Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PAULO COSTA | ||
Descritores: | CADUCIDADE DO DIREITO DE QUEIXA ERRADA IDENTIFICAÇÃO DO ARGUIDO | ||
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Nº do Documento: | RP2024061911524/21.6T9PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/19/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
Indicações Eventuais: | 1.ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O ofendido só teve conhecimento da identificação real do autor dos atos por si denunciados em sede de instrução, altura em que viu que o arguido não era o agressor II - A queixa pode ser apresentada sem a identificação do agente do crime. III - Havendo erro na identificação do arguido por parte do ofendido não ocorre extinção do procedimento criminal com base na caducidade da queixa. IV - Não se pode exigir ao ofendido que faça chegar ao conhecimento da autoridade judiciária encarregada da investigação todas as vicissitudes factuais e a identificação dos agentes do crime. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 11524/21.6T9PRT.P1
Relator: Paulo Costa. Adjuntos Lígia Figueiredo José Quaresma
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
No âmbito do processo comum que sob o n.º 11524/21.6T9PRT corre termos Juízo Local Criminal do Porto- J4, Comarca do Porto, por despacho foi decidido: “Assim, reportando-se os presentes autos a dezembro de 2021, data da autuação, ou a novembro de 2021, data da distribuição, há muito caducou o direito de queixa do ofendido. Pelo exposto impõe-se julgar extinta a responsabilidade criminal do arguido AA e determinar o consequente arquivamento dos autos por ilegitimidade do Ministério Público em prosseguir o procedimento criminal, atenta caducidade da queixa do ofendido, instaurado nos termos do disposto nos art.s 113º, 115º e 143º, n.º 2 do Código Penal e 49º, n.º 1 do Código de Processo Penal.”. Contra este despacho se insurgiu o Ministério Público, dele interpondo recurso para esta Relação, com os fundamentos que explanou na respectiva motivação e que “condensou” nas seguintes conclusões (em transcrição integral): “1. O presente processo tem origem numa certidão do processo 598/18.7SLPRT e numa denúncia aí apresentada pelo ofendido, através da qual manifestou vontade de procedimento criminal por ter sido agredido com uma bengala de madeira, pelas 07h e 30m do dia 12/12/2018, na garagem do prédio sito na Rua ..., ..., Porto. 2. Nessa denúncia, o ofendido identificou o agressor como sendo “BB (…) o qual será [o] proprietário da fracção T, 4º (…) ” (com destaque nosso), com o qual teve “(…) pequenas divergências entre ambos em uma reunião de condomínio (…)” 3. Como o ofendido esclareceu no depoimento prestado em sede dos presentes autos, essa identificação consubstancia um lapso, decorrente da identificação que lhe foi fornecida por terceiros, uma vez que o verdadeiro agressor foi o filho de BB, o arguido acusado nestes autos, AA. 4. A denúncia apresentada no processo 598/18.7SLPRT satisfaz todos os requisitos do art.º 49º/1 do Código de Processo Penal, e é relevante para os presentes autos, uma vez que “I - Valem integralmente no processo separado os atos praticados no processo principal ou processo originário.” 5. Para além disso, tendo em conta que: a. a queixa não está sujeita a formalismos especiais, b. a identificação do agente não é elemento essencial da queixa, c. e nenhum direito ou interesse preponderante exige a preclusão do direito de queixa, só porque existe um lapso na identificação do agente do crime, deve considerar-se que a denúncia apresentada no processo 598/18.7SLPRT traduz uma manifestação tempestiva do direito de queixa do ofendido, relativamente ao efectivo agente dos factos por si denunciados, o arguido acusado nos presentes autos. 6. Ao considerar que a denúncia apresentada não abrange o arguido acusado nestes autos (AA), o douto despacho recorrido violou o disposto no art.º 49º/1 do Código de Processo Penal. Termos em que deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por decisão que receba a acusação deduzida nos autos, assim se fazendo, na nossa perspectiva, Justiça.” * O recurso foi admitido e cumprido o disposto no artigo 411.º, n.º 6, do Cód. Proc. Penal houve resposta pelo arguido que concluiu: “1. - O arguido AA mostra-se acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. p. no art. 143º, n.º 1 do Código Penal. Em sede de contestação veio o ora arguido excecionar a caducidade do direito de queixa. 2. - Foi cumprido o contraditório – tendo o MP se pronunciado nos termos constantes da promoção de 29.06.2023. 3. - Compulsados os autos verificamos e consultado os autos em referencia temos que: O ofendido CC apresentou queixa crime junto da PSP, no dia 24.12.2018 manifestando “(…) desejar procedimento criminal contra BB, idade aparente compreendida entre os 50/55 anos de idade, estatura alta, compleição corporal forte, o qual será proprietário da fração T, 4º, Dtº, ... do imóvel onde também reside, nesta cidade.” – por factos alegadamente ocorridos no dia12.12.2018 4. - A referida queixa veio a dar origem aos autos nº 598/18.7SLPRT e foi deduzida acusação contra BB. 5. - O arguido inconformado requereu a abertura da instrução que culminou com decisão de não pronúncia do ora arguido. 6. - Nesta sequência veio o MP deduzir acusação, agora contra o arguido AA, no âmbito de um outro inquérito instaurado com base em certidão extraída do Processo supra referenciado – P.598/18.7SLPRT – e que dá origem aos presentes autos – autuados em 07.12.2021. 7. - Ora, como vimos supra, a queixa não foi apresentada contra incertos – mas sim contra BB, por factos praticados em 12.12.2018.
