto vendido pela Ré padecia de um defeito – conclusão a que não poderia ter chegado antes, uma vez que nunca tinha tido sapatos acabados e não usados para analisar (conforme também resulta do facto n.º 32) dado como provado).

Que a reclamação efetuada pela C... à Autora não se confunde com a reclamação efetuada pela Autora à Ré, a qual foi formalizada na carta expedida a 11 de Agosto.

Assim, conclui, deve o facto não provado m) ser dado como provado.

Vejamos.

Pensamos que não assiste razão à recorrente, baseada desde logo na prova documental junta aos autos, concretamente na troca de correspondência entre autora e ré, através das suas funcionárias.

Com efeito, a autora não teve conhecimento da existência de defeitos no calçado, apenas quando lhe são devolvidos pelas suas clientes os lotes de sapato. Existe documentação suficiente nos autos que afasta este facto.

A autora foi anteriormente informada pelas suas clientes (a C... sua cliente e a D... a cliente final do produto acabado), da existência de reclamações por parte dos consumidores, disso tendo aliás, prontamente dado conhecimento à ré, como consta da correspondência eletrónica trocada entre as funcionárias da autora EE e AA com a vendedora da ré BB, que se mostra reproduzida na factualidade julgada provada.

Também se provou que foram remetidas amostras à autora com o produto defeituoso, em data anterior, tendo a autora remitido uma amostra à ré, para análise.

Vejam-se a este respeito os documentos 9 e 12 da contestação, que contrariam que a autora só tenha tido conhecimento dos defeitos, com a formalização da reclamações feitas perante si pela C... sua cliente e a D....

Aliás basta ler o e-mail enviado a 23.5.2022 a BB, - Documento 12 da contestação, onde AA, a diretora geral da autora afirma:

“Bom dia.

Sucedem-se as reclamações relativas aos produtos com cortiça.

Neste momento já vamos na terceira.

Se no caso da D..., não sabemos precisar qual o tipo de cortiça, mas nos dois outros casos, sabemos que é cortiça com EVA.

Estou a suspender encomendas, os prejuízos já ascendem os 100. 000€.

Vocês têm dados técnicos desta cortiça?

Não é possível que seja, de facto, um produto para calçado… eu já não sei o que dizer aos meus clientes.”

Dessa forma, impõe-se a manutenção do decidido, indeferindo-se a alteração.

Impugna ainda a Recorrente, o facto b):

b) A Autora remeteu à Ré amostras do calçado danificado;

Alega para tanto que, o facto b) deva ser remetido para o leque de factos provados e corrigido (“b) A Autora remeteu à Ré amostras do calçado danificado;”).

Alega que, relativamente ao facto b), com base no depoimento da testemunha AA, BB, se considere esse facto como provado e, em simultâneo, corrigido, para o seguinte: “A Autora remeteu à Ré uma amostra do calçado danificado em Março de 2022.”

Tem a Recorrente razão. Este facto está em contradição com o facto provado 64.

64) Tendo a Autora enviado à Ré uma amostra do calçado antes do dia 15 de março de 2022.

Daí que deva ser eliminado o facto b).

E deve ser acrescentado que se tratava de uma amostra de calçado danificado, acrescentando-se isso ao facto 64.

Com efeito, de acordo com as regras da experiência e da normalidade, não fazia sentido, ter a autora, respondido ao pedido da ré duma amostra, enviando-lhe uma amostra em boas condições, até porque como referiu a testemunha AA, na altura recebera apenas dos seus clientes três pés, tendo ficado com dois para proceder a analises e remetendo um à ré.

Coisa diversa é a ré não reconhecer qualquer defeito na mostra ou quaisquer outros produtos da autora, (como não reconheceu na carta de 21.9.2022, como não reconhece nesta ação.

Impugna ainda a Recorrente os factos r) e s).

Factos os factos r) e s):

r) O valor da fatura emitida pela C... foi liquidado por via de um encontro de contas com futuras encomendas realizadas por esta;

s) Daquele de encontro de contas resultou que a Autora deixou de receber os pagamentos devidos pela C... no seguimento das encomendas que se seguiram, no valor de €109.222,84, correspondente ao montante de €88.799,06, acrescido de IVA à taxa legal de 23%;

Defende que devem ser dados como provados.

Fundamenta nos testemunhos de CC, contabilista da C... (sessão de 14/11/2023) e de DD, contabilista da E..., as quais referem a mesma realidade, embora por palavras distintas, não entrando em contradição, como foi erradamente julgado na sentença recorrida.

Na sentença, o tribunal fundamentou a falta de prova destes factos no seguinte: “Relativamente às alíneas r) e s) a sua não prova resultou da contradição entre o depoimento da testemunha CC, contabilista da C..., que referiu que a Autora pagou a fatura emitida pela C... através de um encontro de contas, já que era simultaneamente cliente e fornecedora, e o da testemunha DD, que mencionou que a fatura foi liquidada por ter sido o valor deduzido na conta-corrente, no sentido alegado pela Autora de que o encontro de contas se fez deduzindo valores que esta tinha a receber da C... relativos a trabalhos futuros.”

Verificando-se a contradição apontada relativamente a estes dois depoimentos justifica-se a nosso ver a resposta negativa dada a esta matéria, que assim se mantém.

Por último, impugna a Recorrente o facto a):

a) A Ré conhecia bem a finalidade à qual a Autora destinava os produtos que a Ré lhe forneceu;

Dizendo que foi dado como não provado, porém, não corresponde à realidade e que foi suficientemente produzida prova no sentido de se considerar esse facto provado.

 Para tanto, alega a Recorrente, convocam-se os factos 1), 3), 8), 10) e 13) dados como provados; o Doc. 3 da Contestação; o Doc. 13 junto com a P.I.; o depoimento de EE e o testemunho de BB.

Entendemos que este facto deve ser eliminado, pela simples razão de que, não indicando a que finalidade se refere, que já consta da restante factualidade, não deve ser autonomizado, até por poder, por tal razão suscitar contradições.

Assim, decide-se eliminá-lo do elenco dos factos selecionados, com interesse para a decisão.

