Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ISABEL MATOS NAMORA | ||
Descritores: | ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA CRIME DE DIFAMAÇÃO PRESSUPOSTOS DIREITO À HONRA DIREITO DE CRÍTICA DIREITOS FUNDAMENTAIS PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE CONTEXTUALIZAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RP20250108201/20.5GBSTS.P1 | ||
Data do Acordão: | 01/08/2025 | ||
Votação: | MAIORIA COM 1 VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ASSISTENTE | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – Existe erro notório quando se verifica uma incompatibilidade insanável entre um facto objetivo provado e um facto subjetivo não provado, quando a factualidade provada – o texto do comentário publicado - integra o tipo objetivo do crime de difamação, mas não foi dado como provado o respetivo elemento subjetivo, o qual decorre da ponderação de critérios de lógica e coerência. II - Uma das manifestações do direito à liberdade de expressão e de opinião, consagrado, não apenas na nossa lei fundamental, mas também no plano internacional, é o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de critica. III - A tutela constitucional da liberdade de expressão e do direito à honra e a conciliação destes direitos fundamentais, demanda a compressão mútua, de molde a retirar de cada um a máxima eficácia, alcançando o equilíbrio possível. IV - A compressão da liberdade de expressão só deverá ter lugar quando, em observância do princípio constitucional da proporcionalidade e ao carácter subsidiário ou fragmentário do direito penal, os direitos de personalidade, maxime o direito ao bom nome e reputação, sejam verdadeiramente postos em causa de forma significativa, ou seja, com intensidade/seriedade, contextualizando sempre as concretas expressões proferidas. V - A aferição da relevância penal de molde a formar um juízo sobre a tipicidade, exige para a sua integral compreensão a contextualização do comentário escrito e publicado pelo arguido, não podendo as expressões ser compreendidas literalmente. Esse contexto, de choque e estupefação perante a proibição de entrada nos abrigos de animais que tinham sido atingidos pelo fogo e nos quais ainda havia animais, conduz-nos para o âmbito da atuação profissional do assistente, depreendendo-se de todo o texto que as hipóteses que o arguido coloca visam apenas dar visibilidade à situação que foi vivenciada e ao respetivo juízo critico. VI - Não atenuamos ou aligeiramos o alcance das expressões utilizadas, concretamente aquela que atinge a esfera da vida privada do assistente (referência às amantes) e a que indica que a atuação se justificaria com o recebimento de dinheiro (imputação a que subjaz a prática de um evento incriminador), as quais analisadas atomisticamente correspondem a declarações de facto e não juízos de valor. VII - Sendo interpretadas no contexto específico em que foram publicadas, as mencionadas imputações factuais diluem-se na apreciação de valor, não assumindo relevo autónomo, quer pela amplitude do juízo crítico manifestado, quer pela disparidade das imputações factuais que, por essa mesma razão, acabam por ter reduzido alcance e significado. As questões/hipóteses colocadas são tão dispares entre si, que raiam o absurdo, mesmo sem nexo, e apresentam-se com notória ironia e visível e único propósito de conferir relevância à critica e discordância quanto à atuação do assistente. VIII - Do texto publicado sobressai um juízo crítico com notória ironia quanto à concreta atuação profissional do assistente, que não é idóneo a atingir o essencial do direito à honra e consideração, não tendo sido ultrapassados os limites da crítica aceitável, por ser patente para todos os que leem o texto que o foco é a incompreensão pela atuação profissional, visível no próprio texto e não o enxovalho do assistente. (Sumário da responsabilidade da Relatora) | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc.º n.º 201/20.5GBSTS.P1 Relatora: Isabel Matos Namora 1º Adjunto: José Castro 2ª Adjunta: Maria João Lopes Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto I – Relatório 1. No âmbito do processo comum, com intervenção de tribunal singular, foram os arguidos AA e BB absolvidos da prática de um crime de difamação agravado p. p. no art. 180º, n.º 1, 182º e 183º, n.º 1 alínea a) do Código Penal. 2. Inconformado com esta decisão, o assistente interpôs recurso, reclamando a revogação da sentença e finalizando a motivação com as seguintes conclusões: A) O Arguido, AA, vinha acusado e pronunciado em virtude de, no dia 20 de Julho de 2020, em comentário feito através do Facebook, através da hiperligação, https:...., ter escrito o seguinte texto: - “Eles estavam aqui a proteger algo, não sei ao certo, talvez um envelope mensal? Uma possível comissão na hipotética venda de galgos? É difícil justificar este comportamento do 1º Sargento CC, Comandante do Posto da GNR ... sem entrar por eventuais cumplicidades em algo ilícito, proteção de familiares, talvez amante de uma das loucas ou simplesmente demência temporária ou estupidez permanente. Mas tudo isto são hipóteses. Mas que a legalidade, a honestidade ou a competência dificilmente tiveram lugar na sua atuação, isso parece certo”. B) Aquele comentário foi escrito no dia seguinte ao grande incêndio, que no dia 19 de Julho de 2020, atingiu dois abrigos para animais, localizados ambos na ..., em Santo Tirso, denominados “...” e “..., nos quais estavam alojados mais de uma centena de animais, cães e gatos, tendo provocado a morte de alguns desses animais e ferimentos em outros. C) E o visado direito por aquele comentário, foi o aqui Recorrente, CC, doravante designado por CC, 1º Sargento da G.N.R. a exercer funções de Comandante do Posto Territorial da G.N.R. ..., desde 2017, e que foi um dos Militares destacados para o local, para o qual se dirigiu, não obstante se encontrar em gozo de férias e onde chegou à 1h00, do dia 19 de Julho de 2020. D) A douta sentença verteu o entendimento de que “(…) desde logo, importa salientar que não ficaram provados factos integradores do elemento subjetivo do tipo legal de crime, o que determina a absolvição dos arguidos.”, discordando-se frontalmente desta larga discricionariedade na apreciação da prova, na medida em que o Arguido é professor do ensino superior e membro da Associação Municipal da Câmara Municipal ..., para o mandato ..., pelo ..., tendo o entendimento adequado e necessário para saber e querer, e tendo aquele conhecimento, tem capacidade adquirida para se determinar os próprios actos. E) Ora, o arguido, com a formação educacional que seria suposto deter, no dia seguinte aos factos, redige um texto, onde imputa ao Assistente suspeitas de corrupção através da frase, “Eles estavam aqui a proteger algo, não sei ao certo, talvez um envelope mensal? Uma possível comissão na hipotética venda de galgos?”, tem seguramente plena consciência de querer atacar o Assistente, F) Discordando-se da douta sentença quando ali se refere que “Ademais, importa atentar no contexto em que os comentários e cartoon foram efetuados e publicados sendo que o foram para expressar a opinião dos arguidos, o seu desanimo e indignação, perante a atuação da GNR que impedira o acesso dos voluntários ao abrigo animal, quando os animais ali se encontravam em sofrimento através da inalação de fumo.”, porquanto, com o merecido respeito, a douta sentença revelou alguma candura na interpretação do íntimo do Arguido, desculpando excessos de linguagem, dirigidos a uma Autoridade que ali se encontrava no exercício de funções, e, identificando pelo nome e pelo posto, essa mesma Autoridade. G) Quanto a prova documental produzida é suficiente para suster decisão diametralmente oposta à recorrida, pelo que existiu, salvo o devido respeito, erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410.º n.º 2 al. c) do CPP, pelo que deveria ter condenado o Arguido pelo crime de difamação por ter denegrido moralmente o Recorrente no seu bom nome, credibilidade e respeitabilidade. H) Por outro lado, o Recorrente encontrava-se no local da ocorrência dos factos em representação do Estado, pelo que o Arguido ao Escrever o texto que o Recorrente qualifica como difamatório, agiu claramente com o propósito de enxovalhar o Recorrente I) A douta sentença recorrida, violou ainda os artigos 180.º, n.º1, 182.º e 183.º, n.º1, alínea a) e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º2, alínea l), do Código Penal, ao decidir pela sua não aplicação. 4. O arguido apresentou articulado de resposta, pugnando pela rejeição do recurso, finalizando com as conclusões que se transcrevem: I. Dispõe, o art.º 412.º n.º 1 do CPP que “a motivação [do recurso] enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação das conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”. II. Conforme doutrinal e jurisprudencialmente aceite, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões; que serão alvo de decisão. Importando que sejam claras, concisas e precisas: “As conclusões devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objecto de decisão” conforme ensina GERMANO MARQUES DA SILVA, em “Curso Processo Penal,”, Vol. III, 2ª Ed., 2000, pág. 351”). III. Considerando o disposto no art.º 412.º do CPP, não resultam nem claras nem precisas as “razões do pedido” do Recorrente. Designadamente, se o Recorrente versa o seu Recurso sobre matéria de direito (nos termos do disposto no 2 do art.º); se impugna a decisão proferida sobre matéria de facto (como resulta do n.º 3 do mesmo artigo); ou ambas.... IV. E, se versando sobre matéria de direito, e conforme disposto no n.º 2 do art.º 412.º, nas conclusões não se vê indicado o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; assim como não se vê a norma jurídica que deveria ser aplicada, em caso de alegado erro na determinação da norma aplicada (se for o caso, o que sempre não se alcança). V. De igual modo, se a pretensão do Recorrente for a da impugnação da matéria de facto, sempre se dirá que não se encontram, vislumbram ou estão sequer especificados os exatos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados; as concretas provas que imporiam decisão diversa da recorrida; nem as provas que deveriam ser renovadas (cfr. N.º 3 do mesmo art.º 412.º). VI. Também não se vislumbra se, na realidade, o Recorrente pretende alegar e invocar, nos termos do disposto no art.º 410.º n.º 2 c) do CPP, um “erro notório na apreciação da prova” – situação que sempre seria bem diferente de uma hipotética impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto (art.º 412.º n.º 3 do CPP). VII. Perspetiva-se algo que se resume a obter uma decisão que corrija um (suposto) erro cometido pelo tribunal a quo, de forma a que se faça Justiça, não concretizando/indicando o erro a corrigir; a decorrente aplicação do direito; a apreciação da decisão sobre a matéria de facto ou na apreciação da prova. VIII. E relativamente à prova, e não havendo que confundir a invocação dos vícios previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º com os requisitos da impugnação da matéria de facto a que se refere o n.º 3 e respectivas alíneas e o n.º 4 do artigo 412.º, uma vez tratando-se de institutos distintos com natureza e consequências distintas – o que efetivamente pretende o Recorrente? IX. Os vícios previstos no artigo 410.º — como é expresso na norma — devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência e aí se ficam. X. A impugnação ampla da decisão da matéria de facto cava fundo na apreciação da prova. Aqui o recorrente vai além do texto da decisão, debruça-se sobre a prova produzida em 1.ª instância XI. O Recorrente afirma, nas suas Conclusões D, F, G e I o seguinte: (..) XI. Relativamente à conclusão D (atinente a matéria de facto), importa esclarecer que o Recorrente não explicita nem enquadra nos pressupostos legais, ora vertidos no art.º 410.º n.º 2 c), ora no art.º 412.º n.º 3, a sua “discordância”; XII. Relativamente à conclusão F (também atinente a matéria de facto), o Recorrente também não explicita nem enquadra nos pressupostos legais, ora vertidos no art.º 410.º n.º 2 c), ora no art.º 412.º n.º 3, o juízo de valor que ora desenha sobre a Sentença; XIII. Relativamente à conclusão G (atinente à prova), importa esclarecer que o Recorrente não explicita nem enquadra nos pressupostos legais, ora vertidos no art.º 410.º n.º 2 c), ora no art.º 412.º n.º 3, a sua afirmação, ao mesmo tempo que ignora e faz de conta que não houve mais produção de prova, além da que menciona; XIV. Relativamente à conclusão I (atinente ao direito), importa esclarecer que o Recorrente não explicita nem enquadra nos pressupostos legais, ora vertidos no art.º 410.º n.º 2 (b)?), ora no art.º 412.º n.º 2, a sua afirmação, ao mesmo tempo que ignora e faz de conta que não houve mais produção de prova, além da única que menciona (…) XVIII. Ao não concretizar e observar o que a lei supra determina, fica-se sem se saber o que é que o recorrente pretende (exceção da alteração de decisão, claro) pois a verdade é que não indica qualquer das matérias referidas no n. 2 do artigo 412 do Código de Processo Penal. XIX. Com o supra exposto, o presente recurso tem s.m.e de improceder - artigo 412, n. 2, alínea b) do Código de Processo Penal, impondo-se que o recurso do assistente seja rejeitado- artigo 420 do Código de Processo Penal. DO (POSSIVELMENTE) ALEGADO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA (ART.º 410.º N.º 2 C) CPP) XX. Não obstante tudo quanto vem de ser dito, certo é que o Recorrente afirma, na sua Conclusão G), acima transcrita, “que existiu, salvo o devido respeito, erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410.º n.º 2 c) do CPP”. Dispositivo legal que também menciona no seu requerimento de recurso. (...), mas, não cuida é de o demonstrar – com o maior respeito por mais elevada opinião! XXI. mencionado “erro notório na apreciação da prova” previsto no dispositivo aflorado pelo Recorrente – ao contrário da impugnação da matéria de facto dada como provada (art.º 412.º n.º 3 CPP) – deve debruçar-se, sim, igualmente, sobre matéria de facto, mas a jusante da decisão de que se recorre. XXII. I.e., enquanto que uma impugnação da matéria de facto dada como provada (art.º 412.º n.