Caso o tivesse sido contra incertos parece que não existiria dúvida de que nenhum vício haveria a apontar – tal como o Ac TRE de 11.07.2013 in www.dgsi.pt 8. - Diferente é o caso em apreço em que a queixa é apresentada contra pessoa concreta por factos alegadamente praticados por essa pessoa em 12.12.2018. 9. - Ora o crime de ofensa à integridade física simples tem natureza semi-pública -cfr. art. 217º, n.º 3 do Código Penal – e por isso o Ministério Público só pode prosseguir o procedimento criminal após o cabal exercício do direito de queixa por parte do ofendido (com as excepções previstas no art. 113º do Código Penal). 10. - Nos termos do disposto no art. 115º do referido diploma legal o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores. 11. - Ora, o titular do exercício de queixa exerceu o seu direito de queixa no dia 24.12.2018 contra pessoa determinada – BB. 12. - Assim, reportando-se os presentes autos a dezembro de 2021, data da autuação, ou a novembro de 2021, data da distribuição, há muito caducou o direito de queixa do ofendido. Pelo exposto impõe-se julgar extinta a responsabilidade criminal do arguido AA e determinar o consequente arquivamento dos autos por ilegitimidade do Ministério Público em prosseguir o procedimento criminal, atenta caducidade da queixa do ofendido, instaurado nos termos do disposto nos art.s 113º, 115º e 143º, n.º 2 do Código Penal e 49º, n.º 1 do Código de Processo Penal. 13. - Os factos referidos tal como consta na Douta acusação foram praticados em 12/12/2018 e foi criado um processo que correu termos neste tribunal sob n.º 598/18.7SLPRT. 14. - Processo esse que transitou em julgado. 15. - O presente processo teve o seu início em 2021 onde já tinham passado mais de 4 anos sobre os factos e foi feita a queixa contra o aqui arguido em 2021. 16. - Logo no nosso entender tal direito de fazer queixa já não pode ser feito no que se refere ao aqui arguido. 17. - Pois em 24/03/2022 o queixoso foi ouvido no presente processo e o arguido ouvido em 26/07/2022. 18. - O arguido só foi ouvido sobre factos em 26/07/2022 na G.N.R.. 19. - O queixoso identificou bem o arguido logo na 1ª queixa quando refere que o arguido tinha 50 a 55 anos e na verdade o seu pai tinha 70 e tal anos. 20. - Tendo só se enganado no nome do arguido vindo o pai a ser absolvido no processo 598/18.7SLPRT. 21. - Perante o que se alega o Direito de queixa contra o arguido caducou, uma vez que os factos referidos na acusação foram eventualmente praticados em 12/12/2018. 22. - Logo não tem sentido o presente recurso pois o Douto despacho não violou fosse o que fosse, muito menos o disposto no art.º 49 n.º 1 do C.P.C. Termos em que deve o Douto despacho manter-se e por via disso ser o aqui arguido absolvido do crime de que foi acusado.” * Já nesta instância, na intervenção a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto concordou com o M.P a quo, pugnando pela procedência do recurso. * Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II - Fundamentação
São as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, a delimitar o objeto do recurso e a fixar os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso (cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010,www.dgsi.pt/jstj).[1]
Saber se uma queixa apresentada pelo ofendido, que descreve factualmente a ação de que foi vítima, mas não consegue identificar cabalmente ou até identifica erradamente o autor dos factos, poder-se-á considerar válida para efeitos de instauração de procedimento criminal em processo autónomo. Ainda que a instauração deste Inquérito venha a ocorrer passados mais de 6 meses (art.º 115.º, n.º 1, do C. Penal) desde a apresentação da queixa sem que tenha decorrido o prazo de prescrição do procedimento criminal.