V - FUNDAMENTAÇÃO:

Mostram-se julgados provados os seguintes factos:

1) A Autora tem como atividade comercial o fabrico e venda de componentes para calçado;

2) A Ré, por sua vez, dedica-se ao fabrico e comércio de artigos de cortiça e correlativos, cortiça borracha, borracha e seus derivados;

3) As partes relacionam-se comercialmente há mais de 20 anos;

4) No exercício da sua atividade comercial, a Autora foi contratada pela sociedade C... Lda, com vista à produção e posterior venda, pela primeira à segunda, de entressolas de sapatos em cortiça;

5) As referidas entressolas vendidas pela Autora à C... destinavam-se, posteriormente, a integrar o calçado final produzido por esta última, o que assim veio a suceder;

6) Neste seguimento, procedeu a C... à venda do referido calçado ao grupo D... - ...;

7) Grupo que, por sua vez, veio a colocar e comercializar aqueles produtos no mercado retalhista sob os modelos denominados como Arienne Fisherman Sandal e Lara Chuncky Feminine, integrando-os na marca premium da sua linha designada por Arket;

8) Em 23.12.2020, a Ré emitiu a seguinte declaração:

“B..., S.A. vem por este meio assegurar que os materiais de aglomerado de cortiça adquiridos pela empresa E..., S.A. foram especificamente desenvolvidos para a área do calçado, através de componentes e processos de alta qualidade.” (cfr. documento n.º 13, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

9) A encomenda/requisição que surge imediatamente após este pedido, em 20 de janeiro de 2021, é a requisição n.º 58, relativa a três blocos de cortiça com a referência 9431;

10) Para a produção das entressolas a que se alude no facto 4º, a Autora solicitou à Ré o fornecimento de uma referência específica, ou seja, a referência 9431 (sem EVA);

11) O prazo de entrega da cortiça com a referência n.º 9431 (sem EVA) indicado pela Ré não satisfazia os interesses da Autora;

12) Tendo a Autora questionado a Ré quanto à existência de outro material, de outra referência, com caraterísticas semelhantes, que pudesse ser entregue mais rapidamente que o da 9431, sem que especificasse a que componente da sola se destinava;

13) O que motivou a Ré a indicar à Autora a utilização da cortiça identificada com a referência n.º 9153 (com EVA) para fornecimento dos restantes blocos, material que esta nunca havia adquirido antes;

14) A Ré enviou à Autora as fichas técnicas daqueles produtos com as referências 9431 e 9153, onde constam as caraterísticas garantidas dos mesmos, em 26.03.2021;

15) Enviadas as ditas fichas técnicas, onde constavam as caraterísticas, nenhuma objeção ou pedido adicional de informação foi solicitada à Ré, conformando-se a Autora com as mesmas;

16) Nessa sequência, a Ré solicitou o fornecimento das referências n.ºs 9431 e 9153 (a que corresponde a designação em catálogo F008), através das requisições n.ºs 204, datada de 4.03.2021, 241, datada de 12.03.2021 e 295, datada de 29.03.2021;

17) Totalizando 55 blocos de cortiça produzida e comercializada pela Ré, identificados pelas referências n.ºs 9153 (com EVA) e 9431 (sem EVA), conforme decorre das requisições feitas pela Autora, bem como das faturas emitidas pela Ré e liquidadas pela Autora;

18) A que acresceram 18 blocos de cortiça durante os meses de dezembro de 2020, janeiro e março de 2021, referentes à cortiça identificada pela referência n.º 9431 (sem EVA) – de acordo com as faturas n.ºs ...08; ...58; ...62; ...06 e ...29;

19) Destas compras, os primeiros blocos de cortiça adquiridos pela Autora reportavam-se à cortiça comercializada com a referência n.º 9431 (sem EVA),

20) Os fornecimentos que se seguiram àqueles foram já realizados com recurso à cortiça identificada com a referência n.º 9153 (com EVA);

21) A referência n.º 9153 (com EVA), correspondia a corticite + EVA (espuma vinílica acetinada), material, de resto, frequentemente usado na produção de calçado;

22) Toda a cortiça adquirida perante a Ré o foi sob o pressuposto de que a mesma se destinava exclusivamente à produção de solas de calçado pela Autora, sem especificação de que se tratava de entressolas;

23) O processo de identificação, aquisição e tratamento da cortiça por parte da Autora decorreu dentro da normalidade;

24) Do fornecimento total de 73 blocos de cortiça feito pela Ré e para os fins descritos no art. 4º, acabaram a ser produzidos, a final, 2.675 pares do calçado correspondente ao modelo Arianne e 700 pares do calçado correspondente ao modelo Lara;

25) Nos meses que seguiram à comercialização daqueles modelos de calçado no mercado retalhista, verificaram-se sucessivas reclamações por parte dos consumidores finais;

26) Em 25.11.2021, foi pela Autora remetido à Ré um email com o seguinte teor: “Venho por este meio informar que existe uma reclamação sobre umas solas fabricadas por nós, com a vossa cortiça 9153 e 9431.

Trata-se de uma sola com 4 cm de altura por todo e que não está a suportar o peso do consumidor.

Ao final de pouco uso e com humidade a sola cede atrás.

O nosso cliente é a D... e as quantidades produzidas são significativas.

Note-se que ainda não tivemos acesso ao número efetivo de reclamações.

Queremos acreditar que toda a cortiça que nos fornecem está apta para a utilização em solas.

Iremos aguardar outros desenvolvimentos.” (cfr. documento n.º 20, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

27) Através deste email foi pela Autora transmitida a existência da primeira reclamação isolada sobre solas fabricadas, tal como a identidade do cliente em causa (D...) e o desconhecimento quanto ao número efetivo de anomalias; 28) Em 29.11.2021, a Ré respondeu à Autora nos seguintes termos:

“(…) Antes de formalizar reclamação interna no nosso sistema, pedia-lhe pf que confirmasse o seguinte:

- Aplicação do material: estão a utilizar como sola final ou como entressola, onde colam posteriormente um material mais borrachoso como sola? No caso da segunda opção, qual a espessura que estão a utilizar?

- Humidade: referem-se à a humidade relativa do ambiente ou a contacto direto com água? Se possível, pf detalhar como observam esta situação.

Adicionalmente envio em anexo especificação de produto destes dois materiais. Os ensaios presentes indicam o comportamento/resistência do material à compressão (ensaios solicitados por alguns clientes para esta aplicação), contudo, a validação e aprovação final do material na aplicação é usualmente realizada pelo cliente (cfr. documento n.º 8 anexo à contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

29) Após estes emails, seguiram-se várias trocas de e-mails e, pelo menos, uma reunião on-line entre as partes, tendo, para este efeito;

30) Em 21 de fevereiro de 2022, a Autora remeteu à Ré um email com o seguinte teor: “Foi hoje, formalizada e quantificada, a reclamação que já havíamos identificado.

Penso que será melhor marcar uma reunião com o vosso departamento técnico ou outro que seja do vosso entendimento.