º 3 CPP) esmiúça a prova produzida, e a apreciação judicial que da mesma foi feita, devendo ser corrigida num determinado outro sentido (ao nível dos factos dados como provados ou não provados); o erro notório na apreciação da prova referenciado pelo Recorrente afere-se e demonstra-se pelo e no próprio texto da decisão, devendo ser perceptível ao “homem médio” como ilógico o raciocínio silogístico plasmado na Decisão de que se recorre, no sentido de que p.ex. o facto provado A), logicamente, nunca poderia conduzir à “conclusão” X, que dali retira o Julgador. XXIII. O Recorrente a quem competia demonstrar que a Mma. Juiz a quo, na decisão de que recorre, não discorreu um raciocínio lógico, no sentido da Decisão proferida, e a partir da prova – DE TODA A PROVA – considerada e produzida- não o fez ! XXIV. A sua pretensão reconduz-se à discordância pessoal do Recorrente sobre a prova produzida e a apreciação do Julgador sobre a mesma (como resulta das conclusões D e F do Recorrente) e que não é passível de se confundir com qualquer alegação de suficiência ou insuficiência de prova para a decisão proferida (como resulta da conclusão G do Recorrente). XXV. Recorrente limitou-se a (e tendo em conta os possíveis pressupostos legais, de forma ininteligível) a manifestar a sua discordância relativamente à decisão da Julgadora relativamente à matéria dada como provada e não provada; e a alegar que “a prova documental produzida” era suficiente para uma decisão diferente... sem mais. XXVI...isto, inclusive (e como resulta das atas), apesar de o Recorrente apenas ter estado presente na 1.ª sessão de julgamento (desacompanhado do seu ilustre mandatário, subscritor do Recurso) e aparentemente desconhecer e ignorar toda a demais prova referida ao longo, p.ex., das páginas 7 a 12 da Sentença de que recorre). XXVI. Ao mesmo tempo que não procura – aparentemente – lançar mão do mecanismo plasmado no art.º 412.º 3 e 4 do CPP (desde logo, por incumprimento dos pressupostos ora previstos) (…) XXVII. Não resulta demonstrado pelo Recorrente – como não o poderia – qualquer erro (infundado) notório na apreciação da prova, por parte da Mma. Juiz a quo, e a que a decisão proferida foi perfeitamente lógica, e comungando das regras da experiência comum, quando considerados os factos provados e não provados, e a prova extensamente indicada na Decisão, como tendo estado na base da convicção da Julgadora, e, portanto, da decisão proferida. XXVIII. Tudo, num percurso intelectual e lógico-silogístico, que poderia (com a devida vénia) ser resumido assim que tudo o que NÂO FOI PROVADO foi o seguinte: (…) XXVIII. A motivação da decisão de facto está bem patente, em quase 7 páginas, a Mma Juiz a quo indica pormenorizadamente, com base em que prova produzida formou a sua convicção, de forma livre e crítica: (…) XXIX. Enquadramento jurídico-penal, onde a Mma Juiz a quo enquadra o que vem de ser analisado extensivamente nos preceitos legais invocados pelo Recorrente na sua Conclusão I, como como tendo sido violados – muito embora sem cuidar de demonstrar como! XXX. A Mma Juiz a quo na Sentença recorrida, levou a cabo o correto processo intelectual/cognitivo patente em b) -> a) -> c), ou a) -> b) -> c) não só é perfeitamente lógico, quer no texto plasmado na Sentença intrinsecamente considerado, quer conjugadamente com as regras da experiência comum! XXXI. Ora, não tendo o Recorrente impugnado a matéria de facto dada como provada ou não provada, ao abrigo do disposto no art.º 412.º n.º 3 e seus pressupostos –pelo que, desde logo, ao nível dos factos dados como não provados (além daqueles dados como provados), nem poderia ser outra a decisão final proferida! XXXII. Afigurando-se, inevitavelmente, o entendimento do Recorrente, quer no momento e hora dos factos ocorridos, quer processualmente, como comprovadamente não correspondendo à verdade, devidamente contextualizada e demonstrada - o que equivale a dizer que, ao nível do Recurso apresentado – designadamente considerando as conclusões D, F, G e H, além do entendimento do Recorrente, a este nível, s.m.e., ser perfeitamente inútil, também sempre será desprovido de fundamentação e realismo. XXXIII No art.º 127.º do CPP, à Mma. Juiz a quo (e qualquer Julgador) assiste o princípio da livre apreciação de TODA A PROVA – Princípio basilar do sistema processual português, que não pode nem deve estar à disposição de qualquer parte que, por mera discordância ou interesse inerentemente egoístico e parcial, pretenda anular (total ou parcialmente)! 3. O Ministério Público na 1ª instância respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado. Concluiu que a sentença proferida nos autos aplicou de forma correta e ponderada a lei e o direito. 4. Foi admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, foram os mesmos com vista à Exmª Procuradora-Geral Adjunta. II- Questões a decidir No recurso em análise, em face das conclusões apresentadas importa apreciar e decidir as seguintes questões: - erro notório na apreciação da prova/atipicidade da conduta do arguido. III- Fundamentação 1. Proferida sentença, o tribunal recorrido considerou provados e não provados os factos que se elencam (transcrição): 1. No dia 17 de julho de 2020 deflagrou um incêndio florestal no Concelho de Valongo que atingiu grandes proporções e se propagou posteriormente ao Concelho de Santo Tirso. 2. Atenta a dimensão do incêndio e a sua dispersão territorial, revelou-se necessário proceder ao corte de estradas em vários locais, para salvaguarda de pessoas e de bens e manutenção da ordem pública, pelo que a Guarda Nacional Republicana foi chamada a intervir. 3. O referido incêndio, para além de atingir floresta e mato e ameaçar zonas habitacionais, atingiu dois abrigos para animais, localizados ambos na ..., em Santo Tirso, denominados “...” e “...”, nos quais estavam alojados mais de uma centena de animais, cães e gatos, o que veio a provocar a morte de muitos desses animais e ferimentos em outros. 4. Esses acontecimentos estavam a ser divulgados pelas redes sociais. 5. Os Bombeiros também se encontravam nessa zona a combater o incêndio. 6. A Guarda Nacional Republicana dirigiu-se ao local para assegurar a manutenção da ordem pública. 7. CC, doravante designado por CC, 1º Sargento da G.N.R. e a exercer funções de Comandante do Posto Territorial da G.N.R. ..., desde 2017, foi um dos Militares destacados para o local, para o qual se dirigiu, não obstante se encontrar em gozo de dia de folga (fim-de-semana) e onde chegou à 1h00, do dia 19 de Julho de 2020. 8. Pelo menos, cerca de 10 pessoas pretendiam aceder ao interior do abrigo para dele retirar animais, o que não foi autorizado pela proprietária do referido abrigo. 9. CC, na sua qualidade de Militar da G.N.R. e de Comandante de Posto, não autorizou a entrada de civis no interior do abrigo. 10. Nestas circunstâncias de tempo e de lugar e no decorrer da situação acima exposta, DD, doravante designado por DD, técnico de informática, editou e publicou um vídeo, através da hiperligação https:... 11. Este vídeo, que mostrava imagens da atuação de CC no local, teve pelo menos 23 partilhas, 31 reações e 5 comentários (conforme decorre de pág. 69 dos autos). 12. Posteriormente, o vídeo e fotografias dos comentários ao vídeo - através de printscreen efetuados por terceiros – foram divulgados em grupos de Whastsapp, designadamente, grupos dos quais faziam parte agentes de segurança, e foi enviado pelo DD para órgãos de comunicação social, com o intuito de obter uma maior divulgação. 13. CC teve conhecimento do referido vídeo por o mesmo lhe ter sido enviado por inúmeros familiares, colegas e amigos, que residem em Santo Tirso, em Lisboa e em Bragança. 14. DD tinha pleno conhecimento que o vídeo iria ser, como foi, visionado e partilhado por um elevado número de pessoas, atenta a velocidade de circulação dos meios técnicos por si utilizados, tendo em conta que o enviou para os meios de comunicação social, o que quis, através das imagens que publicou. 15. AA, doravante designado por AA, é professor do ensino superior e membro da Associação Municipal da Câmara Municipal ..., pelo .... 16. Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, elaborou um comentário a uma publicação de um terceiro que publicou através do Facebook, no dia 20 de Julho de 2020, com o seguinte conteúdo “Eles estavam aqui a proteger algo, não sei ao certo, talvez um envelope mensal? Uma possível comissão na hipotética venda de galgos? É difícil justificar este comportamento do 1º Sargento CC, Comandante do Posto da GNR ... sem entrar por eventuais cumplicidades em algo ilícito, proteção de familiares, talvez amante de uma das loucas ou simplesmente demência temporária ou estupidez permanente. Mas tudo isto são hipóteses. Mas que a legalidade, a honestidade ou a competência dificilmente tiveram lugar na sua atuação, isso parece certo”. 16. Este comentário foi feito por AA a um post no Facebook, através da hiperligação https: //.../. 17. Este comentário foi visualizado por pelo menos, 2 pessoas, as quais reagiram ao comentário. 18. No mesmo dia escreveu ainda o seguinte comentário “A arrogância assassina deste sargento que reconheceu que ia ficar a noite toda a impedir o salvamento dos animais. Este indivíduo e a sua cabo são tão culpados como o Veterinário Municipal e as proprietárias dos terrenos. Com a ressalva que elas são doentes mentais. Eles apenas gente sem valores humanos. Para além do que venha a ser apurado que tudo isto cheira muito mal”. 19. No dia 26 de Julho de 2022, AA utilizando um cartoon, elaborado e publicado por terceiro, publicando-o na sua conta de Facebook: https:.... 20. AA tinha pleno conhecimento que os comentários acima referidos, porque veiculados através das redes sociais, poderiam ser visionados por várias pessoas. 21. BB, doravante designado por BB, é Militar da G.N.R., com a patente de Capitão. 22. Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, identificando-se como Militar da G.N.R., para mais reforçar as suas afirmações, partilhou o vídeo editado por DD, através da hiperligação https:..., ao qual acrescentou o comentário seguinte, da sua autoria: “Inqualificáveis a atitude e as palavras deste comandante da GNR, algo que não dá pra branquear mesmo sabendo que a situação é de elevada tensão e que nestas ocasiões a lucidez por vezes fica reduzida. Sou militar da GNR reformado, vejo militares da GNR numa atitude corporativista a defender este militar só porque vestem a mesma farda, nada que me espante, isto deixa-me um sentimento de tristeza, vergonha e revolta por ver gente tão mal preparada nas forças de segurança! Mas também não quero alimentar hostilidade pois muito provavelmente alguns dos subordinados deste comandante também sentirão vergonha ao terem que cumprir cegamente ordens de alguém tão incompetente. Que as hierarquias e a tutela política faça o que deve ser feito! Todos erramos mas todos estamos a tempo de assumir os erros e de aprendermos com esses erros. Este responsável da GNR tem que ser responsabilizado, isto tem que ter consequências. Eu também errei durante a minha carreira mas não me recordo de ter errado desta forma tão hipócrita, tão imbecil. Duvido das capacidades e das competências deste camarada. De qualquer forma peço também aos que como eu estão envolvidos na causa animal que também aprendam e não generalizem, não entrem numa espécie de populismo barato pois temos muito bons profissionais na GNR. Existem ainda nas forças de segurança resquícios de prepotência em vez de um espírito de servir as pessoas, na instituição fala-se ainda muito de Pátria em vez de pessoas, há uma cultura ainda um tanto ou quanto retrógrada é verdade mas ela vem aos poucos reduzindo porque tal como na sociedade civil nestas instituições naturalmente mais conservadoras a mudança é por vezes demorada, há uma carga cultural muito pesada complementada no caso da GNR com uma incompreensível forte componente militar que reduz pessoas a uma dicotomia de bons e maus, inimigos ou adversários e que privilegia valores retrógrados e despreza pessoas, quando a atitude devia ser a de servir incondicionalmente todos por igual e sobretudo os excluídos, os e fragilizados, os mais desprotegidos. Precisa-se apostar em mais e melhor formação, melhor selecção e que o corporativismo não ridicularize e enfraqueça com isso a instituição pois é desejável termos uma polícia ao lado da população e não tanto do poder e uma população ao lado da polícia. Ser agente da autoridade não é nada fácil sobretudo quando o poder se distancia das pessoas e sobra para quem está no terreno a gestão da instabilidade social. Gostava de não ver descredibilizadas a instituição nem as organizações dedicadas à causa animal e que em todas elas imperasse a compreensão, a empatia, a tolerância… agora que cada um assuma os erros cometidos e não se alimentem hostilidades. Todos juntos mobilizados em melhorarmos com a consciência de que todos temos sempre algo a melhorar e o mundo não se divide em bons e maus porque todos somos capazes do melhor e do pior dependendo das variáveis do momento. Critiquemos e sejamos exigentes com os outros mas connosco também. Sejamos construtivos e empáticos sem no entanto perdermos a determinação. Este vídeo deixa-me muito triste! Este comandante provavelmente teve receio de deixar passar os voluntários por recear pelas suas vidas, só isto pode justificar a sua decisão mas foi péssimo no diálogo com as pessoas, foi prepotente, insolente, arrogante … no seu lugar eu no mínimo tinha com os meus subordinados libertado aqueles animais, não sei qual era o cenário mas se os voluntários estavam determinados a salvar os animais certamente as condições ainda o permitiam e um militar faz juramentos em que oferecem a sua própria vida, só que o faz à Pátria, perante uma bandeira, não perante as pessoas e os animais…”. 23. Os arguidos não têm antecedentes criminais. 