I) DO HISTÓRICO PROCESSUAL E DO OBJECTO DO RECURSO Os presentes autos têm origem numa certidão do processo 598/18.7SLPRT. Nesse processo, o ofendido apresentou denúncia no dia 24/12/2018, relativamente a factos ocorridos pelas 07h e 30m do dia 12/12/2018, na garagem do prédio sito na Rua ..., ..., Porto. Segundo o auto de denúncia, o ofendido manifestou desejo procedimento por, naquelas circunstâncias de tempo e lugar, ter sido agredido com uma bengala de madeira. No auto de denúncia, o ofendido identificou o autor dos factos como “BB, idade aparente compreendida entre os 50/55 anos de idade, estatura alta, compleição corporal forte, o qual será proprietário da fração T, 4º, Dtº, ... do imóvel onde também reside, nesta cidade.” Ainda no auto de denúncia: “O denunciante não apontou nenhum motivo aparente para o acontecimento, apenas relatando pequenas divergências entre ambos em uma reunião de condomínio ocorrida à algum tempo a esta parte.” Na sequência do inquérito instaurado em função desta denúncia, foi deduzida acusação contra AA. Sucede que, em sede da subsequente instrução, AA foi não pronunciado, por não ter sido ele o autor dos factos denunciados, e foi determinada a extração de certidão integral daquele processo, a qual deu origem aos presentes autos. Já na pendência dos presentes autos, em sede de inquirição, o ofendido prestou os seguintes esclarecimentos: “Esclarece que aquando da participação indicou como denunciado o pai do AA por o mesmo lhe ter sido indicado pelo condomínio como sendo ele o proprietário do 4º andar direito e o mesmo que habitualmente comparecia nas reuniões de condomínio. Sucede que, mais tarde, quando viu o senhor BB constatou que aquele não havia sido quem o tinha agredido, bem como não era quem ia às reuniões de condomínio. Consequentemente, o seu agressor era o filho daquele que representava o pai nas reuniões de condomínio.” Nessa sequência, nestes autos, foi proferido despacho de acusação contra AA. Colocada em causa a possibilidade de se poder considerar nestes autos a denúncia apresentada no processo da certidão que lhe deu origem (do referido processo 598/18.7SLPRT), o Tribunal a quo proferiu o seguinte douto despacho, de 26/01/2024: “(…) Ora, como vimos supra, a queixa não foi apresentada contra incertos – mas sim contra BB, por factos praticados em 12.12.2018. Caso o tivesse sido contra incertos parece que não existiria dúvida de que nenhum vício haveria a apontar – tal como o Ac TRE de 11.07.2013 in www.dgsi.pt. Diferente é o caso em apreço em que a queixa é apresentada contra pessoa concreta por factos alegadamente praticados por essa pessoa em 12.12.2018. Ora o crime de ofensa à integridade física simples tem natureza semi-pública - cfr. art. 217º, n.º 3 do Código Penal – e por isso o Ministério Público só pode prosseguir o procedimento criminal após o cabal exercício do direito de queixa por parte do ofendido (com as excepções previstas no art. 113º do Código Penal). Nos termos do disposto no art. 115º do referido diploma legal o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores. Ora, o titular do exercício de queixa exerceu o seu direito de queixa no dia 24.12.2018 contra pessoa determinada – BB. Assim, reportando-se os presentes autos a dezembro de 2021, data da autuação, ou a novembro de 2021, data da distribuição, há muito caducou o direito de queixa do ofendido. Pelo exposto impõe-se julgar extinta a responsabilidade criminal do arguido AA e determinar o consequente arquivamento dos autos por ilegitimidade do Ministério Público em prosseguir o procedimento criminal, atenta caducidade da queixa do ofendido, instaurado nos termos do disposto nos art.s 113º, 115º e 143º, n.º 2 do Código Penal e 49º, n.