Em Portugal só está um par de sapatos, dos que foram devolvidos, mas eu já pedi para enviarem mais alguns (cfr. documento n.º 1, anexo à contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

31) O e-mail datado de 21 de fevereiro de 2022 visava manter a Ré a par da informação que até ali a Autora lhe vinha a prestar quanto às anomalias detetadas no calçado;

32) Era impossível, à data de 21 de fevereiro, proceder a uma imputação corroborada acerca da origem e causa dos defeitos;

33) No dia 30 de abril de 2022, a Autora remeteu um email à Ré, onde escreveu “Infelizmente, o que tenho é o conteúdo deste mail. Ligue-me quando lhe for possível.” e reencaminhou o email que lhe foi remetido pela C..., em 14 de abril de 2022, com o seguinte teor:

Bom dia Eng.ª AA,

Conforme pedido na última reunião, passo mais elementos da reclamação do modelo Arienne & Lara.

1 – fotos que deram origem à reclamação;

2- ficheiro em Excel com: quantidades vendidas; quantidades em stock; análise das reclamações (valores de quando a D... começou a receber reclamações, número de devoluções, comparação entre pares vendidos e reclamado);

No que toca à devolução dos pares, a mercadoria só poderá ser enviada para a C..., porque em termos contratuais a C... é detentora de produto acabado e a E... apenas das solas.

A D... estará sempre disponível para ajudar no que for necessário, mas alertaram de que a cadeia de comunicação será sempre: D... – C... – E...” (cfr. documento n.º 2 anexo à contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente por reproduzido);

34) Tal email reencaminhado continha, em anexo, fotografias de calçado e, para além do mais, a indicação do preço de €42,80 para o modelo Arieene e €44,51 para o modelo Lara;

35) E, ainda, de que se encontravam em stock 1696 pares do modelo Arienne e 326 do modelo Lara;

36) Dos dados fornecidos pela Autora, em email de 30.04.2022 resulta:

a) do universo de 2675 pares de sapatos modelo Arienne, produzidos pela cliente da Autora, foram vendidos 750, e, desses, apenas houve 32 reclamações, o que representa 4,26% de defeito nos pares vendidos e 1,19% dos pares produzidos;

b) do universo de 712 pares de sapatos modelo Lara, produzidos pela cliente da Autora, foram vendidos 401, e, desses, houve 10 reclamações, o que representa 2,49% de alegado defeito nos pares vendidos, 1,40% dos pares produzidos;

37) A D..., na qualidade de retalhista, apresentou, em data não concretamente apurada, reclamação perante a C..., enquanto empresa responsável pela produção e distribuição do calçado em causa;

38) Tendo emitido a respetiva nota de débito, no valor de €87.099,06, em 13 de julho de 2022;

39) Tendo, por sua vez, a C... apresentado, em data não concretamente apurada, a sua reclamação perante a aqui Autora;

40) Tendo emitido a sua nota de débito, no valor de €109.222,84, em 11 de agosto de 2022;

41) O valor debitado pela D... e que se fez recair, a final, sobre a Autora respeita à recolha de:

i. 1.696 pares de sapatos com a referência Arianne, ao custo de €42,80 por recolha/par, no valor total de €72.588,80;

ii. 326 pares de sapatos com a referência Lara, ao custo de €44,51, por recolha/par, no valor total de €14.510,26;

42) Tanto das reclamações apresentadas pela D... e pela C..., como das reclamações dos consumidores finais que deram origem àquelas, resultou a comum indicação de que o calçado em causa não é capaz de suportar o peso do seu utilizador;

43) Cedendo a parte inferior da entressola mesmo após uma escassa utilização e exposição a um ambiente de humidade;

44) Impossibilitando, assim, a utilização do calçado no qual se procedeu à aplicação da cortiça produzida e vendida pela Ré à Autora;

45) E que viria a culminar na retirada definitiva de todos os pares de calçado produzidos ainda existentes no mercado, num total de 1696 pares do modelo Arienne e 326 pares do modelo Lara;

46) A Autora recebeu, ainda, reclamações de pelo menos um cliente que não a C..., reportando o mesmo problema relativamente à cortiça vendida pela Ré com as referências mencionadas (cfr. documento n.º 17, anexo à petição inicial);

47) A Autora remeteu à Ré uma missiva, no dia 11 de agosto de 2022, datada de 10 de agosto e rececionada no dia 30 do mesmo mês e ano, com o seguinte teor: “No seguimento das relações comerciais que entre a A..., S.A. e a B..., SA tem vindo a ser estabelecidas e, conforme é do conhecimento de V.Exas, procedeu a A..., S.A. à aquisição da cortiça produzida pela vossa empresa e identificada pelas referências n.º 9153 e 9431, sob o pressuposto de a mesma ser exclusivamente destinada à produção de solas de calçado premium a cadeias retalhistas multinacionais, com vincada presença no setor internacional da moda.

Não obstante o processo de identificação, aquisição e tratamento da cortiça identificada pela referência n.º 9153 ter decorrido quanto à sua conformidade e adequação para a finalidade supra aludida, serve a presente missiva para dar conta a V.Exas da existência de sucessivas reclamações que nos têm sido endereçadas pelos nossos clientes relativamente aos produtos que com aquela cortiça foram fabricados e que, nestes termos, fundamentam a reclamação que presentemente se formaliza perante V.Exas.

Conforme havia sido transmitido em momento antecedente à aquisição da cortiça com a referência n.º 9153, tanto esta, como a cortiça identificada pela referência n.º 9431, se destinavam à produção de solas de calçado pela A..., S.A., calçado este que, de resto, não só se destinava a ser vendido em mercado retalhista pela empresa D..., como, ainda, se destinava a integrar a versão premium da linha daquela marca, designada por Arket.

De facto, não eram altas as expectativas criadas, tanto pela nossa Cliente (C..., Lda), como pela própria A..., S.A., em torno do calçado vendido, as quais, aliás, vieram a ser confirmadas dada a procura e impacto que o mesmo teve perante o consumidor final.

Foi, assim, de forma surpreendente que, em 13 de julho de 2022, fomos confrontados com a reclamação apresentada pela D... à empresa de calçado C..., Lda, e que, em 27 de julho de 2022, a C..., Lda procedeu também à formalização da sua reclamação perante a A..., S.A.

Ora, das reclamações apresentadas pela D... e C..., Lda, bem como das reclamações que lhes deram origem e foram efetuadas pelos consumidores finais, resultou a comum indicação de que o calçado em causa, na sua generalidade, não é capaz de suportar o peso do seu utilizador, cedendo, inclusive, a parte anterior da sola após a sua escassa utilização e exposição a um ambiente de humidade – Cfr. Fotografias em anexo.