2. O tribunal a quo considerou não provados os factos que se elencam (transcrição): - Que apenas tenha morrido alguns animais nas circunstâncias referidas no ponto 3. - Quando o agente CC e os agentes militares da GNR se deslocaram ao local, e ali se encontrava um número elevado de cidadãos (superior a 10) e ainda se mantinha um risco elevado na zona. - A Guarda Nacional Republicana dirigiu-se ao local para promover e acautelar a retirada dos animais sobrevivos. - Que as pessoas nas circunstâncias referidas em 8. que queriam aceder ao local eram superiores a 10 e em número elevado; - Porque o incêndio não estava ainda dado como extinto e atenta a natureza do terreno, íngreme, com vegetação e mato, a permanência das pessoas nesse local representava um elevado perigo para a sua integridade física, tanto mais que os ânimos entre os populares estarem exaltados, exacerbados e ser manifesta alguma agressividade entre algumas das pessoas que se encontravam no local. - Que o Militar da GNR agente CC apenas numa fase inicial não tenha autorizado a entrada de civis no abrigo. - A pressão da situação no local era muito elevada, tendo esse facto inclusivamente impedido que CC se deslocasse pessoalmente ao outro abrigo denominado “...”, atingido pelas chamas, embora com menor gravidade e sem registo de animais mortos. - Porque o elevado número de pessoas no local dificultava a atuação dos elementos da Proteção Civil, a Guarda Nacional Republicana ordenou a retirada das pessoas do local. - O vídeo referido em 10. tornou-se viral e foi visualizado e partilhado na rede social Facebook e no WhatsApp, por um número elevado de pessoas. - Os comentários referido em 16. a 18. tornaram-se “viral” e foram visualizados por um elevado número de pessoas e partilhado na rede social Facebook. - O arguido AA inseriu a expressão “GNR” no cartoon referido em 19. - Os comentários efetuados por AA foram partilhados pelo arguido por um elevado número de pessoas, permitindo o Facebook a partilha de comentários, o que o arguido quis. - Ao atuar da forma descrita, AA agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de, através dos textos e imagens que publicou, atingir CC na sua qualidade de cidadão e na sua condição de Militar da G.N.R., concretamente de Comandante de Posto, em exercício das suas funções, facto que era do seu conhecimento, na sua integridade moral e ética, probidade pessoal e profissional, bom nome, honra, dignidade e prestígio pessoal e profissional. - Sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. - Ao atuar da forma descrita, BB agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de, através do comentário que redigiu e publicou, atingir CC na sua qualidade de cidadão e na sua condição de Militar da G.N.R., concretamente de Comandante de Posto, no pleno exercício das suas funções, facto que era do seu conhecimento, na sua integridade moral e ética, probidade pessoal e profissional, bom nome, honra, dignidade e prestígio pessoal e profissional, - Sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. 3. O tribunal a quo motivou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição): Na formação da sua convicção, o Tribunal apreciou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em audiência, bem como a prova documental junta aos autos, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do Código de Processo Penal. De notar, que livre apreciação da prova não é sinónimo de apreciação arbitrária da prova, antes significando uma apreciação de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador. No que concerne aos antecedentes criminais dos arguidos, o Tribunal baseou-se nos Certificados de Registo Criminal juntos aos autos. Relativamente aos demais factos dados como provados, o Tribunal valorou, desde logo, a prova documental junta aos autos, cuja força probatória saiu incólume da audiência de julgamento, designadamente: - auto de notícia de fls. 4 a 8, elaborado pelo próprio assistente, dando conta da publicação e partilha do vídeo publicado por DD. Também do auto de notícia decorre que o vídeo chegou ao conhecimento do assistente através de grupo de whatapp e não através de visualização no Facebook; - comentário de fls. 57; - post com publicação de cartoon de fls. 58: - comentário de fls. 59 a 61 e comentário de fls. 69; De Fls. 53 a 97 constam diversos comentários ao vídeo ou a esta situação do incêndio afetar o abrigo dos animais e os animais não terem sido logo salvos, denotando a repercussão que esta situação veio a ter na perceção das pessoas em geral quanto à atuação tardia das autoridades e ao facto de os Voluntários terem sido impedidos de proceder à evacuação do abrigo e à, pelo menos, tentativa de salvar o máximo de número de animais; O mesmo sucede com os comentários juntos como Doc. 1 da contestação de fls. 384 a 392. Fora visualizado em audiência o vídeo em causa nos autos, o qual se encontra junto aos autos. - Relatório Final da IGAI constante dos autos; - fls. 32 a 36 e 41 a 45 do inq. apensado 199/20.0GBSTS. Os arguidos prestaram declarações reconhecendo a autoria dos comentários/publicações descritas na acusação, negando, no entanto, a sua intenção de difamar a honra ou ofender a pessoa do agente CC, antes visando expressar a sua opinião sobre a atuação do agente, a sua indignação com o facto de não ser permitido no imediato salvar aqueles animais que ainda se encontravam vivos no abrigo de animais afetado pelo incêndio. O arguido AA negou, ainda, que tenha inserido a expressão GNR no cartoon. Salientou que o seu objetivo não era difamar a honra do agente, colocou essas hipóteses referidas no comentário descrito em 16. como forma de pergunta para tentar perceber a atuação do agente, dado que não conseguira perceber a razão de não ter sido permitido retirar os animais do local, escrevendo aquelas perguntas num misto de ironia e revolta. Revelou que a sua grande preocupação sempre foram os animais e estava indignado, revoltado, desanimado por não lhes ter sido permitido salvar os animais, que estavam rodeados por chamas e que gritavam e sofriam. Também o arguido BB explicitou de forma clara e convincente o seu objetivo de publicar aquele extenso comentário à publicação do vídeo. No seu entender, e voltou a repeti-lo em audiência, não havia justificação para a GNR naquelas circunstâncias não ter permitido a entrada dos voluntários para salvar aqueles animais; acrescenta que, no seu comentário também procurou defender a dignidade da GNR. Aliás, da leitura do seu comentário verifica-se que até chega mesmo a defender o próprio Agente CC, quando refere “Este comandante provavelmente teve receio de deixar passar os voluntários por recear pelas suas vidas, só isto pode justificar a sua decisão” ou mesmo quando refere: “Ser agente da autoridade não é nada fácil sobretudo quando o poder se distancia das pessoas e sobra para quem está no terreno a gestão da instabilidade social. Gostava de não ver descredibilizadas a instituição nem as organizações dedicadas à causa animal e que em todas elas imperasse a compreensão, a empatia, a tolerância… um militar faz juramentos em que oferecem a sua própria vida, só que o faz à Pátria, perante uma bandeira, não perante as pessoas e os animais…”. Afigura-se-nos que lido no seu conjunto este extenso comentário, o mesmo não é de molde a considerar que o arguido BB tinha como propósito difamar o Militar da GNR ou afetar a sua honra ou integridade. Não ficara, assim, o Tribunal convencido que o arguido BB tenha atuado com o propósito alcançado de, através do comentário que redigiu e publicou, atingir CC na sua qualidade de cidadão e na sua condição de Militar da G.N.R., concretamente de Comandante de Posto, na sua integridade moral e ética, probidade pessoal e profissional, bom nome, honra, dignidade e prestígio pessoal e profissional. O arguido visou apenas expressar a sua opinião sobre a situação fática que se encontrava a ser comentadas nas redes sociais e comentar e expressar a sua opinião sobre a concreta atuação do agente naquelas circunstâncias fácticas. Quanto aos comentários efetuados e publicados por AA, embora se considere que os mesmos raiam a falta de educação, sendo os mesmos excessivos e desnecessárias a colocação daquelas hipóteses, não se limitando à análise objetiva e crítica da atuação do Comandante da GNR, o certo é que se afigura que tais expressões, no concreto contexto em que as mesmas foram proferidas, e conjugando a análise de toda a prova documental (designadamente todos os comentários de indignação de vários cidadãos), os depoimentos prestados em audiência pela Presidente da Associação ... e a esposa do arguido, que à data era deputada na Assembleia da República pelo ..., e sendo sabido a repercussão que este concreto caso teve na comunicação social e na opinião pública), fica o Tribunal com a convicção de que o propósito da atuação do arguido AA era apenas criticar a conduta do Comandante da GNR, expressar a sua opinião, ainda que não da forma mais adequada, e não teve o propósito, através dos textos e imagens que publicou, atingir CC na sua qualidade de cidadão e na sua condição de Militar da G.N.R., atingi-lo na sua integridade moral e ética, probidade pessoal e profissional, bom nome, honra, dignidade e prestígio pessoal e profissional. O assistente CC, militar da GNR, apresentou a sua versão dos factos. No seu entender, naquele momento não havia mais animais a salvar, o mal já tinha acontecido, já não havia perigo a acautelar para os animais. Referiu que no seu entender, o incêndio já estava extinto. Relatou que não havia muitos ânimos exaltados, sendo o normal neste tipo de situações. No seu entender, nenhum animal precisava de auxílio naquele momento. Porém, tal fora contrariado pelas testemunhas de defesa, designadamente pela Presidente da Associação ..., que de forma espontânea referira que no dia seguinte foram recolhidos vários animais queimados, ainda vivos, e que ainda foram assistidos por médicos veterinários, mas acabaram por morrer passado umas horas, ficando assim o Tribunal com dúvidas se, caso os animais tivessem sido logo efetuados não poderiam ter sido salvos. O certo é que se encontra justificada a perceção dos arguidos, no sentido de que a atuação da GNR terá impedido o salvamento dos animais e explica melhor o contexto de desanimo, revolta em que os comentários e cartoon foram publicados. O assistente também reconheceu que faleceram cerca de 73 animais, o que não pode ser considerado de apenas “alguns” animais, conforme vem descrito na acusação. De notar que o assistente reconheceu que apenas tomou conhecimento destes comentários/ publicações através do whatsapp e “Telegram” e não através da página do Facebook, embora depois tenha referido que também viu no Facebook. O Tribunal valorou, ainda, a demais prova oral: - EE, militar da GNR, também referiu que viu estes comentários e cartoon através do whatsapp, não sabendo se terá visto no Facebook, nem soube precisar ao Tribunal o n.º de pessoas que terá visualizado estas publicações e comentários. Ora, sucede que estas publicações e partilhas no whatsapp e Telegram não foram efetuadas pelos arguidos, nem tal fora imputado na acusação. Tratou-se de novas publicações, ainda que com prints retirados do Facebook, mas tais publicações e divulgações não podem ser imputadas aos arguidos. - FF, Militar da GNR e irmão do assistente, também confirmou os comentários e que os viu nos grupos de whatsapp, através de printscreen, só depois, terá ido ver tais comentários no Facebook. - GG, militar da GNR, também confirmou os comentários e que tomou conhecimento dos mesmos nos grupos de whatsapp, não sabendo se os mesmos tinham muitas visualizações no Facebook. As testemunhas de defesa HH, Presidente da Associação ..., II (casada com o arguido AA, e à data dos factos deputada da Assembleia da República, pelo partido ...) e JJ (amiga do arguido e também defensora da causa animal) estiveram todas presentes naquela noite de 18/ 19 de julho, relatando ao Tribunal de forma muito espontânea, coerente e credível aquilo que se passou no local, merecendo por isso a credibilidade do Tribunal. Revelaram também de forma espontânea o sentimento de desalento, desânimo e até revolta, por terem sido impedidos de salvar os animais pela GNR. De notar, que de acordo com o depoimento das testemunhas ainda era possível salvar alguns animais nessa altura, referindo que chegaram a ver animais vivos, que já não encontraram vivos no dia seguinte em que já conseguiram entrar no abrigo para retirar os animais. Salientaram que no seu entender a GNR ali fora ao local apenas para defender a propriedade privada, impedindo-os de entrar no abrigo, não mostrando qualquer sensibilidade pelos animais que estavam ali a sofrer e a morrer de forma dolorosa, queimados e através da inalação do fumo. Descreveram a situação como traumatizante, um cenário Dantesto, difícil de esquecer, o que ajuda a explicar o contexto em que as expressões e comentários dos arguidos foram publicados, explicando a razão do excesso do comentário do arguido AA, mas daí não se pode retirar o tal propósito de difamar a honra e integridade física e moral do agente CC. - KK, técnico superior na Câmara Municipal ... na área da comunicação e gestão de plataformas, explicitou ao Tribunal que um comentário no Facebook não pode ser partilhado, apenas a publicação inicial pode ser partilhada. Acrescentou que, atualmente, cada vez mais o Facebook tem menos alcance, sobretudo se quem publica o post não tem lá investimento, dado que se trata de uma plataforma comercial e atento o algoritmo do Facebook e sendo o objetivo do Facebook ganhar dinheiro. Considera, assim, difícil esses comentários tornarem-se virais, muitas vezes a sua divulgação é feita através de prints desses comentários e posts. Analisou fls. 69, 57 e 58. De notar que não fora produzida prova suficiente e segura quanto ao facto de o incêndio já estar ou não totalmente extinto, e se naquele momento havia perigo para as pessoas estarem ali, sendo que o assistente referira que o incêndio já estaria extinto. Analisado e ouvido o vídeo em audiência, parece decorrer que os ânimos não estariam assim tão exaltados, sendo que as pessoas que falavam com o agente CC falavam de forma calma, tentando através do diálogo convencer o agente a deixá-los salvar os animais. Também o Militar da GNR fala de forma calma, não denotando que naquele momento havia necessidade de assegurar a integridade física de quem ali se encontrava face ao incêndio. Também não ficara demonstrado, para além de toda a dúvida razoável, que existia uma elevada pressão no local, e que o elevado número de cidadãos no local impedia ou obstruía a atuação da proteção civil e GNR ou que tivesse sido esse o motivo da retirada das pessoas do local. Não ficara demonstrado nos autos que aquele vídeo se tornou viral, e sobretudo que os comentários ao vídeo efetuados pelos arguidos e o referido cartoon, se tornaram virais. De notar, que tal como referiu a testemunha KK, só as publicações é que são passíveis de serem partilhadas, já não os comentários às publicações. De notar, que o vídeo fora enviado para a comunicação social, o que claramente também contribuiu para a divulgação do vídeo, eventualmente, com maior propensão do que a própria publicação de DD que é seguido por apenas 350 pessoas (conforme decorre de fls 69 dos autos). Também verificamos que o comentário de AA a fls. 69 tem apenas 2 reações, indiciando que não terá sido visualizado por um número elevado de pessoas. Por outro lado, destacamos que as testemunhas da acusação não tiveram conhecimento do vídeo pelo Facebook, mas sim através de gripo de whastapp, no qual esse vídeo fora novamente divulgado. Também não ficara provado que o arguido AA tenha sido ele próprio a inserir a expressão “GNR” no cartoon referido em 19. Dos factos, ficara apenas provado que publicou aquele cartoon, bem podendo ter sido terceiro a colocar a expressão “GNR”, ainda que não tenha sido o próprio cartoonista. Na verdade, perante a ponderação global de toda a prova produzida, o concreto contexto em que os comentários/ publicações foram efetuados, depois do choque da morte de tantos animais em circunstâncias dolorosas – não pode o Tribunal deixar de ficar com sérias dúvidas quanto ao intuito das atuações dos arguidos, antes se afigurando que apenas visaram expressar a sua opinião e desagrado sobre a atuação da GNR que impediu os voluntários de tentaram salvar os animais que se encontravam fechados num abrigo de animais, que ou ainda estaria em chamas ou, pelo menos, tinha ardido e tinha muito fumo, ficando o Tribunal com a tal dúvida séria e objetiva quanto a esse propósito, o que por força do princípio in dubio pro reo impõe que o Tribunal dê como não provados tais factos relativos ao propósito dos arguidos de atingirem a honra e integridade do assistente. IV- Apreciação do recurso Do erro notório na apreciação da prova Alega o recorrente que a sentença padece de erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410.