º 1 do Código de Processo Penal.” * Vejamos. Antes de nos debruçarmos sobre a argumentação recursória nestas duas vertentes, e em conformidade decidir, cumpre, em sede de configuração in abstrato da questão assim suscitada, referir que efetivamente o art. 48º do Cód. Penal, sob a epígrafe «Legitimidade», estabelece que “O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º”. Estabelece – se aqui o designado princípio da oficialidade do processo, segundo o qual, e por regra, a promoção processual de natureza criminal é tarefa estadual, a realizar oficiosamente e, portanto, em completa independência da vontade e da atuação dos interesses eminentemente particulares, concretizando-se – aliás, logo por imperativo constitucional, cfr. art. 219º/1 da Constituição da República Portuguesa – na atribuição ao Ministério Público dessa iniciativa e prossecução processuais. Assim, o procedimento penal inicia-se com a aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público (cfr. art. 241º do Cód. de Processo Penal), aquisição essa que pode surgir por várias vias: conhecimento próprio, auto de notícia do órgão de polícia criminal ou outra entidade policial (cfr. art. 243º), ou denúncia, quer obrigatória (cf. art. 242º), quer facultativa (cf. art. 244º). A notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito, ressalvadas as exceções previstas nomeadamente no art. 262º/2 do Cód. de Processo Penal. Contudo, o princípio da oficialidade da promoção processual sofre as limitações e exceções decorrentes da existência dos crimes semipúblicos e dos crimes particulares, como vimos já no citado art, 48º do Cód. Penal anunciado, quando ali se ressalvam da legitimidade do Ministério Público as restrições constantes dos arts. 49º a 52º do Cód. Penal, as quais conformam, justamente, as exceções a que o nº2 do artigo 262º do Cód. de Processo Penal se refere. Assim, e na parte que aqui agora em especial releva, nos crimes semipúblicos o Ministério Público só pode iniciar a investigação após a apresentação de queixa, como prescreve o art. 49º/1, do Cód. Proc. Penal : «Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo». Em tais casos – leia – se, em tais tipos de crime –, entende o legislador político-criminal aconselhável que o procedimento penal respetivo só tenha lugar se e quando tal corresponder ao interesse e à vontade do titular do direito de queixa, visando evitar que o processo penal, prosseguido sem ou contra a vontade do ofendido, possa representar uma inconveniente intromissão na esfera das relações pessoais que entre ele e os outros participantes processuais intercedem, perspetivada a mesma, inclusive, no respeito pela específica proteção dos interesses da vítima (ofendido) do crime. Neste contexto, estipula o art. 113º do Cód. Penal, sob a epígrafe «Titulares do direito de queixa» que «Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação». Donde resulta claro que o legislador teve em vista, em tais situações, precisamente a tutela primeira do portador do bem jurídico. Deste modo, para se averiguar quem pode ser considerado titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, e portanto, quem deverá apresentar queixa no respetivo processo, há que proceder a uma interpretação do respectivo tipo incriminador, por forma a comprovar se existe uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos através dessa incriminação. Porque, todavia, relevam também aqui os princípios da segurança e estabilidade jurídico – penal, a lei justapõe à necessidade – que é do mesmo passo uma possibilidade – de apresentação de queixa por determinados factos cuja prossecução criminal não tem por primordial, excluindo – os assim da regra da oficiosidade de início assinalada, um limite temporal decorrido o qual considera precludido o exercício do direito em causa. Assim, prevê – se no art. 115º/1 do Cód. Penal a regra geral – e salvo, portanto, casos particulares reportados à natureza dos factos em causa ou às características pessoais do ofendido – segundo a qual «O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz, exceto no caso do direito de queixa previsto no n.º 1 do artigo 178.º, que se extingue no prazo de um ano». Ou seja, nestes casos de crime semipúblico, entende o legislador que, a permitir – se que o ofendido, depois de conhecedor dos factos correspondentes, dispusesse de um prazo indefinido para apresentar a respectiva queixa, se estaria a alargar de modo desproporcional aos interesses em presença o prazo da queixa, com grave prejuízo para o arguido e para os interesses comunitários de estabilidade e segurança jurídicas. Decorrido, pois, esse prazo – e salvas pontuais exceções especificamente salvaguardadas na lei –, deixará o Ministério Público de ter legitimidade para instaurar e prosseguir procedimento criminal relativamente aos factos em causa. Ver a propósito Ac. RP. de 06 de Dezembro de 2023, relator Pedro Afonso Lucas no proc. nº 2071/21.7JAPRT.P1.