Naturalmente que, perante os defeitos que vêm sendo apontados e que nos foram devidamente transmitidos, torna-se evidente a impossibilidade de utilização do calçado no qual se procedeu à aplicação da cortiça com a referência n.º 9153 e que culminou na retirada definitiva de todos estes pares do mercado.

É de salientar, no entanto, que as consequências decorrentes das reclamações por nós recebidas não bastante além das de natureza financeira – que são, de resto, significativas -,revelando, igualmente, um profundo impacto reputacional para a A..., S.A.

Se, por um lado, são já certo e quantificáveis prejuízos materiais no valor de 87.099,06€ referentes ao calçado cujos defeitos verificados têm como causa direta a cortiça com a referência n.º 9153 que em todas as suas solas foi aplicada, por outro lado, são ainda difíceis de antecipar, nesta fase, as consequências e verdadeiro impacto que esta situação desencadeará nas relações comerciais que a nossa empresa venha estabelecer com estes ou com outros clientes.

Concretiza-se, contudo, a este respeito, que o valor dos prejuízos materiais de possível quantificação, até à presente data, e que cifram no montante de 87.099,06€ se referem à:

- Recolha de 1696 pares de sapatos com a referência “Arienne”, ao custo de 42,80€ por recolha/par, no valor total de 72.588,80€ - Cfr. documento em anexo;

- Recolha de 326 pares de sapatos com a referência “Lara”, ao custo de 44,51€ por recolha/par, no valor total de 14.510,26€ - Cfr. Documento em anexo.

Além disso, também outros clientes para os quais procedemos ao fabrico de solas de calçado nas quais foi utilizada a cortiça com a referência n.º 9153, adquirida junto da B..., S.A., nos transmitiram, ainda que sem dedução até ao momento de reclamação formal, ter-se verificado a desfragmentação da cortiça quanto sujeita à compressão própria da utilização do calçado, independentemente da sua exposição, ou não, a um ambiente de humidade.

Destarte, é pelos motivos supra expostos, pela ausência de disponibilização dos elementos de informação já solicitados – como, por exemplo, vossa análise técnica da cortiça com a referência n.º 9153 – e por se encontrar, à presente data, a A..., S.A. a aguardar pela especial análise pericial solicitada ao calçado sobre o qual ao valor indemnizatório devido pelos defeitos verificados nas solas comercializadas pela A..., S.A. e que têm como causa direta a cortiça com a referência n.º 9153, fornecida por V.Exas (…) (cfr. documento n.º 18, anexo à petição inicial);

48) O que mereceu a resposta da Ré, por carta datada de 21.09.2022, e na qual esta sustenta, em súmula, não aceitar “qualquer responsabilidade pelos alegados defeitos reportados (...) [pois que cabe ao cliente] realizar os testes internos adequados para se assegurar que o produto é apto ao fim que pretende.”;

49) Com especial nota, ainda, para a alegação de que “nunca nos foram remetidas amostras de produto não conforme, nem quaisquer resultados de testes periciais (...) pelo que ao departamento e qualidade da B... nunca foi permitido apurar da efetiva existência de um problema (...)”;

50) A Autora requereu, em 20.09.2022, perante o Centro Tecnológico do Calçado de Portugal, a análise de vários dos sapatos que instruíram o procedimento de reclamação da D... à C... e desta última à Autora;

51) Tendo-se aquela entidade pronunciado por via do Boletim de Ensaios n.º BA-8020A/2022, datado de 13.12.2022, no sentido de que “O tipo de separação observado em todos os provetes ensaiados consiste em rasgamento do material que constitui a plataforma.” –Cfr. Doc. 21, junto e que se dá como reproduzido para os devidos efeitos legais;

52) Aí se afirmando ainda que “Face ao acima exposto parece-nos que as possíveis causas que terão originado a separação/ descolagem entre os materiais estarão relacionadas com uma baixa resistência física do material de cortiça que constitui a plataforma, sendo que esta rasga a valores considerados baixos.”

53) Clarificando, ainda, a este propósito que “O baixo valor obtido não pode ser atribuído a um processo de colagem inadequado, mas sim a uma baixa resistência física da cortiça (rasga a valores baixos)”;

54) Esse teste foi realizado segundo a norma ISSO 17708-2018, que corresponde à determinação da resistência à adesão entre duas superfícies, podendo ser avaliada em todo o sapato, em várias camadas e suas bases, nos remates, lacagem, zona sola/parte superior ou entressola.

55) A Ré, embora forneça matéria-prima (cortiça e compósitos) para a fabricação de diversos produtos, entre os quais o calçado, não fabrica ou jamais fabricou calçado;

56) A Ré não tem qualquer intervenção ou controlo na conceção, design, ou fabrico dos ditos produtos, limitando-se tão somente ao fornecimento de uma matéria-prima de cortiça ou compósito com determinadas caraterísticas técnicas (como descrito nas fichas técnicas/specs);

57) As referências encomendadas pela Autora são da gama fashion/moda para calçado do catálogo da Ré, tal como se encontra no site ... aplica%C3%A7%C3%B5es/cal%C3%A7ado/ e nos respetivos catálogos;

58) Aquando da encomenda, a Autora não apresentou a descrição de qual seria a aplicação do produto ao nível da sola;

59) Ao nível da sola, a matéria-prima que a Ré vende pode ser aplicada com funções tão diversas como solas propriamente ditas, entressolas ou cunhas;

60) A produção de calçado é um processo complexo que envolve diversos componentes, processos químicos e físicos até à sua conclusão, tudo quanto pode afetar a qualidade do sapato produzido ou até causar alterações em qualquer dos componentes;

61) É o próprio design e conceção do calçado que definem as caraterísticas dos componentes necessários, designadamente, as forças, os esforços e as resistências a que cada um dos componentes pode ser sujeito;

62) Tendo que ser averiguado se os componentes se adequam ao fim pretendido, designadamente, as forças e resistências aplicadas à cortiça/compósito em função do design delineado;

63) Por email de 4.03.2022, a Ré solicitou amostras de produto fabricado com a matéria prima vendida;

64) Tendo a Autora enviado à Ré uma amostra do calçado danificado antes do dia 15 de março de 2022; (redação alterada)

65) Permitindo, assim, à Ré efetuar todos os testes que entendesse como necessários;

66) A Ré solicitou à Autora amostras do produto com defeito, a fim de o submeter a testes, como resulta do email enviado em 21.03.2022;

67) Em 24.03.2022 voltava a Ré a solicitar amostra NÃO OK (“NOK”) para análise;

68) eliminado

69) Consoante o emprego desejado, nomeadamente como palmilha, sola propriamente dita, entressola ou revestimento diferentes serão as necessidades técnicas da cortiça;

70) À data da sua conceção e até à sua comercialização, não havia sido transmitida nenhuma indicação adversa acerca do produto;

71) As devoluções do produto pelos consumidores e a indicação de vícios no mesmo apenas começaram a surgir já depois da sua efetiva disponibilização no mercado retalhista;

72) As anomalias apontadas manifestaram-se e tornaram-se percetíveis para a Autora em momento posterior à utilização do calçado pelo consumidor final.