º, n.º 2 al. c) do Cód. Proc. Penal, porquanto julgou provados factos que contrariam a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Foi dado como provado que o arguido redigiu um texto onde imputa ao assistente suspeitas de corrupção através da frase, “Eles estavam aqui a proteger algo, não sei ao certo, talvez um envelope mensal? Uma possível comissão na hipotética venda de galgos?”. Porém, não foram dados como provados os factos integradores do elemento subjetivo do tipo legal de crime, sendo certo que o arguido, professor do ensino superior e membro da Associação Municipal da Câmara Municipal ..., tem o entendimento adequado e necessário para saber e querer, tendo seguramente plena consciência de querer atacar o assistente, agindo claramente com o propósito de o enxovalhar. Efetivamente, o duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, concretizado no nº 1 do art.º 428º do Cód. Proc. Penal, prevê que as Relações conheçam, não apenas de direito, mas também de facto. E quando o recurso incide sobre a matéria de facto, a sentença pode ser sindicada por duas vias, uma das quais, que é aquela que ora nos importa, com a invocação dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal. Essa análise consistirá numa tarefa puramente jurídica, a efetuar apenas a partir do texto da decisão recorrida, eventualmente com recurso às regras de experiência comum, mas sem o recurso a elementos estranhos à decisão para a fundamentar. Dispõe o art.º 410.º do Cód. Proc. Penal, sob a epigrafe “Fundamentos do recurso” que: “1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.” Os vícios da matéria de facto elencados nestas três alíneas correspondem a vícios internos da decisão e não de julgamento, recaindo sobre o processo lógico e racional de formação da convicção sobre a prova, evidenciado no texto da decisão proferida: - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a decisão de direito não encontra na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo; - a contradição insanável da fundamentação sempre que através de um raciocínio lógico conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos; - e o erro notório na apreciação da prova sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo Tribunal. Sendo vícios internos da decisão, de conhecimento oficioso, apurar se algum deles se verifica não depende da produção de prova, correspondendo apenas a uma atividade puramente jurídica a efetuar com base na análise do texto da decisão, sem recorrer aos elementos externos ao texto da decisão, sejam declarações, depoimentos ou documentos do processo, com explica Pereira Madeira. “É a lei quem o inculca com clareza ao impor que o vício resulte do texto da decisão recorrida, apenas e só, eventualmente com recurso às regras de experiência comum. Por isso, fica excluída da previsão do preceito toda a tarefa de apreciação e ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objeto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto.” (Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, Almedina, 2021, pág. 1291). A este propósito, Lemos Triunfante salienta que ao estabelecer-se que tais vícios sejam cognoscíveis apenas com base no texto da decisão “adotou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa. (…) O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, analisado pelo cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada. (Comentário Judiciário ao Código Processo Penal, V, Almedina, anotação ao art.º 410, § 35 e 38). Como já dissemos, no recurso em apreciação o arguido aponta à sentença o erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c) do citado preceito legal. Não estando o conteúdo normativo desse vício densificado no texto legal, tal atividade foi assumida pela doutrina e jurisprudência, sendo unanimemente reconhecido que o erro notório abrange as seguintes situações: - quando se retira de um facto provado uma conclusão ilógica; - quando se dá como provado um facto visivelmente errado; - quando se violam as regras da experiência, da prova vinculada, as leges artis ou quando o tribunal se afasta, de forma infundada dos juízos dos peritos. Por sua vez, é também consensual que o requisito da notoriedade se afere pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente e resultar do próprio texto da decisão recorrida. O erro notório, com explica Sérgio Poças, “é o erro que se vê logo, que ressalta evidente da análise do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência. Na verdade como é jurisprudência pacífica só há erro notório na apreciação da prova quando for de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores e resulta do próprio texto da decisão.” (“Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar n.º 10, de 2010, pg. 29). Assim, este vício ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2014, p. 1359). Na verdade, salienta este autor, “seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada.” Na explicação de Simas Santos, a doutrina e a jurisprudência caracterizam-no como uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…). Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis» (Recursos em Processo Penal, 4ª Ed., 2001, pág 76). Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.” Existe, igualmente, erro notório na apreciação da prova “quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro."(Código de Processo Penal Anotado, II, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2000, pág. 740). Numerosa jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e dos Tribunais da Relação tem vindo a definir e, consequentemente, delimitar o vício do erro notório na apreciação da prova, da qual indicamos os seguintes (toda a jurisprudência cuja fonte não seja indicada pode ser consultada em www.dgsi.pt): “O erro notório na apreciação da prova unicamente é prefigurável quando se depara ter sido usado um processo racional e lógico mas, retirando-se, contudo, de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irrazoável, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum, bem como das regras que impõem prova tarifada para determinados factos” – acórdão do STJ de 18/03/2004 - Simas Santos. “O erro notório na apreciação da prova comporta a uma definição que se não se afasta do facto notório, da notoriedade relevante no direito, enquanto realidade de todos conhecida e por isso não carente de alegação e prova, impondo-se ao julgador, vício aqui circunscrito aos termos da decisão e sempre que se dê como assente algo que, forçosamente, não podia ter ocorrido, que a lógica comum repudia, de tão evidente que assim é, percetível pelo cidadão comum, sem formação qualificada, a uma análise perfunctória, sem esforço. O vício é prefigurável quando se depara ter sido usado um processo racional, mas retirando-se de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária, absurda; a prova produzida não pode, sob pena de atropelo das mais elementares regras da lógica, conduzir ao resultado factual assente, mercê de uma incongruência lógica, ela também, ofensiva de princípios ou leis formuladas cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas”- acórdão do STJ de 04-07-2013 - Santos Cabral. “Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.” - ac. do TRL de 22-10-2024 - João Grilo Amaral “Há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” - acórdão do TRP de 3-04-2024 - Liliana Páris Dias. São muitos os casos em que a jurisprudência densifica o conceito de “erro notório” na apreciação da prova e quando procede à sua delimitação positiva identifica-o, designadamente, nas situações em que existe uma incompatibilidade entre um facto objetivo provado e um facto subjetivo não provado, do que são exemplo paradigmático o relatado no acórdão do STJ de 6.1.1994, “Haverá também erro notório na apreciação da prova, ao dar-se como provado que o disparo foi feito com o arguido próximo da vítima, que foi atingida numa região vital como é o pescoço e depois não dar como provada a intenção de matar” (BMJ, 433, pág 432). Delimitado o âmbito do vício do erro notório na vertente que aqui nos importa, regressemos ao caso em análise. O assistente, aqui recorrente, aponta à decisão recorrida o vício de contradição insanável da fundamentação, alegando existir uma incompatibilidade insanável entre a matéria de facto provada e a factualidade que o tribunal a quo veio a considerar não provada. Nas alegações de recurso afirma discordar “frontalmente desta larga discricionariedade na apreciação da prova, na medida em que o arguido é professor do ensino superior e membro da Associação Municipal da Câmara Municipal ..., para o mandato ..., pelo ..., tendo o entendimento adequado e necessário para saber e querer, e tendo aquele conhecimento, tem capacidade adquirida para determinar os próprios actos.”, “o Arguido, com a formação educacional que seria suposto deter, no dia seguinte aos factos, redige um texto, onde imputa ao Assistente suspeitas de corrupção através da frase (…), tem seguramente plena consciência de querer atacar o Assistente”, defendendo que a “sentença revelou alguma candura na interpretação do íntimo do Arguido, desculpando excessos de linguagem, dirigidos a uma Autoridade que ali se encontrava no exercício de funções, e, identificando pelo nome e pelo posto, essa mesma Autoridade.” Conclui, afirmando que a prova documental, ou seja, o texto que o arguido escreveu, é suficiente para suster decisão diametralmente oposta à recorrida.” Logo, sustenta que os factos não provados respeitantes ao elemento subjetivo são contraditórios com aqueles que se provaram, concretamente com o texto/comentário que o arguido escreveu e publicou. De acordo com a posição que defende o assistente, o arguido não tinha como não saber que as expressões que publicou no comentário eram objetivamente ofensivas da honra e consideração bem como, ao publicitá-las nos termos em que o fez, faltava ao respeito devido ao ofendido enquanto pessoa e agente da autoridade pública no exercício das suas funções. Tal seria sempre de concluir pelas regras de experiência e de critérios lógicos e de senso comum por qualquer pessoa, na interpretação de tais expressões, sustenta o assistente. A inserção de tais elementos de cariz subjetivo nos factos provados, alteração que o assistente reclama por via do recurso que ora se aprecia, seria uma consequência lógica dos factos provados, concretamente do teor do próprio comentário, por dele resultar essa intencionalidade e conhecimento e interpretação normal e socialmente atualizada, não havendo razões, para afirmar que o arguido atuou com diversa intencionalidade e diverso fundamento. Daí o invocado erro notório que curamos de apreciar e não a impugnação da matéria de facto em sentido amplo. Contudo, sabemos também que o tribunal a quo não ficou com dúvidas quanto ao intuito da atuação do arguido, tendo concluído que apenas pretendeu expressar a sua opinião e o seu desagrado sobre a atuação da GNR, tendo em consideração o contexto em que os factos ocorreram e em que o comentário foi publicitado. Essa conclusão, bem como a respetiva fundamentação, decorre do texto da sentença recorrida, quer em sede de fundamentação da matéria de facto, quer mesmo no enquadramento jurídico aí efetuado. Passamos a expor os factos que com relevo nesta sede foram dados como provados: “16. Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, elaborou um comentário a uma publicação de um terceiro que publicou através do Facebook, no dia 20 de Julho de 2020, com o seguinte conteúdo “Eles estavam aqui a proteger algo, não sei ao certo, talvez um envelope mensal? Uma possível comissão na hipotética venda de galgos? É difícil justificar este comportamento do 1º Sargento CC, Comandante do Posto da GNR ... sem entrar por eventuais cumplicidades em algo ilícito, proteção de familiares, talvez amante de uma das loucas ou simplesmente demência temporária ou estupidez permanente. Mas tudo isto são hipóteses. Mas que a legalidade, a honestidade ou a competência dificilmente tiveram lugar na sua atuação, isso parece certo”. 17. Este comentário foi feito por AA a um post no Facebook, através da hiperligação (…) 18. Este comentário foi visualizado por pelo menos, 2 pessoas, as quais reagiram ao comentário. 