Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15097/23.7T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO VILARES FERREIRA
Descritores: AUDIÊNCIA
DISPENSA
DECISÃO-SURPRESA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RP2024061815097/23.7T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 2^SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Do confronto dos arts. 591.º, n.º 1, 592.º, n.º 1, 593.º, n.ºs 1 e 3 e 597.º, todos do Código de Processo Civil, resulta que a tramitação de uma ação ou incidente declarativo, sob a forma de processo comum, de valor superior a metade da alçada da Relação, incluirá, em curso normal, a realização de uma audiência prévia, regra que apenas comporta duas exceções tipificadas: quando a lei assim o estabeleça, o que sucede nos casos mencionados no art. 592.º, n.º 1; e quando o juiz dispense a realização da audiência, ao abrigo do preceituado no art. 593.º, n.º 1.
II – “A dispensa pelo juiz da realização da audiência prévia, nos casos em que é obrigatória, nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, como forma de proporcionar às partes o exercício de faculdades processuais concedidas por lei, está ela própria igualmente sujeita ao contraditório, evitando-se assim decisões surpresa, expressamente vedadas pelo artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil”.
III – Conhecendo o tribunal do mérito da causa em saneador-sentença, dispensando a realização da audiência prévia sem se encontrarem reunidos os requisitos processuais para tal, a sentença enferma de vício de nulidade, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte do Código de Processo Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO N.º 15097/23.7T8PRT-A.P1

[Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 4]

Relator: Fernando Vilares Ferreira

Adjuntos: Maria Eiró

Artur Dionísio Oliveira

SUMÁRIO:

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EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

RELATÓRIO

1.

AA, BB, CC e DD, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que Banco 1..., S. A. lhes moveu, deduziram a presente oposição mediante embargos de executado, pugnando pela extinção da execução, tendo por base, essencialmente, a inexigibilidade da obrigação exequenda, atento o PER da sociedade devedora/avalizada, bem como o preenchimento abusivo / abuso de direito e falta de PERSI.

2.

A Exequente/ Embargada contestou os embargos, pugnando pela sua improcedência.

3.

Em 6.12.2023 foi proferido saneador-sentença, com o seguinte DISPOSITIVO:

[Pelo exposto, julgo improcedentes os presentes embargos de executado/oposição à execução, prosseguindo a execução como pedido pelo exequente.

Custas pelos aqui executados/embargantes, por terem ficado vencidos (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, e 529.º, n.ºs 1 e 4, do CPC”).]

4.

Sob os pontos I) e II) daquele saneador-sentença, antecedendo o conhecimento do mérito da causa, o Tribunal pronunciou-se assim:

[I – Dispensa da audiência prévia.

Atento o atual estado, a natureza e a simplicidade desta causa, é dispensada a realização da audiência prévia, nos termos do disposto no art.º 593.º, n.º 1, do CPC, passando-se a proferir os despachos previstos nos arts. 595.º, n.º 1, e 596.º, n.º 1, do CPC.


*

II - Valor da causa.

Fixo aos presentes embargos de executado o valor indicado na respetiva execução, na data da sua instauração (€20.629,91), nos termos do disposto nos arts. 296.º, 297.º, n.º 1, 299.º, n.º 1, 304.º, n.º 1, e 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.


*

III - Pressupostos Processuais.

O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

O processo é o próprio e não enferma de qualquer nulidade que o afete no seu todo.

As partes neste apenso são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, dispõem de legitimidade ad causam (são exequente e executados nos autos de execução) e estão devidamente patrocinadas.

Não há outras exceções dilatórias, nulidades processuais ou questões prévias de que importe, por ora, conhecer e que obstem à apreciação do mérito dos embargos (sendo no âmbito da decisão de mérito dos embargos que serão conhecidas e apreciadas as exceções invocadas quanto à execução).

5.

Não se conformando com a decisão que conheceu de mérito nos ditos termos, o Embargante AA interpôs o presente recurso de apelação, admitido com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, assente nas seguintes CONCLUSÕES:

 1.ª O Tribunal a quo decidiu de mérito, em sede de saneador-sentença, em manifesta violação do princípio do contraditório, dando como provados factos controvertidos, sem suporte documental.

2.ª Na petição de embargos foram impugnados os valores apostos na Livrança, dizendo-se expressamente que a dívida era inexigível, porque o Banco não podia colocar na livrança exequenda as datas que dela vieram a constar como sendo a data da sua emissão e a data de vencimento.