73) A presente ação foi proposta em 28.02.2023;

E foram julgados não provados os seguintes factos.

a) eliminado

b) eliminado

c) A matéria-prima vendida à Autora pode ser aplicada com funções tão diversas como palmilhas e revestimento;

d) A Autora não pediu à Ré aconselhamento na conceção, ou forneceu desenhos, protótipos ou referiu necessitar de indicação de caraterísticas adicionais

e) Alguns materiais, pelas caraterísticas garantidas nas fichas técnicas, não são concebidos para serem utilizados em dado produto;

f) A falta de remessa de uma amostra de calçado danificado (NOK) impediu a Ré de verificar ou confirmar o que aquela alegava;

g) A Autora fez tábua rasa das caraterísticas técnicas do material fornecido;

h) A Autora escolheu um material que não era o correto para as superfícies que pretendia unir ou, ainda, que usou colas, lacas, adesivos ou outros materiais inadequados às superfícies e finalidades em causa;

i) Com o email de 21 de fevereiro de 2022, a Autora pretendia que a Ré, então conhecedora da postura tida por uma terceira entidade, pudesse, se assim julgasse adequado, reagir;

j) Com o email de 30 de abril de 2022, a Autora visava obter apoio, acompanhamento e participação ativa da Ré no processo de investigação que visaria apurar, com maior rigor técnico, a verdadeira causa e origem daqueles defeitos;

k) O email de 30 de abril de 2022 mais não é do que a expressa manutenção da vontade da Autora em colaborar ativamente com a Ré, de forma a apurar a efetiva existência de anomalias, bem como a sua origem e causa concretas;

l) Após 30 de abril, a Autora continuou a remeter à Ré informações na esperança de que esta viesse prestar quaisquer esclarecimentos ou, pelo menos, colaborar mais ativamente na determinação da causa das anomalias;

m) Só em agosto de 2022, quando a Autora teve finalmente acesso aos lotes de sapatos recolhidos e pôde concluir, tal qual recentemente o tinha feito a C..., que as anomalias reportadas eram na realidade defeitos cuja causa era a cortiça fornecida pela Ré;

n) A Ré nunca deu conta à Autora dos mecanismos de indagação por si levados a cabo ou dos seus resultados para apuramento da origem dos defeitos;

o) A aparente postura de diálogo da Autora perante a Ré terá servido para protelar quaisquer diligências de investigação mais rigorosas que permitissem à Autora, num período mais precoce, apurar a verdadeira causa do defeito;

p) Numa clara tentativa de fazer com que a Autora não procedesse, naquela altura, à apresentação de qualquer reclamação, correndo, inclusive, o risco de ver ultrapassados os prazos legais para o fazer;

q) Foi a própria Ré quem contribuiu, em inúmeras ocasiões, para embargar o processo indagatório levado a cabo pela Autora;

r) O valor da fatura emitida pela C... foi liquidado por via de um encontro de contas com futuras encomendas realizadas por esta;

s) Daquele de encontro de contas resultou que a Autora deixou de receber os pagamentos devidos pela C... no seguimento das encomendas que se seguiram, no valor de €109.222,84, correspondente ao montante de €88.799,06, acrescido de IVA à taxa legal de 23%;

t) Fruto da natureza do produto final concebido e do processo de produção associado ao mesmo, qualquer vício ou anomalia de que o produto padecesse sempre seria dificilmente detetável a “olho nu” numa primeira fase.

u) A Autora produziu sapatos utilizando matéria-prima que não cuidou de verificar se era ou não apropriada para aquele fim e design específico; (facto ora acrescentado)

VI - APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:

DA EXCEÇÃO DA CADUCIDADE

Na sentença objeto de recurso, foi julgada procedente a exceção da caducidade arguida pela Ré na contestação, tendo em consequência, a Ré sido absolvida do pedido.

A autora/recorrente não se conforma com esta decisão, divergindo da mesma quanto à data em que deve ser iniciado o início do cômputo do prazo de caducidade de 6 meses para a propositura desta ação, defendendo que não pode ser considerada como denúncia dos defeitos, o e-mail que remeteu á ré em 30 de Abril de 2023 e  que a sentença recorrida considerou ter a natureza de declaração de denúncia dos defeitos.

Na sentença recorrida, após se considerar ser aplicável ao caso, a jurisprudência decorrente do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência datado de 20 de abril de 2023, que, pondo termo a uma longa controvérsia quanto ao prazo de caducidade do direito a propor a ação a que respeita o art. 917º decidiu que: “A ação de indemnização fundada na venda de coisa indeterminada de certo género defeituosa está submetida ao prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do Código Civil, a tanto não se opondo o disposto no artigo 918.º do mesmo Código”, julgou ser aplicável o prazo estabelecido no art. 917º do C.C.  de propositura da ação, no prazo de 6 meses após a denúncia, o que não se mostra controvertido nestes recurso, considerando ainda ter já decorrido tal prazo, por entender que a denúncia dos defeitos teve lugar, “Quando em 30 de abril, já na posse de amostras de calçado, a Autora remete à Ré um email, reencaminhando o da sua cliente, do qual já constam fotografias e a informação que o calçado será devolvido à C... e desta à Autora, o número de pares que está em causa e o seu preço unitário, elementos que fez constar da missiva datada de 10 de agosto e remetida no dia 11, tem este que ser lido na sequência dos anteriores. Ou seja, através do reencaminhamento deste email, a Autora informa a Ré que na sequência de defeitos nas solas fabricadas com a cortiça 9153 e 9431 (informação de novembro) serão devolvidos 1696 pares do modelo Arienne, ao custo unitário de €42,80, e 326 do modelo Lara, ao custo unitário de €44,51 (factos 33º a 35º).

Nesta data, formaliza-se a denúncia do defeito, já que inexiste nenhum elemento posterior que tivesse acrescido àquela informação.