19. No mesmo dia escreveu ainda o seguinte comentário “A arrogância assassina deste sargento que reconheceu que ia ficar a noite toda a impedir o salvamento dos animais. Este indivíduo e a sua cabo são tão culpados como o Veterinário Municipal e as proprietárias dos terrenos. Com a ressalva que elas são doentes mentais. Eles apenas gente sem valores humanos. Para além do que venha a ser apurado que tudo isto cheira muito mal”. (…) 20. AA tinha pleno conhecimento que os comentários acima referidos, porque veiculados através das redes sociais, poderiam ser visionados por várias pessoas. Por sua vez, foi dado como não provado que: “Ao atuar da forma descrita, AA agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de, através dos textos e imagens que publicou, atingir CC na sua qualidade de cidadão e na sua condição de Militar da G.N.R., concretamente de Comandante de Posto, em exercício das suas funções, facto que era do seu conhecimento, na sua integridade moral e ética, probidade pessoal e profissional, bom nome, honra, dignidade e prestígio pessoal e profissional. Sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.” E a fundamentação da matéria de facto assente que ficou registada a este respeito: Os arguidos prestaram declarações reconhecendo a autoria dos comentários/publicações descritas na acusação, negando, no entanto, a sua intenção de difamar a honra ou ofender a pessoa do agente CC, antes visando expressar a sua opinião sobre a atuação do agente, a sua indignação com o facto de não ser permitido no imediato salvar aqueles animais que ainda se encontravam vivos no abrigo de animais afetado pelo incêndio. O arguido AA negou, ainda, que tenha inserido a expressão GNR no cartoon. Salientou que o seu objetivo não era difamar a honra do agente, colocou essas hipóteses referidas no comentário descrito em 16. como forma de pergunta para tentar perceber a atuação do agente, dado que não conseguira perceber a razão de não ter sido permitido retirar os animais do local, escrevendo aquelas perguntas num misto de ironia e revolta. Revelou que a sua grande preocupação sempre foram os animais e estava indignado, revoltado, desanimado por não lhes ter sido permitido salvar os animais, que estavam rodeados por chamas e que gritavam e sofriam. (…) Quanto aos comentários efetuados e publicados por AA, embora se considere que os mesmos raiam a falta de educação, sendo os mesmos excessivos e desnecessárias a colocação daquelas hipóteses, não se limitando à análise objetiva e crítica da atuação do Comandante da GNR, o certo é que se afigura que tais expressões, no concreto contexto em que as mesmas foram proferidas, e conjugando a análise de toda a prova documental (designadamente todos os comentários de indignação de vários cidadãos), os depoimentos prestados em audiência pela Presidente da Associação ... e a esposa do arguido, que à data era deputada na Assembleia da República pelo ..., e sendo sabido a repercussão que este concreto caso teve na comunicação social e na opinião pública), fica o Tribunal com a convicção de que o propósito da atuação do arguido AA era apenas criticar a conduta do Comandante da GNR, expressar a sua opinião, ainda que não da forma mais adequada, e não teve o propósito, através dos textos e imagens que publicou, atingir CC na sua qualidade de cidadão e na sua condição de Militar da G.N.R., atingi-lo na sua integridade moral e ética, probidade pessoal e profissional, bom nome, honra, dignidade e prestígio pessoal e profissional. O assistente CC, militar da GNR, apresentou a sua versão dos factos. No seu entender, naquele momento não havia mais animais a salvar, o mal já tinha acontecido, já não havia perigo a acautelar para os animais. Referiu que no seu entender, o incêndio já estava extinto. Relatou que não havia muitos ânimos exaltados, sendo o normal neste tipo de situações. No seu entender, nenhum animal precisava de auxílio naquele momento. Porém, tal fora contrariado pelas testemunhas de defesa, designadamente pela Presidente da Associação ..., que de forma espontânea referira que no dia seguinte foram recolhidos vários animais queimados, ainda vivos, e que ainda foram assistidos por médicos veterinários, mas acabaram por morrer passado umas horas, ficando assim o Tribunal com dúvidas se, caso os animais tivessem sido logo efetuados não poderiam ter sido salvos. O certo é que se encontra justificada a perceção dos arguidos, no sentido de que a atuação da GNR terá impedido o salvamento dos animais e explica melhor o contexto de desanimo, revolta em que os comentários e cartoon foram publicados. O assistente também reconheceu que faleceram cerca de 73 animais, o que não pode ser considerado de apenas “alguns” animais, conforme vem descrito na acusação. (…) As testemunhas de defesa HH, Presidente da Associação ..., II (casada com o arguido AA, e à data dos factos deputada da Assembleia da República, pelo partido ...) e JJ (amiga do arguido e também defensora da causa animal) estiveram todas presentes naquela noite de 18/ 19 de julho, relatando ao Tribunal de forma muito espontânea, coerente e credível aquilo que se passou no local, merecendo por isso a credibilidade do Tribunal. Revelaram também de forma espontânea o sentimento de desalento, desânimo e até revolta, por terem sido impedidos de salvar os animais pela GNR. De notar, que de acordo com o depoimento das testemunhas ainda era possível salvar alguns animais nessa altura, referindo que chegaram a ver animais vivos, que já não encontraram vivos no dia seguinte em que já conseguiram entrar no abrigo para retirar os animais. Salientaram que no seu entender a GNR ali fora ao local apenas para defender a propriedade privada, impedindo-os de entrar no abrigo, não mostrando qualquer sensibilidade pelos animais que estavam ali a sofrer e a morrer de forma dolorosa, queimados e através da inalação do fumo. Descreveram a situação como traumatizante, um cenário Dantesto, difícil de esquecer, o que ajuda a explicar o contexto em que as expressões e comentários dos arguidos foram publicados, explicando a razão do excesso do comentário do arguido AA, mas daí não se pode retirar o tal propósito de difamar a honra e integridade física e moral do agente CC. (…) Na verdade, perante a ponderação global de toda a prova produzida, o concreto contexto em que os comentários/ publicações foram efetuados, depois do choque da morte de tantos animais em circunstâncias dolorosas – não pode o Tribunal deixar de ficar com sérias dúvidas quanto ao intuito das atuações dos arguidos, antes se afigurando que apenas visaram expressar a sua opinião e desagrado sobre a atuação da GNR que impediu os voluntários de tentaram salvar os animais que se encontravam fechados num abrigo de animais, que ou ainda estaria em chamas ou, pelo menos, tinha ardido e tinha muito fumo, ficando o Tribunal com a tal dúvida séria e objetiva quanto a esse propósito, o que por força do princípio in dubio pro reo impõe que o Tribunal dê como não provados tais factos relativos ao propósito dos arguidos de atingirem a honra e integridade do assistente. Acresce que na fundamentação de direito também é efetuada referência ao processo lógico dedutivo que conduziu a tal conclusão: “A questão já será mais controversa quanto ao comentário de AA “arrogância assassina” e ainda as perguntas que coloca no seu primeiro comentário referido em 16 dos factos provados. Reconhecemos que há um excesso na forma de crítica do arguido à atuação da GNR, porém o arguido visa tão só criticar a atuação do agente da GNR naquele concreto momento, as expressões não visam ofender a honra e integridade do agente. As perguntas que são lançadas são várias e em diversos sentidos, não insistindo o arguido em nenhuma das hipóteses, não sendo essas perguntas, pela forma como são colocadas, suficientes para considerar que está a ser imputado ao agente CC um concreto juízo, ainda que sob a forma de suspeita. Todos estes comentários são uma crítica (livre em Estado de Direito Democrático) à atuação do agente e não atentam contra a pessoa do agente CC. As perguntas colocadas não chegam a poder ser consideradas como suspeitas, dado que são em diversos sentidos e conforme escrito no comentário “meras hipóteses”, tudo genérico, percebendo-se da leitura do comentário que se tratam de meras perguntas e hipóteses não sérias, sem o mínimo de sustento.” Efetuado que foi o enquadramento jurídico relativo ao erro notório na vertente de contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada, sabendo que a notoriedade pode ser apurada pelo tribunal de recurso ou por um jurista minimamente preparado, considerando, ainda, a factualidade que o tribunal a quo veio a considerar não provada e identificado o recorte factual sobre o qual se verifica a apontada contradição, importa aferir in casu se essa mesma contradição se verifica. E como podemos aferir a verificação desta contradição? Como se conclui se existe o erro notório? O erro notório existirá se concluirmos que alguém que atua, na forma e nas circunstâncias em que o arguido o fez tem necessariamente consciência das palavras que está a escrever, sabendo o seu significado e sabendo que, com as mesmas, vai atingir o assistente. Dito de outro modo, se concluirmos que o arguido, ao escrever e publicitar o referido comentário, sabendo o seu significado, tinha que representar como possível que iria ofender o assistente na sua honra e consideração. Haverá erro notório se, apelando a regras de experiência, concluirmos pela intencionalidade subjacente à atuação do arguido a partir da realidade factual que foi dada como provada, tendo para este efeito presente que basta o dolo genérico. Para o preenchimento do elemento subjetivo neste tipo de ilícito não é necessário que tais expressões atinjam efetivamente a honra e consideração do assistente, bastando a suscetibilidade dessas expressões o ofenderem, a mera consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, atendendo, quer o meio social e cultural, quer à opinião da generalidade das pessoas de bem. Efetivamente, por pertencer ao foro íntimo de cada um, o elemento subjetivo só pode ser apreendido a partir da factualidade provada, fazendo operar para esse efeito as presunções legais, no contexto do princípio da normalidade e das regras da experiência. Se considerarmos, como pretende e defende o assistente/recorrente que a factualidade provada integra o tipo objetivo do crime de difamação e que a prova do elemento subjetivo se impõe e decorre da ponderação de critérios de lógica e coerência, forçoso será concluir, como pretende, que se verifica o apontado vício de erro notório, pois o arguido não teria como não saber que o texto em causa era objetivamente ofensivo da honra e consideração e que ao publicitá-lo faltava ao respeito devido ao ofendido enquanto pessoa e agente da autoridade pública no exercício das suas funções. Porém, a resposta a dar à questão que aqui nos importa dilucidar demanda a prévia análise do tipo legal cuja prática foi imputada ao arguido. O assistente não impugnou a matéria de facto, mas ao invocar o vício do erro notório em razão da apontada contradição, pretende que seja alterada a factualidade provada, fazendo-se constar dos factos provados a matéria referente ao dolo. A discordância centra-se puramente no campo do Direito e assim será apreciada. De modo lapidar, numa situação com contornos similares, o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 13-03-2024 introduz a análise da questão nos seguintes moldes: “A precedência-regra do tratamento da questão de facto sobre a questão de direito, no presente caso terá de sofrer inversão, pois a resolução da questão de direito colocada em recurso não permite o tratamento dissociado e sequencial dos dois problemas (primeiramente, o de facto, e depois, o de direito). Concretamente, eles entrecruzam-se aqui num “insolúvel círculo lógico” (na expressão de Castanheira Neves).” (in www.dgsi.pt). Logo, a alteração da matéria de facto provada, com a reclamada passagem dos factos não provados relativos ao dolo para os factos provados, por verificação do apontado vício de erro notório, depende da “pré-compreensão do direito a aplicar”, como se refere no citado acórdão. Vejamos, então, o enquadramento legal do ilícito imputado ao arguido, tendo em consideração que a expressão penalmente difamatória, de acordo com o assistente seria essencialmente aquela da qual decorrem as suspeitas de corrupção através da frase: “Eles estavam aqui a proteger algo, não sei ao certo, talvez um envelope mensal? Uma possível comissão na hipotética venda de galgos?”. Comete o crime previsto no artº 180º do Cód. Penal, quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo. A tutela da honra, bem jurídico que aqui se protege, concretiza-se neste tipo legal através da ação típica que consiste na divulgação ou imputação de factos (acontecimentos da realidade), abarcando a suspeição, ou então de considerações (palavras ou expressões) que suscitem juízos de valor ofensivos daquela honra ou consideração, tanto na sua dimensão pessoal, como social. Prevê esta norma a tutela penal do direito fundamental consagrado no artigo 26°, nº1, da Constituição da República Portuguesa. O direito ao bom nome e reputação “consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação” (G. Canotilho e V. Moreira, C.R.P., anotada, 2a ed., vol. I, pág. 195). No nosso ordenamento jurídico a honra é vista como bem jurídico complexo que abrange o valor interior ou subjetivo que cada pessoa tem por si, mas também a sua reputação ou consideração exterior que a comunidade tem por essa pessoa, a valoração social da personalidade moral. Beleza dos Santos refere-se à honra como “aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e pelo que vale”, sendo a consideração “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público. (…) A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à autoavaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos de o não julgar um valor negativo” ("Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação e de Injúria", RLJ 92º, pág. 167 e 168). Nas palavras de Faria Costa, com este tipo legal protege-se a honra, “como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior, traduzida na estima e respeito que a personalidade moral de alguém infunde aos outros e que vai sendo adquirida ao longo dos anos (probidade e lealdade de carácter.” O que se protege, continua este autor, "é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade", a qual encontra o seu "fundamento essencial" na "irrenunciável dignidade pessoal". De todo o modo, assinala este professor, o bem jurídico honra tem menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe. “Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais - de limites extraordinariamente baixos - que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra. E a explicação para tal “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, para uma certa perda da sua importância relativa, pode justificar-se, segundo cremos, de diferentes modos e por diferentes vias. Por um lado, julgamos poder afirmar-se uma sua verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos que até algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana que é o núcleo daquilo a que chamamos honra. Referimo-nos a valores como a privacidade, a intimidade ou a imagem, que hoje já têm expressão constitucional e específica proteção