3.ª Ignorando esta questão, o Tribunal a quo entendeu poder conhecer de mérito, dizendo erradamente que iria proferir os despachos a que se referem os artigos 595º nº 1 e 596º nº 1 do CPC, quando apenas proferiu o despacho a que se refere o artigo 595º, proferindo sentença de mérito e dispensando a audiência prévia.

4.ª Pelo que o Tribunal a quo violou o princípio do contraditório.

5.ª A sentença recorrida integra assim uma verdadeira decisão-surpresa, devendo como tal ser revogada, revelando-se uma decisão nula por excesso de pronúncia, dado que conhece de matéria que, perante a omissão da audição das partes, não podia conhecer [arts. 615.º, n.º 1, al. d) CPC].

6.ª Conclui-se pois que o Tribunal não podia ter considerado como provados os factos constantes dos nºs 6 e 7 dos “Factos provados”, pois embora tais valores constem da livrança, os mesmos foram postos em causa pelos Embargantes.

7.ª Tais factos, porque impugnados teriam de ser averiguados, para determinar quais os valores efetivamente em dívida, à data da resolução do contrato e/ou de preenchimento da livrança.

8.ª Tal matéria deve, assim, ser dada como não provada.

9.ª Com efeito, o Exequente só indicou o valor de juros de mora contados após o vencimento da livrança e imposto de selo, o que fez na parte final do seu requerimento, isto sabendo-se que a A... pagou 43.000,00 (correspondente a 70% do capital em dívida, pelo que o capital em dívida era apenas de 20.000,00 e não 20.537,35 valor que, desta forma, foi abusivamente aposto na livrança.

10.ª A dívida exequenda não é líquida, pois o capital em dívida era apenas de 20.000,00 e não de 20.537,35, valor que lhe foi aposto sem que se discriminasse o montante relativo a juros (vencidos? desde quando? E que taxa, desconhecendo-se ainda o valor do imposto de selo e do imposto de selo sobre juros), valores não discriminados.

11.ª Na verdade, o Banco não podia colocar na livrança exequenda as datas que dela vieram a constar como sendo a data da sua emissão e de vencimento, desde logo porque em 12/07/2023, a sociedade subscritora da livrança dada à execução, mais concretamente a sociedade “B..., SA, apresentou um PER processo especial de revitalização que correu os seus termos sob o Proc. nº 2019/220T8STS no Juízo de Comércio de Santo Tirso, Juiz 6, conforme o Exequente demonstrou no requerimento executivo.

12.ª Assim, aquando da data de vencimento aposta na livrança (21/07/2023) a subscritora B... não podia ter procedido ao pagamento do valor aposto na livrança, porque havia já apresentado o PER de que o Exequente tinha conhecimento.

13.ª Por tal motivo, a livrança não foi apresentada formalmente a pagamento, pois que, nessa data, o Banco não podia acionar a subscritora, pois que tinha de cumprir os seus deveres de não acionamento da empresa em revitalização, de agir de boa fé e de procurar uma solução de consenso que permitisse a manutenção da empresa.

14.ª Desta forma, o Exequente agiu de má fé ao fixar o vencimento do título para o dia 21/07/2023.

15.ª Sucede que o Tribunal não se pronunciou sobre esta questão, pelo que a decisão recorrida no que a esta matéria respeita, é igualmente nula por omissão de pronúncia – artigo 615º alínea d) do CPC.

16.ª Para além de a devedora não podia pagar a um credor, em prejuízo dos demais, sendo certo que a dívida dos autos iria ser negociada com a generalidade dos seus credores e a dívida ora reclamada foi efetivamente renegociada através da forma prevista no plano de recuperação apresentado no processo, negociado com todos os credores e com o Banco Exequente.

17.ª Ou seja, na pendência do PER, relativamente ao qual o Exequente foi avisado por carta registada e convidado a negociar, a Devedora não podia pagar dívidas relacionadas no processo e posteriormente reclamadas no PER já identificado.

18.ª Pelo que o Exequente não podia ter preenchido a livrança com o valor de capital que lhe apôs, pelo menos sem explicar à subscritora e aos avalistas, a origem desse valor, pelo que o preenchimento da livrança foi abusivo.