Parece-nos claro que a identificação de BB com autor da agressão, na denúncia apresentada pelo ofendido, se tratou dum mero lapso. Por um lado, o próprio auto de denúncia evidencia que ofendido não estava seguro da identificação que forneceu e que o fez, não por conhecer o agressor, mas por referência ao apartamento de que este seria proprietário: “BB (…) o qual será [o] proprietário da fracção T, 4º (…) ” Para além disso, quando tentou explicar as razões da agressão, referiu desentendimento prévio em reuniões de condomínio: “(…) pequenas divergências entre ambos em uma reunião de condomínio (…)”
Assim, é absolutamente credível a explicação que o ofendido avançou no depoimento prestado já no presente processo, no sentido de que a identificação fornecida por si na denúncia correspondeu à identificação que lhe foi dada pelo condomínio, relativamente ao proprietário do apartamento do quarto andar que comparecia habitualmente nas reuniões de condomínio e com quem teve desentendimentos. A queixa só precisa de configurar uma manifestação inequívoca de vontade de procedimento criminal pela prática de determinados factos. Ou, como resulta do art.º 49º/1 do Código de Processo Penal, basta que os ofendidos “dêem conhecimento do facto ao Ministério Público”. A este propósito, a jurisprudência é unânime, no sentido de que as queixas não estão sujeitas a formalismos específicos, exigindo apenas a manifestação inequívoca de vontade de procedimento criminal por certos factos: I - Da “queixa” - que não está subordinada a um formalismo específico - apenas tem de resultar a vontade no sentido da instauração de procedimento criminal. (Ac. do TRC de 22/01/2014, processo 973/12.0PBLRA.C1) I) Conquanto a lei não defina o conteúdo e a forma da queixa, não estando, pois, a sua efetivação sujeita a quaisquer formalidades legalmente impostas, é necessário que nela o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os eventuais agentes pelo substrato fáctico que descreve ou menciona, ou seja, pelo concreto acontecimento histórico ou situação de vida que vai ser objeto de investigação. (Ac. do TRG de 14/01/2019, processo 304/14.5GAVVD.G1) V - Para que se considere validamente exercido o direito de queixa basta que da comunicação do facto, dentro do prazo legal de seis meses, se depreenda, de forma inequívoca, a vontade de que seja exercida a acção penal. (Ac. do TRE de 10/05/2016, proc. 83/13.3GACUB.E1) Deste ponto de vista é claro que a denúncia satisfaz todos os requisitos legais: o ofendido precisou de forma muito concreta as circunstâncias de tempo modo e lugar a agressão que foi vítima, e manifestou de forma clara e expressa a sua vontade procedimento criminal contra o autor dessa agressão. Por outro lado, também não nos oferece dúvidas de que a denúncia do processo original pode servir para o presente processo. Com efeito, a mera divisão burocrática de processos não pode ter como efeito a destruição dos efeitos processuais de atos anteriormente praticados. Assim se compreende que se venha decidindo que os atos praticados no processo originário (como é o caso da queixa) tenham o mesmo valor no processo instruído com a respectiva certidão: I - Valem integralmente no processo separado os atos praticados no processo principal ou processo originário. (Ac. TRP de 19/12/2012, proc. 1093/11.0TAGMR.P1)
Visto isto tudo, podemos então concluir, parece-nos, que a denúncia satisfaz todos os requisitos do art.º 49º/1 do Código de Processo Penal. O único factor que falhou foi um lapso na identificação desse agressor, que não é imputável ofendido.