através do direito penal. Por outro lado, cremos ser também indesmentível a erosão externa, a que a honra tem sido sujeita, quer por força da banalização dos ataques que sobre ela impendem - tão potenciados pela explosão dos meios de comunicação social e pela generalização do uso da internet, quer por força da consequente consciencialização coletiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reação criminal” (Comentário Conimbricense do Código Penal, I, Coimbra Editora, 1999, pág. 602 a 607). Não existirá, é certo, uma solução predefinida na determinação dos factos imputados ou juízos de valor emitidos suscetíveis de constituir ofensa à honra e consideração pessoal do visado. Antes, a análise deverá ser casuística, ponderando o contexto em que foram proferidas, a condição do agente e do visado, o seu conteúdo, assim como as interpretações possíveis e as motivações subjacentes. A natureza difamatória de determinada palavra ou expressão depende do lugar ou ambiente em que foi proferida, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre, sendo essa qualificação indiferente à maior ou menor suscetibilidade ou melindre do visado, determinada a partir do senso e experiência comum. Um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, explica-se no acórdão do TRG de 18-11-2002 – Des. Tomé Branco, deve constituir “um comportamento com objeto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio/moral da pessoa, da sua honra e consideração”. (in CJ 96, IV, 295). Ofensivo da honra e consideração, nas palavras de Beleza dos Santos, é “aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores. (...). Aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena" (ob. cit., pág. 165 e 166). Visto o bem jurídico protegido, o tipo objetivo inclui a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo. Trata-se de um crime de dano, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, mas de mera atividade quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da ação. Por outro lado, não é exigível que o agente atue com a intenção exclusiva de atingir o património moral de outrem, isto é, com animus diffamandi, bastando que genericamente configure essa circunstância como resultado da sua conduta. Estamos perante um crime de perigo abstrato-concreto, no qual o dolo se basta com a consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da ação previstos nas respetivas normas genéricas incriminadoras, não se exigindo para o preenchimento do elemento do tipo que a expressão injuriosa atinja efetivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado. Enformando tudo isto, a apreciação objetiva do conteúdo do comentário da autoria do arguido deve enquadrar-se sempre no princípio da intervenção mínima do Direito Penal, na medida em que este se deve restringir às situações – atenta a sua natureza – em que a violação dos bens jurídicos e os interesses postos em causa não são suficientemente acautelados pela intervenção de outros ramos do Direito, legitimando a intervenção sancionatória do Estado através do Direito Penal. Tal princípio, no âmbito do tipo legal do crime de difamação, exige que se convoquem critérios mínimos objetivos que permitam a intervenção deste ramo do Direito face à gravidade da conduta que terá de ser objetivamente difamatória e integrada no mínimo de anti juridicidade que legitime a intervenção do Direito Penal. Nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético, ou que “envergonha e perturba ou humilha, cabe na previsão das normas dos arts 180º e 181” (Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, pág. 37). A tutela penal não é extensível a comportamentos meramente indelicados ou, citando Oliveira Mendes, impertinentes. Podemos afirmar que para a identificação das situações em que a violação de um bem jurídico justifica a intervenção do direito penal nos socorremos da mencionado princípio constitucional da intervenção mínima do Direito Penal, consagrado no nº 2 do artº 18º da CRP, na sua dupla vertente. Por um lado, o direito penal corresponde à última ratio da política social, só devendo intervir quando não existirem ou sejam insuficientes outros meios ou mecanismos que assegurem essa proteção. Por outro, o direito penal tem natureza fragmentária ou caracter subsidiário, ou seja, apenas deve atuar na medida em que seja necessário para a proteção da sociedade, excluindo-se, por isso, da sua tutela as lesões insignificantes ou menos relevantes. Com efeito, dispõe o artigo 18.º, n.º 2 da CRP que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, preceito do qual se destaca também o princípio da proporcionalidade, que se “projecta na proibição do excesso na tutela dos bens jurídico-penais (dimensão negativa) e na justa medida das reacções penais (dimensão positiva).”, como se salienta no ac. do TRP de 8-05-2013 – Des. J. Gomes. Do exposto decorre que se afirma que uma expressão degradante só assume o carácter de difamação “quando nela não avulta em primeiro plano a discussão objetiva das questões mas antes o enxovalho das pessoas. (...). Só poderá falar-se de «difamação» quando o juízo de valor ou a crítica perdem todo o contacto com a obra, a prestação ou o problema que os motiva ou com a discussão das questões de interesse comunitário. E, em vez disso, passam a obedecer apenas ao propósito de rebaixamento de uma pessoa. Atingindo-a no sentimento de auto-estima ou ferindo-a na sua dignidade pessoal e consideração social" (Oliveira Mendes, ob.cit, pág. 43 e seg.). No acórdão da RP de 12.06.2002 - Des. Manuel Braz, melhor se concretiza esta ideia: “É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”. (www.dgsi.pt). Com tal desiderato e neste âmbito de análise indicamos algumas das concretizações jurisprudenciais dos Tribunais Superiores, nas quais se tem acentuado o referido princípio da intervenção mínima: “Atento o contexto em que o arguido chamou ladrão ao assistente, no seio de uma discussão sobre a devolução àquele por parte deste de determinada quantia, inexiste crime de injúria, pois que tal expressão não é objetivamente ofensiva da honra e consideração do comum dos cidadãos, não excedendo o comummente aceitável como exercício de qualquer liberdade de expressão, designadamente enquanto legitimo direito de crítica e indignação.” (acórdão do TRP de 19-10-2022 – Des. João Pereira Cardoso). “Os textos escritos pelo arguido de modo satírico, em que critica a postura de alguns médicos que se assumiram publicamente como negacionistas, entre eles a assistente, sobre a relevante questão da Covid e das políticas adotadas quanto a ela, numa altura de grave epidemia (Covid 19) que o país e o mundo viviam, ainda que podendo conter expressões de sentido depreciativo relativamente à pessoa da assistente, não alcançam o patamar de gravidade social, que lhes poderia conferir dignidade penal, não se inscrevendo por isso no âmbito do tipo incriminador objetivo do artigo 180.º do Código Penal.” (acórdão do TRL de 7-05-2024 – Des. Maria José Machado). “Lido o teor das publicações, apesar do seu teor irónico, pouco ortodoxo, subjetivo e deselegante, não se vislumbra que o arguido tenha imputado qualquer característica, defeito ou comportamento à assistente BB ou à forma como a mesma dirige a sua clínica ou efetua procedimentos médicos, ao ponto de expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público. Os comentários críticos foram dirigidos a dois tipos de procedimentos da medicina estética que foram objeto de publicação por parte das ora assistentes e não à qualidade do trabalho médico. Importa ter presente que o arguido se limitou a comentar, no estilo já qualificado, publicações das ora assistentes, procurando eliminar qualquer referência pessoal que associe aquelas a estas, emitindo juízos irónicos a respeito da publicidade a dois tratamentos de medicina estética realizados na Clínica ... Dra. BB.(…) O direito, enquanto limitador da liberdade de expressão, não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fira suscetibilidades das pessoas visadas. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Solução diversa representaria a negação de tal liberdade e violaria o princípio da intervenção mínima do direito penal – característico das sociedade democráticas.” (acórdão do TRP de 29-05-2024 – Des. Jorge Langweg). É pois questão fulcral saber se o comentário escrito e publicado pelo arguido, nas circunstâncias em que o foi tem força e significado bastante para se ter por objetivamente difamatório, ou seja, se pode ser objetivamente visto como lesivo da honra e consideração do assistente, ou se excede a dimensão tolerada, tendo em conta todas as condicionantes e, concretamente, o citado princípio constitucional. Por isso mesmo, a aferição da relevância penal do mencionado comentário de molde a formar um juízo sobre a tipicidade, exige para a sua integral compreensão a respetiva contextualização. A contextualização pode reportar-se ao sentido da expressão ou ao uso que lhe é dado em determinado contexto, pois a mesma palavra pode adquirir na linguagem comum diferentes significados, até opostos, tudo dependendo do contexto em que é empregue, como se salienta no acórdão do STJ de 13-03-2024 – Cons. Ana Brito: “Ensina Wittgenstein que o sentido de uma expressão não se obtém identificando o objecto que ela supostamente designa, mas sim atendendo ao uso que lhe é dado em cada contexto. E os significados são pelo menos tantos quantos os jogos de linguagem em que a podemos utilizar. A mesma palavra pode adquirir na linguagem comum diferentes significados, opostos até tudo dependendo do contexto em que é empregue, das regras do jogo de linguagem em que a encontremos. Por exemplo, o vocábulo “mentiroso” pode adquirir valor pejorativo na frase “ele é um mentiroso”, mas “és mentiroso” pode ganhar o sentido oposto quando dito em tom brejeiro e em resposta a um elogio que se recebe. Assim, e por maioria de razão, quando se trate da aferição da relevância penal de expressão dirigida a alguém, a contextualização torna-se ainda mais vital e absolutamente imprescindível.” A contextualização pode também referir-se ao momento, contexto e circunstâncias envolventes em que é proferida ou escrita, apreciando, como se explica no citado aresto, se nesse contexto, “atingiram (podiam atingir) a pessoa visada num quadro merecedor de tutela penal. Pois também à semelhança do que acontece com a realização dos tipos penais em geral, mas particularmente com o tipo em presença, utilizando agora palavras de Cavaleiro de Ferreira, “os crimes contra o pudor, a honra, a honestidade, são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade. Na avaliação sobre a tipicidade não pode deixar de relevar, insiste-se, o contexto em que a expressão desagradável é proferida.” Nesta medida, relevante para o preenchimento do tipo objetivo do crime de difamação é o meio onde se verifica a ofensa, a qualidade das pessoas entre quem ocorre e a forma como a mesma se realiza. Apenas essa contextualização permitirá aferir se o comentário publicado possui a intensidade e a seriedade exigida para o preenchimento do tipo objetivo previsto no artº 180º do Cód. Penal, o qual exige, nas palavras do Cons. Raúl Borges “a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração, mínimo este cuja aferição tem que ser feita, não com base na perspectiva subjectivista do ofendido, mas antes com base na contextualização do concreto facto ou juízo em causa.” (acórdão do STJ de 29-05-2019). Como é frequentemente referido na jurisprudência, as fronteiras da tipicidade dos crimes contra a honra não são fáceis de definir. São crimes nos quais assume atualidade a expressão de Welzel, mencionada no citado acórdão do STJ de 13-3-2024, de acordo com a qual os bens jurídicos não são peças de museu em redomas de vidro; vivem no mundo e sofrem o desgaste da interação social. Este jurista e filósofo defende que o Direito é algo de vivo e tem de se adaptar às alterações, evoluções e mesmo involuções do dia a dia das vivências e condições humanas, razão pela qual se exige que o aplicador esteja atento, de molde a perceber se a conduta revela o sentido ofensivo ínsito à realização do tipo. Por outro lado, a tutela constitucional da liberdade de expressão (artº 37º da CRP) e a conciliação destes direitos fundamentais, demanda a compressão mútua, de molde a retirar de cada um a máxima eficácia, alcançando um equilíbrio que preserve sempre a liberdade de expressão. Dispõe o art.º 37º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa que “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem descriminações”. Não se pretende com isto dizer que a honra vale menos hoje do que valia em 1959, expressão retirada do acórdão do TRL de 24-10-2018 – Des. Adelina Barradas Oliveira, mas que o conceito de honra se redimensionou ganhando peso em situações em que anteriormente não o detinha e perdendo noutras e que a primazia ou prevalência de honra ou da liberdade de expressão depende sempre da ponderação das circunstâncias do caso concreto. O equilíbrio que se busca deverá sempre garantir a liberdade de expressão, que constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e pluralista. De todo o modo, não podemos deixar de referir que durante um largo período de tempo a questão foi analisada essencialmente na perspetiva do direito à honra e suas ressalvas, sendo a regra a afirmação do direito à honra, porque integrante do direito de personalidade, e a exceção a cedência de tal direito em casos justificados. Durante um período de tempo que alguns autores situam na primeira década deste século, prevalecia sistematicamente nos nossos tribunais a tutela do direito à honra e ao bom nome, a que se atribuia um peso desmedido, em detrimento da liberdade de expressão, do que são exemplo os acórdãos do STJ de 14-2-2002, de 7-3-2002 e de 10-10-2002, todos citados no estudo publicado na RLJ nº 4035, “O direito ao bom nome e reputação ainda é reconhecido?” (pag. 355). Na última década a jurisprudência nacional tem vindo a abandonar tal metodologia, para o que certamente terão contribuído as decisões proferidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o qual, ao inverso do caminho trilhado pelos Tribunais nacionais, parte da tutela da liberdade de expressão que, posteriormente, comprime em função das restrições que entende serem justificadas. Regressando à mencionada mudança de paradigma regista-se que ficou a mesma fortalecida com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que ignora o direito à honra e estabelece no artº 11º, sob a epigrafe “Liberdade de expressão e de informação”: “1. Todas as pessoas têm direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras. 2. São respeitados a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social.” Ainda assim, como se salienta no ac. do STJ de 30-6-2011- Cons. João Bernardo, existe uma “discrepância entre os limites à liberdade de expressão que traçam as autoridades internas dos vários países – com destaque para Portugal – e os que o Tribunal internacional vem fixando, estabelecendo um círculo de aceitação muito mais alargado.”, consequência da tendência nacional para o individualismo que a tutela do direito à honra habitualmente protege e a visão internacional mais virada para as realidades coletivas, especialmente reportadas ao suporte da sociedade tal com ose pretende que ela seja.” Ora, uma das manifestações do direito à liberdade de expressão e de opinião, consagrado, não apenas na nossa lei fundamental, mas também no plano internacional a que já aludimos, é exatamente o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de critica. Ao nível do direito internacional, para além da CDF da União Europeia, o direito à liberdade de expressão e de opinião encontra consagração na Convenção dos Direitos do Homem (artigo 10º) e na Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 19º). O artº 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem dispõe que: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.” O artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) prescreve que: “Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideais sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia” (nº 1). Paralelamente, também ao nível do direito internacional, a tutela do direito à honra encontra a sua sede na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que prevê no seu art.º 12º que ninguém sofrerá ataques à sua honra e reputação, bem como na restrição prevista no nº 2 do artº 10º da Convenção dos Direitos do Homem: “O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do Poder Judicial”. As mencionadas Convenções, das quais Portugal é parte contratante, têm valor infra-constitucional, ainda que supra legal. Nessa medida, a tutela da liberdade de expressão no direito internacional não contende com a hierarquia normativa, nos termos da qual importa atender em primeiro lugar à nossa Constituição. Ora, tanto a liberdade de expressão, como o direito à reputação merecem consagração constitucional, ainda que nenhum deles tenha prevalência. A este propósito, explica Joaquim de Sousa Ribeiro, “Esta conexão com a esfera constitucional torna a solução a dar a esses casos de colisão permeável à influência das vinculações advindas para os poderes públicos, da consagração de direitos e liberdades fundamentais. Colidindo entre si um direito e uma liberdade com igual estatuto constitucional, a reposta do ordenamento jurídico terá que se ajustar, na medida do possível, tanto ao dever negativo de respeito como a dever positivo de proteção a que o Estado está sujeito, num difícil equilíbrio de exigências contraditórias.” (RLJ nº 4035, pág. 352 e 353). O mesmo autor prossegue, explicitando a metodologia para não se perder de vista que a proteção conferida ao direito à reputação representa uma interferência limitativa dos modos de exercício da liberdade de expressão. “Decidir se os limites da liberdade de expressão são extravasados por um dado conteúdo comunicacional que afeta negativamente a reputação de outro(s), por forma a justificar a sua qualificação como ofensa ilícita ao direito ao bom nome e à reputação (no plano civil) e como difamação (no plano criminal), é decidir sobre os limites que a garantia constitucional daquela liberdade sofre pela proteção constitucionalmente devida a este direito. A fronteira a estabelecer, a este propósito, entre o lícito e o ilícito, entre o exercício legítimo o exercício abusivo, não pode dispensar o atendimento da dimensão constitucional da colisão entre aquelas duas posições subjetivas.” Podemos até afirmar que cada um limita o exercício do outro, sendo exercidos até onde não interfiram um com o outro. Mas se interferirem deverá operar uma concordância prática entre ambos, comprimindo-se mutuamente, de modo a cada um deles possa ser exercido de modo mais amplo. Contudo, “se se atingir o patamar da incompatibilidade, não temos elementos para retirar a solução do texto constitucional. Nem o já falado artigo 16.º, n.º2, que impõe uma interpretação conforme à Declaração Universal dos Direitos do Homem, faz luz neste domínio porque, se nesta se tutela a honra, se tutela também em plano de igualdade, a “liberdade de opinião e de expressão”.” – acórdão do STJ de 30.6.2011 – Cons. João Bernardo. Neste caso, importa considerar que a CEDH está num plano superior ao das normas ordinárias de origem interna, devendo a sua interpretação deverá se efetuada à luz das sucessivas decisões do TEDH, ou seja, “as excepções à liberdade de expressão, nomeadamente para proteger a honra de outrem, devem ser interpretadas restritivamente e a necessidade das restrições deve ser determinada de modo convincente. …” (Iolanda Brito, citada no acórdão do TRL de 11.12.2019 – Des. João Abrunhosa e acórdão do TRP de 13.09.2017 – Des. Borges Martins). “Tanto o direito à liberdade de expressão como o direito à honra têm consagração constitucional (art.ºs 37º e 26º da CRP), sendo que nenhum se pode afirmar absolutamente sobre o outro. E verificado que seja um conflito entre tais direitos, deverá procurar-se uma solução que não passará pelo estabelecimento de uma ordem hierárquica entre eles, mas antes pela realização óptima de cada um, harmonizando-os segundo um princípio de concordância prática, para o que se deverá atender aos dados do caso concreto, usando-os segundo critérios de proporcionalidade, razoabilidade e adequação. Mas mesmo que na actuação individual concreta se possa considerar a existência de um desequilíbrio voluntariamente criado, designadamente um excesso no uso da liberdade de expressão, em violação do direito à honra ou consideração, vistas as coisas à luz do direito penal haverá sempre que ponderar a existência ou não de uma gravidade tal, em tal violação, que justifique a aplicação de uma sanção penal, isto é, de uma pena de prisão ou de multa” acórdão do TRP de 11-4-2019 - Francisco Mota Ribeiro. “O conflito entre esses dois direitos, haverá assim de ser resolvido mediante uma convivência pacífica onde ressalta os interesses legítimos que importa, em cada caso, acautelar, sendo chamado, em sede penal, a protecção enérgica do direito à Honra e ao bom Nome se, no caso, repete-se, se mostrar violado, sem qualquer fundamento legitimador, o exercício do direito de expressão, onde se insere o direito à critica. Neste contexto, é crucial o contributo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, definindo nos seus arestos quais são as características básicas que definem uma sociedade democrática e o papel que nela desempenha a liberdade de expressão. Aquela alta instância não se tem cansado, pois, de repetir, decisão após decisão, que o regime democrático é o único compatível com o sistema instituído pela Convenção Europeia, o que de resto decorre desde logo do próprio preâmbulo desta, como tem ainda sublinhado que de entre as características básicas de um qualquer regime democrático estão as noções de pluralismo, de tolerância e de espírito de abertura. Mais: nesta linha de reconhecimento do valor do confronto livre de ideias, tem o Tribunal Europeu sustentado consistentemente que a liberdade de expressão, está no coração de um regime democrático. Assim se compreende que a jurisprudência do Tribunal Europeu tenda a ser muito liberal na protecção da liberdade de expressão, particularmente no domínio político, e isso, mesmo que a linguagem empregue seja objectivamente ofensiva e até algo provocatória, ou ainda que se trate de ideias que choquem ou perturbem.”- acórdão do TRP de 27-11-2019 – Des. Raúl Esteves. Aqui chegados, nas situações, como a presente, em que esteja em causa o direito à honra, por um lado, e a liberdade de expressão, na sua vertente de direito à critica, não podemos deixar de considerar a posição que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a manifestar. A compressão deste direito só deverá ter lugar quando, em observância do princípio constitucional da proporcionalidade e ao carácter subsidiário ou fragmentário do direito penal, os direitos de personalidade, maxime o direito ao bom nome e reputação (art. 26º CRP), sejam verdadeiramente postos em causa de forma significativa, ou seja, com intensidade/seriedade, contextualizando sempre as concretas expressões proferidas. Logo, a agressão ao direito ao bom nome e reputação terá que assumir gravidade suficiente para justificar a interferência no direito de liberdade de expressão. A tutela do direito à reputação foi reconhecida pela primeira vez na decisão do caso Radio France and Others v. France, de 30 de março de 2004: “o direto à proteção da reputação é naturalmente um dos direitos garantidos pelo artigo 8.º da Convenção, como um elemento do direito ao respeito da vida privada.” (§31). Tal reconhecimento (tutela do direito à reputação) foi noutros casos considerado como proporcional aos objetivos legítimos perseguidos e necessário, de molde a justificar a compressão ou limitação do direito à liberdade de expressão, do que é um bom exemplo a decisão Kubli v. Switzerland, de 21 de fevereiro de 2002: “Ao avaliar se a interferência era “necessária numa sociedade democrática” dentro da interpretação do artigo 10 § 2 da Convenção, o tribunal lembra que a liberdade de expressão é aplicável não apenas a “informações” ou “ideias” que são favoravelmente recebidas ou consideradas inofensivas ou como uma questão de indiferença, mas também àquelas que ofendem, chocam ou perturbam. Tais são as exigências daquele pluralismo, tolerância e abertura de espírito sem os quais não há “sociedade democrática”. Conforme estabelecido no Artigo 10, essa liberdade está sujeita a exceções, que devem, no entanto, ser interpretadas estritamente, e a necessidade de quaisquer restrições deve ser estabelecida de forma convincente. Os Estados Contratantes têm uma certa margem de apreciação na avaliação se tal necessidade existe, mas isso anda de mãos dadas com uma supervisão europeia. Ao exercer sua jurisdição de supervisão, o tribunal deve analisar a interferência impugnada à luz do caso como um todo, incluindo o conteúdo das observações feitas contra o requerente e o contexto em que ele as fez. Em particular, deve determinar se a interferência em questão foi “proporcional aos objetivos legítimos perseguidos” (ver, inter alia, o julgamento Lingens v. Áustria de 8 de julho de 1986, Série A n.º 103, pp. 25-26, §§ 40-41; Janowski v. Polônia [GC], n.º 25716/94, ECHR 1999-I, pp. 199-200, § 30). No presente caso, o Tribunal observa que as pessoas criticadas pelo requerente, em particular XY, não estavam diretamente envolvidas nos procedimentos em questão. O Tribunal fica ainda impressionado com a seriedade e a natureza geral das acusações feitas pelo requerente. Além disso, o requerente não tinha sido, em princípio, proibido de fazer as declarações em questão. (…) Tendo em conta a margem de apreciação deixada aos Estados em tais questões e o cuidado com que as autoridades nacionais equilibraram os vários interesses, o Tribunal considera que a interferência nos direitos do requerente sob o Artigo 10 da Convenção poderia ser razoavelmente considerada "necessária em uma sociedade democrática ... para a prevenção da desordem".” De todo o modo, também importa destacar que nem sempre as decisões proferidas pelo TEDH primam pelo balanceamento dos interesses contrapostos e pelo reconhecimento do direito à reputação, do que é um bom exemplo o caso Freitas Rangel v. Portugal, de 11 de janeiro de 2022, no qual está patente a tendência do TEDH para, em matérias de interesse público, qualificar sistematicamente as afirmações como juízos de valor e não como declarações de facto. É certo que o TEDH, com refere Joaquim de Sousa Ribeiro, “não deixa de afirmar repetidamente que, em princípio, a liberdade de expressão e o direito à reputação “merecem igual respeito”, pelo que “a margem de apreciação deve, em teoria, ser a mesma em ambos os casos”. À luz desta posição, sublinha até que o resultado do balanceamento entre ambos não deve (também em “teoria”) variar consoante a questão tenha sido suscitada, ao abrigo do artigo 8.º, pela pessoa objeto do artigo, ou, sob invocação do artigo 10º, por quem o publicou.” (ob. cit. pág. 358). Porém, conclui o citado autor que esta diretriz permanece, na maioria dos casos “letra morta”, prevalecendo de forma avassaladora a liberdade de expressão. Revertendo ao caso concreto de molde a apurar se o comentário publicado pelo arguido - mormente quando afirma “Eles estavam aqui a proteger algo, não sei ao certo, talvez um envelope mensal? Uma possível comissão na hipotética venda de galgos?” - preenche o elemento objetivo do ilícito cuja prática lhe foi imputada, ou seja, assume gravidade suficiente para justificar a compressão do direito de liberdade de expressão. Aqui chegados constatamos que a publicação dos comentários que o arguido fez teve a sua origem num incêndio que deflagrou e que atingiu dois abrigos para animais e ocorreu no dia seguinte ao desse incêndio, incêndio em consequência do qual faleceram cerca de 73 animais. O tribunal a quo, quanto aos comentários produzidos por AA, considerou que, ao publicar tal texto, o arguido tinha apenas o propósito de criticar a conduta do Comandante da GNR, de manifestar o seu desagrado sobre a atuação da GNR que impediu os voluntários de tentaram salvar os animais que se encontravam fechados num abrigo de animais, que ou ainda estaria em chamas ou, pelo menos, tinha ardido e tinha muito fumo. Assim, o tribunal a quo considerou que o arguido apenas pretendeu expressar a sua opinião, ainda que não da forma mais adequada. A situação vivenciada foi descrita como traumatizante, um cenário dantesco, difícil de esquecer. Foi referenciado o sentimento de desalento, desânimo e até revolta, por terem sido impedidos pela GNR de entrar no abrigo de animais, uma vez que entendiam que era ainda possível salvar alguns animais, que já não estavam vivos no dia seguinte, possibilidade essa que não foi afastada pelo tribunal a quo. Foi ainda mencionado o conjunto de comentários de indignação de vários cidadãos que foram publicados, bem como a repercussão que este concreto caso teve na comunicação social e na opinião pública. Foi entendido pelo tribunal a quo que os comentários raiam a falta de educação, sendo os mesmos excessivos e desnecessária a colocação daquelas hipóteses, que não se limitou à análise objetiva e crítica da atuação do Comandante da GNR, havendo um excesso na forma de crítica do arguido à atuação da GNR. Porém, entende ainda que o contexto de desanimo e revolta em que os comentários e cartoon foram publicados contextualiza tal publicação e explica a razão do excesso que apenas teve o propósito de criticar a atuação do assistente naquele concreto momento. As perguntas que são lançadas são várias e em diversos sentidos, não insistindo o arguido em nenhuma das hipóteses, não sendo essas perguntas, pela forma como são colocadas, suficientes para considerar que está a ser imputado ao agente CC um concreto juízo, ainda que sob a forma de suspeita. Todos estes comentários são uma crítica (livre em Estado de Direito Democrático) à atuação do agente e não atentam contra a pessoa do agente CC. As perguntas colocadas não chegam a poder ser consideradas como suspeitas, dado que são em diversos sentidos e conforme escrito no comentário “meras hipóteses”, tudo genérico, percebendo-se da leitura do comentário que se tratam de meras perguntas e hipóteses não sérias, sem o mínimo de sustento. De tudo o que já dissemos e da materialidade que resulta da sentença impugnada cumpre destacar o contexto e o teor das afirmações. Quanto ao contexto: um incêndio que atingiu dois abrigos para animais, que provocou a morte de 73 desses animais, a circunstância do arguido, Comandante da GNR, ter impedido a entrada de pessoas no abrigo, quando estas entendiam que era ainda possível salvar alguns animais, animais esses que já não estavam vivos no dia seguinte, possibilidade essa que não foi afastada pelo tribunal a quo, o cenário traumatizante vivido por quem pretendia salvar animais ainda com vida, o sentimento de revolta e desânimo, o conjunto de comentários de indignação de vários outros cidadãos que foram publicados e a repercussão que este concreto caso teve na comunicação social e na opinião pública. Destacamos, ainda, o teor das afirmações proferidas, desagregadas entre si: - eles estavam aqui a proteger algo, não sei ao certo, talvez um envelope mensal? Uma possível comissão na hipotética venda de galgos? - é difícil justificar este comportamento do 1º Sargento CC, Comandante do Posto da GNR ... sem entrar por eventuais cumplicidades em algo ilícito, proteção de familiares, talvez amante de uma das loucas ou simplesmente demência temporária ou estupidez permanente, - a arrogância assassina deste sargento que reconheceu que ia ficar a noite toda a impedir o salvamento dos animais, - este indivíduo e a sua cabo são tão culpados como o Veterinário Municipal e as proprietárias dos terrenos. Com a ressalva que elas são doentes mentais. Eles apenas gente sem valores humanos. Entendemos, à semelhança do que fez o tribunal a quo, que o texto publicado traduz um juízo critico, uma opinião negativa e desfavorável sobre o desempenho profissional do assistente naquele evento. Como já explicitamos, as expressões proferidas não podem ser compreendidas literalmente, mas sempre integradas no contexto em que foram produzidas. Esse contexto, de choque e estupefação perante a proibição de entrada nos abrigos de animais que tinham sido atingidos pelo fogo e nos quais ainda havia animais, conduz-nos para o âmbito da atuação profissional do assistente. Depreende-se de todo o texto que as hipóteses que o arguido coloca visam dar visibilidade à situação que foi vivenciada, apresentando um juízo crítico sobre a atuação do assistente. Mas, diremos nós, mais do que isso. Retira-se da materialidade apurada na sentença que o sentimento que dominou o arguido foi o de incompreensão pela atitude profissional do assistente. E no texto que escreve e publica essa incompreensão está patente nas perguntas que apresenta, notoriamente disparatadas e incompreensíveis. Afigura-se-nos, então, que o âmago do contexto em que foi publicado o comentário é de incompreensão e que as questões que coloca têm nesse contexto a sua justificação. São hipóteses tão dispares entre si, que raiam o absurdo, resultando das mesmas que, na opinião do arguido, a atitude profissional do assistente é injustificada. Não queremos com isto atenuar ou aligeirar o alcance das expressões utilizadas, concretamente aquela que atinge a esfera da vida privada do assistente (referência às amantes) e a que indica que a atuação se justificaria com o recebimento de dinheiro (imputação a que subjaz a prática de um evento incriminador). Aliás, analisadas atomisticamente as expressões publicadas forçoso seria concluir que estamos perante declarações de facto e não juízos de valor. Contudo, tendo presente que as declarações devem ser interpretadas no contexto específico em que foram feitas, que tais afirmações foram produzidas no âmbito de uma posição crítica que estava a ser manifestada de modo muito intensa, entendemos a mencionada imputação factual se dilui na apreciação de valor, não assumindo relevo autónomo, quer pela amplitude do juízo crítico manifestado, quer pela disparidade das imputações factuais que, por essa mesma razão, acabam por ter reduzido alcance e significado. A conclusão pela inexistência de um ataque à honra ou ética quando, do contexto se conclui que as palavras proferidas se destinaram tão somente a apresentar uma crítica – em forma de desabafo – e que visaram exclusivamente o aspeto profissional do desempenho do visado (no caso, Magistrado do Ministério Público), concretamente a sua falta de ação ou inércia no desempenho processual, resulta patente na recente decisão no caso Veiga Cardoso v. Portugal, de 16 de janeiro de 2024. Esta decisão ancorou-se nas seguintes declarações, proferidas pelo aí queixoso perante as técnicas sociais, no âmbito do processo de promoção e proteção no qual foi interveniente e referindo-se ao Magistrado do Ministério Público: “isto é um enxovalho, aquilo não é um tribunal não é nada, aquele procurador, (…) é um indivíduo que bebe uns copos ou sei lá, não abre a boca”. O TEDH discordou da visão do tribunal nacional, tendo destacado o facto de terem sido proferidas num ambiente institucional, onde não seria espetável que os profissionais iriam reportar suas palavras ao tribunal (o que não se pode transpor para caso em análise), mas também consideraram o facto de tais palavras terem sido proferidas em direta reação à implementação de visitas supervisionadas com sua filha pelo Tribunal de Família e Menores, bem como tom irónico usado, para concluir o TEDH que os comentários constituíram uma crítica – em forma de desabafo – e que visaram exclusivamente o aspeto profissional do desempenho do Magistrado do Ministério Público e, em particular, à sua falta de ação ou inércia perante aquele concreto processo de promoção e proteção. O TEDH foi ainda mais longe, afirmando que “as declarações impugnadas como um todo (ver parágrafo 2 acima) podem ser vistas como um comentário mais amplo sobre o funcionamento do judiciário, uma área onde um grau de hostilidade e comentários potencialmente sérios podem ser aceites (ver Bédat v. Suíça [GC], n.º 56925/08, § 49, 29 de março de 2016). Na opinião do Tribunal, os tribunais nacionais não explicaram suficientemente como é que o requerente tinha ido além do seu direito à crítica e por que razão o seu direito de expressar a sua opinião deveria ter sido limitado (ver, a este respeito, Morice, citado acima, § 131, e comparar Gouveia Gomes Fernandes e Freitas e Costa, citados acima, § 52).” (§18). E, muito embora reconheça que o requerente fez uso de linguagem vulgar e que as acusações podem ser consideradas sérias, sustenta que os procuradores são servidores públicos cuja tarefa é contribuir para a administração adequada da justiça, fazendo parte da máquina judicial no sentido mais amplo do termo. Concluindo, então, que numa sociedade democrática, os indivíduos têm o direito de comentar e criticar a administração da justiça e os funcionários envolvidos nela, recaindo sobre estes um alto grau de tolerância, embora não idêntico ao esperado dos políticos. Uma vez que o texto publicado traduz um juízo critico, uma opinião negativa e desfavorável sobre o desempenho profissional do assistente naquele evento, será a mesma idónea a atingir o essencial do direito à honra e consideração do assistente? Também entendemos que não. O facto de as perguntas serem lançadas em diversos sentidos, como muito bem salienta a sentença recorrida, constitui um elemento chave. O arguido não insiste em nenhuma das hipóteses, transmite de modo muito claro que não está a imputar um juízo concreto, ainda que sob a forma de suspeita, mas uma critica. Mas, mais do que aquilo que o arguido afirma no próprio comentário, a leitura do mesmo transmite a ideia de que está a expressar a sua incompreensão pela atitude do assistente e que para enfatizar essa incompreensão coloca várias hipóteses, como ele próprio refere, dispares entre si, mesmo sem nexo, e que notoriamente se apresentam com ironia e com o aparente propósito de conferir relevância à critica e discordância, mas também à atuação do aqui assistente. Por outro lado, a qualidade em que o assistente estava presente no local do sinistro, como Comandante do posto da GNR, faz recair sobre si uma maior aceitabilidade de expressões, ainda que “chocantes ou ofensivas”, mas que se situam fora do círculo traçado pela interpretação restritiva do nº 2 do mencionado artigo 10.º da CEDH (cfr. acórdão do STJ de 30-06-2011 – Cons. João Bernardo. Não se quer com isto significar que, em razão da sua qualidade profissional, tudo tenha que ser suportado. Antes pelo contrário, os funcionários públicos devem desfrutar da confiança pública em condições livres de perturbação indevida se quiserem ter sucesso no desempenho de suas tarefas, razão pela qual pode ser necessário protegê-los de ataques verbais ofensivos e abusivos quando em serviço. Porém, os limites da crítica aceitável em relação aos funcionários públicos em exercício de funções podem, reconhecidamente, em algumas circunstâncias ser mais amplos do que em relação a indivíduos privados, como se explica e defende no caso Lesnik v. Slovakia, proferido em 11 de Junho de 2003, pois quem exerce cargos com relevância/expressão pública tem um qualificado dever de suportar as críticas inerentes à sua actividade, ainda que infundadas e duras, com exceção das situações em que se apresentem notoriamente gratuitas ou infundadas. No caso em análise, sobressai a crítica com notória ironia quanto à atuação do assistente, ou seja, o foco é a discussão da situação que foi vivenciada e não o enxovalho do assistente. Concluímos, então, que a factualidade provada não integra o tipo objetivo do crime de difamação. Nessa medida e porque a prova do elemento subjetivo decorre da ponderação de critérios de lógica e coerência inexiste o apontado vício de erro notório, improcedendo o recurso interposto pelo assistente e confirmando-se a decisão recorrida. V. Decisão Pelo exposto acordam os Juízes da 4ª secção desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente. Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4UC. Porto, 2025-01-08 Isabel Matos Namora José Castro [Voto de vencido: Analisados os fundamentos aduzidos no presente acórdão, apesar de estar de acordo com as suas premissas quanto ao tipo legal em causa, discordo das suas conclusões. A matéria objetivamente demonstrada e constante do ponto 16.º dos factos provados, para além de suspeitas de corrupção, lança suspeita de ligação amorosa entre o assistente e uma das donas do abrigo. Ainda que tais expressões tenham sido proferidas num contexto dramático, extravasam, na minha visão, a liberdade de opinião/expressão, ou a mera má educação/rudeza de discurso de alguém com formação superior, membro de um partido vocacionado para a proteção dos animais e da natureza e com funções autárquicas. Não estamos no domínio da liberdade de expressão, mas no domínio da libertinagem de expressão, ainda que em contexto de eventual legítima indignação pela atuação da GNR - e do assistente - no dia 19.07.2020 de impedir os voluntários de aceder a um dos abrigos para dali retirar os animais, colocando-os a salvo dos efeitos do incêndio que tinha deflagrado dias antes na ..., em Santo Tirso. Nesse contexto, não seria digno de tutela penal, por exemplo, apodar o assistente de incompetente ou as expressões utilizadas pelo coarguido BB (aliás, absolvido). Todavia, s.m.o., parece-nos claramente digna de tutela penal - mesmo tendo presente o disposto no art.º 18.º, n.º 2, da CRP e o princípio da intervenção mínima do direito penal - o lançamento de suspeitas de corrupção ou de ligações de amantismo ante a incompreensão dos motivos que determinaram a atuação do assistente, comandante de um posto da GNR e que atou no âmbito dessas funções. O bem jurídico que a incriminação prevista no tipo legal visa proteger foi assim ferido pelo arguido AA no seu núcleo essencial, em prol de um suposto direito de libertinagem de expressão (e que por isso não merece a tutela do direito, conforme sucede com o exercício manifestamente abusivo de qualquer direito – cfr. o art.º 334.º do Código Civil), sendo certo que, s.m.o., o direito à honra e consideração do assistente não seria suficientemente protegido por outro ramo do direito. Acresce que a intenção que preside a um comportamento se deve deduzir - com base nas regras da experiência comum - dos atos de natureza objetiva empreendidos pelo agente. Na lição do Professor Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, Verbo, 2011, Vol. II, pág.188.), regras da experiência comum, «são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Tem origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade.» Sendo o arguido AA pessoa de normal senso, das expressões que utilizou no comentário efetuado na rede social Facebook retira-se, sem margem para qualquer dúvida razoável, a intenção de achincalhar o bom nome do assistente e não apenas o seu legítimo direito à indignação e opinião, imputando sem fundamento, sob a forma de suspeita, factos suscetíveis de procedimento criminal e disciplinar visando CC. Nessa conformidade, entendo que ocorreu o erro notório na apreciação da prova [al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP], pelo que alteraria em conformidade a matéria de facto quanto ao respetivo elemento subjetivo (no sentido da sua prova) e condenaria o arguido AA pelo crime que lhe é imputado pelo assistente CC.] Maria João Ferreira Lopes |