19.ª Ora, por força do Artº 77º da LULL determina-se a aplicabilidade às livranças de determinadas legais disposições relativas às letras, sendo assim aplicável à livrança o disposto no artº 10º atinente à letra em branco.

20.ª Pelo que, também por esta via, o preenchimento da livrança é nulo, por violação de lei imperativa.

21.ª O Exequente não pode exigir da subscritora, nem dos avalistas, a dívida que reclamou neste processo e cujos juros previstos no plano de recuperação estão a ser pagos, regularmente e foram recebidos pelo Exequente.

22.ª Ficou provado, porque aceite, que houve pagamento de juro posterior ao alegado vencimento da livrança, o que igualmente demonstra má fé, desde logo porque os valores recebidos deveriam ter sido abatidos e reduzidos ao pedido exequendo.

23.ª Em suma, o capital aposto na livrança não corresponde ao capital em dívida à data do incumprimento das obrigações, por parte da B..., nem ao valor de capital em dívida à data do preenchimento, que foi abusivo.

24.ª Dispõe o artigo 217º do CIRE o seguinte:

“Com a sentença de homologação produzem-se as alterações dos créditos sobre a insolvência introduzidas pelo plano de insolvência, independentemente de tais créditos terem sido, ou não, reclamados ou verificados.”

25.ª No momento da instauração da execução, a dívida da subscritora havia sido modificada, em termos de pagamento, nomeadamente de tempo, pelo que o Banco Exequente, omitindo a sua atuação no PER e depois de saber que a dívida constante do plano homologado, agiu com manifesto abuso.

26.ª Atuação que integra abuso de direito quando decidiu executar os avalistas, depois de ter consentido a moratória à subscritora dos títulos, atuação que revela ainda má fé, porque manifestamente contraditória com a postura anterior que decidiu ter no processo de revitalização da devedora, podendo o aqui recorrente invocar tal exceção.

27.ª Ora, quanto a este preenchimento e aos seus termos, o que parece resultar do citado artigo 10º da LULL é que, ainda que o mesmo corresponda ao exercício de um poder atribuído pela LULL ao portador do título a quem o mesmo foi entregue voluntaria e conscientemente incompleto (ou seja com a intenção de deixar o seu ulterior preenchimento ao cuidado de outrem), o exercício desse poder de preenchimento do título há-de ser conforme à vontade que presidiu à assinatura do título em branco, seja essa vontade expressa e corporizada no pacto escrito de preenchimento (se existir) ou tácita ou implícita, decorrendo da própria relação fundamental que determinou a criação do título cambiário.

28.ª Por outro lado, também é sabido que a obrigação do avalista mantém-se mesmo que a obrigação que o mesmo garantiu seja nula por qualquer razão que não seja um vício de forma, o que significa que a sua obrigação é materialmente autónoma e independente em face da obrigação do avalizado, apenas não respondendo perante o devedor nos casos em a obrigação do avalizado seja ostensivamente inexistente ou inválida em virtude de vícios extrínsecos objectivamente revelados no próprio título (vício de forma).

29.ª Mas, não podemos esquecer que a responsabilidade do avalista é solidária com a dos demais obrigados cambiários (artigo 47º, n.º 1 e 77º, n.º 1, da LULL), não beneficiando o avalista da prerrogativa de excussão prévia dos demais co-obrigados, respondendo em primeira linha (e não a título subsidiário) pelo pagamento da letra ou livrança perante o respectivo portador.

30.ª Ora, havendo preenchimento abusivo, que não pode ser no processo invocado pela Devedora, porque o Exequente optou de má fé por não a executar, presumindo-se que pretendia continuar a receber os juros, tem de ser invocado pelos avalistas que, a pagarem o título, sempre ficariam, como ficam, subrogados no direito de crédito do Exequente que não está vencido e está a receber juros pela dívida que aceitou receber em prestações.

31.ª A conduta do Exequente, anteriormente descrita, em conjugação com a atitude de proposição da presente execução contra os avalistas, faz com que o presente direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da Justiça e ofende clamorosamente o sentimento jurídico dominante.