A questão crucial deste processo é, então, a seguinte: um lapso na identificação do agente dos factos pode ter efeitos preclusivos do exercício do direito de queixa? Como já referido, a queixa não está sujeita a formalismos especiais. Como também já referimos, a identificação do agente não é elemento essencial da queixa. Aliás, o inquérito também visa descobrir a identidade dos agentes do crime – art.º 262º/1 do Código de Processo Penal. Para além disso, não vislumbramos que direito ou interesse preponderante possa exigir a preclusão do direito de queixa, só porque existe um lapso na identificação do agente do crime. Essa preclusão, portanto, traduz um formalismo esvaziado de sentido útil, que contraria, não só o enquadramento legal da queixa, mas também a natureza mais profunda do processo penal, que se orienta por critérios de justiça material, que não se compadecem com formalismos que não contendem com princípios ou direitos fundamentais, ou seja, “estéreis” pelo que se impõe a alteração da decisão a quo. Não é demais lembrar que o art. 115º do Código Penal estabelece no seu nº 1 que o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores. Ora, se é verdade que como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04/11/2015 (proc. 245/14.6TACBR.C1)[[1]], «Da queixa apenas tem de resultar a vontade no sentido da instauração de procedimento criminal, sem necessidade, quer da qualificação jurídica dos factos, quer da sua completa concretização», certo é também, que o direito de queixa de que beneficia o ofendido apenas se deve ter por precludido quando se mostrem decorridos (regra geral) 6 meses sobre o momento em que teve conhecimento dos factos na sua relevância típica e bem assim do autor dos mesmos. Ou seja, podendo o ofendido denunciar factos que tenha por atentatórios dos seus direitos em qualquer momento posterior aos mesmos, o direito de o fazer só preclude decorridos 6 meses sobre o momento em que o mesmo ofendido os reconheça como atentatórios e violadores dos seus direitos e interesses juridicamente tutelados, e bem assim tenha determinada a autoria (sob qualquer forma) dos mesmos. Neste mesmo sentido pode ainda referir – se quando escreve Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do Código Penal – à luz da CRP e da CEDH”, 2ª ed., págs. 369/70, quando considera que «A queixa pode ser infundada, manifestamente infundada, insuficiente ou errada. A queixa infundada é aquela que imputa factos criminosos concretos a uma ou mais pessoas determinadas, mas que se verifica não serem os responsáveis pelos ditos factos. Esta falta de fundamento factual da queixa implica o arquivamento dos autos, salvo se o queixoso ainda estiver em tempo de deduzir nova queixa contra os responsáveis. O prazo conta – se desde o tempo em que o queixoso conheceu a identidade dos responsáveis. (…) A queixa insuficiente é aquela que imputa factos criminosos a uma ou mais pessoas desconhecidas, que deve ser completada com a identidade dos respetivos responsáveis. O prazo máximo para o queixoso proceder à sanação da insuficiência da queixa é de seis meses contados do dia em que conheceu a identidade dos presumíveis responsáveis».
Ora, o ofendido destes autos só teve conhecimento efetivo do autor dos atos por si denunciados em sede de instrução, altura em que deu conta do lapso em que foi incurso. Ora, se a queixa pode ser apresentada sem a identificação dos agentes do crime e o ofendido não deve sofrer as consequências da incapacidade da investigação em determinar, em tempo útil, a identificação do autor dos factos, sob pena do Estado não estar a acautelar devidamente os seus direitos, por maioria de razão havendo lapso na identificação do agente e optar-se por uma solução que, como no caso em apreço, passe pela extinção do procedimento criminal com base na caducidade da queixa, de um prisma criminológico, como bem refere o Sr. PGA, “contribui para o descrédito da administração da Justiça ao nível do ofendido e, por consequência, de toda a comunidade organizada em Estado. A mensagem que se passa é a de que embora haja indícios da prática do crime, mas não exatamente contra o agente que foi inicialmente identificado pelo queixoso, não se pode prosseguir como procedimento criminal em processo autónomo, apesar da queixa ter sido, efetivamente, apresentada atempadamente.” Não se pode exigir ao ofendido que faça chegar ao conhecimento da autoridade judiciária encarregada da investigação todas as vicissitudes factuais e a identificação completa dos agentes do crime. Perante o quadro que se apresenta nos autos, declarar extinta a responsabilidade criminal do arguido, com fundamento na caducidade da queixa, tal constitui uma violação do dever de proteção dos direitos e liberdades fundamentais enquanto tarefa fundamental do Estado, nos termos do art. 9º, al. b), da Constituição da República Portuguesa. A este respeito uma breve resenha de jurisprudência que confere sustentação à nossa posição e à tese defendida pelo Ministério Público e indicada no parecer do Sr. PGA: Acórdão da Relação do Porto, de 7/6/00, in www.dgsi.pt/isti.nsf: I – Sendo a queixa apresentada atempadamente, embora contra pessoa diversa daquela que se veio a apurar ter sido a responsável, a mesma mostra-se válida relevante, nomeadamente no sentido de conferir ao Ministério Público legitimidade para o exercício da acção penal. II – Com efeito, dispõe o artigo 49°, n.