Com efeito, a missiva remetida no dia 11 de agosto pela Autora à Ré, pese embora assinalando que se trata da formalização da denúncia, é um mero resumo de todas aquelas informações contidas no email de 30 de abril, já que nada lhe acrescenta (nem quanto à devolução do calçado, nem quanto à origem do problema, nem tão pouco quanto ao valor), sob pena de haver caducidade da própria denúncia.

Assim sendo, estando o negócio cumprido, tendo a Autora denunciado o defeito em 30 de abril, tem que se concluir que os seis meses para a propositura da ação, contados desde a data da denúncia, ou seja, já há muito se encontravam esgotadas quando a ação foi proposta em 28 de fevereiro de 2023.”

A discordância da recorrente é apenas, como vimos, quanto à questão de saber se este e-mail junto aos autos datado de 30/04/2022 (que não nega ter remetido á ré), pode ou não ser considerado com denúncia dos defeitos.

Defende a Recorrente que, ao invés, foi tempestiva a propositura da presente ação judicial, porquanto, se deve considerar como denúncia a missiva que foi enviada pela Autora à Ré, em data posterior, ou seja, em 11/08/2022, e que foi pela ré recebida e á qual a Ré respondeu, declarando não assumir qualquer responsabilidade pelos defeitos verificados.

Alega que, verificados os e-mails anteriores àquela carta, em nenhum deles procede a Autora a qualquer imputação efetiva quanto à origem e à causa do defeito verificado.

Daí defender que o tribunal a quo extraiu conclusões erróneas daquele e-mail remetido em abril à Ré.

A primeira dessas conclusões erróneas, diz a Apelante, é de que “a Autora remete à Ré um email, reencaminhando o da sua cliente, do qual já constam fotografias e a informação que o calçado será devolvido à C... e desta à Autora (...)”, quando não é isso o que consta do e-mail, nem foi isso o que na prática sucedeu.

 O que a A. refere naquela comunicação é que “No que toca à devolução dos pares, a mercadoria só poderá ser enviada para a C...”, nada chegando a referir quanto ao envio desses mesmos pares para a A.

 Sendo certo, em todo o caso, que por ocasião do e-mail de 30/04/2022 já a R. tinha na sua posse amostras do calçado que lhe permitiam “efetuar todos os testes que entendesse como necessários” – factos provados n.ºs 64 e 65.

A segunda conclusão a que erradamente chegou o tribunal recorrido foi no sentido que, “através do reencaminhamento deste email, a Autora informa a Ré que na sequência de defeitos nas solas fabricadas com a cortiça 9153 e 9431 (informação de novembro) serão devolvidos 1696 pares do modelo Arienne, ao custo unitário de €42,80, e 326 do modelo Lara, ao custo unitário de €44,51”.

 De facto, diz a Apelante, do e-mail enviado na data de 14/04/2022, pela C... à A., e do e-mail enviado pela A. à R. em 30/04/2022, nenhuma referência é feita quanto aos “defeitos” ou “solas”, tampouco quanto à “cortiça 9153 e 9431”, e muito menos quanto à Ré!

Na verdade, afirma, nenhuma referência é feita quanto à origem do defeito, nem quanto à imputação do mesmo a qualquer uma das partes envolvidas na cadeia de produção do calçado.

Vejamos se lhe assiste razão.

Decorre do disposto no art. 913.º do Código Civil que se a coisa objeto da venda sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, é reconhecido ao comprador o direito à anulação do contrato – art. 905.º do Código Civil -, ou à redução do preço – art. 911.º do Código Civil -, e ainda a ser indemnizado pelos prejuízos sofridos – arts. 908.º e 909.º do mesmo diploma legal.

Como refere João Calvão da Silva,[6] “A coisa entregue pelo vendedor pode estar afetada de vícios materiais ou vícios físicos, vale dizer, defeitos intrínsecos inerentes ao seu estado material, e não ser, portanto, conforme ao contrato, dada a não correspondência às caraterísticas acordadas ou legitimamente esperadas pelo comprador.”

Para que o comprador possa exercer os seus direitos – no caso a autora pretende exercer o direito à indemnização pelo interesse contratual negativo, por incumprimento contratual – é indispensável que previamente o comprador proceda à sua denúncia tempestiva do defeito, nos termos do art. 916.º do Código Civil, dentro dos seis meses após a entrega da coisa e até 30 dias após ser conhecido o defeito (nº s 1 e 2 do art. 916º do C.Civil).

Não são porém estes os prazos para ser formalizada a denúncia, que se apresentam como controvertidos, mas o prazo que o comprador dispõe, uma vez feita a denúncia do defeito, para intentar ação destinada a exercer ou a fazer valer qualquer dos direitos que a lei lhe reconhece, sendo que a ação caduca decorridos seis meses sobre a data da denuncia tempestiva, nos termos do art. 917º do C.C.

Dispõe esta norma que: “A ação de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.º 2 do artigo 287.º”

A caducidade do direito de ação dá-se decorridos que sejam seis meses sobre a denúncia.

Nas palavras do Professor Pedro Romano Martinez, “Para haver responsabilidade por cumprimento defeituoso, em caso de compra e venda de coisas defeituosas é necessário que seja previamente feita a denúncia do defeito.

Importa que o comprador comunique ao vendedor o facto da coisa entregue padecer de um determinado defeito, ou seja que tem vícios ou que não corresponde á qualidade acordada. A denúncia será pois um ónus que impende sobre o vendedor”.[7]

Por outro lado, conforme art. 331º, nº 1 do Cód. Civil, “Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do ato a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo”.

Tratam-se de prazos muito curtos, pretendendo-se dessa forma defender o interesse do vendedor que pretende ver definida no mais curto espaço de tempo a sua responsabilidade pela existência dos defeitos, de modo a evitar o agravamento dos danos.

O ónus da prova da efetivação da denúncia cabe ao comprador, dada a sua condição de exercício de direitos (artigo 342.º nº1 do Código Civil), competindo ao vendedor, o ónus da prova do decurso do prazo de denúncia (artigo 342.º nº 2 do Código Civil).

Importa pois agora saber, em face da matéria de facto provada, quando é que se considera feita a denúncia da falta de  conformidade da coisa vendida (cortiça) pela Ré á autora, pois é a partir da denúncia que se conta o prazo de seis meses que a autora dispunha para intentar esta ação.

É certo que, como diz a Recorrente, a denúncia não requer a observância de nenhuma forma especial, de acordo o disposto no art.º 219.º do CC, podendo ser veiculada por qualquer meio, desde que tal se revele adequado a comunicar a existência de um concreto defeito e proceda à sua inequívoca imputação ao vendedor.

A declaração de denúncia é uma declaração negocial recetícia, sem forma especial para ser emitida, mediante a qual se comunicam, de forma precisa e circunstanciada, os defeitos de que a coisa padece”.[8]

Também Menezes Cordeiro, afirma que, a lei não prevê uma forma solene, podendo ser efetuada de qualquer modo (219º), e pode ainda ser tacita (217º).

Recomenda, porém “o recurso á forma escrita: a denúncia pode ser o ponto de partida para um litígio, cabendo salvaguardar os competentes meios de prova.”[9]

A denúncia pode ser assim feita por qualquer meio (telefone, carta, via oral, notificação avulsa, citação para ação, etc.).

Da matéria de facto provada resulta que a autora, surpreendida com a falta de qualidade da cortiça que lhe foi vendida pela ré, para ser usada em componentes de calçada, em substituição da cortiça que habitualmente adquiria á ré para essa mesma finalidade, diligentemente foi informando a ré, dos problemas que as suas clientes (C... e D...), lhe foram transmitindo,  relacionadas com a devolução pelo consumidor final dos sapatos produzidos e vendidos por aquelas clientes da autora, em cuja produção integraram as entressolas produzidas pela autora com a cortiça que lhe foi vendida pela Ré.

Diz a apelante que, de nenhum dos e-mails equacionados pelo tribunal recorrido para aferir da data da realização da denúncia se constata a referência ao facto de a devolução do calçado se prender com a existência de defeitos na cortiça vendida pela R. e utilizada na sua conceção, e isso também não decorre, de forma alguma, do email de 30/04/2022, onde a A. apenas refere que “Infelizmente, o que tenho é o conteúdo deste mail. Ligue-me quando lhe for possível.”

 Nem o mero reencaminhamento que a A. se limita a fazer do e-mail da sua cliente, C..., datado de 14/04/2022, serviria para se dar como verificado que aquela comunicação de denúncia teria sido tacitamente efetuada, já que também não procede aquela entidade à indicação da natureza ou origem de qualquer defeito, e muito menos o faz com referência à matéria-prima vendida pela R., ou com imputação àquela.

Ademais, diz a Apelante, para efeitos de realização tácita da denúncia, não pode o mero reencaminhamento de informação pela A. ser reconduzido a “factos que, com toda a probabilidade, revelam” uma denúncia.

Só pela via da carta remetida pela A. à R. na data de 11/08/2022, e por aquela recebida em 30/08/2022, que a A. procedeu à denúncia do defeito da cortiça que tinha adquirido à R. para produção das solas que vieram, posteriormente, a integrar o produto final concebido por terceiro.

Da matéria de facto provada, resulta que nos meses que seguiram à comercialização daqueles modelos de calçado no mercado retalhista, verificaram-se sucessivas reclamações por parte dos consumidores finais.

A Autora de imediato dá conhecimento á ré, em 25.11.2021, da existência de uma reclamação sobre umas solas fabricadas por nós, com a vossa cortiça 9153 e 9431. Trata-se de uma sola com 4 cm de altura por todo e que não está a suportar o peso do consumidor. Ao final de pouco uso e com humidade a sola cede atrás.”

E adverte que: “Note-se que ainda não tivemos acesso ao número efetivo de reclamações.” Declara ficar a aguardar outros desenvolvimentos.

Não se pode considerar esta declaração como denúncia, porque a autora, no surgimento duma primeira reclamação, ainda não tem informação suficiente para imputar  o defeito á ré. Diz mesmo, o seguinte “Note-se que ainda não tivemos acesso ao número efetivo de reclamações e ainda que “Queremos acreditar que toda a cortiça que nos fornecem está apta para a utilização em solas.”

A Ré na resposta dada, em 29.11.2021, pede confirmação relativas à aplicação concreta da cortiça feita pela autora, mas entende já tratar-se de uma reclamação que pretende formalizar, pois afirma, “(…) Antes de formalizar reclamação interna no nosso sistema”

Após estes emails, seguiram-se várias trocas de e-mails e, pelo menos, uma reunião on-line entre as partes.

Em 21 de fevereiro de 2022, a Autora remeteu à Ré um email com o seguinte teor: “Foi hoje, formalizada e quantificada, a reclamação que já havíamos identificado.

Penso que será melhor marcar uma reunião com o vosso departamento técnico ou outro que seja do vosso entendimento.

Em Portugal só está um par de sapatos, dos que foram devolvidos, mas eu já pedi para enviarem mais alguns”.

Este e-mail visava manter a Ré a par da informação que até ali a Autora lhe vinha a prestar quanto às anomalias detetadas no calçado.

Destes factos resulta que ambas as partes, já nesta data, mostraram abertura para perceberem o que estava na origem da reclamação (até aí a existência duma única reclamação) do cliente final do calçado, suspeitando-se porém que pudessem existir mais.

Porém, tal como se provou (cfr. facto 32), era impossível, à data de 21 de fevereiro, proceder a uma imputação corroborada acerca da origem e causa dos defeitos.

No dia 30 de abril de 2022, a Autora remeteu um email à Ré, onde escreveu “Infelizmente, o que tenho é o conteúdo deste mail. Ligue-me quando lhe for possível.”

A autora reencaminhou o email que lhe foi remetido pela sua cliente C..., em 14 de abril de 2022, dando conhecimento à Ré do conteúdo do mesmo.

Nesse e-mail, a Cliente da Autora transmite-lhe “mais elementos da reclamação do modelo Arienne & Lara.”

E remete em anexo fotos que deram origem à reclamação e ficheiro em Excel com: quantidades vendidas; quantidades em stock; análise das reclamações (valores de quando a D... começou a receber reclamações, número de devoluções, comparação entre pares vendidos e reclamado).

 Tal email reencaminhado continha, em anexo, fotografias de calçado e, para além do mais, a indicação do preço de €42,80 para o modelo “Arieene” e €44,51 para o modelo “Lara”;

 E, ainda, de que se encontravam em stock 1696 pares do modelo Arienne e 326 do modelo Lara;

Tal como emergiu provado, dos dados fornecidos pela Autora, neste e-mail, consta a informação que a autora transmitiu a ré:

Que do universo de 2675 pares de sapatos modelo “Arienne”, produzidos pela cliente da Autora, foram vendidos 750, e, desses, houve 32 reclamações, o que representa 4,26% de defeito nos pares vendidos e 1,19% dos pares produzidos e que do universo de 712 pares de sapatos modelo “Lara”, produzidos pela cliente da Autora, foram vendidos 401, e, desses, houve 10 reclamações, o que representa 2,49% de alegado defeito nos pares vendidos, 1,40% dos pares produzidos.

Entendeu-se na sentença, que a comunicação dos defeitos da coisa vendida á ré através de denúncia operou-se através deste e-mail.

 Acompanhamos a Apelante quando afirma que dele, não se pode extrair que, através da transmissão desta informação a autora esteja a imputar à ré que a origem dos defeitos esteja na cortiça que lhe vendeu.

A autora transmite-lhe a extensão dos danos conhecidos até àquela data, ou seja que se trata de uma situação com uma maior dimensão do que a inicialmente transmitida. A situação do calçado que se partiu não ocorreu num único par, que dera origem á primeira reclamação de que lhe dera conhecimento, mas sim é um problema transversal ao calçado que foi produzido com componente fabricada pela autora com a cortiça vendida pela Ré.

Das fotografias do calçado danificado juntas, é visível a “olho nu” que os rasgos do calçado, ocorrem na parte onde existe cortiça.

Acontece que, depois de partilhar esta informação, que veio complementar a informação inicial, quanto á extensão dos defeitos, mas com junção de fotografias do calçado defeituoso, em 23.5.2022, a autora através da sua diretora AA remeteu à ré um e-mail, que foi junto como documento 1 com a contestação com o seguinte teor:

Bom dia.

Sucedem-se as reclamações relativas aos produtos com cortiça.

Neste momento já vamos na terceira.

Se no caso da D..., não sabemos precisar qual o tipo de cortiça, mas nos dois outros casos, sabemos que é cortiça com EVA.

Estou a suspender encomendas, os prejuízos já ascendem os 100. 000€.

Vocês têm dados técnicos desta cortiça?

Não é possível que seja, de facto, um produto para calçado… eu já não sei o que dizer aos meus clientes.

Aguardo,

AA (sublinhado nosso).

Recorrendo aos critérios de interpretação da vontade negocial, constantes dos arts. 236.º a 238.º do CC que constituem as diretrizes que visam vincular o intérprete a um dos sentidos propiciados pela atividade interpretativa, ordem a fixar o alcance ou sentido juridicamente decisivo da declaração negocial, seria esse o sentido que um declaratário, uma pessoa normal, razoavelmente instruída, diligente e sagaz em face dos termos da declaração entenderia.

Com efeito, a doutrina da impressão do destinatário, reconduzível ao âmbito do princípio da proteção da confiança, impõe ao declarante um ónus de clareza na manifestação do seu pensamento, desta forma se concedendo primazia ao ponto de vista do destinatário da declaração, a partir de quem tal declaração deve ser focada.[10]

Todavia, a lei não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário, significando o entendimento subjetivo deste, mas apenas concede relevância ao sentido que apreenderia o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário – a pessoa com capacidade, razoabilidade, conhecimento e diligência medianos.[11]

Daquela declaração, feita no contexto e na sequência de todos os e-mails anteriormente dirigidos à Ré, resulta que a  autora através da sua diretora está a apontar à ré que a origem dos defeitos no calçado (que anteriormente lhe comunicara) está na cortiça com EVA (que a Ré lhe vendeu), dizendo mesmo ser impossível que aquela cortiça seja apropriada para utilização em calçado.

É o que se pode extrair das declarações: “Sucedem-se as reclamações relativas aos produtos com cortiça”; “… sabemos que é cortiça com EVA” e, “Não é possível que seja, de facto, um produto para calçado”.

Nele, a autora informa ainda a Ré o valor dos prejuízos que contabilizou já ao dizer “Estou a suspender encomendas, os prejuízos já ascendem os 100.000€.”

Não se percebe que outro sentido possa ter a transmissão daquela missiva à ré, a quem fora já dado prévio conhecimento dos problemas haviam surgido no calçado produzido pela autora com componentes fabricados por esta com a cortiça que lhe vendera.

Entendemos assim que a denúncia dos defeitos à ré que lhe foi sendo transmitida, culminou com este e-mail em 23.5.2022, em que a autora aponta a origem dos problemas á cortiça vendida pela ré e lhe comunica o valor dos prejuízos que já sofreu.

Desta forma entendemos que o prazo de caducidade terá de ser contado da data deste e-mail, que lido no contexto da informação anteriormente transmitida pela autora á ré, está a denunciar a existência de defeitos na cortiça vendida.

Não obstante, mostra-se de igual forma ultrapassado o prazo de 6 meses para a propositura da ação, pelo que se impõe manter a decisão recorrida, que julgou procedente a exceção da caducidade.

Com efeito, apesar da factualidade provada resultar que o contrato entre as partes foi celebrado em plena pandemia “Covid”, nesta data já não se encontrava em vigor  as leis de suspensão de prazos que vigoraram no período de pandemia, nomeadamente a L. nº 1-A/2020 de 19 de março, a L. nº 4-B/2021 de 1 de fevereiro e a L. nº 13-B/2021 de 5 de abril.

Por outro lado, o impedimento da caducidade da denúncia do defeito só poderia ocorrer mediante o reconhecimento do direito do comprador por parte do vendedor como vem sendo considerado admissível, nos termos gerais do art. 331º, nº 2 do Cód. Civil, o que não se verifica.

Apenas se retira do comportamento da Ré espelhado na matéria de facto que aquela, na sequência das comunicações que lhe foram sendo feitas pela autora mostrou abertura para colaborar na deteção do problema, nunca tendo reconhecido, porém, que  a origem dos problemas surgidos no calçado objeto das reclamações dos consumidores finais,  estivessem na cortiça que lhe vendeu.

Desta forma, resta confirmar a sentença, que julgou procedente a exceção da caducidade.

VI - DECISÃO

Pelo exposto e em conclusão, altera-se a matéria de facto, em conformidade com o supra decidido, mas julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão que julgou procedente a exceção da caducidade.

Custas pela Recorrente.


Porto, 10 de julho de 2024.

Alexandra Pelayo

João Diogo Rodrigues

Maria da Luz Seabra


_________________________
[1] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225.
[2] Abrantes Geraldes in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[3] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014 (Henrique Antunes) e os acórdãos do STJ de 19/05/2021 (Júlio Gomes) e de 14/07/2021 (Fernando Baptista), todos in www.dgsi.pt.
[6] In Compra e Venda de Coisa Defeituosas, Conformidade e segurança, 2ª edição, pg. 39.
[7] Pedro Romano Martinez in Direito das Obrigações- Parte Especial- Contratos, Almedina, pg. 131.
[8] Pedro Romano Martinez, loc cit.pg 131.
[9] Loc citado, pg. 268.
[10] P. Mota Pinto, in Declaração Tácita, pg.206.
[11] Mesmo autor, ob. cit., pg.208.