32.ª Diga-se ainda que, em abono do que se defende e a propósito de não poder exigir-se dos avalistas aquilo que não se exige da Devedora e a propósito da interpretação do disposto no nº 4 do artigo 217º do CIRE, explica Catarina Serra em nótula sobre esta norma que “a tutela conferida pelo artigo 217º, nº 4, do CIRE é uma tutela excecional e restrita aos casos de extinção do crédito e de redução do seu montante, não se aplicando, por exemplo, em situações de mera modificação de prazos de vencimento.»

33.ª No mesmo sentido, cita-se o Acórdão das RLG, de 24.04.2012, que se entende ser de aplicar a este caso, atentos os contornos e características específicas das situações em apreciação, que em tudo são semelhantes.

34.ª Conclui-se assim que o Exequente atua com abuso de direito quando preenche a livrança, com má fé, abusando da posse do título na forma do venire contra factum proprium, porque vem executar os avalistas usando uma livrança que não podia executar porque a dívida não está vencida.

35.ª Sintetizando, o credor portador de livrança em branco que preenche o título e executa os avalistas por estar impedido de acionar a devedora, em virtude da pendência de um PER e apõe no título uma data de emissão e de vencimento posteriores à entrada do processo de revitalização da subscritora da livrança atua com abuso de direito.

36.ª Abuso esse que decorre do facto de votar favoravelmente o plano de recuperação que prevê o pagamento de juro acrescido que tem vindo a receber, optando por executar de forma autónoma os avalistas para obter valores que aceitou receber de outra forma e impedir que sejam estes a receber tais juros, em sede de sub-rogação.

37.ª A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 3º nº 3, 591º nº 1 als. B) e d), 595º nº1 alínea b), 607º nº 5 todos do CPC, sendo a decisão nula nos termos do artigo 615º nº1 al. d) todos do CPC, violando ainda o artigo 334º, 341º 342º, nº 1 do CC e os artigos 10º, 17º e 77º da LULL, devendo assim ser revogada.

Termos em que e nos mais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, dando-se como não provados os factos constantes dos nºs 6 e 7 dos “factos Provados”, por ausência de prova, e ordenar-se o prosseguimento dos autos para averiguação desses factos controvertidos.

E só assim será feita JUSTIÇA!

6.

A Embargada contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

II.

OBJETO DO RECURSO

Considerando as conclusões das alegações apresentadas pelo Apelante – desnecessariamente prolixas e repetitivas, deve dizer-se –, e visto o preceituado nos artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil), importa, com precedência sobre as demais questões suscitadas, saber se a decisão recorrida enferma de vício de nulidade, por violação do princípio do contraditório, decorrente da preterição de audiência prévia.

III.

FUNDAMENTAÇÃO

1.

OS FACTOS

Relevam para a decisão os trâmites processuais de que demos sumariamente conta no Relatório supra.

2.

OS FACTOS E O DIREITO

2.1.

Da arguida nulidade da decisão por preterição da audiência prévia

Com relevância para decisão, importa desde logo ter em conta que o valor da presente causa, correspondente a 20.629,91€, é superior a metade da alçada do Tribunal da Relação (cf. art. 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).

Após a notificação da Exequente para contestar os embargos, estes passaram a seguir os termos do processo comum declarativo (cf. art. 732.º, n.º 2, do CPCivil)[1].

Com previsão, desde logo no art. 591.º, a audiência prévia encontra o seu principal fundamento nos princípios da cooperação e do contraditório, tal como explica PAULO PIMENTA[2]: “A audiência prévia contém virtualidades que a tornam um palco privilegiado onde, simultaneamente, actuam todos os intervenientes processuais, numa verdadeira comunidade de trabalho, sendo tal audiência um dos expoentes máximos da oralidade e da cooperação que caracterizam o processo civil moderno”.

Do confronto dos arts. 591.º, n.º 1, 592.º, n.º 1, 593.º, n.ºs 1 e 3 e 597.º, resulta que a tramitação de uma ação ou incidente declarativo, sob a forma de processo comum, de valor superior a metade da alçada da Relação, incluirá, em curso normal, a realização de uma audiência prévia, regra que apenas comporta duas exceções tipificadas: quando a lei assim o estabeleça, o que sucede nos casos mencionados no art. 592.º, n.º 1; e quando o juiz dispense a realização da audiência, ao abrigo do preceituado no art. 593.º, n.º 1. Com tais ressalvas, a audiência prévia é obrigatória, decorrendo da sua dispensa uma nulidade[3].

A dispensa da audiência prévia, nos termos do n.º 1 do art. 593.º, apenas é possível quando se destine aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do arti 591.º, ou seja: proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do art. 595.º; determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do art. 6.º e no art. 547.º; proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do art. 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes.

Tal significa que “o conhecimento do pedido, em fase de saneamento dos autos, obriga, de forma imperativa, o juiz à designação de audiência prévia, a realizar nos termos e para os efeitos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, facultando às partes a possibilidade de alegarem de facto e de direito sobre a matéria de que irá conhecer”[4].

No caso que nos ocupa, o Exmo. Juiz de Direito, sem sequer dar oportunidade às partes para se pronunciarem acerca da projetada dispensa da audiência prévia, determinou tal dispensa e, imediatamente, proferiu decisão sobre o mérito dos embargos.

Como se deixou bem sintetizado no cit. aresto do STJ, com o apoio de abundante doutrina, mormente dos ensinamentos do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, por via de múltiplos comentários a decisões dos nossos tribunais superiores[5]: [IV – A violação das regras processuais que consiste na omissão ilegal da realização de uma diligência obrigatória que deveria ter tido lugar nos autos (a audiência prévia), comunica-se à decisão de mérito subsequente que é proferida fora do momento próprio, numa altura em que ao juiz se encontrava expressamente vedada a possibilidade de tomar conhecimento dessa matéria. V – Tal decisão de dispensa da audiência prévia, que era no caso obrigatória, constituiu uma verdadeira decisão surpresa entendida enquanto “decisão que decide o que não pode decidir sem audiência prévia das partes”, surpreendendo as partes com o conhecimento que não poderia ter tido lugar antes de as mesmas exercerem o seu direito ao debate da matéria de fundo, de facto e de direito, não se circunscrevendo ao limitado e estrito âmbito da mera irregularidade procedimental, invocável nos comuns termos do artigo 195º, do Código de Processo Civil. VI – A análise da situação e suas consequências seria completamente diferente se o juiz a quo houvesse, antes de proferir a decisão de mérito, notificado as partes, informando-as deste seu propósito e advertindo-as de que o faria na ausência de oposição destas, o que, a verificar-se, significaria, nessas circunstâncias, a sua anuência a esta agilização do processado, bem como o seu reconhecimento quanto à desnecessidade de alegarem de facto e de direito antes da prolação decisão que, conhecendo do fundo da causa, definiria a sorte do pleito. VII - A dispensa pelo juiz da realização da audiência prévia, nos casos em que é obrigatória, nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, como forma de proporcionar às partes o exercício de faculdades processuais concedidas por lei, está ela própria igualmente sujeita ao contraditório, evitando-se assim decisões surpresa, expressamente vedadas pelo artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil. VIII – O respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjectivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que especialmente lhe incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante].

Pelo exposto, impõe-se-nos concluir pela nulidade da decisão recorrida, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas, baixando os autos à 1.ª instância com vista à oportuna designação da audiência prévia que obrigatoriamente deverá ter lugar, em estrita observância do disposto no artigo 591º, nº 1, alínea b), cumprindo-se - como o legislador assim consagrou - o princípio do contraditório.

2.2.

Por ter ficado vencida no presente recurso, a Apelada constituiu-se na obrigação de suportar as respetivas custas (cf. arts. 527.º, nºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º do RCProcessuais).

IV.

DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, na procedência do recurso, acordamos em:
a) Anular a decisão recorrida;
b) Determinar o prosseguimento dos autos em 1.ª instância, com vista à oportuna designação da audiência prévia que obrigatoriamente terá lugar, em observância ao disposto no art. 591.º, n.º 1, do CPCivil; e
c) Condenar a Apelada no pagamento das custas do recurso.


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Porto, 18 de junho de 2024
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Vilares Ferreira
Maria Eiró
Artur Dionísio Oliveira
____________________
[1] São deste Código todas as normas doravante citadas sem menção em contrário.
[2] Processo Civil Declarativo, 2.ª Edição, 2017, Almedina, pág. 256.
[3] Cf. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, 2020, Almedina, pp. 709-710; JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRA, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª Edição, 2018, Almedina, pp. 650-651.
[4] Cf. acórdão do STJ de 16.12.2021, relatado por LUÍS ESPÍRITO SANTO no processo 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[5] Publicados em Blog do IPPC (https://blogippc.blogspot.com).