° 1, do Código de Processo Penal: “Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”. III – Verifica-se pois que a lei não define o conteúdo e a forma da queixa, que não se pode confundir com a denúncia (art.°s 241° e seguintes do CPP), pelo que se terá, para esse efeito, de recorrer a doutrina e a jurisprudência. IV – Para Figueiredo Dias (Direito Penal Português – as consequências jurídicas do crime, pg. 665), a “queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (…).” E acrescenta o mesmo autor a fls. 675: “No que toca à forma da queixa, tanto o Código Penal como o Código de Processo Penal são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto…Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substracto fáctico que descreve ou menciona”. V – Por outro lado, vem sendo unanimemente entendido que “o conhecimento do facto e dos seus autores, aqui referido (no art.° 115° do Código Penal), é, manifestamente, um simples conhecimento naturalístico, e não judicial, pois estas disposições legais reportam-se a um momento em que não existe ainda acção penal pendente”—Maia Gonçalves in ‘Código Penal Português, anotado e comentado”, 13ª edição, pg. 391. VI – Por isso é que a jurisprudência – por todos cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 7/6/00, in www.dgsi.pt/isti.nsf. - afirma que o que releva no exercício do direito de queixa, para que o Ministério Público instaure o respectivo inquérito e exerça a acção penal, no caso dos crimes semi-públicos, é o facto susceptível de integrar um crime, sendo este naturalístico, e não judicial, afirmando-se, na sequência: “Se, no decurso do inquérito, se vier a apurar que a identidade do agente é pessoa diversa da denunciada, tal não contende com a legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal.” - Ac. Rel. Lisboa, de 2023-01-25 (Rec. nº 6382/20.0T9LSB.L1-3ª secção, rel. Alfredo Costa, in www.dgsi.pt): - A determinação do concreto dia em que o exercício do direito de queixa se considera extinto está intrinsecamente conexo com a apreciação da tempestividade do exercício do mesmo direito. - O cômputo do prazo de 6 meses para o exercício do direito de queixa inicia-se com a data em que o titular desse direito teve conhecimento naturalístico dos factos (do facto e dos seus autores) - 1ª parte do n.º 1 do art.º 115.º do Código Penal. - Para dedução material do direito de queixa é suficiente o simples conhecimento naturalístico dos indícios, não sendo exigido qualquer valoração dirigida à subsunção jurídica dos factos indiciários e ao conhecimento concreto dos agentes. - Ac. Rel. Évora, de 2013-07-11 (Rec. nº 921/11.5TAPTM.E1, rel. Sénio Alves, in www.dgsi.pt). I. Apresentada tempestivamente queixa contra incertos, por factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de natureza semi-pública, se for deduzida acusação contra determinada pessoa que, em sede de instrução, não é pronunciada, mantém o MºPº legitimidade para deduzir acusação contra terceiro, pelos mesmos factos, no âmbito de um outro inquérito instaurado com base em certidão extraída do processo anterior; II. Sendo a queixa apresentada pelo representante legal do menor, se entretanto o mesmo atingir a maioridade, a legitimidade do MºPº para o exercício da acção penal mantém-se, sem necessidade de ratificação da queixa formulada ou de apresentação de uma nova.”.
Tudo para concluir que, concordando-se com a motivação do recurso do Ministério Público na 1.ª instância, merece provimento o recurso, devendo ser revogado o despacho sob escrutínio e substituído por decisão que conheça o mérito do processo e nomeadamente a acusação pública deduzida contra o arguido AA.
III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, determinando que o tribunal a quo proceda a julgamento pelos factos imputados na acusação pública deduzida contra o arguido AA.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).
Sumário da responsabilidade do relator. ……………………………………….. ……………………………………….. ………………………………………..
Porto, 19-06-2024 Paulo Costa Lígia Figueiredo José Quaresma ___________________ [[1]] Relatado por Maria José Nogueira, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf |